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1550 A INFLUÊNCIA DA CRIAÇÃO DE UNIDADES DE CONSERVAÇÃO E DA POBREZA NAS CONDIÇÕES DE VIDA E SAÚDE DE VEREDEIROS RESIDENTES NA APA DO RIO PANDEIROS – MG Daniella Souza de Mendonça¹ Sandra Célia Muniz Magalhães² Mônica Oliveira Alves Silva³ ¹Universidade Federal de Goiás/ UFG Instituto de Estudos Socioambientais – IESA Programa de Pós-Graduação em Geografia - PPGEO [email protected] ²Universidade Estadual de Montes Claros/UNIMONTES Professora Doutora do Departamento de Geociências [email protected] ³ Universidade Federal de Goiás/ UFG Instituto de Estudos Socioambientais – IESA Programa de pós- graduação em Geografia - PPGEO [email protected] RESUMO Perante os discursos repletos de contradições entre a necessidade da preservação da natureza, garantia dos direitos humanos e o ‘‘indispensável’’ crescimento econômico surgiram algumas indagações referentes a uma porção do município de Bonito de Minas localizado no Norte de Minas Gerais. Parte do território pertencente ao município foi transformada em uma Área de Proteção Ambiental devido à importância biológica contida na área. Na APA três poderes exer- cem força e resistência, são eles: o Instituto Estadual de Florestas (IEF); os residentes; e as em- presas monocultoras. O presente estudo é de cunho exploratório e por meio da revisão biblio- gráfica e documental, observação, entrevistas e aplicação de questionários semi-estruturados em duas comunidades tradicionais objetivou compreender a dinâmica territorial e seu impacto nas condições de vida dos veredeiros. Ficou evidente que a população depende totalmente do uso dos recursos naturais encontrados na APA do rio Pandeiros para garantir sua sobrevivência. Este trabalho apresenta grande relevância no âmbito social, cultural, ambiental, econômico e da saúde, pois poderá contribuir com uma leitura multifacetada do território, exaltando como a relação com o meio e o poder exercido sobre ele podem (des) construir o lugar. Palavras chaves: Unidades de Conservação, Território, Saúde, Veredeiros.

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A INFLUÊNCIA DA CRIAÇÃO DE UNIDADES DE CONSERVAÇÃO E DA POBREZA NAS CONDIÇÕES DE VIDA E

SAÚDE DE VEREDEIROS RESIDENTES NA APA DO RIO PANDEIROS – MG

Daniella Souza de Mendonça¹Sandra Célia Muniz Magalhães²

Mônica Oliveira Alves Silva³

¹Universidade Federal de Goiás/ UFGInstituto de Estudos Socioambientais – IESA

Programa de Pós-Graduação em Geografi a - [email protected]

²Universidade Estadual de Montes Claros/UNIMONTESProfessora Doutora do Departamento de Geociências

[email protected]

³Universidade Federal de Goiás/ UFGInstituto de Estudos Socioambientais – IESA

Programa de pós- graduação em Geografi a - [email protected]

RESUMOPerante os discursos repletos de contradições entre a necessidade da preservação da natureza, garantia dos direitos humanos e o ‘‘indispensável’’ crescimento econômico surgiram algumas indagações referentes a uma porção do município de Bonito de Minas localizado no Norte de Minas Gerais. Parte do território pertencente ao município foi transformada em uma Área de Proteção Ambiental devido à importância biológica contida na área. Na APA três poderes exer-cem força e resistência, são eles: o Instituto Estadual de Florestas (IEF); os residentes; e as em-presas monocultoras. O presente estudo é de cunho exploratório e por meio da revisão biblio-gráfi ca e documental, observação, entrevistas e aplicação de questionários semi-estruturados em duas comunidades tradicionais objetivou compreender a dinâmica territorial e seu impacto nas condições de vida dos veredeiros. Ficou evidente que a população depende totalmente do uso dos recursos naturais encontrados na APA do rio Pandeiros para garantir sua sobrevivência. Este trabalho apresenta grande relevância no âmbito social, cultural, ambiental, econômico e da saúde, pois poderá contribuir com uma leitura multifacetada do território, exaltando como a relação com o meio e o poder exercido sobre ele podem (des) construir o lugar.

Palavras chaves: Unidades de Conservação, Território, Saúde, Veredeiros.

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INTRODUÇÃO

Os laços existentes entre o homem e o meio natural são resultantes da constante utilização dos recursos naturais pelos seres humanos. Tais recursos são indispensáveis para manter e atender as necessidades biológicas do homem. Com o decorrer da história da humanidade, essa relação se modifi cou. A perspectiva de interdependência foi substituída pela necessidade de domínio, onde a ganância do sujeito tem violentamente devastado a natureza. A ligação do homem com o meio ambiente transcende os aspectos físicos, conforme Dardel (2011, p. 45) ‘‘[...] a fl oresta não é somente a extensão arborizada da realidade objetiva. Ela coloca em questão a totalidade da existência. Foi formadora de almas e de sensibilidade’’.

Em comunidades onde a formação da identidade se desenvolve em concomitância com a vivência intensa com a natureza, acontece um fenômeno chamado de etno-bio-diversidade, onde segundo Digues (2008, p. 181) ocorre na ‘‘[...] riqueza da natureza da qual participam os humanos, nomeando-a, classifi cando-a, domesticando-a, mas de nenhuma maneira selvagem e intocada’’. Os preservacionistas acreditam que áreas naturais destinadas para a preservação ambiental não comporta a presença de comunidades, pois defendem que não há proteção da biodiversidade na relação do homem com o meio. Segundo Diegues:

As populações tradicionais também não só convivem com a biodiversidade, mas no-meiam e classifi cam espécies vivas segundo suas próprias categorias e nomes. Uma importante diferença, no entanto é que essa natureza diversa não é vista necessaria-mente como selvagem em sua totalidade; ela foi e é domesticada, manipulada. Uma outra diferença é que essa diversidade da vida não é vista como ‘‘recurso natural’’, mas sim como um conjunto de seres vivos que têm um valor de uso e um valor simbó-lico, integrado numa complexa cosmologia (DIEGUES, 2008, p. 181).

O tipo de relação evidenciada entre o homem e o meio por Diegues diverge da (não) relação que vem sendo fortalecida desde a Revolução Industrial. Existe uma incompatibilidade entre a ação e o discurso da sociedade capitalista, que ao mesmo tempo discursa sobre a importância da conservação da biodiversidade e age com tamanha ganância para sustentar as engrenagens do sistema. As classes dominantes possuem uma postura individualista perante as adversidades que ocorrem no cotidiano dos menos favorecidos. Eximem-se da situação de miséria colocando a força do liberalismo econômico como o propulsor que rege as grandes perversidades que ocorrem em nome da prevalência dos interesses individuais e/os de seletos coletivos. As classes dominantes só se ‘‘comovem’’ com a desgraça dos esfomeados ou despossuídos quando se sentem ameaçados, propondo soluções paliativas, sem de fato oferecerem possibilidades para resolução das mazelas humanas (ADAS, 1988).

Tamanha crise politica, social e ecológica é consequência de um sistema nefário, mas segundo Santos (2006, p. 174) ‘‘[...] a mesma materialidade, atualmente utilizada para construir um mundo confuso e perverso [...]’’, pode ser empregada de maneira mais compassiva na construção de um mundo melhor, para que isso se concretize é necessária a ocorrência de ‘‘ [...] duas grandes mutações ora em gestação: a mutação tecnológica e a mutação fi losófi ca da

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espécie humana’’. A mutação tecnológica vem sendo trabalhada desde os primórdios, dando um grande salto após a Revolução Industrial e evoluindo de maneira muito expressiva no século XIX, devido ao surgimento da doutrina fi losófi ca positivista.

Várias estratégias, correntes, métodos, vertentes e conceitos foram desenvolvidos para o enfrentamento das questões ecológicas em escala mundial, como: a Economia Ecológica; Ecologia Humana; Economia Ambiental; Desenvolvimento Sustentável; Índice de Desenvolvimento Social e Ambiental (IDSA); Unidades de Conservação (UC); Ecomarxismo; Ecologia Política; Justiça Ambiental; dentre outros. É evidente que o sistema econômico vigente encontra-se bem consolidado e que desde 1960 a visão ecológica vem se fortalecendo e sendo difundida nos setores econômicos, ambientais, sociais, políticos, culturais e da saúde. Na atualidade há íntima sintonia assumida e entre os seguintes setores: economia, ambiente e saúde. Tal afi nidade fi cou clara na seguinte afi rmação:

As três concepções sociais são: a legal (conforme lei), a econômica e a cultural. No primeiro caso, a saúde é considerada como um bem que as pessoas possuem e que, como tal, requer a tutela jurídica. O Estado deve atuar nesse contexto para preservar um direito que se refere à integridade dos indivíduos. A partir da concepção econô-mica, entende-se que a saúde é um bem escasso e acessível que favorece ademais a produtividade. Em consequência, exige sua manutenção e reprodução, por meio da in-versão pública e individual. A concepção sociocultural, por último, entende que, para alcançar um desempenho adequado dos papéis sociais, para favorecer a criatividade humana, é necessária a saúde como atitude, como predisposição, como capacidade inicial para poder trabalhar (GUIMARÃES, PICKENHAYN E LIMA, 2014, p.19).

Uma das estratégias do ordenamento territorial, visando à conservação do meio ambiente, compensação da degradação ambiental e/ou promoção do desenvolvimento sustentável é a criação de Unidades de Conservação (UC), integrante do Sistema Nacional de Unidade de Conservação - SNUC . Em UC categorizada como Área de Proteção Ambiental (APA) devem ser implantados projetos guiados pelos ideais do desenvolvimento sustentável, onde a legislação ambiental vigente no Estado visa à aplicação de um planejamento e gestão ambiental criada para garantir o bem-estar das populações humanas e a preservação e/ou melhoramento das condições ecológicas.

Toda atividade econômica existente dentro de uma área delimitada para preservação deveria ser planejada e/ou adequada às necessidades da comunidade já fi xada na área e da nova realidade territorial. O planejamento deveria ser feito pelos órgãos responsáveis, visando acarretar o menor dano possível ao ambiente e pelos moradores, visando abarcar os saberes e perspectivas da comunidade. Segundo Diegues (2008, p. 179) ‘‘[...] conhecimento tradicional pode ser defi nido como o saber e saber-fazer, a respeito do mundo natural, sobrenatural, gerados no âmbito da sociedade não urbana/industrial, transmitidos oralmente de geração em geração’’. Partindo do princípio da soma de saberes, toda política ambiental deveria levar em conta a população humana alocada em tais áreas, procurando ajustar às leis de preservação a sobrevivência da população, dando-lhes as condições básicas para conservação e disseminação da cultura.

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Muitas áreas destinadas à preservação encontram-se conservadas em detrimento da ocupação secular de povos tradicionais, partindo desse principio é fundamental que se leve em consideração a sabedoria/conhecimento de tais povos e o quanto eles podem contribuir na elaboração e execução de políticas socioeconômicas e ecológicas. Conforme Gawora, Ide e Barbosa (2011, p. 26) ‘‘[...] os povos e comunidades tradicionais deveriam ser um motor desta troca do paradigma, ou seja, um sujeito de mudança. Parece uma utopia, mas é algo imprescin-dível para mudança de paradigma’’. Normalmente os povos tradicionais não se segregam do meio, se incluem. Sabem a hora de recuar e a hora de adentrar na mata, a hora de serem homens e a hora de serem uno.

O território das sociedades tradicionais se difere dos territórios urbanos e industriais, não é contínuo, havendo o não uso, uso moderado ou fracionado com intuito de descansar a terra, respeitando a reprodução da fauna, como por exemplo, a época da piracema. Toda essa dinâmica ‘‘lenta’’ que respeita os ciclos naturais pode ser concebidas pelas autoridades da con-servação como vazios demográfi cos, tornando dessa maneira áreas ideiais para implantação de Unidade de Conservação (DIEGUES, 2008). Assim a desigualdade nasceu no momento em que a natureza passou a ser concebida como recurso natural e o homem começou a ser tratado como objeto de domínio pelo seu semelhante.

No discurso atual da sociedade todos os homens possuem igualmente o direito de se-rem livres e terem acesso à saúde, trabalho (fonte de renda), educação, ao alimento de boa qualidade, a uma moradia que lhe proporcione abrigo e conforto físico, psicológico e social e etc. Entretanto a possibilidade de gozar dos direitos citados é aniquilada pelas desigualdades existentes na organização e gestão do meio social. Dependendo da classe social que se enquadra os direitos se diferem, conforme a CDSS (2010, p. 3) ‘‘[...] diferentes grupos terão experiências diferentes relativas às condições materiais, apoio psicossocial e opções comportamentais, que as tornam mais ou menos vulneráveis a situações de saúde defi ciente’’.

Perante os discursos repletos de contradições entre a necessidade da preservação da natureza, garantia dos direitos humanos e o ‘‘indispensável’’ crescimento econômico surgiram algumas indagações referentes a uma porção do município de Bonito de Minas. O município está localizado no Norte de Minas Gerais e grande parte do seu território foi transformada em 1995 em Área de Proteção Ambiental devido à importância biológica contida na área. Apesar da riqueza natural evidente, o município apresenta Índices de Desenvolvimento Humano Munici-pal (IDHM) baixíssimos. No território pertencente ao município supracitado se encontram três poderes exercendo força e resistência, são eles: o Instituto Estadual de Florestas (IEF), órgão governamental responsável pela gestão da área, com o objetivo da preservação ambiental; os residentes com a preleção sobre a importância do vínculo com a terra para garantir a sobrevi-vência; e as empresas monocultoras, que visam o acúmulo de capital por meio da implantação dos eucaliptais.

O presente estudo é de cunho exploratório e por meio da revisão bibliográfi ca e do-cumental, observação, entrevistas e aplicação de questionários semi-estruturados, objetivou compreender a dinâmica territorial e seu impacto na realidade de vida e saúde das comunida-des tradicionais de veredeiros. Tal compreensão apresenta grande importância, pois torna-se possível a elaboração de propostas de implementação da conservação da biodiversidade, dos

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saberes tradicionais e do potencial humano, pelos órgãos públicos e sociedade civil. As medidas poderão ser embasadas por levantamentos mais fi dedignos por conceberem a real situação, sen-do potencilaemnte mais efi cazes, ajudando a construir uma sociedade mais igualitária, justa e democrática. Este trabalho apresenta grande relevância no âmbito social, cultural, ambiental, econômico e da saúde, pois poderá contribuir com uma leitura multifacetada do território, exal-tando como a relação com o meio e o poder exercido sobre ele podem (des) construir o lugar.

CONDIÇÕES DE VIDA E SAÚDE DE VEREDEIROS DITADAS PELA POBREZA E PELA CRIAÇÃO DA APA DO RIO PANDEIROS

A necessidade de transformar uma parcela dos municípios de Januária, Bonito de Minas e Cônego Marinho em unidade de conservação não partiu da população local, onde não houve a participação da mesma na implantação da APA. Há o desconhecimento de grande parte dos resi-dentes entrevistados em relação ao signifi cado e objetivo de uma APA. Doze dos vinte e quatro entrevistados não sabem o que é uma Área de Proteção Ambiental e quinze não tem conheci-mento que o local onde residem foi transformado em UC. Os doze entrevistados que souberam defi nir de maneira simples o que era uma APA evidenciaram a importância da mesma para a conservação dos recursos naturais. Entretanto, mesmo sabendo da importância da conservação dos recursos naturais eles comentaram sobre como a criação da APA impactou negativamente o cotidiano deles, pois tiveram que mudar a maneira como se relacionavam com o meio. A APA Pandeiros, evidenciada na fi gura 1, foi regulamentada pelo decreto Estadual 38.774/1997 e criada em 1995 por meio da Lei Estadual 11.091. Possui 380.000 hectares com objetivo de proteger o Pântano de Pandeiros, paisagens naturais e de preservar áreas de inegável importân-cia para a manutenção e desenvolvimento da ictiofauna (FONSECA,2008).

Figura 1: Localização da Área de Proteção Ambiental do rio Pandeiros – MG.

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A escala de analise do estudo se restringe a duas comunidades tradicionais de vere-deiros, sendo elas Água Doce e Amescla, localizadas no municipio de Bonito de Minas -MG. Muitas famílias da comunidade pararam de plantar após a implantação da maior unidade de conservação do estado de Minas Gerais, a APA do rio Pandeiros. Ficou evidente no relato dos veredeiros que eles pararam de utilizar as áreas brejosas das veredas devido à fi scalização da polícia ambiental e presença do IEF- órgão ambiental responsável pela gestão da área. Muitos agricultores convivem com o sentimento do medo de serem punidos – multados. Percebe-se no relato do entrevistado C a percepção que os moradores das comunidades tem em relação a presença do IEF: “Quando eles veem o IEF eles têm medo. Acha que o IEF é só correção, que vai penalizar (sic)’’.

Conforme Vasconcelos (1982, p. 184) ‘‘[...] a saúde do individuo também pode ser abalada por fatores psicológicos e pela estrutura da sociedade que ele vive’’. A agricultura sempre fez parte do cotidiano dos moradores, onde técnicas de plantio e manejo foram passadas de geração a geração. O entrevistado C teceu o seguinte comentário em relação à prática da agricultura na área da vereda na comunidade em que vive: “Aqui é só matéria orgânica, produz de tudo. Você sabe qual é o problema do veredeiro? O problema do veredeiro é que ele precisa dessa terra para produzir (sic)”. Após a criação da APA e consequente fi scalização houve a criminalização da prática tradicional. Algumas famílias ainda se arriscam a plantar nas áreas de veredas, pois dependem da agricultura para sobreviver, como retrata a fi gura 2.

Figura 2: Área da vereda cultivada na comunidade Amescla.

Fonte: MENDONÇA, D. S.(2015).

Na área da vereda representada na fi gura 2, observa-se o plantio de diversas culturas, como: feijão, milho, abóbora, banana e mandioca. Vinte e uma das vinte e quatro famílias en-trevistadas utilizam a vereda diariamente para o abastecimento de água, higiene pessoal, asseio de roupas e vasilhas e com menor expressão para a prática da agricultura de subsistência. A vereda, além de possuir terra fértil, oferece água, frutos (buriti), argila e palha para construção

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das casas. A dependência dos moradores em relação às veredas ultrapassa as questões físicas, pois é naquele ambiente que eles criam e sustentam sua identidade. Percebe-se no relato do entrevistado B como sua identidade e sentimento de pertencimento ao lugar estão intimamente ligados à vereda: “As pessoas que mais deveria defender a nossa existência é quem está aqui. Quem é que tem que defender as veredas? É o veredeiro, o morador da vereda”.

O ponto de ligação e pertencimento com a terra é por meio da vereda. A eles tudo ela oferece e em troca só necessita de ser zelada e respeitada. O entrevistado C, desempregado, re-latou que ‘‘(...) é da roça que tiro o sustento da minha família, preciso da terra para viver. A terra aqui no brejo é boa, diferente do resto. Aqui tudo dá em fartura, é só saber trabalhar. Quando a terra me dá muito mais do que preciso, distribuo com meus vizinhos (sic)’’. O entrevistado mencionado anterioromente já foi multado pela policia ambiental por ter desmatado a área para plantar utilizando o sistema de rotação. As variedades dos cultivos mais recorrentes feitos nas veredas das comunidades Amescla e Água Doce são: mandioca, hortaliças, cana-de-açúcar, tomate, cenoura, pimentão, feijão, milho, abacaxi, abobora e banana.

Doze famílias das comunidades supracitadas mantêm pequenas plantações, entretanto nove plantam feijão de maneira pouco expressiva e somente três das doze famílias plantam mais de três variedades de cultivo. Um dos motivos para o cultivo pouco signifi cativo é o re-ceio de serem multados pela polícia ambiental. A produtividade agrícola pouco expressiva atrelada à baixa renda acaba fortalecendo uma realidade de má nutrição das famílias visitadas, onde alguns núcleos familiares chegam a fi car até dois dias sem fazer refeições. Nutrição conforme Brasil (2006, p. 257) ‘‘[...] é um processo característico dos seres vivos e necessário para assegurar a reprodução e o crescimento e desenvolvimento, a manutenção da vida e o ple-no exercício das funções vitais do organismo’’. Observa-se na fi gura 3 a refeição mais nutritiva do dia de uma criança moradora da comunidade Amescla antes de ir para a escola. A refeição é composta por arroz, comprado em uma mercearia localizada na área urbana de Bonito de Mi-nas, e por feijão plantado no entorno da vereda localizada próxima a residência. No momento do registro a mãe da criança relatou que o feijão tinha acabado e as próximas refeições seriam compostas somente por arroz.

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Figura 3: Registro da refeição mais nutritiva do dia.

Fonte: MENDONÇA, D. S.(2015).

O limitado ou o não acesso ao alimento neste caso é decorrente de uma legislação ané-tica e pela falta do poder monetário. O alimento no modelo econômico vigente tornou-se uma mercadoria, como por exemplo, a educação e a saúde. Quem direciona o preço dos alimentos, não é quem o produz, mas sim as grandes corporações que dominam o mercado internacional. O não poder de compra de alimentos dissemina a fome que por sua vez está intimamente ligada à ocorrência conforme Brasil (2006, p. 264) da ‘‘[...] desnutrição na infância são essencialmen-te a oferta insufi ciente de calorias e nutrientes e a incidência repetida de episódios de doença, sobretudo doenças infecciosas’’. O preço do alimento é acessível e condizente com o poder de compra dos países desenvolvidos e o mesmo não ocorre com os países subdesenvolvidos, por mais que estes sejam responsáveis por grande parte da produção dos alimentos numa perspec-tiva mundial. No hemisfério norte conforme Helene, Marcondes e Nunes (1994, p. 53) ‘‘[...] se concentram os países mais desenvolvidos, que comportam um quarto da população do mundo e compram mais da metade de todo o alimento consumido no planeta’’. Todo excesso pode impulsionar a escassez trazendo consequências muitas vezes irrevesíveis para quem lida com o escasso no seu cotidiano, segundo Adas:

Além das calorias, a alimentação deve fornecer determinados elementos nutritivos – como proteínas, vitaminas e sais minerais – que cumpram a função de restaurar as cé-lulas, os tecidos e os órgãos de todo nosso organismo. A falta prolongada de qualquer dessas substâncias no organismoprovoca distúrbios e lesões no organismo, com graves conseqüências à saúde. Essa é a fome denominada parcial ou especifi ca. Nesse caso, muitas vezes uma pessoa pode estar ingerindo diariamente uma grande quantidade de alimento, mas sem os elemen-tos nutritivos fundamentais para a manutenção da saúde. Ela pode estar ingerindo alimentos que lhe reponham a energia despendida e no entanto, podem estar faltando substancias imprescindíveis para o bom funcionamento de todo organismo. Em outras

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palavras, essa pessoa estaria mal alimentada; ela estaria ingerindo quantidade e não qualidade (ADAS, 1988, p. 9).

A saúde está diretamente relacionada com os hábitos alimentares, onde a quantidade de alimento ingerido nem sempre refl ete na qualidade nutricional, entretanto em contra partida a falta de ingestão sim. Recomenda-se que o homem se alimente no intervalo de três em três ho-ras, dando atenção especial às três principais refeições diárias, que são: café da manhã, almoço e jantar. Em relação ao número de refeições feitas pelas vinte e quadro famílias entrevistadas observou-se um comportamento diversifi cado, onde somente uma família faz cinco refeições por dia, nove fazem quatro vezes ao dia, doze fazem três vezes ao dia e duas famílias fazem duas refeições diariamente.

Contudo, foram investigados quais os alimentos eram ingeridos nas refeições feitas no decorrer do dia. Normalmente no desjejum os brasileiros tem o costume de comer pão com manteiga, queijo, café e/ou leite, iogurte, frutas e etc. No café da manhã das vinte e quatro resi-dências visitadas, quinze famílias ingerem café puro e raramente possui acompanhamentos para complementar a refeição. Somente oito famílias tomam com certa regularidade café da manhã com bolo e biscoitos. Algumas famílias relataram que no desjejum tomam café puro com buriti e/ ou farinha com pequi. Tal prática ressalta a importância da conservação do bioma cerrado para os veredeiros, pois estes utilizam os frutos do cerrado por meio do extrativismo para o consumo de refeições mais nutritivas.

Em todas as casas visitadas o almoço é a refeição base do dia, a que oferece mais energia e nutrientes para as famílias. Todos os entrevistados relataram que raramente consomem verdu-ras, legumes e proteínas. As hortaliças, verduras e legumes eram produzidos pelas próprias fa-mílias de maneira rotacional nos solos úmidos das veredas, entretanto praticamente não há mais produção devido à pressão sofrida pela necessidade da preservação ambiental imposta pela sociedade capitalista, que diante de tanta devastação para alimentar o sistema, faz-se necessário que a proteção ambiental ocorra em outras áreas como forma de compensação ambiental. A pobreza, mas especialmente neste caso, a limitação econômica, é outro fator que inibe a prática da agricultura de subsistência. A falta de recursos os impede de desenvolverem a agricultura rudimentar, pois não conseguem adquirir sementes, ferramentas e insumos necessários para fazerem a correção e adubação de solos ácidos e com poucas reservas de nutrientes.

Na ausência da proteína da carne as famílias utilizam as membranas conjutivas que fi cam rente ao osso do boi no cozimento do feijão. Tal prática, evidente na fi gura 4 é comum, e é feita com o intuito de aumentar o valor energético da refeição. Apesar do feijão ser muito utilizado na alimentação das famílias residentes nas comunidade Amescla e Água Doce, nem sempre ele está presente nas refeições, entretanto é mais acessível do que verduras e legumes que também possuem alto valor nutritivo e protéico. A falta de poder de compra e alto custo dos alimentos também foram justifi cativas muito recorrentes para uma alimentação baseada em carboidratos e com defi ciência energética.

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Figura 4: Prática comum de dessecação de membranas conjuntivas para serem cozidas no feijão.

Fonte: MENDONÇA, D. S. (2014).

Outro motivo presente no relato de dezesseis famílias é de não terem como refrigerar frutas, legumes, verduras e carnes, pois não possuem geladeira e devido ao calor caracteristico da região os alimentos citados rapidamente apodrecem quando não refrigeradas. Das 24 fami-lias entrevistadas somente duas possuem veiculos automotivos, mas mesmo assim raramente vão a cidade devido ao alto custo e com frequência, deixam de adquirir e consequentemente inserir alimentos nutritivos. A monotonia alimentar causada pelo grande consumo de carboi-dratos não assegura as necessidades energéticas do organismo, havendo a necessidade de com-plementar a alimentação com proteínas, vitaminas e minerais, entretanto isso nem sempre é possível (ADAS, 1988). A desnutrição pode ocorrer nas comunidades estudadas especialmente ao quadro de fome como evidencia o autor abaixo:

Fome e desnutrição tampouco são conceitos equivalentes uma vez que, se toda fome leva obrigatoriamente à desnutrição, nem toda desnutrição se origina da defi ciência energética das dietas, sobretudo na população infantil. A defi ciência específi ca de ma-cro e micronutrientes, o desmame precoce, a higiene alimentar precária e a ocorrência excessiva de infecções são causas bastante comuns da desnutrição infantil. Ainda que não equivalentes, os conceitos de pobreza e desnutrição são os que mais se aproxi-mam, uma vez que o bom estado nutricional, sobretudo na criança, pressupõe o aten-dimento de um leque abrangente de necessidades humanas, que incluem não apenas a disponibilidade de alimentos, mas também a diversifi cação e a adequação nutricional da dieta, conhecimentos básicos de higiene, condições salubres de moradia, cuidados

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de saúde, entre outras (MONTEIRO, 1995, p. 9).

As disparidades econômicas afetam várias esferas sociais como a saúde, educação, ha-bitação e de consumo. O consumo de carne nos países subdesenvolvidos chega a ser dez vezes menor do que nos países desenvolvidos (FREITAS, 2015). Todos os representantes entrevis-tados relataram que a alimentação familiar seria melhor se tivessem acesso a verduras, fru-tas, legumes e carne diariamente. Conforme a fi gura 5, dezessete representantes entrevistados acham que a família possui uma boa alimentação, um representante acha razoável e seis julgam ruim. Conforme Oliveira e Augusto (2014, p. 2) ‘‘[...] a importância da alimentação saudável, completa, variada e agradável ao paladar para a promoção da saúde, sobretudo dos organismos jovens, em fase de desenvolvimento é um fato incontestável’’.

Figura 5: Percepção dos representantes em relação a qualidade da alimentação familiar.

Fonte: Coleta direta.

Parece inadmissível assimilar como famílias que possuem uma alimentação com baixo valor nutritivo e energético, alimentando-se basicamente com arroz, feijão e macarrão podem considerar que possuem uma boa alimentação. Para compreender a percepção de boa alimen-tação da população estudada, faz-se necessário perceber que o ponto de referência para tal defi nição é uma realidade marcada pela escassez parcial e/ou total de alimento, sobretudo fonte de nutrientes como vitaminas, minerais e proteínas. Não existe legislação que garanta o acesso à alimentação, este é determinado pela economia de mercado, pelo poder monetário. Se um individuo não tem recursos fi nanceiros para comprar o alimento e/ou bancar a estrutura para produzi-lo, ele passará fome.

Para que qualquer organismo cresça faz-se necessário a ingestão de moléculas novas, devido a essa necessidade os bebês e crianças são os mais expostos ao comprometimento, às ve-zes de maneira defi nitiva da saúde e na formação de seu organismo devido a uma nutrição ruim (VASCONCELOS, 1982). A pouca ingestão de calorias nas primeiras semanas de vida, pode causar no recém-nascido um estado chamado de marasmo, conforme Adas (1988, p. 11) ‘‘[...] caracteriza-se por emagrecimento, parada do crescimento longitudinal e extrema debilidade. A criança chega a ter o seu peso 60% inferior ao normal’’.

A insufi ciência calórico-proteica e de vitaminas podem causar sérios problemas de saú-

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de. A situação da saúde biológica da criança pode piorar conforme o meio que a cerca, caso haja falta de estímulos sociais e sentimentais, isso também pode afetar o desenvolvimento emocio-nal e intelectual do individuo podendo, inclusive, desencadear problemas na parte psicomotora, de identidade e da autoestima da criança (ADAS, 1988). Os problemas de saúde na perspectiva de Adas é a presença de doenças, entretanto Almeida Filho (2011, p. 24) defi ne que ‘‘[...] a idéia de saúde é algo individual, privado, singular e subjetivo’’. A fi gura 6 retrata a concepção de saúde familiar pelos moradores das comunidades Amescla e Água Doce.

Figura 6: Concepção da qualidade da saúde familiar.

Razoável Ruim Boa

18

16

14

12

10

8

6

Comunidade Água Doce

Comunidade Amescla

TOTAL

Fonte: Coleta direta.

A fi gura 6 aborda a concepção de saúde numa percepção restrita, concebendo-a como boa, razoável, e ruim. Saúde pode ser defi nida como fenômeno, metáfora, medida, valor e práxis. Saúde defi nida como fenômeno é, segundo a leitura de Almeida Filho (2011, p. 27), ‘‘[...] fato, atributo, função orgânica, estado vital individual ou situação social, defi nido nega-tivamente como ausência de doença e incapacidade, ou positivamente como funcionalidades, capacidades e demandas’’. Há uma diversidade de formas de perceber, analisar e defi nir saúde. Compreender saúde de maneira holística é aceitar seus estados, facetas, modos e em especial o homem e o meio como eixo central da analise.

Os residentes da comunidade Água Doce defi niram saúde como: ‘‘poder trabalhar, ter corpo fi rme; paz de espírito; ser alegre; passear e ter disposição para tudo; viver uma vida ho-nesta e tranqüila; ter disposição para acordar seis horas da manhã; ter coragem para trabalhar, ter o corpo disposto (sic)’’. As defi nições dos moradores da comunidade Amescla foram pare-cidas com as da comunidade Água Doce, sendo elas: ‘‘viver tranqüilo com a família, fi lhos e ter amigos; estar bem alimentado, acordar e não estar sentindo dor nenhuma; quando não está doente, isso é saúde (sic)’’ . Percebe-se a diversidade de visões do que é saúde, onde predomina a conceituação embasada na vertente positiva da saúde como fenômeno, denotando desempe-nho, funcionalidade e capacidade de ação. A saúde pode ser concebida como:

[...] metáfora; construção cultural, produção simbólica ou representação ideológica, estruturante da visão de mundo de sociedades concretas. [...] como medida; avaliação do estado de saúde, indicadores demográfi cos e epidemiológicos, análogos de risco, competindo com estimadores econométricos de salubridade ou carga de doença. [...]

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como valor; nesse caso, tanto na forma de procedimentos, serviços e atos regulados e legitimados, indevidamente apropriados como mercadoria, quanto na de direito so-cial, serviço público ou bem comum, parte da cidadania global contemporânea. [...] como práxis; conjunto de atos sociais de cuidado e atenção a necessidades e carências de saúde e qualidade de vida, conformadas em campos e subcampos de saberes e prá-ticas institucionalmente regulados, operado em setores de governo e de mercados, em redes sociais e institucionais (ALMEIDA FILHO, 2011, p.27).

A saúde tem intima ligação com o nível de bem-estar físico, psicológico/emocional, social, cultural e ambiental de um indivíduo ou de uma população. Dezenove representantes familiares acreditam que a família possui boa qualidade de vida e somente cinco acreditam que a família possui uma qualidade de vida ruim. Alguns relatos evidenciam o que poderia melhorar para que a família tivesse mais qualidade de vida: não existe trabalho, se existisse seria melhor; falta de dinheiro; tenho sonho de ter minha casa; gostaria de ter mais alegria, ser mais esperta. Vivo sem alegria, estressada; passo por difi culdades quando acaba a comida; peço Deus para me ajudar e dar saúde. Muitos entrevistados demonstraram falta de perspectivas e com a auto-estima muito baixa. Vinte representantes se queixaram que sentem mal- estar e que convivem diariamente com doenças diversas. Não há preleção sobre o conceito de mal-estar na esfera técnico do am-biente clínico e conforme Almeida Filho (2011, p. 19) ‘‘[...] nem no discurso teórico da socio-logia da saúde, sendo referido, na maioria das vezes, como curiosidade semântica reveladora da insufi ciência do conceito geral das doenças’’. O gráfi co 8 apresenta quais foram as doenças mais recorrentes nas duas comunidades estudadas.

Gráfi co 8: Doenças e sintomas mais recorrentes.

Fonte: Coleta direta.

Sintomas como dor de cabeça e febre podem ser causados pela baixa imunidade e falta de nutrientes no corpo. O sintoma que apresenta mais ocorrência entre as famílias entrevistas é a dor de cabeça, com dezessete famílias, logo em seguida a gripe com ocorrência frequente de nove famílias, febre em sete famílias e por fi m a diarréia que ocorre com frequência em seis re-sidências. As vinte e quatro famílias relataram que tratam as doenças e seus sintomas com chás e sumos de ervas e raízes que são coletadas nos arredores das residências. Quinze representan-tes familiares admitiram utilizar medicamentos manipulados. Seis representantes relataram que

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se apegam com Deus, utilizando a fé como auxilio no processo curativo.Quando eles não conseguem êxito no tratamento com a medicina tradicional (chás e su-

mos) e com remédios farmacêuticos adiquiridos em farmácias localizadas nos centros urbanos, acabam indo consultar no posto de atendimento localizado na área urbana da cidade de Bonito de Minas. Quando precisam de atendimento com urgência ligam para o Serviço de Atendimen-to Móvel de Urgência-SAMU. Todos os entrevistados elogiaram a atuação dos profi ssionais do SAMU, que atuam na região há cinco anos. Antes da implantação do SAMU no município de Bonito de Minas os moradores da zona rural tinham maiores difi culdades em conseguir transporte no momento de urgência. Antes disso em caso de necessidade só restava a opção de solicitar ajuda aos moradores que possuiam carro próprio, entretanto os motoristas /residentes chegavam a cobrar 120,00 reais para levar o morador ao hospital.

Outra problemática em relação à saúde na comunidade é a difi culdade para fazer acom-panhamento de pré-natal, devido a distância e falta de transporte para ir até a cidade de Bonito de Minas. A moradora C se encontra grávida de seis meses, não está fazendo o pré-natal e não fez sequer uma consulta. A grande preocupação do pai é se ela aguentará nove meses de gesta-ção devido à magreza, palidez, indisposição e cansaço evidente. A realidade na área estudada não condiz com a legislação vigente brasileira onde, segundo Brasil (2010, p.1) ‘[...] ‘são di-reitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados’’.

Percebe-se o grande descaso do Estado em relação à realidade que se encontra a po-pulação residente na APA do rio Pandeiros. A APA foi criada há vinte e três anos e segundo a legislação ambiental, o Instituto Estadual de Floresta - IEF, sendo o órgão governamental responsável pela gestão da área, tem o prazo máximo de cinco anos para fazer a elaboração do Plano de Manejo. Mesmo que haja a identifi cação da população e território da pobreza, apenas levar em consideração a insufi ciência de renda não abordara os outros fatores relevantes para que se trabalhe em prol da saúde dessa população.

A conseqüência da falta do Plano de Manejo vai muito além da inserção das comunida-des na dinâmica e conservação da APA, interfere diretamente na preservação de áreas sensíveis. A falta de zoneamento acaba intensifi cando as injustiças ambientais por meio da degradação do meio ambiente, como a derrubada de hectares de cerrado (Pequi, mangaba, cagaita, manga, cajueiro, etc) para o plantio de monocultura de eucalipto. Além de impactar o solo e infl uenciar a dinâmica hidrológica (infi ltração e evapotranspiração) retira-se na derrubada da mata a única possibilidade de melhoramento da alimentação e renda da comunidade. É inevitável ressaltar que a população estudada depende dos solos encharcados das veredas para a prática da agri-cultura de subsistência. Em concomitância é o mesmo ecossistema protegido pela Lei estadual nº 9.375/86, que permite segundo a utilização da água para dessedentação de animais, para consumo doméstico, pecuária, travessia, lazer e pesquisa caso não ocasionarem alterações sig-nifi cativas nas condições naturais da vereda, mas não permite o uso do solo fértil para a prática da agricultura de subsistência.

Uma ação necessária para minimizar os impactos da falta de democracia, da pobreza e da fome na área estudada é a criação de uma reserva extrativista (RE) contida e direcionada por um plano de manejo. As UC’s nos moldes de RE inserem e valorizam a presença e saberes

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das comunidades que residem na área. No recorte espacial que estão localizadas as duas co-munidades existe um potencial enorme para a prática do extrativismo. Pode-se coletar o pequi (óleo, castanha, polpa e desidratado), buriti (óleo, polpa e desidratado), rufão, favela, castanha de caju, coco babaçu, dentre outros. A reserva extrativista é defi nida como uma área conservada e conforme Diegues ( 2008, p. 124) “(...) ocupada por grupos sociais que usam como fonte de subsistência a coleta de produtos da fl ora nativa ou a pesca artesanal e que as realizam segundo formas tradicionais de atividade econômica sustentável e condicionadas à regulação específi -ca’’.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Observou-se que não houve a participação popular no processo da criação da APA, impossibilitando a inserção dos residentes em uma intervenção governamental do território em prol da proteção da biodiversidade local. Devido a não participação da sociedade civil ocorreu também a invisibilização dos conhecimentos tradicionais que direcionavam o manejo adequado das veredas preservando-as de geração a geração. Diante do afastamento existente entre os gestores e a realidade local, a percepção em relação aos residentes se destoa da realidade, onde a população é tida como sujeito degradador do meio. O Estado não oferece estrutura física e humana sufi ciente para criar uma sinergia em busca da construção do diálogo e maior entendimento das dinâmicas locais.

A falta de capital humano do IEF associada à grande extensão territorial das áreas destinadas a preservação da biodiversidade criaram uma situação insustentável, sendo impossível realizar uma gestão equânime do território, identifi car e solucionar todos os gargalos presentes. Como conseqüência da gestão defi citaria advinda da questão mencionada acima não existe plano de manejo da APA do rio Pandeiros, sendo ele essencial para o ordenamento do território e conseqüente ação coligada entre o Estado e os residentes em relação os recursos naturais. A energia despendida para a criação da APA poderá gerar frutos positivos a partir do momento que a população for envolvida no planejamento e manejo da área, podendo então desencadear a prosperidade dos objetivos centrais e necessários para os sujeitos envolvidos, que são a preservação dos recursos naturais, dos conhecimentos tradicionais e a boa qualidade de vida.

Faz-se necessário reconhecer a presença da população como fator primordial para manter a APA, pois a área se encontrava preservada até o momento da criação da UC devido ao modo de vida tradicional das comunidades. Estas se encontram à margem do sistema capitalista, tanto no que tange a acumulação de capital quanto às questões geográfi cas. É de suma importância ressaltar que o afastamento dos grandes centros comerciais associado ao pequeno poder de compra dessas populações acaba induzindo a aplicação de técnicas manuais no processo de uso e ocupação do solo, causando impacto mínimo sobre a natureza. Ficou evidente que no território da APA existem três poderes: do Estado, das empresas e dos residentes. O Estado é considerado a célula norteadora no que tange ao uso e ocupação do solo. Tal célula é ignorada pelo poder econômico soberano das empresas monocultoras que visam à expansão da silvicultura na área estudada. Com menor expressividade percebe-se o poder das comunidades que, devido à situação vulnerável, não interferem nas ações das empresas e sutilmente se opõem ao Estado,

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quando se arriscam a praticar a agricultura de subsistência.Ficou evidente que a população das duas comunidades depende totalmente do uso dos

recursos naturais encontrados na APA do rio Pandeiros. A começar pela utilização da água das veredas que é usada para consumo doméstico e para produção de alimentos. O solo do ecossis-tema supracitado é muito utilizado devido à concentração de matéria orgânica e umidade, con-fi gurando ambiente propício para a prática da agricultura de subsistência. O extrativismo se faz muito presente, como a coleta do buriti e do pequi, que acaba contribuindo para que haja uma melhor nutrição diária dos moradores. Da vereda também é retirada a argila e a palha do buriti para a construção dos domicílios, que são feitos com uma técnica secular passada de geração a geração. Entretanto houve a proibição de algumas práticas tradicionais, como a agricultura praticada no brejo e a utilização da argila e palhas do buriti. Essas atividades são criminalizadas pela legislação ambiental vigente, causando consequentemente um desconforto na população, que compreende a importância da conservação da natureza, mas percebe que precisa suprir suas necessidades e manutenções básicas do meio para garantir a sobrevivência.

AGRADECIMENTOS

Os autores agradecem à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais-FAPE-MIG- ao apoio fi nanceiro oferecido para realização do estudo.

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