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Universidade de Lisboa
Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa
A importância da liberdade na correspondência entre Gottfried
Leibniz e Samuel Clarke (1715/1716)
Análise temática da totalidade da polémica
Joaquim Nunes Narciso
Vol. II
Anexo, bibliografia, transcrições e índice remissivo
Dissertação orientada pelo
Prof. Dr. Pedro Alves
Mestrado em Filosofia
2015
154
Anexo – Conceções de religião natural
Esta temática já foi abordada em VI. 2, mas de forma superficial e subordinada a outro tema.
Foi visto logo em I. 2. que Leibniz acusava a Inglaterra de permitir que a religião natural se
enfraquecesse extremamente.1 É insólito que, ao que parece, ninguém tenha achado a acusação
estranha porque, numa acusação religiosa, pareceria mais natural incidir-se sobre o não cumprimento
ou respeito dos dogmas, ou seja, dos artigos de fé da religião revelada. Mas Clarke não só não negou
a acusação, como a confirmou e concordou com ela, apenas a estendendo também a outros países.
Afirmou mesmo que há pessoas que negam a religião natural (repare-se, não a revelada, não uma
confissão) ou que a corrompem extremamente (idem), atribuindo o facto ao desregulamento dos
costumes e à filosofia materialista.2 A discussão desvia-se em seguida para o materialismo que
Clarke associará à fatalidade e necessidade, correlacionando as explicações mecanicistas com a
ausência de liberdade, e que Leibniz associará aos princípios matemáticos da filosofia,
correlacionando estes com o atomismo antigo. Mesmo esta específica discussão não terá grande
continuidade, visto a última referência aos materialistas surgir na segunda réplica de Clarke.3 Uma
única outra menção parece estar relacionada com a noção de religião natural, a referência leibniziana
à teologia natural considerada demonstrada através do princípio da razão suficiente.4 De facto, a
teologia natural parece ser tomada, na passagem, como estreitamente associada à metafísica, senão
sinónimo da mesma, o que será, porventura, significativo para esta análise. Embora não se utilize
mais o conceito, o que poderia levar a pensar que teria apenas servido de tiro de partida para temas
bem mais interessantes e importantes para os próprios autores, não deixa de ser curioso que, na
dedicatória à princesa da sua edição da polémica, já após a polémica, em balanço da mesma, Clarke
centre a sua atenção sobre a temática da religião natural e outras questões religiosas que considerava
associadas. Poder-se-á dar o caso de bem mais de meio mundo, na própria época e muito mais ainda
depois, estar a pensar que se estava a tratar, na polémica, predominantemente de filosofia natural,
quando afinal o que estava em causa era a religião?
Nessa dedicatória, Clarke enuncia quase uma definição de religião natural e estabelece a sua
relação com a revelada. As "Grandes e Fundamentais Verdades da Religião Natural" foram
"universalmente implantadas, em algum grau," pela "Sabedoria da Providência", "mesmo nas Mentes
das Pessoas com as Menores Capacidades," incapazes de "examinar Provas demonstrativas."5 Por
sua vez, esta religião é condição de possibilidade da religião revelada: "A Cristandade pressupõe a
Verdade da Religião Natural. Seja o que for que subverta a Religião Natural, subverte,
consequentemente, muito mais a Cristandade: e seja o que for que tenda a confirmar a Religião
Natural, está proporcionalmente ao Serviço do Verdadeiro Interesse da Cristã."6 Não pareceria,
através destas declarações, que se avançasse alguma coisa em relação ao declarado na polémica. De
facto, o aparente entendimento na polémica é conseguido através da declaração de umas
generalidades mínimas com que ambos poderiam concordar, uma espécie de latitudinarismo teórico
básico que mantinha as aparências. Nada a dedicatória parecia acrescentar a esse entendimento
elementar. Mas não é assim. A noção de religião natural partilha, nesta época, a equivocidade ligada
a diversos empregos do adjetivo. Aparentemente, todos se inspiravam na mesma noção que estava
presente na sistemática expressão cartesiana "luz natural da razão". Porém, uma coisa era entender o
natural como aquilo que advém do uso natural da razão, sobretudo se subordinado a um bom uso, e
outra era entendê-lo como o que era original, o que provém das origens naturais da humanidade. A
equivocidade era até intensificada quando se pretendia que essa origem correspondia ao bom uso da
1 Leibniz, op. cit., Tomo I, Recueil de lettres entre Leibniz e Clarke, 1º escrito, §§ 1-3, p.732, G, VII, 352.
2 Roger Ariew, op. cit., 1ª réplica, § 1, p. 5, G, VII, 353.
3 Roger Ariew, op. cit., 2ª réplica, § 1, p. 11, G, VII, 359. AP.
4 Leibniz, op. cit., 2º escrito, § 1, p.736, G, VII, 356. Transcrito em II. 1.
5 Samuel Clarke, op. cit., To Her Royal Highness, The Princess of Wales, pp. vii-viii. AP.
6 ibidem, p. vi. AP.
155
razão. Ora, Clarke tenta fazer passar a sua conceção de religião natural como sendo consensual,
quando, pelo contrário, não só é bem diferente da de Leibniz, como, porventura, encontra-se aqui
uma das maiores oposições entre Leibniz e, sobretudo, o próprio Newton. Como escolástico
newtoniano apostado na apologética da filosofia do mentor no terreno do inimigo, a metafísica,
poderá a sua conceção não parecer tão oposta à de Leibniz como a de Newton. Isso não significa,
como já foi visto várias vezes, que Clarke não tenha a mesma oposição à metafísica que Newton,
como o atesta a história que Whiston conta a propósito das Conferências de Boyle.7
Em primeiro lugar, não é claro que Leibniz considere a religião natural uma espécie de
substrato religioso acessível a todos os homens, por mais limitados e estultos que pudessem ser. Pelo
contrário, parece fazer uma clara distinção entre a religião do povo e a religião dos sábios, ao menos
no que se refere às religiões não cristãs.8 Antes do cristianismo, a religião natural seria a dos sábios e
não a do povo. Em segundo lugar, o cristianismo, para Leibniz, não desenvolveu simplesmente uma
religião natural dada a todos os homens, antes tornou acessível ao povo a anterior religião dos
sábios.9 Surpreendentemente, para a época, considera que Maomé não se afastou dos grandes
dogmas da Teologia Natural. Pelo contrário, Clarke considera o cristianismo não só a única religião
atual razoável, mas também a única que sequer tem aparência de o ser.10
Porém, pelo menos a
perspetiva apresentada por Clarke nas Conferências de Boyle, não é muito diferente da de Leibniz.
Clarke considerava que o único verdadeiro deísmo que pode ter existido seria o dos filósofos pagãos
anteriores à revelação,11
não passando todos os outros de ateísmo disfarçado (incluindo, segundo a
sua tese, com já foi visto em II. 5 e VI. 1, o de Leibniz). Esse deísmo daria origem, sobretudo, ao
cultivo das virtudes, imitando os atributos morais de Deus, obrigações inerentes à religião natural.12
Chega a reconhecer – no meio de uma argumentação cujo objetivo é o de salvaguardar a liberdade
divina, não obrigando Deus nem à revelação a todos, nem à concessão de idênticas capacidades –
que, não tendo dado Deus as mesmas capacidades a todos, nem todos poderiam conhecer a própria
religião natural.13
Mas, embora para sustentar como os homens precisavam da revelação, Clarke
acaba por fazer uma declaração que coloca a questão de uma outra forma: "nem todos os homens são
capazes de ser filósofos, mas todos estão igualmente obrigados a ser religiosos."14
Mas como estão
obrigados a ser religiosos, se poucos tiveram acesso à revelação? Embora de forma não muito clara,
Clarke desvenda um pouco das conceções newtonianas ao considerar que Deus se revelou àqueles
que tinham genuína vontade de cumprir a sua vontade, sendo a religião natural confirmada, desde o
início, por uma perpétua tradição em Famílias particulares que aderiram à adoração do Deus da
Natureza.15
Em seguida, são nomeados os Judeus, não como constituindo essas famílias, mas como
uma adição, uma nação que também preservou essa tradição. Assim, o fundamento da religião
natural poderá ser o de uma revelação ou natureza original que sempre esteve acessível aos homens.
Regressando a Leibniz, em terceiro lugar, apesar de considerar que o cristianismo tornou
popular a religião dos sábios, não deixa de distinguir uma teologia natural da teologia revelada, mas,
sobretudo, considera que aquela completa esta, considerada, aliás, tal como nos newtonianos, mas
7 William Whiston, Historical Memoirs of the Life of Dr. Samuel Clarke being A Supplement to Dr. Sykes's and Bishop
Hoadley's Accounts. Including certain Memoirs of several of Dr. Clarke's Friends., London, Fletcher Gyles and J.
Roberts, 1730, p. 11. AP. 8 Na passagem seguinte, tinha referido vários exemplos da Antiguidade, sendo o último exemplo, o zoroástrico, mas
incluindo uma clara generalização: Leibniz, op. cit., Tomo II, Essais de Théodicée, 2ª parte, §137, p.175, G, VI, 191. AP. 9 Leibniz, op. cit., Préface, p. 3, G, VI, 26-7. AP.
10 Samuel Clarke, A Discourse concerning..., 10
th. ed., London, H. Woodfall e outros, 1767, A Discourse concerning the
Unchangeable Obligations..., p. 9. AP. Veja-se como rejeita a condescendência feita por Leibniz a Maomé (assim como
o judaísmo), ibidem, p. 167. 11
Samuel Clarke, op. cit., p. 25. AP. 12
Samuel Clarke, op. cit., p. 94; ibidem, p. 132. AP. 13
Samuel Clarke, op. cit., p. 166. AP. Cf., ibidem, p. 201. 14
Samuel Clarke, op. cit., p. 93. AP. 15
Samuel Clarke, op. cit., p. 238. AP.
156
com diversa valorização, a parte empírica da religião,16
o que significa que a teologia revelada é um
corpo inacabado se não recorrer à razão natural.17
Ao passo que, em Clarke, a razão apenas permite
atingir uma verdade abstrata e insuficiente que é plenamente manifestada na revelação cristã, sem
maior necessidade de teologia natural autónoma, Leibniz considerava que a luz da razão não é menos
um dom de Deus do que a revelação,18
pelo que se, de facto, estivessem em conflito, isso significaria
que Deus estaria a combater contra Deus.19
Mas poder-se-á perguntar, em quarto lugar, se não
existirá, em Leibniz, um primado da razão sobre a fé, visto a fé se fundar na razão, tendo em conta
que a razão é precisa para, por exemplo, preferir a Bíblia ao Corão ou aos livros bramânicos;20
aliás,
Leibniz defende que o próprio Cristo não pregava senão a virtude ensinada pela razão natural,
preterindo, muitas vezes, os milagres em favor da pregação;21
no mesmo passo, em que Leibniz está
a atacar o entusiasmo, aproximadamente aquilo a que hoje se chama fanatismo, afirma mesmo que
não são precisas novas revelações e, consequentemente, milagres, bastando as regras salutares
(presume-se, razoáveis) de comportamento; por outro lado, se não se conseguisse suportar um dogma
contra as objeções, não existiria fundamento para crer, visto tudo o que puder ser refutado de forma
sólida e demonstrativa não poder deixar de ser falso;22
uma verdade não pode sofrer objeções
invencíveis, pelo que se existir uma tal objeção, a falsidade da tese é demonstrada e deve deixar de
ser objeto de fé.23
Embora Leibniz tente mostrar que a verdadeira revelação não pode conter destas
teses, nascendo elas de interpretações defeituosas, a verdade é que a razão surge aqui como critério
de deliberação, ao menos quanto à condição de possibilidade, em relação à fé. Naturalmente,
admitem-se verdades acima da razão, mas não contra a razão,24
pelo que, mesmo os mistérios,
deverão ser, ao menos, possíveis, ou seja, não absurdos.25
Finalmente, em quinto lugar, pode-se
esclarecer a correlação implícita na polémica entre metafísica e teologia natural. A teologia natural
apenas não se identifica com a metafísica porque, contrariamente ao que se poderia pensar visto não
ser só Deus o objeto da metafísica, é mais abrangente: inclui não só toda a metafísica mas também a
moral.26
Quanto às expressões "teologia natural" e "religião natural", embora possam não ser
exatamente sinónimas, estão muito próximas uma da outra. Raramente surgem juntas, eventualmente
por serem quase sinónimas, mas na passagem já citada em que se refere a Cristo e a Maomé,
sucessivamente, são utilizadas as duas como se se referissem à mesma realidade. Desta forma,
pode-se considerar a religião natural como a expressão da razão natural tanto no domínio prático,
como teórico, correspondendo este último à metafísica corretamente demonstrada pela razão natural,
ou seja, por recurso ao princípio da razão suficiente.
Será que este primado da racionalidade não ocorre, igualmente, do lado newtoniano? Talvez
16
Leibniz, op. cit., Tomo II, Essais de Théodicée, Discours…, § 1, pp. 27-28, G, VI, 49-50. AP. 17
Leibniz, op. cit., Tomo I, Nouveaux essais..., L. IV, Ch. VII, § 11, p. 378, G, V, 396. AP. 18
Leibniz, op. cit.,Tomo II, Essais de Théodicée, Discours de la Conformité..., § 29, p. 48, G, VI, 67. AP. 19
Leibniz, op. cit, § 39, p. 54, G, VI, 73. AP. 20
Leibniz, op. cit., Tomo I, Nouveaux essais..., L. IV, Ch. XVII, § 23, p. 461, G, V, 477. AP. 21
Leibniz, op. cit., Ch. XIX, p. 477-478, G, V, 491. AP. 22
Leibniz, op. cit.,Tomo II, Essais de Théodicée, Discours de la Conformité..., § 5, p. 30, G, VI, 52. A confiança
leibniziana nos recursos lógicos da razão (o seu "calculemos!") é bem conhecida e é aqui reafirmada, ibidem, § 65, p. 69,
G, VI, 87. AP. 23
Leibniz, op. cit., § 25, p. 46, G, VI, 65; ibidem, § 39, p. 54, G, VI, 73. AP. E fornece, aliás, exemplos de tal refutação: a
danação dos bebés e dos adultos sem as luzes necessárias à salvação. 24
Leibniz, op. cit., § 23, p. 45, G, VI, 64; ibidem, § 60, p. 65, G, VI, 83. AP. 25
Leibniz, op. cit., § 28, p. 48, G, VI, 67. AP. 26
Leibniz, op. cit., Tomo I, Nouveaux essais..., L. IV, Ch. VIII, § 9 (indicado 5 na ed. Janet), p. 461, G, V, 413. Numa
das falas de Filaleto que não corresponde, de todo, ao texto de Locke (cf. John Locke, An Essay concerning Humane
Understanding, (1st. ed., 1690) 4
th. ed. with large additions, London, Awnsham and John Churchil/Samuel Manship,
1700, p. 328), cujas teses só surgem posteriormente: Leibniz, op. cit., Ch. III, § 18, p. 346, G, V, 364-5. AP. A esta luz, a
aparente identificação entre metafísica e teologia natural, num passo já citado (em IV. 6, nota 247), onde diz que "a
Metafísica é a teologia natural", talvez se possa entender, se existir algum descuido na linguagem, como uma inclusão ou,
então, supõe que se percebe estar apenas a referir-se à parte teórica da teologia natural: Leibniz, "Carta para a duquesa
Sofia de Hannover" in G, IV, 292. Não deixa, porém, de ser claro que, para Leibniz, toda a metafísica é teológica.
157
sim, mas não é o mesmo. Indo por partes, contrariamente a Leibniz que afirmava a religião revelada
como incompleta sem a natural, em Clarke, pelo contrário, é a natural, ao menos enquanto entendida
como religião dos sábios anteriores à revelação, que surge como algo abstrato, incompleto,
desarticulado e incapaz de conter a corrupção humana. Cita Lactâncio para afirmar que os filósofos,
tomados todos em conjunto, descobriram de facto todas as doutrinas particulares da verdadeira
revelação, mas isto foi feito por diferentes homens, em diferentes tempos e de diferentes maneiras,
concorrendo entre si, não tendo havido nenhum homem capaz de reunir estas verdades num único
esquema consistente.27
Assim, a revelação era requerida pela razão, suplementa a razão28
e fornece a
força necessária para conter a corrupção.29
Mas, embora muitas doutrinas tivessem de ser reveladas,
depois mostram-se racionais.30
Tudo isto parece demasiado semelhante às teses de Leibniz,
parecendo apenas se diferenciar num pendor levemente maior para a revelação. Mas, de facto, não é
assim. A razão confunde-se com os objetos de fé, considerando provas racionais os relatos bíblicos,
as profecias (e as suas interpretações) e argumentos de uma singeleza pueril: por exemplo, como
prova da verdade, os martírios, os milagres, a semelhança da mensagem, a fidelidade à causa ou a
extensão geográfica da sua ação,31
tudo exemplos que poderiam ser dados até de confissões bem
mais recentes contraditórias entre si, todas com mártires, com alegações de milagres, com uma
mensagem determinada por uma doutrina, com pessoas leais e abrangendo diversas nações! E depois
de dezenas de páginas de argumentos deste nível e de outras menções bíblicas, considera-se tudo
racionalmente provado.32
Mesmo que a argumentação leibniziana tenha fragilidades, não confunde
referências deste tipo com demonstrações racionais, como se pode ver na Teodiceia cujo objetivo não
é muito diverso deste Discurso. Clarke poderia dizer que se trata apenas de uma certeza moral,
contrariamente à que pretendia na outra conferência, a de 1704.33
Mas o que, de facto, está a fazer é a
tentar passar objetos de pura e simples fé por provas racionais. Ora, qualquer um pode se habituar de
tal forma a uma alegada verdade de fé que acaba por a considerar racional, mas isso retira o conteúdo
à razão. Será que é só isto que está presente nesta conceção de racionalidade?
Numa passagem célebre das Duas notáveis corrupções, Newton declara: "Se se disser que
não devemos determinar o que é Escritura e o que não é, pelo nosso juízo privado; eu aceito-o em
lugares não controversos: mas, em lugares discutíveis, adoro seguir o que melhor posso entender. É
têmpera da parte exaltada e supersticiosa da humanidade, em assuntos de religião, gostar mais do que
entende menos."34
A sua interpretação das Escrituras pauta-se por critérios de racionalidade e, assim,
parece, novamente, similar a Leibniz. Porém, o que Leibniz submete aos critérios da consistência
lógica são as teorias. Pelo contrário, Newton pretende submeter a critérios também lógicos, mas,
sobretudo, materiais, semânticos, os próprios textos da Escritura. O recurso leibniziano à Escritura,
na Teodiceia, é escasso se se comparar com a imensidade de autoridades teológicas e filosóficas que
são referidas. A tradição puritana é muito mais escritural. Mesmo entre os platónicos de Cambridge,
a certos títulos até próximos de Leibniz, a interpretação racional das Escrituras é absolutamente
central. Mas é Locke que mais se aproxima de Newton porque, contrariamente ao pendor metafísico
dos platónicos de Cambridge, nomeadamente Cudworth, a sua interpretação racional das Escrituras é
27
Samuel Clarke, op. cit., pp. 149-150. AP. 28
Ferguson mostra que estas teses são muito precoces em Clarke: J. P. Ferguson, op. cit., pp. 12-13. AP. 29
Grande parte da conferência de 1705 afirma isto, mas, a título de exemplo, Samuel Clarke, op. cit., p. 8. AP. 30
Samuel Clarke, op. cit., p. 10. Cf., ibidem, p. 285. AP. Não deixa de ser curioso o ataque feito, em seguida e em nota,
não só à Escolástica, mas também a Cudworth por representar a Trindade como uma coisa diretamente contraditória a
toda a razão humana e entendimento. É natural, visto ser o contrário do que está a defender, mas isso não significa que
esteja bem sustentado... 31
Samuel Clarke, op. cit., pp. 284-287. 32
Samuel Clarke, op. cit., p. 289. AP. 33
Samuel Clarke, op. cit., p. 11. AP. O anterior Discurso era dirigido aos ateus assumidos e este é dirigido aos aparentes
deístas, considerados ateus dissimulados. 34
Isaac Newton, op. cit., Tomus quintus, 1785, An historical account of Two notable Corruptions of Scripture in a letter
to a friend, pp. 529-530. AP.
158
baseada numa outra conceção de razão, uma razão limitada pela experiência externa e interna,
incapaz, dentro dos seus limites, de ir seguramente para lá do que a experiência, neste caso a
Escritura, fornece.35
Se Newton disso precisasse, encontraria no seu amigo um reforço para a sua
abordagem interpretativa da Bíblia, guiada por critérios de simplicidade e o mais literal que fosse
possível. Desde as Paraphrases de 1701 e 170236
que Clarke pretendia que se reduzisse os
comentários bíblicos à sua original simplicidade, supostamente levando a deixar para trás todas as
controvérsias religiosas.37
É difícil saber se acreditaria, de facto, nisso ou se era, nele como noutros,
apenas uma estratégia persuasiva para os combates expectáveis. De qualquer forma, é a mesma
conceção de redução ao texto bíblico original, que está expressa até no título da obra38
, que lhe
valeria os maiores dissabores e que, embora Clarke o negasse,39
talvez o tenha levado a,
parcialmente, mais por omissão que pelo que foi declarado, se retratar.40
Esta alegada busca da
simplicidade interpretativa procura a correspondência com um ideal de simplicidade da Igreja
primitiva,41
contraposta às investigações filosóficas e escolásticas introdutoras de conceitos
metafísicos.42
Juntamente com a tese da infalibilidade da Escrituras,43
o que nada tem de
surpreendente na época, a rejeição de outra fonte que não a bíblica parece excluir qualquer papel da
razão, como logo em seguida Wells objetou.44
Na sua resposta,45
Clarke nem trata estritamente do
papel da razão defendido por Wells, do qual não discorda, nem sequer do recurso a fontes patrísticas,
mas da utilização de fontes patrísticas para decidir do sentido das verdades reveladas. Além disso, a
interpretação da patrística levanta ainda problemas maiores e, se se subordina essa interpretação à
Igreja (e porque não então a Católica?), então longe de ser a razão a decidir seja o que for, é a
autoridade, até mesmo contra o texto da Escritura. Como resume Ferguson, "ou a Igreja deve ser
julgada pela Escritura, ou um homem tem de seguir cegamente a autoridade."46
O que está em questão não é o uso da razão, mas, mais uma vez, a metafísica. Newton e
Clarke consideram que a linguagem bíblica, com exceção das passagens que tentam provar como
corrupções, é muito mais racional do que as conceções metafísicas introduzidas que, sob a pretensão
de racionalidade, acabaram por conduzir à afirmação de mistérios. É já contra a religião dos
mistérios que Newton declarava que se gostava mais do que menos se entendia. O recurso aos textos
mais primitivos do cristianismo destinava-se, sobretudo para Newton, a purgar o cristianismo das
irracionalidades47
introduzidas por subtilezas metafísicas que descambam nos mistérios e outras
superstições48
e que acabaram por corromper a religião com a idolatria, paganismo e uma
mentalidade milagreira.49
A falta de capacidade de persuasão por recurso apenas a argumentos fez os
corruptores, em especial esse seu arqui-inimigo da Patrística, Atanásio, recorrer a falsos milagres.50
35
Maurice Wiles, Archetypal Heresy – Arianism through the Centuries, Oxford, Clarendon Press, 1996, p. 70. AP. 36
Samuel Clarke, A Paraphrase on the Four Evangelists, 9th
. ed., London, John and Paul Knapton, 1751. 37
J. P. Ferguson, op. cit., p. 19. AP. 38
Samuel Clarke, The Scripture-Doctrine of the Trinity, London, James Knapton, 1712. 39
A full Account of the Late Proceedings in Convocation relating to Dr. Clarke’s Writings about the Trinity, 2nd
. ed,
London, John Baker, 1714, p. 36. Mais do que os argumentos, os pormenores biográficos e o facto da declaração que se
segue ter sido feita sob um contexto de enorme pressão, retira credibilidade à tese de não se tratar de uma retratação. 40
ibidem, 1714, p. 32. AP. 41
Samuel Clarke, op. cit., pp. viii-ix. AP. 42
Samuel Clarke, op. cit., p. xxvi. AP. 43
Samuel Clarke, op. cit., pp. vi-vii. AP. 44
Edward Wells, Remarks on Dr. Clarke Introduction to his Scripture-Doctrin of the Trinity, Oxford, Anthony Peisley,
1713, pp. 7-8. AP. Globalmente embora com outra linguagem, a conceção não está muito longe da de Leibniz. 45
Samuel Clarke, A Letter to the Reverend Dr. Wells, Rector of Cotesbach in Leicestershire. In Answer to his Remarks,
etc., London, James Knapton, 1714. 46
J. P. Ferguson, op. cit., p. 67. AP. 47
Richard S. Westfall, "Newton and Christianity" in I. Bernard Cohen, Richard S. Westfall, sel. e ed., Newton..., New
York/London, W. W. Norton & Co., 1995, p. 370. AP. 48
Richard S. Westfall, Never at Rest..., New York, Cambridge University Press, 1980, 20th. pr. 2010, p. 826. AP. 49
Richard S. Westfall, op. cit., p. 345. AP. 50
ibidem. AP. Não deixa de ser curiosa esta implícita condenação da fuga às disputas quando se tratava dos opositores.
159
Assim, pode-se considerar que os newtonianos, entre os quais o próprio Newton, Whiston, como já
se viu, e até Clarke, embora, em textos públicos e como clérigo, não pudesse criticar tão
universalmente os mistérios, viam a racionalidade metafísica como irracional porque introduzia
noções ininteligíveis, como ocorria na conceção da Trindade,51
e dava origem a ou permitia crenças e
práticas idolátricas e pagãs. Tentavam associar, publicamente, essas imposições de noções, crenças e
práticas, contra a crítica racional, pela força, ao Papado,52
para conseguirem obter a tolerância
protestante, através da atitude latitudinária que era favorecida a partir da Revolução Gloriosa e,
sobretudo, da instalação hannoveriana, por motivos de conveniência53
(embora se verifique, cada vez
mais, ao longo da vida destes protagonistas, ser tendencialmente a atitude da Casa Alta da
Convocação e, como tal, dos bispos da Corte), mas que os newtonianos tentavam reforçar pela
associação à Igreja primitiva.54
É difícil dizer se esse latitudinarismo era defendido por convicção
intrínseca55
ou por estratégia resultante da situação defensiva em que os newtonianos se mantinham
após o Ato de Tolerância que não incluía os não-trinitários. A posição newtoniana estava longe do
irenismo de Leibniz, visto não incluir de todo os católicos, antes pelo contrário.56
Sob a acusação de
metafísicos, rejeita muitos outros, Gnósticos, Cabalistas, Platónicos e talvez seja por conveniência
que não rejeita todos aqueles que, no mundo protestante, perfilhavam a conceção essencialista,
substancialista da Trindade que corresponderia à grande apostasia condenada por Newton.57
Estas
são as opiniões dos homens que procuram perverter a mensagem divina e a exigência newtoniana,
tornada pública através de Clarke, de se regressar ao texto bíblico na sua simplicidade, é também a
plataforma de entendimento entre os cristãos,58
rejeitando todos aqueles que não se conformarem
com a mensagem divina.59
Embora, até na sequência do projeto de filosofia experimental que foi a Royal Society,
Newton afirmasse a separação60
da leitura dos dois livros: o da Natureza e o da Revelação; o que é
parte de uma das mais importantes realizações de Newton, a da separação da filosofia experimental e
matemática das outras áreas, nomeadamente teologia, alquimia e metafísica;61
não deixa de
manifestar intenções religiosas nas suas obras fundamentais, não como algo lateral, mas como o fim
fundamental da atividade científica.62
Os paralelos entre os domínios são, aliás, frequentes. O mesmo
medo das disputas (porventura, neste caso, com maiores razões…) também o faz ser ainda mais
reservado nas suas opiniões religiosas que no domínio da alquimia ou da filosofia.63
Essa mesma
51
Frank E. Manuel, op. cit, p. 75. AP. 52
John Jackson, atr., Three Letters to Dr. Clarke from a Clergyman of the Church of England; concerning his Scripture-
Doctrine of the Trinity. with the Doctor's replies, London, Black Boy, 1714, Carta de Clarke de 22/7/1714, p. 21. AP. 53
Domenico Bertoloni Meli, "Caroline, Leibniz, and Clarke" in Journal of the History of Ideas, University of
Pennsylvania Press, 19997, Vol. 60, No. 3, p. 483. AP. Tal menosprezo pelos aspetos rituais, era uma das exigências do
latitudinarismo, sobretudo do newtoniano. 54
Stephen David Snobelen, Isaac Newton, Socinianism and «The One Supreme God»" in M. Mulsow, J. Rohls, ed.,
Socinianism and Arminianism. Antitrinitarians, calvinists and cultural exhange in seventeenth-century Europe, Leiden,
Boston, Brill, 2005, pp. 250-251. AP. 55
Há passagens que parecem contrárias, pelo menos, a certo latitudinarismo: Steffen Ducheyne, "Isaac Newton's 'Of the
Church' manuscript description and analysis of Bodmer Ms. in Geneva" in European Journal of Science and Theology,
20096, Vol.5, Nº.2, pp. 28-29.
56 Frank E. Manuel, op. cit, pp. 65-66. AP.
57 Richard S. Westfall, op. cit., p. 321. AP.
58 Samuel Clarke, A Discourse concerning..., 10
th. ed., London, H. Woodfall e outros, 1767, A Discourse concerning the
Unchangeable Obligations..., pp. 182-183. AP. 59
David Brewster, op. cit., Vol. II, Appendix XXIX, 19, pp. 530-531. Mas mais importante para expressar o
latitudinarismo é um segmento anterior, também na p. 530: AP. 60
Frank E. Manuel, op. cit, Keynes, MS. 6 fol. 1r, p. 28. AP.
61 I. Bernard Cohen, "A Guide to Newton's Principia" in Isaac Newton, trad. ingl. I. Bernard Cohen e Anne Whitman,
The Principia – Mathematical Principles of Natural Philosophy, Berkeley and Los Angeles, University of California
Press, 1999, ch. 3, sec. 4, p. 59; sec. 5, p. 61. 62
Isaac Newton, op. cit., Tomus quartus, Query 28, p. 238. AP. 63
Frank E. Manuel, op. cit, p. 12. O texto em causa, dirigido a Locke, terá sido publicado, pela primeira vez, em 1754,
160
oposição às disputas legitima a opção pelo texto literal e condena a dedução a partir das Escrituras,
como se fora um non fingo hipothesis da exegese bíblica que, tal como na ciência, acaba por
fundamentar a certeza.64
Na verdade, estas declarações refletem bem mais o que Newton pensa que
faz do que aquilo que, de facto, faz. Newton pensa que tudo extrai da experiência (neste caso, os
textos proféticos e as ocorrências histórias), impondo-se a sua interpretação pela congruência, um
pouco como as demonstrações matemáticas nos Principia.65
Até admite que possam existir diversas
interpretações e que uma sentença possa ser ambígua, mas nunca no Apocalipse onde não existe
qualquer ambiguidade!66
Considera que nem seriam necessárias tais advertências porque as provas
apresentadas são tão evidentes que terão o assentimento de qualquer espírito imparcial que acredite
nas escrituras.67
Que as suas pretensões são de provar e de acabar com todas as discussões, como
ocorreu na física, não poderia ser mais claro: "Por estes meios, a Linguagem dos Profetas tornar-se-á
certa e a liberdade de a arrancar à imaginação privada será eliminada. Aos termos a que reduzo essas
palavras, chamo Definições."68
Estas interpretações tão indubitavelmente certas, com base no
inequívoco texto do Apocalipse e nas evidências empíricas, sem qualquer dedução, concluem, por
exemplo, que a prostituta da Babilónia é o papado.69
Às evidências que suportavam os significados
dados a setenta figuras, chamou a "Prova", cuja versão mais antiga pretendia demonstrar proposições
como nos Principia.70
A esta convicção na certeza do seu método, com a regra da simplicidade na
sua base, e o pressuposto de ser o eleito predestinado71
a dar a conhecer as leis de Deus, ainda se
junta a ameaça de castigos divinos a quem puser em causa a sua interpretação.72
Todas estas
pretensões conferem alguma credibilidade à razão apresentada por Whiston para o corte final de
relações por parte de Newton, o facto de o ter contraditado em matéria de interpretação profética,73
contrariamente ao desejo "ortodoxo" de que tivesse ocorrido devido ao seu arianismo. Se fosse essa a
razão, mesmo que só por ter tornado público esse arianismo, o corte teria de ser bem anterior. Além
disso, se fosse essa a razão, como explicar a manutenção de relações com outros notórios heréticos?74
Tendo em conta as alusões teológicas e históricas nas suas duas obras mais importantes, e a
pretensão da filosofia natural culminar na Primeira Causa, não parece haver grandes dúvidas que as
Leis do Movimento eram entendidas como Leis de Deus, até porque eram dessa forma normalmente
referidas na época. Mas o que mais claramente mostra a ausência de fronteiras é o facto de Newton
utilizar o termo "leis da natureza" para os próprios mandamentos.75
Talvez a separação defendida
visasse, antes de mais, proteger a religião das opiniões que, afinal, são igualmente atacadas na
ciência ou filosofia experimental. Assim, talvez a conceção de Newton fosse a de que havia que
preservar ambas as suas missões sagradas, até por talvez serem a mesma, da infeção corrosiva que
representavam as disputas metafísicas.76
Juntamente com o papado, a que associa constantemente a
com base no texto que ficou na Holanda, surgindo também, com base noutro manuscrito, em Isaac Newton, op. cit.,
Tomus quintus, An Historical Account of two Notable Corruptions od Scripture, pp. 495-550, visto a primeira impressão
ter sido retirada a tempo. 64
Frank E. Manuel, op. cit., Yahuda MS. 15. I, fol. 11r, pp. 54-55. AP.
65 A recorrente metáfora da máquina (engin aqui), inclusive na polémica, ressurge aqui como forma de provar a verdade
da interpretação: Newton, "Fragments from a Treatise on Revelation" in Frank E. Manuel, op. cit, p. 121. 66
Newton, ibidem. AP. 67
Newton, ibidem. AP. 68
Newton, "Fragments from a Treatise on Revelation" in Frank E. Manuel, op. cit, p. 115. AP. 69
Frank E. Manuel, op. cit., p. 95. 70
Richard S. Westfall, "Newton and Christianity" in I. Bernard Cohen, Richard S. Westfall, sel. e ed., Newton..., New
York/London, W. W. Norton & Co., 1995, p. 365. Depois, terá evoluído para posições. 71
Um dos "filhos da ressurreição": Frank E. Manuel, op. cit, p. 100. 72
Newton, "Fragments from a Treatise on Revelation" in Frank E. Manuel, op. cit, p. 114. 73
William Whiston, Memoirs of the Life and Writings of Mr. William Whiston..., London, Whiston and Bishop, 1749, p.
294. Transcrito mais adiante. 74
Stephen David Snobelen, op. cit., pp. 248-249. 75
Frank E. Manuel, op. cit., p. 56. 76
A começar pelos clássicos do pensamento metafísico, Platão e Aristóteles, que, alegadamente, teriam associado a falsa
161
metafísica, os metafísicos são considerados bem piores e mais irremediavelmente perdidos que os
ateus.77
Todo o seu ataque às alegadas corrupções bíblicas parece ter estado centrado na introdução
de conceitos metafísicos,78
destruindo o verdadeiro sentido da Escritura que seria o moral.79
Numa
das versões do prefácio não publicado dos Principia, fazendo lembrar a lendária história do Sultão e
da biblioteca de Alexandria, Newton defende que a metafísica ou é religião, ou, mesmo que diga
respeito às ações internas da nossa mente, é física, não havendo pois lugar para ela.80
E o seu grande
desígnio seria, porventura, o de restaurar a prisca sapientia e a prisca theologia através da
restauração da figura do padre-cientista dos primórdios, especialmente consagrada, como ele, à
astronomia e à química.81
Aliás, Newton preferia considerar que não era o autor da teoria da
gravitação, apenas a fazendo reviver através da força das demonstrações, para garantir a autoridade
da Antiguidade, fazendo-a remontar aos Caldeus.82
Por fim, os paralelos entre a decifração dos livros
das profecias e a do livro da natureza são constantes.83
Os dois livros concedidos por Deus, o da natureza e o da revelação, fornecem a base empírica
inquestionável que só perversores podem querer arruinar com as suas hipóteses especulativas.84
A
falsa ciência e a falsa religião, desde Platão e Aristóteles, passando pelos gnósticos e pela escolástica
até o moderno racionalismo, são uma e a mesma.85
Da mesma forma, pode-se equiparar o seu
método científico e o seu método hermenêutico, regido pelos princípios da indução, da simplicidade
e da analogia da Natureza.86
Na religião cristã, o efeito da falsa religião inspirada metafisicamente
traduziu-se na teoria das emanações, misturada, ainda por cima, com conceções idolátricas e pagãs.87
É improvável que Newton conhecesse a linguagem por vezes utilizada por Leibniz das emanações88
ou das fulgurações,89
mas isso apenas comprovaria a visão que tinha do autor. Para Newton, como
para Pascal, diz Koyré, o Deus dos filósofos, ou melhor, dos metafísicos, não é o Deus da fé.90
A
simples religião primitiva era acessível à mais limitada das pessoas e foi pervertida por gente como
ciência com a falsa religião, iniciando o percurso de obscuridade continuado pela Escolástica, Frank E. Manuel, op. cit, p.
42 – isto apesar de várias vezes serem citados, sobretudo Platão, como detentores de partes significativas da prisca
sapientia. 77
Frank E. Manuel, op. cit, pp. 65-66. 78
Frank E. Manuel, op. cit, p. 65. 79
Frank E. Manuel, op. cit, p. 68. 80
I. Bernard Cohen, "A Guide to Newton's Principia" in Isaac Newton, trad. ingl. I. Bernard Cohen e Anne Whitman,
The Principia – Mathematical Principles of Natural Philosophy, Berkeley and Los Angeles, University of California
Press, 1999, ch. 3, sec. 2, p. 54. AP. 81
Frank E. Manuel, op. cit., p. 43. 82
I. Bernard Cohen, op. cit., p. 53. 83
Frank E. Manuel, op. cit., p. 88. AP. Um dos paralelos mais insólitos (cf. Isaac Newton, op. cit., Tomus secundus,
Philosophiæ naturalis Principia Mathematica, Def, VIII, Scholium, p. 11, utilizando "sacris literis" para se referir às
realidades naturais; transcrito em IV. 5) já parecia tão estranho a Cajori (ou a Crawford) que sentiu a necessidade de
alterar totalmente o texto: vide Bernard Cohen, op. cit., ch. 2, sec. 3, pp. 35-36. 84
Esta é a linguagem utilizada pelo próprio Clarke a propósito da teologia trinitária: Samuel Clarke, The Scripture-
Doctrine of the Trinity, London, James Knapton, 1712, p. 243. Tal qual como rejeita as hipóteses especulativas da mesma
forma que na filosofia natural, também defende a mesma suspensão de juízo relativa às causas ou aos modos como teve
origem determinado processo confirmado pela experiência, neste caso a Escritura, sem, porém, fornecer dados acerca
desses modos e dessas causas: Samuel Clarke, op. cit., p. 272. AP. O mesmo quanto ao Espírito Santo, ibidem, p. 290.
Há, porém, a diferença de nem se admitir a possibilidade de se vir a explicar, um pouco como Cotes aborda a gravidade. 85
Frank E. Manuel, op. cit., p. 42. AP. 86
Stephen David Snobelen, op. cit, p. 274. AP. Não deixa de ser curioso o recurso a queries em tudo análogas às da
Ótica quer no domínio histórico (David Brewster, op. cit., Chap. XXIV, pp. 342-346), quer no domínio teológico (David
Brewster, op. cit., Appendix XXX, pp. 532-534). 87
Frank E. Manuel, op. cit, p. 69. AP. 88
God. Guil. Leibnitii, ed. Joannes Eduardus Erdmann, Opera Philosophica quae exstant latina gallica germanica
Omnia, Berolini, Sumtibus G. Eichleri, 1840, Remarques sur le sentiment du P. Malebranche, p. 452, col. b. AP. 89
Leibniz, op. cit., Tomo I, Monadologie, § 47, p. 714, G, VI, 614. AP. 90
Alexandre Koyré, Études newtoniennes, s/l, Éd. Gallimard, 1968, reimpr. 1980, "Newton et Descartes", p. 154.
162
Atanásio e Leibniz91
cuja metafísica procura tutelar a teologia e, depois, justifica a sua
incompreensibilidade com os mistérios acima da razão. Com exceção dos livros proféticos, a religião
bíblica seria de teor meramente moral e foram esses perversores que a transformaram em
metafísica.92
Embora o latitudinarismo pareça relativizar os rituais, a adoração externa de Deus
parece um elemento fundamental evidente, embora não se perceba porquê, para a própria Luz
Natural.93
Mas a própria adoração parece ser compreendida de forma moral94
e o próprio objeto de
adoração é prático,95
sendo o sentido da adoração, como diz o Escólio Geral, mostrar-nos como
servos do Senhor.96
Também aqui é notória a diferença relativamente a Leibniz, visto as orações
nada alterarem ao que está predeterminado.97
Trata-se, de facto, de uma religião de obediência aos
mandamentos,98
mas não uma religião sem amor ou perdão, como afirma Manuel99
, tal como se pode
ver em diversas passagens porventura pouco adequadas para as tendências psicanalíticas deste
comentador.100
A questão do caráter herético das doutrinas newtonianas interessa muito pouco, em si própria,
a esta dissertação. Mas a reação religiosa à atribuição de tais teses a Newton mostra que a teologia e
a ciência não são assim tão separáveis como se julga. Imediatamente após a atribuição por Whiston
de teses antitrinitárias a Newton,101
um imenso rol de autores negou que o grande Sir Isaac Newton
pudesse ter teses não ortodoxas, seja lá o que isso for, tendo em conta a facilidade com que, na
própria época, a ortodoxia de um é alvo da acusação de heterodoxia por outro. Mesmo quando se
tentou negar as corrupções da Escritura identificadas por Newton, fazia-se questão de negar qualquer
heterodoxia ao cada vez mais divinizado Newton.102
Mesmo após as incertezas de juízo de
Brewster103
e as redescobertas do séc. XX, mesmo após todo o trabalho erudito realizado na análise
dos manuscritos teológicos, continuam a aparecer teses, mais ou menos elaboradas, cujo objetivo
único é o de mostrar que o grande Isaac Newton se encaixa numa ortodoxia qualquer.104
Um tal
empenho tanto tempo depois faz compreender muito melhor a reserva de Newton num tempo de
muito mais acesas disputas teológicas, acerca das mínimas diferenças interpretativas ou teóricas, que
bem deram razão à irónica obra de Hare que recomendava aos clérigos os estudos naturais em vez
91
Richard S. Westfall, op. cit., pp. 822-823. AP. 92
Frank E. Manuel, op. cit, p. 72. AP. 93
Samuel Clarke, A Discourse concerning..., 10th
. ed., London, H. Woodfall e outros, 1767, A Discourse concerning the
Unchangeable Obligations..., p. 140. AP. 94
Samuel Clarke, op. cit., p. 100. AP. 95
Richard S. Westfall, op. cit., pp. 354-355. AP. 96
Isaac Newton, op. cit., Tomus tertius, 1782, Philosophiæ naturalis..., Liber tertius, p. 173: "Colimus enim et servi". 97
Leibniz, op. cit., Tomo II, Essais de Théodicée, 2ª parte, § 120, p. 158, G, VI, 174. AP. 98
Frank E. Manuel, op. cit, pp. 15-16. 99
Frank E. Manuel, op. cit, pp. 22-23. AP. 100
E. g. Isaac Newton, Keynes MS 3, p. 36 in Stephen David Snobelen, op. cit, p. 263. AP. 101
Aliás, parece atribuir à influência de Newton e Clarke a descoberta das teses anti-atanasianas e mesmo arianas:
William Whiston, op. cit, pp. 12-13. 102
E. Henderson, The great Mistery of godliness incontrovertible; or, Sir Isaac Newton and the Socinians, London,
Holdsworth and Ball, 1830. 103
David Brewster, op. cit., Ch. XXIV, p. 338. AP. Protege, aliás, ibidem, p. 340, a sua anterior defesa do trinitarismo de
Newton reclamando uma latitude que reconhece que as autoridades eclesiásticas poderão não ter. 104
E. g., Van Alan Herd, op. cit. Refere-se aqui este trabalho apenas para mostrar quanto o proselitismo não perdeu
atualidade e como pode se misturar com o aparente cultivo da ciência, visto ser uma tese com intenções teológicas e
religiosas inequivocamente afirmadas à partida que recebeu a chancela de um Departamento de História da Ciência. Toda
a tese é um exercício de confirmacionismo, ficando, várias vezes, a dever algo à honestidade interpretativa, tendo como
único objetivo recuperar o grande Newton para uma ortodoxia que qualquer leitor das polémicas desta época poderia ver
como dependia da posição de cada qual, podendo-se sempre ver nos adversários posições heréticas. Mas mesmo os
trabalhos mais parciais podem apresentar razões apreciáveis, aliás como acontece com as posições contrárias, também
elas muitas vezes prosélitas. Este chama a atenção para as raizes puritanas e para a oposição ao triteísmo, muito embora
tal oposição também ocorresse da parte dos arianos, socinianos e unitarianos, exatamente na época de referência. Para um
trabalho como um sentido análogo, mas com muito maior isenção, qualidade, rigor e consistência: Thomas C.
Pfizenmaier, op. cit.
163
dos bíblicos,105
e acabaram por contribuir para o distanciamento latitudinário ou científico das
disputas religiosas. Há, porém, algumas razões para a incerteza quanto à posição de Newton: por
exemplo, Lutero também rejeitou a terminologia "essencialista" e Calvino rejeitou subscrever
Atanásio.106
Cudworth parece favorável à noção de gradual subordinação platónica e nega que ela
implique o arianismo.107
Parece não haver grandes dúvidas quanto à importância do puritanismo em
Cambridge, mesmo após a Restauração, e a sua influência ao menos prática em Newton.108
Por outro
lado, são conhecidas as suas condenações de Ário por também utilizar subtilezas metafísicas.109
Nas
disputas dos eruditos contemporâneos, tem-se prestado pouca atenção à reivindicação de Whiston de
que o seu alegado arianismo era, de facto, um eusebianismo.110
Eusébio de Cesareia terá sido o
primeiro historiador da Igreja preocupado com a determinação das características do cristianismo
primitivo e um adversário a que Atanásio não conseguiu fazer frente. Tendo em conta a predileção de
Newton pelo cristianismo primitivo comum a Eusébio, as próprias predileções reveladas por Clarke,
por exemplo, na conferência de 1705, em que Orígenes é um dos dois autores cristãos mais citados (o
outro é Lactâncio – o que também mostra a predileção por autores anteriores a Niceia), o mesmo
Orígenes que inspirou Eusébio e que defendia a subordinação do Filho ao Pai, é de crer que a filiação
indicada pelo mais ou menos renegado Whiston possa, talvez, ser identificadora da conceção
religiosa do círculo mais próximo de Newton.111
Que estas posições possam ser e ter sido identificadas como arianas, pode ser visto pela forma
como Pagitt, em 1645, resume as teses arianas: "1. Negam a Trindade de pessoas na divindade; 2.
Negam que o Filho seja Deus; 3. Negam a eterna geração do Filho que é, dizem, contra a razão e a
verdade; 4. Negam que Cristo deva ser chamado Deus a respeito da sua essência, mas só por causa
do seu domínio; 5. Negam que o Espírito Santo seja Deus."112
Das 5 teses, apenas a terceira está sob
discussão e, mesmo essa, poderá ser devida aos cuidados de Clarke, tentando dar um aspeto ortodoxo
às suas teses, sem deixar de fazer a crítica a certas conceções anglicanas, tendo em conta que
Whiston o condenava, implicitamente, por ter traído a verdade que declarava ele bem conhecer,
quando da publicação do livro sobre a Trindade.113
O que Clarke critica é o uso contraditório dos
termos pessoa e essência ou substância,114
defendendo que cada pessoa possui uma essência e duas
105
Francis Hare, atr., The Difficulties ans Discouragements which attend the Study of the Scriptures in the Way of Private
Judgement, 3ª ed., London,. John Baker, 1714. Apesar de censurado pela Casa Baixa da Convocação, gozou de grande
sucesso, tanto que, embora tenha surgido em 1714, esta 3ª edição ainda é do mesmo ano. 106
Maurice Wiles, op. cit., p. 54. AP. 107
R. Cudworth, The true Intellectual System of the Universe: The First Part; wherein, All the Reason and Philosophy of
Atheism is Confuted and its Impossibility Demonstrated, London, Richard Royston, 1677, Book I, Chap. IV, pp. 591-600. 108
Richard S. Westfall, op. cit., p. 78. AP. 109
Frank E. Manuel, op. cit., p. 58. AP. 110
William Whiston, op. cit., p. 18. AP. Faz, aliás, esta ressalva múltiplas vezes. Quanto à questão do Eusébio que
serviria de referência, esta interpretação só é válida se se tratar de Eusébio de Cesareia. Whiston terá começado por se
identificar com Eusébio de Nicomédia, tal como, corretamente, afirma Pfizenmaier (Thomas C. Pfizenmaier, op. cit., p.
196), visto se estar a referir a uma publicação de 1712, mas, posteriormente (o texto citado foi editado em 1730), quando
começou a fazer a distinção entre o arianismo grosseiro e a acusação mais ampla que Clarke rejeita por não corresponder
às doutrinas de Arius e que Whiston aceita, em sentido lato, mas faz corresponder aos verdadeiros eusebianos ou
verdadeiros cristãos, já não fazia sentido fazer a identificação com Eusébio de Nicomédia porque as teses deste em pouco
ou nada se distinguem das de Arius, correspondendo ao arianismo grosseiro. Cf. Maurice Wiles, op. cit., p. 102. AP. 111
Fazendo a contabilidade das fontes patrísticas na The Scripture-Doctrine of the Trinity, embora, tendo em conta o
assunto, se encontrem mais citações de outros autores, entre os quais Atanásio, Pfizenmaier acaba por concluir que as
influências determinantes de Clarke são Orígenes e Eusébio, muito embora talvez se incline demais para Orígenes. Cf.
Thomas C. Pfizenmaier, op. cit, pp. 93-119. Mesmo o monarquismo, apesar da inspiração conceptual de Tertuliano, é
concebido de acordo com a dupla Orígenes/Eusébio: ibidem, pp. 126-127. Chega, por fim, a concluir, tal como aqui, que
Clarke seria um eusebiano: ibidem, pp. 145-150. 112
Ephraim Pagitt, A brief description of Heretics, Coconut Creek, Florida, Puritan Publications, 2013, pp. 20-21. AP. 113
William Whiston, op. cit., p. 41. AP. 114
J. P. Ferguson, op. cit., p. 68. AP.
164
pessoas não podem, por isso, ser uma pessoa.115
Poder-se-á, porém, questionar se Clarke não oculta,
por trás do ataque à Metafísica e da insistência da redução aos termos da Escritura, a alternativa
inevitável entre dois deuses ou a conceção do Filho como uma criatura (embora preferisse o termo
"geração" para distinguir entre a geração a partir de Deus e a criação a partir do nada)116
, mesmo que
gerada antes do mundo (já se viu em IV. 2 que, do ponto de vista newtoniano, não faz sentido
considerar que "antes do mundo" seria "antes do tempo") e mesmo com antecedentes patrísticos,
como Whiston e, provavelmente, Newton advogam. Clarke terá sido, aliás, confrontado com a sua
duplicidade através de uma questão de Hawarden que se interrogava acerca de se, na conceção de
Clarke, o Filho ou Espírito Santo poderiam ser destruídos por Deus, ao que teria respondido ou que
não sabia ou que não tinha ainda pensado nisso.117
Se não tivesse dúvidas acerca da divindade
absoluta do Filho, Clarke teria de responder, sem hesitações, não. O facto de não ter respondido,
mostra que só concebia a "divindade" do Filho e do Espírito Santo de forma relativa, dependente de
Deus e, como tal, não partilhando da existência necessária de Deus que havia estabelecido na
conferência de 1704, tendo, assim, um estatuto contingente, análogo ao criado, mediador entre este e
Deus, decorrente da liberdade de Deus, do seu Poder e Vontade, seguindo a formulação eusebiana, e
não da sua essência necessária. O único aspeto em que poderá ter-se afastado da formulação de
Eusébio reside no facto de este colocar a geração do Filho antes do tempo, o que não faz sentido na
conceção newtoniana onde o tempo não é uma criação de Deus, mas uma consequência da sua
existência. Daí parecer aproximar-se, neste aspeto, mais de Orígenes e da sua geração eterna.118
Quanto a Newton, parece ser a verdadeira fonte da conceção: já na primeira metade dos anos
70, apresenta um conceção subordinacionista,119
concebe essa subordinação com uma comunicação
de força, por um lado, decorrente da causa no Poder e Vontade de Deus, e, por outro, embora não
necessariamente separado, fazendo lembrar a sua filosofia natural,120
e acaba por defender as teses
que inspiraram Whiston e Clarke.121
Há, porém, que ter em consideração que os manuscritos
relevantes de Newton se espraiam ao longo de 55 anos, sem qualquer publicação que fixasse o seu
pensamento num determinado momento e o obrigasse a ter o antes afirmado como referência, com as
exceções da impressão cuja publicitação acabou por impedir à última hora122
e a publicação à sua
revelia de um resumo já muito disfarçado de uma cronologia que dificilmente denunciaria o seu
pensamento teológico.123
A grande maioria desses manuscritos é de muito difícil datação e viu-se
como, mesmo no âmbito da filosofia natural, com muito mais publicações e cartas a servirem de
referência, podem existir grandes divergências na datação de alguns manuscritos.124
Tendo em conta
a própria forma discreta como Newton desenvolvia as suas teses teológicas, será crível que ele tenha
mantido, ao longo de todo esse tempo, exatamente as mesmas teses? Para lá das diferenças
interpretativas dos mesmos textos, é possível que qualquer um possa encontrar nos seus textos
sustentação para interpretações calvinistas, filojudaicas, latitudinárias, arianas, socinianas,
unitarianas, etc., etc. Por exemplo, existem textos em que Newton afirma a corporalidade do Filho
mesmo antes de o mundo começar, reservando para o Pai a possibilidade de ser puro espírito,125
tal
115
J. P. Ferguson, op. cit., p. 77. AP. 116
E. g., Samuel Clarke, The Scripture-Doctrine of the Trinity, London, James Knapton, 1712, p. 276. AP. 117
J. P. Ferguson, op. cit., pp. 247-248. Cf. versão preferida por Ferguson, ibidem, p. 146. 118
Thomas C. Pfizenmaier, op. cit, p. 94. AP. 119
Richard S. Westfall, op. cit., p. 311. 120
Isaac Newton, Yahuda MS 14, ff. 173-3V in Richard S. Westfall, op. cit., p. 317. AP. Resta saber se esta utilização da
força gravítica é apenas metafórica ou se a própria divindade é encarada como força, explicando mesmo as forças ativas
do Universo. Ver VI. 7. 121
Richard S. Westfall, op. cit., p. 824. AP. 122
Isaac Newton, Opera quae exstant omnia, Londini, Johannes Nichols, Tomus quintus, 1785, An historical account of
Two notable Corruptions of Scripture in a letter to a friend, pp. 495-550. 123
Richard S. Westfall, op. cit., pp. 805-811. 124
Ver discussão na nota 62 da secção IV. 2. 125
Maurice Wiles, op. cit, p. 82. AP. As passagens são de Martin Bodmer MS, On the Church (C-H 33), ch. 1. A
propósito deste manuscrito, cf. Steffen Ducheyne, "Isaac Newton's 'Of the Church' manuscript description and analysis of
165
como Leibniz defendia mas em relação ao todo trinitário de Deus, em contraposição à corporalidade
inevitável de todas as criaturas – não reforça isto a conceção do Filho como criatura? Será possível
uma interpretação ortodoxa desta conceção? Mas será esta conceção mantida ao longo de toda a vida
de Newton? O conhecimento da teologia newtoniana parece ainda bastante incerto para avançar com
conclusões definitivas. Porém, o mesmo não acontece com os discípulos Whiston e Clarke que
publicaram mais do que o suficiente sobre o assunto. Ora, se a relação com Whiston foi notoriamente
problemática, não há registo da mínima desavença com Clarke. Além disso, ao menos em tudo
aquilo que é possível comparar, existe, como bem mostrou Pfizenmaier, uma quase completa
concordância entre as abordagens teológicas de Newton e as de Clarke.126
Se Cotes é o primeiro
cientista newtoniano normal, Clarke será o primeiro teólogo newtoniano normal, mostrando, aliás, a
difícil separação das duas áreas, visto ser também um dos mais importantes divulgadores da filosofia
natural newtoniana, tentando exatamente conciliá-la com a religião natural e até com a revelada.
Porém, os puzzles que Clarke procura resolver não se centram só na busca de uma maior aderência
entre o paradigma e a experiência, representada, neste caso, como já se viu, pelos textos da Escritura,
nem sequer na mais ampla interpretação das fontes patrísticas, mas também na compatibilização das
teses newtonianas com as doutrinas da Igreja Anglicana, razão pela qual Clarke se envolve em
subtilezas que, por princípio, um newtoniano rejeitaria, de forma a dar um contorno aceitável, do
ponto de vista da ortodoxia anglicana, às teses defendidas.
De qualquer forma, aqueles que tentam defender a ortodoxia de Newton, cuja definição
importa pouco a esta dissertação, deveriam interrogar-se acerca dos muitos pormenores biográficos
quer em relação a Newton, quer em relação a Clarke, que excedem, infelizmente, o âmbito desta
abordagem, mas que se mostrariam inconsistentes num contexto de ortodoxia indiscutível. Mas,
nesta dissertação, já cabe questionar a razão por que Clarke não respondeu às provocações
leibnizianas, já referidas em VI. 2, que os associavam ao socinianismo.127
Se se tratassem de
verdadeiros guardiões da ortodoxia, sobretudo nesta época e num contexto de polémicas e suspeitas
que atingiam o círculo newtoniano nos últimos anos e que iam desde o arianismo ao socinianismo,
seria de esperar uma inequívoca rejeição da insinuação. Para lá das polémicas que envolveram
Whiston e Clarke, um dos críticos de Clarke resolveu adicionar uma adenda a uma nova vaga de
objeções que interpretava a noção relativa de Deus de Clarke e do Escólio Geral da 2ª edição dos
Principia como uma importação sociniana, mais precisamente de Johann Crell,128
com o qual
Newton até contactou. Longe do timorato Newton ter retirado as páginas alvo da acusação na terceira
edição, ainda reforçou mais a associação, como Snobelen mostra,129
embora sem se comprometer. É
também para não se comprometerem que não respondem à provocação de Leibniz, muito embora a
associação até fosse facilmente demonstrável como errada quer pelos textos de Clarke, quer pelos de
Newton, como, aliás, já se viu nesta dissertação. Por muito que Newton pudesse ser condescendente
para com os socinianos, por muito que algum do seu estilo e alguns dos seus métodos pudessem
lembrar os socinianos, Snobelen não parece ter razão na associação que faz, não só devido à questão
da pré-existência do Filho, mas, sobretudo devido às questões tratadas nesta dissertação, como a
providência, a presciência e a liberdade. Talvez em vez de tentar encaixar Newton numa qualquer
seita, puritana, ariana, sociniana, unitariana, etc., fosse melhor tentar compreender o seu específico
Bodmer Ms. in Geneva" in European Journal of Science and Theology, 2009
6, Vol.5, Nº.2, pp. 25-35.
126 Thomas C. Pfizenmaier, op. cit, pp. 152-186.
127 Leibniz, op. cit., Tomo I, Recueil de lettres entre Leibniz e Clarke, 2º escrito, § 9, p. 738, G, VII, 358 (transcrito em
VI. 2); 5º escrito, § 5, G, VII, 389-90. Aliás, Leibniz estaria convencido da ortodoxia da sua posição e suspeitaria do
caráter herético das rivais: Domenico Bertoloni Meli, "Caroline, Leibniz, and Clarke" in Journal of the History of Ideas,
University of Pennsylvania Press, 19997, Vol. 60, No. 3, p. 484. AP.
128 John Edwards, Some brief critical remarks on Dr. Clarke’s last papers; which are his reply to Mr. Nelson, and an
anonymous writer, and the author of some considerations, &c., London, Ferdinando Burleigh, 1714, pp. 36–37. Já havia
editado antes: John Edwards, Some Animadversions on Dr. Clark's Scripture-Doctrine, (As he Stiles it) of the Trinity,
London, John Morphew, 1712. 129
Stephen David Snobelen, op. cit, p. 281.
166
pensamento, incluindo eventuais incertezas e mudanças, e concluir que Newton era demasiado
original para pertencer a outra seita que não a que ele próprio fundasse.
Já uma questão mais decisiva para esta abordagem é o eventual diferente entendimento da
Revelação, de Newton em relação a Clarke. De facto, contrariamente à infalibilidade das Escrituras
defendida pela tradição e pelo próprio Clarke, Newton restringia a Revelação aos textos proféticos,
considerando os livros históricos meras compilações dos homens.130
Whiston defendeu que a
interpretação profética era mais própria de Newton, seguindo Clarke simplesmente a sua autoridade,
contrariamente a Whiston.131
Mas a sua importância seria de tal ordem que, ainda segundo Whiston,
teriam sido essas interpretações que levaram Newton e Clarke a desistir dos esforços públicos para
restaurar a Igreja primitiva.132
Mas se a verdadeira Revelação era a profética, que realidade era a da
restante religião? Não importava? É neste domínio que as noções de religião natural e religião
revelada não parecem convir a Newton. Para ele, o que há é a verdadeira religião e a falsa religião,
assim como a verdadeira ciência e a falsa ciência, confundindo-se, aliás, estas noções com as de
prisca sapientia e prisca theologia (já antes tratadas em IV. 1 e 9, tal como neste anexo). No fundo,
não poderia ser uma religião mais natural porque estava fundida com a filosofia natural, sendo a sua
outra dimensão, a moral, que Clarke funda na adequação à "razão natural das coisas".133
As duas
dimensões da religião natural de Leibniz, a teórica e a prática, estão presentes, mas fundadas na razão
natural das coisas e não na metafísica, através da ciência e da moral presentes na religião de Noé e
dos seus filhos,134
de que as outras mais não foram do que recuperações muitas vezes parciais.135
Todas as degenerações ocorridas ao longo da história foram também culpa sempre do mesmo
inimigo, a metafísica.136
Abraão,137
Moisés e Cristo apenas recuperaram as leis de Noé que mais não
são que as leis da natureza.138
O orgulho de Newton não é o de ter descoberto leis naturais, mas o de
restaurar a ciência antediluviana,139
apenas fragmentariamente recuperada ao longo da história antes
dele, conjuntamente com a sua religião que, porém, poderá ter de esperar pelo cumprimento das
profecias. A sua própria cronologia e toda a sua argumentação naturalista e astronómica, destinava-se
a fazer encaixar todos os acontecimentos a partir da datação atribuída a Noé.140
E, para tirar estas
conclusões, não é necessário recorrer a nenhum manuscrito obscuro porque isso está claramente
expresso no final da Ótica.141
Nessa conceção, fundem-se as noções de filosofia natural, filosofia
moral, religião natural e religião revelada, ou melhor, da verdade de alguma forma concedida, pelo
próprio Deus, a Adão e Noé, e que Newton recuperou, na medida do possível, segundo o próprio,
para a nossa era. 130
Richard S. Westfall, op. cit., pp. 826-827. Esta conceção parece percorrer a sua vida, já sendo identificável nos anos
70: ibidem, p. 319. Richard S. Westfall, "Newton and Christianity" in I. Bernard Cohen, Richard S. Westfall, sel. e ed.,
Newton..., New York/London, W. W. Norton & Co., 1995, p. 367. AP. 131
Essa é a razão apresentada por Whiston para Newton o ter renegado: William Whiston, Memoirs of the Life and
Writings of Mr. William Whiston..., London, Whiston and Bishop, 1749, p. 294. AP. 132
William Whiston, Historical Memoirs of the Life of Dr. Samuel Clarke..., London, Fletcher Gyles and J. Roberts,
1730, p. 157. AP. Apesar da parcialidade de Whiston, parece concordante com as interpretações newtonianas. Cf.
Richard S. Westfall, op. cit., pp. 816-817; Stephen David Snobelen, op. cit, p. 269. Essa importância seria de tal ordem
que teria motivado a zanga de um ano contra alguém tão próximo como Bentley: William Whiston, Memoirs of the Life
and Writings of Mr. William Whiston..., London,Bishop, 1749, pp. 106-107. AP. 133
Samuel Clarke, op. cit., utiliza múltiplas vezes a expressão "nature and reason of things" ou similares, e. g., pp. 3, 38-
43, 65, 79-80, 84, 90-91, etc. 134
Richard S. Westfall, Never at Rest..., New York, Cambridge University Press, 1980, 20th. pr. 2010, p. 820. AP. 135
Richard S. Westfall, "Newton and Christianity" in I. Bernard Cohen, Richard S. Westfall, sel. e ed., Newton..., New
York/London, W. W. Norton & Co., 1995, pp. 366-367. AP. 136
Frank E. Manuel, op. cit, p. 69. AP. 137
Abraão teria preservado a antiga religião de Ur que seria a herdada de Noé. Cf. Steffen Ducheyne, op. cit, p. 26. 138
Isaac Newton, Yahuda MS 15.5, f. 91 in Richard S. Westfall, op. cit., p. 821. Isaac Newton, Yahuda MS 7.4, n. f. in
Richard S. Westfall, op. cit., pp. 821-822. AP. 139
J. E. McGuire e P. M. Rattansi, op. cit., p. 136. AP. 140
Richard S. Westfall, op. cit., p. 813. AP. 141
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167
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