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Larissa Ruffato de Angeles A INFLUÊNCIA DA RELIGIÃO NO DIREITO BRASILEIRO Centro Universitário Toledo Araçatuba 2015

A INFLUÊNCIA DA RELIGIÃO NO DIREITO BRASILEIRO · A vida, essa eterna despedida. Àqueles que foram querendo ficar in memorium eu espero o momento de voltar. Aos que ficaram, principalmente

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Larissa Ruffato de Angeles

A INFLUÊNCIA DA RELIGIÃO NO DIREITO BRASILEIRO

Centro Universitário Toledo

Araçatuba

2015

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Larissa Ruffato de Angeles

A INFLUÊNCIA DA RELIGIÃO NO DIREITO BRASILEIRO

Monografia apresentada como requisito parcial para

obtenção do grau de bacharel em direito à Banca

Examinadora do Centro Universitário Toledo sob a

orientação do Professor Dr. Fernando Rister de Sousa

Lima.

Centro Universitário Toledo

Araçatuba

2015

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BANCA EXAMINADORA

______________________________________

Prof.(a)

______________________________________

Prof. (a)

______________________________________

Prof. (a)

Araçatuba, ____ de _______________ de 2015

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AGRADECIMENTOS

Não só agradeço. Feneço meus próprios desejos. Fortaleço os laços do abraço.

Esclareço seus traços. Guarneço cada pedaço. Confesso meus erros. Os sonhos, eu teço. Meço

os tropeços. Atravesso os abismos e professo seus preços. Engesso os afetos. Peço humilde, o

recomeço, um recesso. Transpareço o apreço inconfesso. Cesso esse retrocesso, emudeço e

obedeço. E nesse singelo desfecho, submeto o coração ao amor impresso em gratidão.

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À Família, latu sensu.

Às paixões que me entreguei...

restritivamente (!)

Àquela que vou me entregar,

incondicionalmente,

A vida, essa eterna despedida.

Àqueles que foram querendo ficar

in memorium eu espero

o momento de voltar.

Aos que ficaram,

principalmente

aos que ficando,

se permitirão ficar

somente pelo amor

que nos dispusemos

a amar.

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Pelas vezes que cai, mereço o crédito de ter

permanecido dependurada pela eloquência,

pois, a queda é uma das hipóteses possíveis

apenas aos que se dispõe ao salto.

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RESUMO

Os fenômenos da laicidade e da secularização são experimentados de diversas formas, de

acordo com a experiência histórica e social de cada país. A conceituação dos termos delimita

a clara distinção existente entre eles. Ciente dessa diferenciação, a pesquisa bibliográfica

expõe a forma com que esses processos, político (laicidade) e social (secularização), se

concretizam na realidade empírica dos estados. Essa exposição aponta para as consequências

jurídicas geradas dentro do desenvolvimento da laicidade no Brasil. Dentre elas, destaca-se

nessa pesquisa a ineficácia do artigo 19 da Constituição Federal de 1988, responsável por

introduzir na estrutura estatal o caráter laico, assim como outros conflitos gerados por essa

ineficácia. Serão dissecadas suas as razões por meio de uma visão sociológica e jurídica da

história da formação e consolidação do estado brasileiro, destacando-se a conexão existente

entre os conteúdos axiológicos das leis nacionais e a moral judaico-cristã tomada como

herança da colonização portuguesa.

É também verificado um contraponto de extrema relevância a esse legado ético, qual seja, a

diversidade cultural da sociedade brasileira que encontra certa unidade no intenso caráter

religioso de suas manifestações. Essa configuração não pode prescindir da neutralidade e da

imparcialidade estatal diante das experiências individuais e sociais proporcionadas pela

profissão dos diversos credos existentes. Tal postura do estado é essencial a efetivação da

Democracia, visto que, ela intenta o convívio e desenvolvimento harmônico da sociedade

destarte a concorrência ideológica, consequência da complexidade inerente as relações sociais

contemporâneas.

Diante desse quadro, será orientado um caminho acadêmico com vistas a dissolução desse

conflito verificado.

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Palavras-chave: Brasil; Cristianismo; Cultura; Direito; Jurisprudência; Laicidade; Religião;

Secularização.

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ABSTRACT

The phenomena of laicism and secularization are sensed in different forms according to the

historical and social experience of each country. The conception of these terms restrain the

clear distinction existing between them. Aware of this difference, this bibliographical study

exposes the way those political (laicism) and social (secularization) processes are concretized

in the empirical reality of the states. The essay points towards the juridical consequences

generated through the development of the laicism in Brazil. In this research, the inefficiency

of the article 9 of the Federal Constitution from 1988 stands out. It was responsible for

introducing the laical characteristic in the state structure, as well as other conflicts sprung

from this ineffectiveness. The study dissects the reasons through a sociological and juridical

vision on the history of the establishment and consolidation of the brazilian state, emphasizing

the connection between the axiological content of the national laws and the judaic-christian

herited from the portuguese colonization.

It is also verified a counterpoint extremely revelant among this ethical legacy, that is, the

cultural diversity of of the brazilian society, which finds a certain unity in the intense religious

characteristic of its manifestation. This configuration can not do without the neutrality and

impartiality of the state before the individual and social experiences provided by the belief on

different creeds. The abovementioned state posture is essential to the effectiveness of

Democracy, since it intents the coexistence and harmonical development of the society thus

the ideological concurrence, caused by the complexity inherent in the contemporary social

relations.

Before the depicted situation, an academic way is oriented toward the solution of the conflitc

here verified.

Key-words: Brazil; Christianity; Culture; Jurisprudence; Law; Seculrism; Secularization;

Religion.

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LISTA DE ILUSTRAÇÕES

FIGURA 1 – Análise etimológica do termo “laicidade”.........................................................12

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO.......................................................................................................................11

I - LAICIDADE, SECULARIZAÇÃO E REALIDADE BRASILEIRA...........................13

II - A “LÓGICA DA LAICIDADE NO ESTADO BRASILEIRO”...................................20

III - A ORIGEM DA DOUTRINA CRISTÃ E O CAMINHO PERCORRIDO ATÉ O

BRASIL....................................................................................................................................26

IV - O PREDOMÍNIO DA MORAL JUDAICO-CRISTÃ VERSUS A DEFESA DA

DIVERSIDADE CULTURAL PELA DEMOCRACIA......................................................36

CONCLUSÃO.........................................................................................................................46

REFERÊNCIAS.....................................................................................................................50

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INTRODUÇÃO

As configurações sociais contemporâneas possuem um nível de complexidade que

dificulta, muitas vezes, a percepção dos reais elementos de sua coesão. As práticas cotidianas

são regidas por uma força abstrata que delimita a vontade e ação dos sujeitos sociais. Essa

força que direciona as condutas individuais é denominada Moral. Ela compreende os

comportamentos de natureza espontânea, condutas que não se valem de razões externas.

Portanto, quando há uma regra, como as leis ou normas de trato social, que sintetize no

âmbito coletivo uma valoração positiva da conduta moral do indivíduo, então pode-se

verificar a assimilação total do espírito a tal regramento.

A manutenção da vida em sociedade não pode prescindir das regras externas às

vontades desses sujeitos, visto que estas podem ser colidentes entre si. Se os indivíduos não

tiverem algumas de suas vontades coagidas, a fim de não se concretizarem em condutas, o

convívio social não seria benéfico, pois imperaria um estado constante de tensão e conflito.

Da necessidade de se limitar as condutas sociais nasce o Direito, a expressão cultural e

o instrumento essencial para garantia do convívio harmônico das aglomerações humanas. Seu

conteúdo corresponde ao “mínimo ético” obrigatório para que as construções sociais não

desabem (REALE, 2001, p. 38). Portanto, o Direito corresponde às regras éticas detentoras de

coercibilidade (REALE, 2001, p. 43) que na contemporaneidade é exercida pela instituição

social soberana personificada na figura do Estado.

Contudo, essa distinção entre Direito e Moral nem sempre foi clara, e fora dos círculos

filosóficos, ainda hoje, verifica-se certa confusão entre eles nas expressões de conhecimento

estritamente empírico. Do mesmo modo, ocorre com a Moral e a Religião. Em sua obra, “O

Conflito das Faculdades”, Kant aponta que, em verdade, elas não se distinguem

absolutamente quanto à matéria, o conteúdo da sua definição, mas tão somente quanto sua

forma, a linguagem utilizada para expressar seu conteúdo. A Moral se vale dos princípios

fundamentais da razão para orientar seus deveres, enquanto que a Religião se vale da

existência de um elemento fundamental à toda existência inteligível, mas que é, ao mesmo

tempo, inteiramente estranho ela. Em outras palavras, a Religião não vincula a moral à

vontade do espírito humano, mas sim aos mandamentos sagrados como expressões do divino

(a existência autônoma que fundamenta toda a existência inteligível).

O nebuloso limite entre essas três modalidades da cultura humana (Religião, Moral e

Direito), somado às peculiaridades da experiência histórica, gera a problemática levantada por

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essa pesquisa, qual seja, a ineficácia do artigo 19, inciso I da Constituição Federal brasileira

vigente que dispõe:

É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:

I - estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o

funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência

ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público;

(BRASIL, 1988).

Esse conflito jurídico-social consiste na ineficácia do dispositivo constitucional que

estabelece o regime laico de governo na democracia brasileira, ou seja, apesar de possuir

vigência e legitimidade, na prática a norma não cumpre com a sua finalidade, visto que

encontra barreiras no momento da sua aplicação efetiva.

A fim de orientar a compreensão desse fenômeno comum, porém negativo, no Direito,

a pesquisa bibliográfica desenvolvida nas próximas páginas esclarecerá os conceitos de

laicidade e secularização, assim como outros pertinentes ao raciocínio empregado.

Apresentadas as conceituações e exemplificações, passa-se à exposição do processo de

concretização do fenômeno da laicidade na República Federativa do Brasil, e como a

experiência brasileira diverge dos países que experimentaram a secularização.

Diante dessa exposição preliminar, proceder-se-á uma análise interdisciplinar da

experiência brasileira, ou seja, o diálogo da História, Sociologia e do Direito, sob a

perspectiva filosófica, construirá uma compreensão racionalmente fundamentada do problema

da eficácia do artigo 19 da Carta Magna, e que se demonstra, sob um dos aspectos

apresentados, ser uma consequência da “Lógica da Laicidade” aplicada à realidade nacional.

Esclarecidos os conceitos e dissecados os elementos que amparam a configuração

dessa relação entre a laicidade e a realidade social brasileira, vislumbra-se uma hipótese

pedagógica que pode ser de muita valia para a dissolução desse conflito relevante à

efetividade dos princípios da segurança jurídica, da moralidade, da finalidade e da

razoabilidade, entre outros que se correlacionam de forma indireta com os mencionados.

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I – LAICIDADE, SECULARIZAÇÃO E REALIDADE BRASILEIRA

O primeiro passo metodológico aplicado no desenvolvimento dessa pesquisa é a

exposição dos conceitos essenciais ao tema, quais sejam religião e os fenômenos ligados à sua

relação com o Estado, laicidade e a secularização. É comum também se deparar com o termo

laicismo que apesar de ser tratado como sinônimo de laicidade por alguns autores será

devidamente discriminado posteriormente.

A definição de Religião está intrinsecamente ligada ao que se toma por sagrado.

Rudolf Otto, famoso historiador das religiões, publica em 1917 a obra “A ideia do sagrado” e

nela o defini como “o inteiramente outro”. Para o autor citado, o sagrado consiste naquilo que

é diferente de tudo o que pode ser constatado e definido como objeto existente na dimensão

cognoscível; em suas próprias palavras, o "oculto, ou seja, o não evidente, não-apreendido,

não-entendido, não-cotidiano nem familiar" (OTTO, 1917, p. 45).

O historiador das religiões e filósofo romeno, Mircea Eliade (1992, p. 17), concorda

com Otto e prossegue em sua lógica sobre o sagrado constatando em sua obra O Sagrado e o

Profano que para o homem religioso:

[...] o espaço não é homogêneo: o espaço apresenta roturas, quebras; há porções de

espaço qualitativamente diferentes das outras. “Não te aproximes daqui, disse o

Senhor a Moisés; tira as sandálias de teus pés, porque o lugar onde te encontras é

uma terra santa.” (Êxodo, 3: 5) Há, portanto, um espaço sagrado, e por consequência

“forte”, significativo, e há outros espaços não sagrados, e por consequência sem

estrutura nem consistência, em suma, amorfos.

Portanto, a experiência religiosa divide o universo em duas dimensões, a sagrada cuja

busca é o cerne de sua gênese e não deve ser maculada pelos elementos da dimensão profana

na qual se inserem os espaços e o tempo experimentados cotidianamente pelo ser humano

enquanto ser vivo que sobrevive para a satisfação de suas necessidades fisiológicas. Contudo,

a natureza humana não se limita a esse plano simplista de sobrevida. Como lembra Nader

(2010, p. 70):

O mundo da natureza, formado pela materialidade orgânica e inorgânica, sujeita às

leis regidas pelo princípio da causalidade, não satisfaz à totalidade das

necessidades das pessoas naturais, que, cientes de suas carências, criam o mundo

da cultura, constituído por objetos corpóreos e incorpóreos, em uma ação destinada

a adaptar a realidade exterior às suas necessidades primárias e secundárias;

aquelas, voltadas a sobrevivência e estas, ligadas à ordem, à satisfação espiritual,

ao conforto.

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Desta ideia extrai-se que o homos religiosos é o indivíduo que processa juízos

valorativos bipolares sobre a realidade, ou seja, define um objeto ou uma ação como sagrada

ou profana, boa ou má, de acordo com o conteúdo moral e ético expresso pela sua crença.

O fato é que a religião é uma prática experimentada pelo intelecto humano para

explicar por meio de Representações Intuitivas1 (SCHOPENHAUER), os fenômenos naturais

e culturais experimentados por aquele que representa. Durkheim (2000, p.4) nota que nós

seres humanos sentimos necessidade de “representar de alguma maneira as coisas no meio das

quais vivemos, sobre as quais a todo o momento emitimos juízos e que precisamos levar em

conta em nossa conduta”.

O historiador Chartier (1991 apud GUARATO, Rafael. 2010, p. 173-191) ensina que

devemos “[...] perceber as representações como construções que os grupos fazem sobre suas

práticas. Sendo que essas práticas não são possíveis de serem percebidas em sua integralidade

plena, elas somente existem enquanto representações”. Para tanto, tais representações devem

ser concebidas e analisadas dentro de seu contexto histórico. Conforme o raciocínio do

filósofo grego Heráclito de Éfeso de que “tudo flui” 2, as representações estão vinculadas ao

fluir do tempo e as alterações dele inerentes que se operam no espaço e nos objetos que o

ocupam.

Esse movimento representativo do intelecto humano é exaustivamente aprofundado no

primeiro livro da obra “O Mundo como Vontade e Representação” (SCHOPENHAUER,

2005, p. 17):

1 “Esta influência que o conhecimento, na sua qualidade de agente intermediário dos motivos, exerce não sobre a

vontade, mas sobre a manifestação desta por meio de atos, estabelece também a diferença principal entre a

conduta do homem e a conduta do animal, e esta é a razão por que seus modos de conhecimento diferem

consideravelmente, dum para outro. O animal, com efeito, não tem mais que representações intuitivas; o homem,

em virtude da razão, possui, para além, representações abstratas, noções.

[...]

O animal só tem escolha entre motivos presentes e visíveis; a escolha, portanto, é restrita à esfera limitada da sua

compreensão atual e intuitiva. Por isso, somente nos animais a necessidade com que se efetua a determinação da

vontade por meio dos motivos, igual à do efeito para a causa, pode manifestar-se visível e diretamente, pelo que

o observador tem sob os olhos de maneira imediata simultaneamente os motivos e seus efeitos; no homem, ao

contrário , os motivos são quase sempre representações abstratas que o espectador ignora, e além do que, a

necessidade de ação deles se dissimula pelo mesmo agente ativo, sob o seu conflito. Efetivamente não é senão in

-abstrato, sob forma de juízos e de concatenações de conclusões, que múltiplas representações podem coexistir

na consciência e reagir depois, umas contra as outras, libertas de qualquer condição de tempo, até que a mais

enérgica vença e determine a vontade” (SHOPENHAUER, 1819) 2 “Tudo é considerado como um grande fluxo perene no qual nada permanece a mesma coisa pois tudo se

transforma e está em contínua mutação. Por isso, Heráclito identifica a forma do Ser no Devir pelo qual todas as

coisas são sujeitas ao tempo e à sua relativa transformação. Heráclito sustenta que só a mudança e o movimento

são reais, e que a identidade das coisas iguais a si mesmas é ilusória: para Heráclito tudo flui (panta rei).”

(Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Her%C3%A1clito>)

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Portanto o mundo como representação, único aspecto no qual agora consideramos,

possui duas metades essenciais, necessárias e inseparáveis. Uma é o OBJETO, cuja

forma é espaço e tempo, e, mediante estes, pluralidade. A outra, entretanto, o sujeito,

não se encontra no espaço e nem no tempo, pois está inteiro e indiviso em cada ser

que representa, com o objeto, complementa o conseguinte, um único ser que

representa, com o objeto, complementa o mundo como representação tão

integralmente quanto um milhão deles. Contudo, caso aquele único ser

desaparecesse, então o mundo como representação não mais existiria. Tais metades

são, em consequência, inseparáveis, mesmo para o pensamento: cada uma delas

possui significação e existência apenas por e para a outra: cada uma existe com a

outra e desaparece com ela. Elas se limitam imediatamente: onde começa o objeto,

termina o sujeito.

Essa condição humana a uma existência representativa que vincula o objeto ao sujeito

é concretizada no movimento religioso das sociedades primitivas. A religião como uma

Representação Coletiva (DURKHEIM, 1912) do universo concretizada na linguagem

mitológica influencia e é influenciada pelo desenvolvimento da sociedade que a representa,

em todos os seus setores, político, cultural e econômico. Tal condição também esclarece a

necessidade do ser humano de entender sua própria tendência às diversas formas de

manifestações religiosas. Esse movimento reflexivo inserido dentro de uma visão sociológica,

como é o caso da presente pesquisa, não abre mão de um estudo científico da manifestação

cultural religiosa posta em análise.

Destarte a dicotomia espacial pregada pela religião, sua influência sobre a realidade

profana é constatada ao longo de toda história humana, mais evidentemente nas teocracias:

“sistema de governo em que o poder político se encontra fundamentado no poder religioso,

pela encarnação da divindade no governante, como no Egito dos faraós, ou por sua escolha

direta, como nas monarquias absolutas” (Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, 2001).

Não só nas civilizações antigas; mesmo na contemporaneidade temos exemplos de governos

regidos por leis embasadas nos princípios da religião dominante, como exemplifica o atual

Estado Islâmico.

Segue comentário sobre o sociólogo e teólogo luterano Berger (1985 apud GOMES,

2004, p. 52):

A religião é apontada por Berger como o instrumento mais amplo de legitimação da

realidade, inclusive da social. Essa legitimação é que mantém a realidade

socialmente definida. A religião legitima de modo eficaz, porque funde as tênues

realidades do mundo social com as pretensas realidades do mundo sagrado,

colocando a realidade para além das contingências dos sentidos humanos e das

atividades sociais, criando numa pretensa supra-realidade a sua própria realidade.

Contudo, a idade moderna do ocidente europeu lança na História muitas mudanças no

pensamento intelectual de diversas áreas do conhecimento. Com a ascensão de uma nova

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classe dominante na sociedade3, a religião tem seu monopólio enfraquecido e o mundo

ocidental segue a tendência da separação das instituições políticas e religiosas.

As mudanças que deram origem ao pensamento liberal, base do Estado de Direito

concretizado na implantação dos estados republicanos, começam a germinar a partir da

constituição da ciência moderna – racionalismo, cientificismo, antropocentrismo, etc. -,

contudo, a História se vale, para fins meramente didáticos, da Revolução Francesa de 1789,

como marco histórico que representa a ruptura das estruturas sociais, políticas e econômicas

do antigo regime sustentado pelas monarquias absolutistas da Europa. Foi o contexto histórico

de onde emergiram mais incisivamente os ideais iluministas de liberdade e igualdade. O

estado governado sob um regime absoluto, que tem seu fundamento justificado pelo poder

divino do rei concedido pela igreja – a católica no caso francês – é substituído pela soberania

popular; ou seja, diversos estados implodem seus regimes situacionistas e estes dão lugar aos

governos regidos pelos ideais iluministas.

O princípio da igualdade desconstrói o sistema permeado de privilégios distribuídos

discriminadamente pelo critério da descendência (pirâmide estamental: clero, nobreza e

plebe). A liberdade defendida de forma igualitária se limita apenas pela liberdade individual

do outro que também detém o mesmo direito. E, por fim, o direito divino dos reis perde

espaço dentro da realidade cotidiana profana que passa agora a exercitar o pensamento

direcionado pela razão, dando, assim, lugar à soberania popular.

A partir desse marco, termos como Secularização começam a ter ainda mais relevância

e visibilidade. O que não significa que o termo seja tão recente quanto a própria revolução:

“os neologismos séculariser (1586) e sécularization (1567) estiveram relacionados ao lento e

tormentoso processo de afirmação de uma jurisdição secular – isto é laica, estatal – sobre

amplos setores da vida social até então sobre o controle da Igreja” (MARRAMAO, 1995, p.

19). O teocentrismo sede lugar ao antropocentrismo e as instituições religiosas começam a

perder seu espaço na política dos estados antes tidos como confessionais. “As bases da

filosofia ocidental moderna revelam uma concepção de mundo e de homem dessacralizadora,

profana, que contrasta com o universo permeado de forças mágicas, divinas, das sociedades

primitivas” (RANQUETAT, Cesar A. Jr. 2008).

Essa mudança de cenário, em que a religião perde sua posição axial dentro da

sociedade e que cada esfera da vida social passa a se emancipar, faz parte do processo de

Secularização. Berger (1985, p. 119) em sua obra “O Dossel Sagrado”, conceitua

3 A burguesia detentora dos pilares do sistema econômico moderno: os meios de produção.

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secularização: “como um processo pelo qual setores da sociedade e da cultura são subtraídos à

dominação das instituições e símbolos religiosos”. Diante disso, podemos afirmar que a

secularização se trata de um fenômeno Histórico-Social (RANQUETAT, Cesar A. Jr. 2008).

Isto posto, é possível distinguir devidamente o termo laicidade a partir do seguinte

estudo etimológico (Catroga, 2006):

O termo fica conhecido pela primeira vez na França quando eclode o debate sobre

subtrair-se a educação do monopólio eclesiástico4. Sobre esse contexto, expõe Bréchon (1995,

p. 1):

Trata-se de uma ideologia, portadora de mobilização, caracterizada pela defesa dos

valores da República e de uma luta contra todos os obscurantismos religiosos,

notadamente no sistema escolar. Esta versão militante de laicidade, forjada nos

combates políticos da metade do século XIX e da metade do século XX, não é a

única. A ideologia laica se reduz hoje a uma atitude de tolerância, de abertura a

todas as posições filosóficas e religiosas, ou por um simples silêncio que impõe nas

aulas a ensinamentos concernentes a opções religiosos ou políticas, de maneira a não

influenciar as crianças.

Portanto, evidencia-se que a laicidade é um fenômeno semelhante à secularização no

sentido de ser um movimento contrário ao controle social instrumentalizado pelos princípios

místicos da religião. Porém, o processo pelo qual passam as sociedades secularizadas trata-se,

4 A ênfase na realidade francesa é importante em razão da sua influência no ordenamento jurídico brasileiro.

LAIKÁS

(grego primitivo)

LAICUS

(latim)

LAICO/LEIGO

(português)

=

oposição àquio que é clerical

LAICIDADE (português)

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como já mencionado, de um fenômeno histórico-social, ou seja, a sucessão de fatos que

operam mudanças na ideologia dominante. Já a laicidade, diversamente, se limita ao campo

político e deriva exclusivamente do Estado que impõe essa ideologia-política aos governados

com fulcro no poder que lhe é legítimo (VALLARINO-BRACHO, 2005). Em regra geral,

Baubérot (2005, p. 8) afirma que se trata de “uma mobilização e mediação do político para

que as intenções laicizadoras se operacionalizem e se realizem empiricamente.”

O estado laico é aquele que, seguindo a ideologia do liberalismo constituído

historicamente na Europa ocidental do século XIX, alcança total independência da influência

religiosa dentro da esfera pública. Trata-se de uma mobilização restritiva que da sustentação à

total neutralidade do estado no que tange aos assuntos religiosos. Como ensina Barbier

(2006), há duas categorias de neutralidade que o poder público deve praticar. A neutralidade-

exclusão, que corresponde à ruptura total da ligação entre instituições religiosas e instituições

estatais, assim como todos os princípios que não encontrem sustentação no conhecimento

profano-racional, e a neutralidade-imparcialidade que obriga o estado a um olhar igualitário

perante a diversidade de manifestações religiosas, ou seja, o princípio da igualdade prevalece

para garantir que todas as culturas sacras tenham as mesmas garantias que seus praticantes.

Destaca-se que a laicidade não corresponde a uma nova cultura, “sino la condición

para la convivencia de todas las posibles culturas. La laicidad expresa más bien um método

que um contenido” (BOBBIO, 1999, p.2). Essa afirmação é essencial na diferenciação dos

termos laicidade e laicismo, sendo que este é visto por alguns estudiosos como um movimento

ideológico embasado no antropocentrismo e racionalismo, portanto muito combativo às

filosofias confessionais. O laicismo prega que a sociedade deve se livrar de toda prática que

tenha fundamento nas filosofias confessionais, pois vão de encontro à racionalização do

mundo. Pode haver colisão entre a laicidade e o movimento laicista (laicismo) quando a

oposição combativa ao religioso se personifica no ataque às liberdades de culto e credo,

atravancando assim o exercício da neutralidade-imparcialidade por parte do Estado laico,

visto que a cultura religiosa de forma geral passa a enfrentar uma discriminação que privilegia

toda a realidade profana em detrimento do espaço da devoção ao sagrado na sociedade5. O

jurista católico Cifuentes (1989, p. 158) pontua laicidade como a “prerrogativa consubstancial

à - ordem autonômica - do Estado e o laicismo supõe a ruptura arbitrária e artificial do elo

essencial que une toda a atividade com a – ordem teonômica - ” (1989, p.158). Contudo, é

importante salientar que, diante de um conteúdo ideológico, apesar de todo o esforço

5 É evidente que dificilmente encontraremos um fato concreto exemplificativo no Brasil para tal assertiva, dada a

grande influência religiosa na política brasileira que será analisada com detalhes adiante.

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intelectual empregado, o jurisfilósofo descarrega uma fração de sua própria ideologia no

processo de elaboração do conhecimento.

Definidos os conceitos, resta mencionar que tanto o processo de secularização quanto

o exercício da laicidade não podem ser predefinidos e padronizados. Cada estado possui

características que lhe são peculiares e essas peculiaridades, de ordem histórica, política,

social, econômica, contribuem para uma realidade única, de forma que cada país possui

critérios próprios na aplicação e desenvolvimento desses fenômenos.

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II – A “LÓGICA DA LAICIDADE” NO ESTADO BRASILEIRO

O fato é que os três fenômenos mencionados no capítulo anterior não se apresentam

necessariamente de forma concomitante na realidade empírica de cada país. Aliás,

experiências como a da Inglaterra e da Dinamarca são curiosas. Trata-se de países que já

alcançaram níveis avançados de secularização nas suas práticas e, contudo, não são estados

laicos, ou seja, não possuem a laicidade declarada constitucionalmente como é o caso do

Brasil (BARBIER, 2005).

Importante ressaltar que Portugal e Espanha, principais colonizadores do antigo Novo

Mundo, as Américas, refletem bem a realidade brasileira. A história desses dois Estados é

marcada por um vínculo estreito e tenro com a Igreja Católica Romana. Foi governado sob a

égide do despotismo esclarecido reconhecido pelo papa da época que Portugal desponta na

Expansão Marítima da Europa do século XV, sucedendo, desta forma, a ocupação do Brasil

que é declarado colônia do estado português no ano de 1500. Levando em conta que a antiga

metrópole do período colonial brasileiro foi, até 20 de abril de 1911, um estado confessional,

e que mesmo hoje, apesar de constitucionalmente laico, Portugal não é considerado

secularizado, inclusive, assim como a Espanha, ainda costuma figurar como parte na

celebração de concordatas6, então podemos construir a primeira ponte comparativa para

esclarecer a realidade brasileira atual que compartilha com esses países europeus as práticas

concordatárias (PEREIRA, HAVENA, RIBEIRO. 2011).

Mesmo fora do contexto acadêmico, soa incoerente a afirmação de que um estado

constitucionalmente laico celebre tratados internacionais dessa categoria, que possuem

validade dentro do sistema jurídico nacional. Porém, é um fato comum não apenas nos três

países já mencionados como também em diversos estados latino-americanos que no passado

compartilharam com o Brasil uma metrópole colonial confessionalmente católica (PEREIRA,

HAVENA, RIBEIRO. 2011). É evidente que não devemos considerar o fator da colonização o

único a gerar a realidade “quase-laica” do Brasil atual; trata-se apenas da primeira ligação que

faremos no processo que nos levará a comparar as diversas faces do Direito Brasileiro com o

Direito Hebraico, que é o sustentáculo das normas da Igreja Católica Romana7.

6 Tratados internacionais celebrados pela Santa Sé do Vaticano com algum Estado em que o conteúdo verse

sobre questões religiosas. 7 As normas eclesiásticas têm sua eficácia embasada na crença de que são revelações do Sagrado aos seus

representantes dentro da realidade cognoscível. Mais especificamente, no caso do catolicismo, a Lei que vigora

nas comunidades fiéis é uma reunião de textos hebraicos e de judeus convertidos cristãos que hoje são

conhecidos como o Antigo Testamento da Vulgata Latina: primeira tradução do que foi originalmente escrito em

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Esse fenômeno de uma “quase-laicidade” (RANQUETAT, Cesar A. Jr. 2008) ocorre

quando o estado, que assume a posição laica no seu ordenamento, governa uma sociedade

culturalmente recheada por preceitos religiosos, ou seja, uma sociedade ainda não

secularizada. Isso é possível, pois, como já vimos, a Laicidade se trata de um fenômeno

estritamente político, enquanto que a Secularização de um fenômeno social. As instituições

religiosas que exerceram grande influência sobre as realidades políticas nacionais, e mesmo

nas relações internacionais - como é o caso da Igreja Católica Romana e de alguns

movimentos protestantes cristãos, que serão objeto de nossa pesquisa – reagem

contrariamente à secularização social. Exemplos dessas reações são algumas encíclicas8 que

versam sobre o tema e o reforço de posturas tradicionalistas. Essa segunda reação

confrontante com os movimentos laicistas cria cenários de tensão ao longo da história

ocidental e, a depender de como se distribui o poder político, a laicidade pode encontrar

obstáculos à sua emancipação, assim como, em realidade diversa, os grupos religiosos podem

perder muito do seu espaço na sociedade.

Interessante ressaltar que os países que são ou foram um dia confessionalmente

católicos seguiram a Lógica da Laicização no seu processo de emancipação religiosa - “o

poder político é mobilizado para subtrair, completamente ou parcialmente, as pessoas e as

diferentes esferas da atividade social da influência da Igreja” (RANQUETAT, Cesar A. Jr.

2008). Desse movimento estatal de equiparar a Igreja Católica a mais uma instituição privada

e colocá-la em pé de igualdade com outras da mesma categoria no que tange aos direitos e

obrigações cívicas, surge uma reação combativa dos grupos clericais. Já nos países

protestantes, em regra, segue-se a Lógica da Secularização que dada sua natureza de

transformação social não é marcada, na esfera política, por conflitos relevantes entre grupos

de ideologia diversa, quais sejam, clericais e laicos (CHAMPION, 1994, apud

RANQUETAT, 2008).

O Brasil segue o caminho da sua antiga metrópole europeia, ou seja, tanto a primeira

constituição republicana brasileira quanto a Constituição Democrática de 1988 instituíram a

laicidade no governo de uma sociedade não secularizada.

hebraico, aramaico, grego e traduzido para o latim em 382 d.c pelo sacerdote ilírio, Jerónimo de Estridão, a

pedido do Papa Dâmaso I (Disponível em: <http://filosofiaetecnologia.blogspot.com.br/2011/03/historia-da-

biblia-evangelhos-apocrifos.html >). 8 A carta encíclica, ou apenas vulgarmente encíclica (Litterae Encyclicae) é uma circular papal, um documento

pontifício, dirigido aos bispos de todo o mundo e, por meio deles, a todos os fiéis. O termo “espistola encyclica”

parece ter sido introduzido pelo Papa Bento XIV (1740-1758) (Disponível em:

<https://pt.wikipedia.org/wiki/Enc%C3%ADclica>)

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A separação Igreja-Estado no Brasil, estabelecida com o advento da República, não

pôs fim aos privilégios católicos e nem a discriminação estatal e religiosa às demais

crenças, práticas e organizações mágico-religiosas, sobretudo às do gradiente

espírita. Neutralidade estatal zero em matéria religiosa. Mas a discriminação não

restringiu-se de modo algum à atuação de agentes e instituições estatais. Agentes

públicos e privados, cada qual à sua maneira, discriminaram abertamente os cultos

espíritas e afro-brasileiros. Nas primeiras décadas do século XX, na esteira das

correntes higienistas, criminológicas e cientificistas em voga, juízes, médicos,

legisladores, delegados, intelectuais e jornalistas, empenhados em estabelecer uma

ordem e um espaço público modernos, tomaram a Igreja Católica como modelo de

religião e de culto religioso e, simultaneamente, como antítese de práticas “mágico-

religiosas” espíritas e afro-brasileiras. A mediunidade e as práticas curativas dos

espíritas eram comumente rotuladas de patológicas e enquadradas como exercício

ilegal da medicina nos embates públicos travados entre 1920 e 1940. Embora até o

início do século XX não se vissem como condutores ou praticantes propriamente de

uma religião, nem almejassem obter tal estatuto, os espíritas só conseguiram

descriminalizá-las e legitimá-las, após transformá-las forçosamente num culto

religioso, culto que se fez reconhecer como tal através da realização de caridade

espiritual e assistencial, reproduzindo, a seu modo, uma importante virtude teologal

cristã e católica (Mariano apud Giumbelli, 1997, p. 122; Montero, 2006, p. 52).

Portugal exportou para o Brasil a moral cristã do catolicismo, assim como a cultura

luso-europeia imposta coercivamente aos nativos. Ademais, o pluralismo étnico que povoou e

povoa até hoje o vasto território brasileiro – índios, africanos, portugueses, italianos,

japoneses, etc. – semeou em sua sociedade o sincretismo cultural e, consequentemente, o

religioso. “Parte dos brasileiros concebe que os diferentes sistemas religiosos são

complementares, não excludentes, e que podem ser somados para ampliar a proteção e os

benefícios que provém” (STEIL, 2001, p. 120-121). Essa tendência é fruto da experiência

brasileira de intensa miscigenação étnica. Destarte essa pluralidade que impinge um reflexo

proporcional na cultura como um todo – o Direito, portanto, como um fragmento da cultura -,

a experiência sócio-política brasileira constata na história um nítido direcionamento

hierárquico aos diversos grupos culturais que, como consequência da miscigenação, foi se

consolidando no decorrer do tempo.

O ponto axial que deferiu a marginalização das religiões afrodescendentes e de outras

culturas “mágico-religiosas” como a dos grupos ciganos, foi a assimilação ideológica do

prestígio político, social e econômico que Portugal tinha enquanto metrópole colonial

europeia. O nativo de Pindorama foi reeducado pelas missões jesuítas9 a crer que o homem

branco traria junto com a civilização moderna a salvação a todos os povos por meio da

Evangelização, ou seja, doutrinação pela moral cristã. Porém, o árduo esforço lusitano-

9 Como são conhecidos os membros da Companhia de Jesus, uma ordem religiosa fundada em 1534 por um

grupo de estudantes da Universidade de Paris, liderados pelo basco Íñigo López de Loyola, conhecido

posteriormente como Inácio de Loyola. A Congregação foi reconhecida por bula papal em 1540. É hoje

conhecida principalmente por seu trabalho missionário e educacional (Disponível em:

<https://pt.wikipedia.org/wiki/Companhia_de_Jesus#cite_note-1>).

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católico em tornar o Brasil um gigantesco quintal do Império Português, mesmo após intensa

exploração colonial que buscava o abastecimento dos cofres portugueses e do livro de fiéis

dizimistas do Estado do Vaticano, o nascimento da cultura essencialmente brasileira, a

mistura de todas as expressões étnicas que a pretensa Ilha de Vera Cruz abrigou ao longo de

sua história, foi o movimento de contra-cultura que iniciou o processo de independência desse

imperialismo católico-português. O processo de emancipação da cultura religiosa brasileira

deve-se a uma série de fatores que cabem a outros ramos da ciência teorizar, quais sejam,

Antropologia, Sociologia, Sociologia da Religião, Teoria Geral do Estado, História, cada qual

demonstrando os fatos e as suas consequências que, postas sob uma análise dialética, traçam o

caminho percorrido até a realidade contemporânea.

O fato é que a nossa história colonial presenteou a nação brasileira com um povo

numeroso e heterogêneo, ou seja, o Brasil foi, e ainda é palco de um encontro plural de etnias,

terreno fértil para o sincretismo cultural e, consequentemente, religioso. Os colonos europeus

foram responsáveis pela assimilação do catolicismo romano. O regime escravocrata trouxe a

mais numerosa etnia brasileira, os afrodescendentes que trouxeram da África sua cultura

religiosa tribal assimilada reciprocamente tanto pelos nativos indígenas quanto pelo próprio

cristianismo europeu que, com o avançar da história, já não era uniformemente católico

romano, dado o intenso fluxo migratório da Europa destinado a abastecer a demanda de mão-

de-obra após a abolição da escravidão. Importante também mencionar a invasão holandesa e

demais conflitos internacionais que puseram outras culturas em contato com o Brasil.

A conclusão que se extrai, até o presente momento, é que o terreno é propício para que

a relação inter-religiosa do brasileiro perca os traços do “sincretismo-hierárquico”

(MARIANO, 2011, p. 248) predominante até o início do século XX e se mostre mais

condizente com o “modelo pluralista” (ibidem). Contudo, essa transição ocorre sob um

conflituoso cenário de concorrência das instituições religiosas em busca de fiéis.

No começo [da evangelização protestante no país] os crentes eram perseguidos,

presos, torturados, expulsos de cidades, feridos em apedrejamentos, mortos em

invasões de residências e de templos ou em traiçoeiras emboscadas [...] e que, “no

interior do país, até os anos 50 ainda havia assassinatos de crentes, derrubada de

templos, agressões” (SYLVESTRE, 1986, p. 41).

Interessante ressaltar a analogia que pode ser feita entre o tratamento social dado aos

crentes protestantes até a década de 50, como diz Sylvestre (1986, p. 41), e o descaso das

instituições estatais em coibir, hoje em dia, os crimes de discriminação racial que, apesar de

positivado, é norma de pouquíssima eficácia jurídica; as violências domésticas, profissionais e

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sociais praticadas contra a mulher, que não encontram muitos obstáculos de coerção eficazes,

mesmo dentro dos entes responsáveis especificamente a solucionar lides dessa natureza, e

condutas delitivas que externalizam uma repulsa ideológica da classe dominante pelo

estrangeiro profano e vitimam minorias como as representadas pelas comunidades indígenas,

LGBT, entre outras.

Feito esse adendo, remete-se novamente a atenção para o autor Mariano (2011, p. 248)

que destaca a importância do Pentecostalismo10

para a consolidação do modelo pluralista das

relações inter-religiosas do Estado Brasileiro:

Ao contrário do kardecismo e dos cultos afro-brasileiros, nos quais tais fenômenos

são mais frequentes, o pentecostalismo tende a demandar laços exclusivos de seus

adeptos. Proselitista e conversionista, ele foi fundamental para consolidar o

pluralismo religioso no país, para reforçar a defesa do princípio da liberdade

religiosa e de culto, do qual o pluralismo depende, para provocar a ruptura da lógica

monopólica prevalecente no campo religioso, para pôr em xeque a estreita

identificação entre catolicismo e nacionalidade brasileira e para dilatar enormemente

a competição religiosa. Rompeu, assim, com o modelo hegemônico de relação inter-

religiosa que prevaleceu no país até meados do século XX: o sincrético hierárquico.

Esse modelo combinava uma “relação [de pertença religiosa] não-exclusiva com a

aceitação da hegemonia institucional católica”, que tolerava as demais como

satélites a seu redor, nos termos de Paul Freston (1993, p. 6).

O fato é que a modernização urbano-industrial, somada à expansão de pentecostais,

umbandistas, espíritas e, mais tarde, a redemocratização trazida pela Constituição Federal de

1988, legitimaram o transito religioso no país. A prática religiosa na vida do brasileiro perde o

caráter de expressão de uma tradição cultural e passa a ser uma opção pessoal, consciente,

voluntária e deliberada, ao mesmo tempo em que as instituições religiosas percebem o vasto

rebanho de fiéis sedentos de serem arrebanhados por suas doutrinas e encontram na política

um caminho eficaz para ampliar o alcance de sua influência.

Os pentecostais ingressaram na arena política impelidos pelo temor de que a Igreja

Católica estivesse disposta a tentar dilatar seus privilégios junto ao Estado brasileiro

na Constituinte. Tal temor era compartilhado por outros grupos evangélicos. Tanto

que um seminário promovido pela Ordem dos Ministros Batistas do Rio de Janeiro,

intitulado “Os evangélicos e a Constituinte”, defendia, no documento final, de 29 de

novembro de 1985, a “separação entre a Igreja e o Estado, o respeito às liberdades e

aos direitos humanos” e afirmava: “Somos pela existência de um Estado leigo.

Preconizamos um tratamento equânime, da parte do Estado, para todos os credos e

confissões religiosas. Abominamos quaisquer tipos de privilégios. Não os queremos

para nós, nem os aceitamos quando favorecendo a outros” (Sylvestre, 1986, p. 102).

Poucos dias depois, um documento encaminhado por uma comissão de pastores e

parlamentares evangélicos ao presidente José Sarney, em 3 de dezembro de 1985, se

posicionava a favor da “liberdade religiosa” e da “preservação da autonomia

Igreja/Estado” (Ibidem, p. 98). Paradoxalmente, ao mesmo tempo, considerava

10

Movimento religioso protestante que, desenvolvido fora do protestantismo tradicional, teve início a partir dos

E.U.A., em princípios do séc. XX; abrange várias seitas que, tal como os apóstolos no Pentecostes, buscam a

união com o Espírito Santo (Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, 2001).

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“fundamental que a autoridade governamental esteja submissa à soberania divina”

(Ibidem, p. 98).

A questão primordial é: como Estado Democrático de Direito que é, o Brasil tem em

sua Carta Magna, além do compromisso expresso com a ideologia laica, um rol de direitos e

garantias individuais incompatíveis com diversas das propostas levantadas pelas Bancadas

Evangélicas, como hoje são conhecidos os parlamentares comprometidos com instituições

religiosas. Portanto, é seu dever institucional garantir que nenhuma ideologia, religiosa ou

não, mesmo se valendo de meios políticos aparentemente legítimos, subtraia dos cidadãos os

seus direitos constitucionais.

Num contexto sociocultural pluralista e formalmente democrático, grupos laicos e

laicistas8 têm intensificado sua luta para obter e assegurar o reconhecimento de seus

direitos humanos, sexuais, sociais e reprodutivos. Com tal propósito, têm reagido às

aspirações, propostas e ações de seus adversários religiosos, recorrendo,

fundamentalmente, à defesa da laicidade estatal contra interferências religiosas na

educação, na saúde, no corpo, nas pesquisas científicas, nas políticas públicas, no

ordenamento jurídico-político e nos órgãos estatais. De outro lado, em contraste,

católicos e evangélicos têm recrudescido seu ativismo religioso, político e midiático

para ampliar a ocupação religiosa do espaço público, influenciar a esfera pública e

estatal, promover sua moralidade cristã tradicional e tentar estendê-la ao conjunto da

sociedade por meio de lobby e da participação na política-partidária. (MARIANO,

2011, p. 252)

Diante de todo o exposto até o momento, conclui-se que a República não foi capaz de

efetivar a laicidade no Brasil, visto que as instituições religiosas de maior influência no

quadro social se utilizam da política para propagação de sua ética e conduta moral. Além do

que, como veremos no próximo capítulo, as condutas sociais estão intimamente ligadas aos

modelos axiológicos pregados pelas religiões de origem judaico-cristã. Isso é verificado na

atual composição da Câmara do Deputados Federais, que além da sistemática formação das

“bancadas evangélicas”11

tem, atualmente, como presidente do órgão o deputado Eduardo

Cunha que além da representação partidária (Partido do Movimento Democrático Brasileiro),

é figura de destaque como membro da igreja neopentecostal Sara Nossa Terra.

11

Termo usado para designar as coligações entre os partidos da direita política com representantes

declaradamente vinculados a instituições religiosas, que, inclusive, pautam suas propostas e votos nos princípios

éticos dessas doutrinas.

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III – A ORIGEM DA DOUTRINA CRISTÃ E O CAMINHO

PERCORRIDO ATÉ O BRASIL

Delimitado o contexto político em que se insere o ordenamento jurídico brasileiro hoje

em dia, chega o momento de coletar alguns dados históricos que levarão à constatação de que

a cultura judaico-cristã encontra-se positivada na lei brasileira em ramos como o do Direito

Penal e o Direito Civil. Tal fato orienta a compreensão da realidade “quase-laica” do Direito

no Brasil.

Parte-se do princípio de que o sistema jurídico ocidental tem suas raízes no

pensamento Greco-romano da Antiguidade. “Ao gênio especulativo dos gregos corresponde,

na Antiguidade, a vocação romana nos domínios da Ciência do Direito. Enquanto os

primeiros foram originais na filosofia, os segundos foram extraordinários na elaboração de

seu Jus Positum” (NADER, 2010, p. 158-159). Portanto, o sistema codicista importado pelo

Brasil do ocidente europeu foi consequência da necessidade que o Império Romano12

teve em

organizar, sob uma lógica própria, o vasto conjunto de regras a que eram submetidos todos os

povos colocados sob seu domínio. A complexidade do ordenamento, que extrapola as

limitações inerentes ao direito não escrito, é um reflexo do desenvolvimento social.

O que nem sempre é levado em consideração sobre o modelo político romano da

mencionada época é o estreito vínculo da religião com o estado imperial.

A religião romana primitiva apresentava semelhanças com a dos gregos: ambas eram

politeístas, com divindades de atribuições análogos; ambas careciam de um sentido

ético; e desenvolviam, paralelamente um culto familiar e outro oficial. A religião

romana era mais singela, menos intelectual, e mais política, com um sacerdócio mais

bem organizado; e em geral, não era antropomórfica (BECKER, 1968 apud

LISBÔA, 2009, p. 53)

A respeito desse caráter político da religião romana, vale destacar, que dele vai

decorrer a colocação das temáticas religiosas dentro do âmbito do ius publicum, visto que as

leis divinas encontravam expressão somente na vontade soberana do imperador.

Malgrado a relação íntima entre o Estado e a religião politeísta, assim como ocorria

na Grécia, a religião romana era não-dogmática, eclética e inclusiva. Por se tratar de

um largo imperio, era comum e saudável a aceitação da existência de outras

religiões e práticas religiosas advindas de contextos culturais distintos, contexto tal

que deixava poucas margens para conflitos. A religião era vista como amalgama a

serviço da eficácia do sistema jurídico (BATISTA NETO, 2012).

12

O Império Romano (em latim: Imperium Romanum) foi o período pós-republicano da antiga civilização

romana, caracterizado por uma forma de governo autocrática liderada por um imperador e por extensas

possessões territoriais em volta do mar Mediterrâneo na Europa, África e Ásia (Disponível em:

<https://pt.wikipedia.org/wiki/Imp%C3%A9rio_Romano>).

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A religião como instrumento a serviço da eficácia das normas não é inovação das

civilizações13

. Nas sociedades primitivas “havia unidade entre os pensamentos religioso,

político e jurídico. Foi a partir das culturas pré-modernas (China, Índia, Grécia, Roma, etc.),

quando apareceram os mercados, que se modificou o contexto primitivo no qual imperava a

vontade do patriarca” (BATISTA NETO, 2012). Dentre as inúmeras modificações trazidas

com o processo de formação de uma civilização, destaca-se que as atribuições antes dadas ao

patriarca - chefe e guia do seu clã -, agora recaem sobre uma nova figura soberana, o

imperador no caso romano. Essas atribuições consistiam, de maneira geral, em interpretar e

orientar as experiências religiosas exercendo o papel de líder espiritual, ao mesmo tempo em

que garantia a sobrevivência do grupo como um todo e, conciliadoramente, de cada indivíduo

integrante.

Parece natural, portanto, que, numa civilização como a Roma Antiga, herdeira muito

próxima desse sistema de clãs, o imperador assuma concomitantemente as atribuições

políticas e religiosas do império.

Desde a antiguidade, o pensamento jurídico e religioso teve uma estreita relação.

Sendo que, até o surgimento das grandes civilizações, não se podia vislumbrar a

diferença entre elas. Foi com os gregos que surgiram as primeiras formulações sobre

a distinção fundamental entre o justo por natureza e o justo por convenção. O que se

convencionava, portanto, deveria refletir a justiça cosmológica. Com o avançar dos

séculos, o cristianismo foi quem propôs uma separação entre a religião e o Estado,

baseando sua doutrina numa ética na qual se via todos os seres humanos como

iguais. Esta visão fez com que o evangelho messiânico se espalhasse tão

rapidamente, que acabou sendo incorporado ao Estado Romano, que por sua vez,

após o seu fim, teve um herdeiro durante a Idade Média: a Igreja Católica Apostólica

Romana (BATISTA NETO, 2012).

No que concerne à realidade jurídica do Império Romano, tendo em mente a

maturidade intelectual de sua cultura, “destaque-se, de início, que o direito em Roma não era

estudado apenas por moralistas, filósofos, teólogos ou sacerdotes, surgindo a figura

importante do jurisconsulto” (BATISTA NETO, 2012), ou seja, o estudioso responsável por

inserir o pensamento jurídico abstrato dentro da prática cotidiana. Em outras palavras, o

jurisconsulto aplicava o direito positivo abstrato às diversas experiências concretas

vivenciadas pela sociedade à sua época, produzindo o que hoje conhecemos como

jurisprudência, termo também herdado de Roma. Então, pode-se concluir que a ciência e a

filosofia jurídica ocidental extraem da cultura romana os aspectos formais do seu Direito.

13

“Civilização é um complexo conceito da antropologia e história. Numa perspectiva evolucionista é o estágio

mais avançado de determinada sociedade humana, caracterizada basicamente pela sua fixação ao solo mediante

construção de cidades, daí derivar do latim civita que designa cidade e civile (civil) o seu habitante” (Disponível

em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Civiliza%C3%A7%C3%A3o>).

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Porém, como será demonstrado a seguir, é o cristianismo que fornece os conteúdos

axiológicos das normas que compõem essa estrutura.

Uma análise filosófica dessa influência remete o estudo ao fato de que o Direito

Romano assimilou em determinado momento da Era Antiga os princípios e valores do Direito

Hebreu que consiste no conjunto de regras a que se submetia o antigo povo de mesmo nome.

Conhecida como uma das únicas culturas monoteístas de sua época, a antiga

comunidade hebraica forma o grupo étnico e religioso dos Judeus, como hoje são conhecidos.

Importante salientar essa simbiose entre a cultura judaica e o conjunto das regras sociais

hebraicas positivadas no que hoje a doutrina chama de Direito Hebreu.

Não se pode olvidar também a similaridade histórica do cristianismo com sua religião

mãe, o judaísmo. Excetuando as peculiaridades que cada período histórico impinge nas

estruturas sociais dos povos, pode-se dizer que judeus e cristãos são indivíduos que regem seu

convívio social conforme um modelo ético-moral em comum herdado do antigo povo hebreu.

A respeito da cultura judaica, comenta Batista Neto (2012):

Esta se assentava numa concepção de matriz teocrática que não deixava margem

para uma clara distinção entre finalidades políticas e religiosas.

[...]

O poder político judeu estava legitimado em premissas transcendentais, nas quais o

que se buscava efetivamente era a vontade de Deus.

[...]

Na teocracia hebraica não havia espaço para liberdade de consciência individual,

sendo a sociedade entendida como um corpo orgânico. E, diferentemente do

contexto Greco-romano, a coerção e perseguição religiosa era a regra.

Porém, apesar das convergências entre os usos e costumes judeus e cristãos, deve-se

destacar duas mudanças relevantes trazidas à relação religião-estado-indivíduo pela doutrina

pregada por Jesus Cristo, ele próprio judeu, e propagada por seus apóstolos.

O cristianismo trouxe inúmeras mudanças de paradigmas ao judaísmo e todo

pensamento religioso até então existente. Não cabe aqui uma abordagem exaustiva

teológica, histórica e filosófica sobre o cristianismo, mas trazer a lume dois pontos

principais que o distingue: 1) proposição de uma igualdade entre os seres humanos

independente das suas origens; e 2) a separação entre o pensamento político e

religioso (BATISTA NETO, 2012).

O primeiro ponto destacado por Batista Neto (2012) é relevante para que se entenda o

fenômeno da intensa propagação da religião cristã14

dentro do Império Romano em um curto

14

“O cristianismo primitivo deveu seu rápido sucesso inicial, junto a uma elite, a sua grande originalidade, a de

ser uma religião de amor; deveu-se também à autoridade sobre-humana que emanava de seu mestre, o Senhor

Jesus. Para quem recebia a fé, a vida se tornava mais intensa, organizada e posta sob uma grande pressão. O

indivíduo devia enquadrar-se em uma regra que para ele se tornava um estilo de vida, como nas seitas filosóficas

da época, mas, a esse preço, sua existência recebia de repente uma significação eterna no contexto de um plano

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espaço de tempo, o que obriga o imperador Constantino, por meio do Édito de Milão (313 e.c)

a descriminalizar a prática do cristianismo. Interessa, sobremodo, ao entendimento do que

ocorreu na realidade sociopolítica ocidental com passagem do período tardo-antigo para a

idade média, a proposta de ruptura radical, feita por Jesus, o chamado Cristo, do histórico

vínculo entre a religião e a instituição soberana do Estado. A própria obra bíblica documenta a

época clássica do Império Romano que, inclusive, exercia dominação sobre o território

ocupado pelo povo judeu. Em um dos relatos biográficos da vida de Jesus, ele é questionado

sobre o dever ético dos judeus para com os tributos impostos por Roma.

Então os fariseus se retiraram e fizeram um plano para apanhar Jesus em alguma

palavra. Mandaram os seus discípulos, juntos com alguns partidários de Herodes,

para dizerem a Jesus: “Mestre, sabemos que tu és verdadeiro, e que ensinas de fato o

caminho de Deus. Tu não dás preferência a ninguém, porque não levas em conta as

preferências. Dize-nos, então, o que pensas: É lícito ou não é, pagar imposto a

César? Jesus percebeu a maldade deles, e disse: “Hipócritas! Por que vocês me

tentam? Mostrem-me a moeda do imposto.” Levarão então a ele a moeda. E Jesus

perguntou: “De quem é a figura inscrita nesta moeda?” Eles responderam: “É de

César.” Então Jesus disse: “Pois deem a César o que é de César, e a Deus o que é de

Deus” (BÍBLIA, 1990, p. 1269).

Porém, as culturas cristã e romana experimentaram nesse mesmo período da história

um intenso sincretismo que concorre para um fenômeno posterior, conhecido como

cristianização. Sobre isso, escreve Silva (2010, p. 15):

Como afirma Eric Robertson Dodds, o mundo romano passa por um período de

insegurança, por uma época de angústia, na qual os problemas de ordem material

acentuaram o ritmo das transformações religiosas. Ocorre então uma redistribuição,

um reordenamento de elementos religiosos presentes há muitos séculos na bacia do

mar Mediterrâneo.

Muitos são os fatores que impulsionaram essa redistribuição dos elementos religiosos

da antiguidade clássica, porém daremos atenção aos atos imperiais que influenciaram

diretamente nessa estrutura. O cristianismo, “após a conversão de Constantino, recebe a

proteção e o benefício do estado romano. Em outras palavras, a Igreja cristã, neste momento,

transforma-se de um corpo estranho na estrutura imperial em um dos elementos mais ativos

cósmico, coisa que não lhe dariam nem as filosofias nem o paganismo. Este último mantinha a vida humana tal

qual como era, efêmera e feita de detalhes. Graças ao deus cristão, essa vida recebia a unidade de um campo

magnético no qual cada ação, cada movimento interior adquiria um sentido, bom ou mau – sentido que o próprio

homem não se dava por si próprio, diferentemente dos filósofos, mas o orientava na direção de um ser absoluto e

eterno, que não era um princípio, mas um ser vivo. Para citar Etienne Gilson, a alma cristã busca se solidificar no

ser para se libertar da angústia do futuro. Essa segurança interior era acessível a todos, eruditos e analfabetos”

(VEYNE, 2010, p. 16).

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do Império” (SILVA, 2010, p. 21). Contudo, é com Édito de Tessalônica que o imperador

Teodósio I eleva o cristianismo niceno – catolicismo – a condição de religião de estado15

.

A cristianização do Império Romano realmente alterou a história do Ocidente, já

que, com a queda do Império, a Igreja Católica Apostólica Romana, no ponto de

vista jurídico, sustentará que o Papa era, não apenas sucessor de Pedro e da

cristandade, mas também sucessor de César, ou seja, herdeiro direto da dignidade

imperial. Isto se deu, entre outros fatores, por força da doação que Constantino fez à

Igreja. No plano político e teológico, a Igreja reclama, nos séculos que se seguirão, a

superioridade intrínseca do seu discurso teológico relativamente a todos os aspectos

da vida, inclusive no direito. A partir desta perspectiva, passa-se a construir toda

cultura ocidental a partir da ótica teocêntrica, mais especificamente, refletindo a

posição de superioridade da verdade objetiva encarnada na doutrina e na prática da

Igreja [...] (BATISTA NETO, 2012).

Nesse contexto histórico, observa-se o declínio do Império Romano que não é capaz

de resistir às invasões dos povos bárbaros. E essa nova realidade política gera em suas

instituições a carência de uma unidade institucional consistente o suficiente para impor suas

leis no vasto território dominado. O artigo de Aguiar, Lima e Santos (2011, p. 14) menciona

que dentro desse quadro do século IV, no ocidente, os bárbaros aliam-se à Igreja contando

com a unidade ideológica dos seus fiéis como mecanismo de controle social do território

ocupado:

Quando da invasão dos bárbaros à Roma, estes não conseguiram impor suas leis

totalmente e acabaram por aliar-se à Igreja. Essa união deu origem ao Concílio de

Toledo (séc IV). Em consequência desse concílio e de outros que se realizaram, o

Direito Canônico e o Direito Romano caminharam juntos por vários séculos,

constituindo o ponto de influência do poder do Estado bárbaro e da autoridade

religiosa, onde muito se herdou do Código Visigótico, todo ele influenciado pelo

cristianismo.

É da observação dessa assimilação cultural desencadeada nos fatos históricos

expostos, que os mesmos autores, em seu artigo sobre as relações entre o estado e as

concepções religiosas na formação do ordenamento social, extraem a afirmação de que “o

Direito Hebreu serviu de base para outros direitos, a exemplo do direito romano, medieval,

canônico, muçulmano, germânico e até a própria cultura jurídica ocidental” (AGUIAR,

LIMA, SANTOS, 2011, p. 14). Não perdendo de vista a simbiose entre cultura judaica e

hebraica.

Ainda sobre essa cultura, a autora Castro (2007, p. 28) salienta que nela “[...] o leigo e

o divino interagem de tal modo que pecado e crime se confundem, o direito é imutável,

15

Um estado confessional é aquele no qual há uma religião (por vezes também citada como religião de Estado)

oficialmente reconhecida pelo estado, o que não deve ser confundido com uma teocracia (Disponível em:

<https://pt.wikipedia.org/wiki/Estado_confessional#Catolicismo>).

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somente Deus pode modificá-lo. Os rabinos (chefes religiosos) podem até adaptá-lo à

evolução social, entretanto nunca podem modificá-lo”. Portanto, o processo de cristianização

mencionado anteriormente, que integra a religião cristã à estrutura do estado, concretiza na

cultura romana essa unidade entre regra religiosa e regra civil.

Além de todas as mudanças já mencionadas, a fragmentação do grande Império

Romano dá origem a um sistema político descentralizado conhecido como feudalismo16

,que

caracterizou o período mais longo conhecido na História, a Idade Média (período

compreendido do século V ao XV). Aquela carência de uma unidade institucional política

consistente propicia à Igreja Católica uma soberania no período medievo, visto o amplo

alcance conquistado pela ideologia cristã. Portanto, conclui-se que na Europa medieval não

havia um liame nítido que separasse Direito Canônico e Direito Secular.

As mudanças introduzidas pelas invasões bárbaras e a desestruturação do Império

Romano permitiram à Igreja Católica angariar forças para manter e conservar sua

identidade institucional e influência jurídica. Esta controlava autoritariamente o rei,

utilizando-se do pretexto da supranaturalidade (AGUIAR, LIMA, SANTOS. 2011,

p. 14).

Nesse sentido, SANTOS (2011), em seu artigo História do Direito na Baixa Idade

Média, escreve:

O apogeu da Igreja Católica Medieval aconteceu no pontificado de Inocêncio III, de

1198 a 1216. É o período em que os clérigos mais se aproximaram do ideal de

teocracia e de uma sociedade governada pela ordem eclesiástica. O papa se via e foi

visto como governante supremo, cujo poder ofuscava o dos reis. A ideia era que o

poder espiritual (do papa) era superior ao poder temporal (dos reis).

O autor também menciona que:

Durante grande período da Idade Média, o Direito Canônico foi o único direito

escrito. Enquanto que o direito laico permaneceu essencialmente consuetudinário

durante toda a Idade Média e as primeiras redações de costumes remontam ao século

XIII, o Direito Canônico passou a ser redigido, comentado e analisado a partir do

período da Alta Idade Média.

Mantendo em vista que o Direito Canônico trata do conjunto normativo elaborado pela

Igreja Católica com os fundamentos éticos herdados do Direito Hebreu, reafirmado e

reinterpretado pelo cristianismo, pode-se avançar cronologicamente na história europeia. O

declínio do sistema feudal, na Baixa Idade Média, fornece às diferentes realidades sociais os

16

O feudalismo foi um modo de organização social e político baseado nas relações servo-contratuais (servis).

Tem suas origens na decadência do Império Romano. Predominou na Europa durante a Idade Média. (Wikipedia

apud HEERS, J. História Medieval. Rio de Janeiro. Publicação Difel, 1984).

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elementos necessários para o surgimento das Monarquias Nacionais, estados com o poder

centralizado na figura do rei. Essa nova figura política centralizadora do poder empresta da

religião17

a ideia de que seu direito real sobre o reino e seus súditos provém da vontade divina

expressa tão somente por intermédio da Igreja Católica18

. No cenário jurídico nota-se:

A Baixa Idade Média conheceu a manifestação de três grandes fenômenos jurídicos:

o direito canônico, romano e feudal. O presente estudo se inicia com o pensado e

concebido pela Igreja Católica, o Direito Canônico. Trata-se do direito da

comunidade religiosa. A religião católica se impôs como religião verdadeira e

universal entre os séculos VIII e XV, o que facilitou a criação de um direito

exclusivo, para uma igreja exclusiva. A unidade e a uniformidade do Direito

Canônico foram proclamadas pelo papa Gregório VII (SANTOS, 2011).

Contudo, é preciso abrir mão da visão generalizada desse contexto europeu e colocar

em evidência o caso português. Seguindo o raciocínio já exposto, Portugal não foge à regra e

desde seus primeiros reinados percebe-se que a soberania do território pertence faticamente à

Igreja Católica, que, como escrevem Fernandes e Rego (Lisboa, 1941, p. 226), foi responsável

pela deposição e coroação de reis nos períodos de conflito entre a autoridade secular

portuguesa, que ganha força com a consolidação de sua monarquia, e a pontifícia. Nesse

sentido, ainda na mesma obra:

“Foi D. DINIZ que procurou pôr termo a tal estado de coisas. Ninguém negava os

privilégios e isenções do clero: a autoridade universal do Pontífice romano era

indisputável e as normas do direito canônico acatadas por todos os príncipes

cristãos. Tratava-se pois, unicamente de regular os pontos de atrito entre os dois

poderes e isso se fez por meio e um tratado ou concordata entre o rei e o clero,

confirmada por bula pontifícia de 1289.”

Verifica-se, portanto, que esse poder de intervenção Papal sobre a política interna e

externa dos países europeus vivenciou certa decadência no período compreendido entre o

século XIV e XV devido à consolidação das Monarquias Nacionais e consequente

centralização do poder na mão de seus reis. Porém, a essência religiosa da cultura portuguesa

orienta o cenário político a um sentido muito diverso ao da laicidade (CÉLIO, LEME. 2010,

p. 27):

A cultura geral da sociedade quinhentista é religiosa, pois a dinâmica social não

apontava para um rompimento com a ideia de que ser súdito era praticamente

sinônimo de ser cristão. Os portugueses se compreendiam tendo por base uma visão

da realidade fundada sobre marcos teológicos cristãos, os quais foram sedimentados

ao longo da Idade Média.

17

No catolicismo inicialmente, e depois das diversas vertentes cristãs que ganharam fôlego com a Reforma

Protestante. 18

As cerimônias de coroação presididas pelo sumo pontífice são uma simbologia importante que comprova tal

fato.

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É nesse contexto de Monarquia Nacional cristã governada sob a égide do despotismo

esclarecido que Portugal desponta na expansão marítima europeia e chega em 1500 e.c à Ilha

de Vera Cruz, primeiro nome dado por eles ao território brasileiro. Nessa época, o direito

lusitano encontrava-se positivado nas Ordenações Manuelinas publicadas no reinado de D.

Manuel I (1425 a 1521 e.c) (CÉLIO, LEME. 2010, p. 34):

Assim, se conceituamos o Direito como a tutela de um conjunto de bens relevantes à

uma sociedade, punindo condutas que os transgridam, então, afirmamos que o

Direito penal português do século XVI, positivado nas Ordenações Manuelinas, não

era diferente. A sociedade portuguesa possuía como bens sociais relevantes,

oriundos de sua cultura construída historicamente, questões, já levantadas, como a

religiosidade cristã, o regime monárquico e o projeto de expansão marítimo-

comercial, e tais pontos são exacerbadamente encontrados na lei, tutelados pelo

direito.

A cultura portuguesa, construída por muitos elementos subjetivos e objetivos no

período quinhentista, teve no direito uma das principais estruturas que contribuíram

para sua incorporação à identidade de cada indivíduo que compunha o reino. O

direito, em primeiro plano, possui função de tutela, organização estatal, mas também

pode, dialeticamente, exercer função pedagógica.

Após o primeiro desembarque português no Brasil, a cultura nativa fica à mercê da

influência lusa e católica e todo o conjunto de tradições tribais, que representavam a única

fonte normativa deste pedaço do Novo Mundo, é colocado sob o domínio e influência do

sistema político, econômico e jurídico de Portugal. O período colonial brasileiro é marcado

pela intensa exploração de seus recursos naturais, assim como a evangelização das diversas

culturas indígenas sob a justificativa de que o homem branco europeu trazia para a América

os benefícios do “mundo civilizado”. Portanto, a dominação portuguesa é acompanhada das

missões jesuítas, que têm o objetivo de disseminar a fé católica a todos os povos do mundo

conhecido.

Os modos de ser do catolicismo brasileiro, o seu estilo de religiosidade, a sua

organização eclesial, as suas conexões com as instituições e com a sociedade, as

suas projeções sobre a vida política e o Estado, são determinados a partir da maneira

como a religião católica é introduzida na Bahia já em 1500.

Realmente, sob o bispado e arcebispado da Bahia, instauraram-se no Brasil diversas

experiências de relacionamento e associação da Igreja como o „braço secular‟, de

métodos de catequese, de tipos de religiosidade que serão decisivos para o porvir do

catolicismo brasileiro. (AZEVEDO, 1978, p. 17)

Deste modo, fica evidente que a ocupação do território brasileiro, assim como a

manutenção da relação colonial imposta pela coroa portuguesa aos povos indígenas, não era

um interesse exclusivo de D. João III, rei de Portugal. Castro (2007, p. 306) mostra em sua

obra “História do Direito Geral e Brasil” a conjugação dos interesses da metrópole com os da

ordem jesuíta:

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Paralelamente ao interesse desta ordem que até o período Pombalino tinha grande

influência no governo português, o índio não era interessante como escravo por dois

motivos básicos: primeiro e mais importante, a escravidão indígena não atendia ao

principal pressuposto da relação metrópole-colônia, isto é, a colônia deveria sua

existência para dar lucros à metrópole e, enquanto a escravidão negra necessitava do

comércio ultramarino (que dava lucros exorbitantes a Portugal) a escravidão

indígena era local e não envolvia, necessariamente, lucros diretos à Metrópole e aos

mercadores metropolitanos.

O segundo motivo era o interesse e, até certo ponto, necessidade de Portugal de

tornar os índios parte da obra de colonização.

Também é importante verificar que os colonos residentes no Brasil possuíam

interesses diversos da coroa portuguesa no que diz respeito ao índio, visto que “[...] viam nele

um trabalhador aproveitável [...]” (PRADO Jr. 2000, p. 85). Deste modo, seja pela via do

imperialismo ideológico, seja pela exploração da força laboral indígena pelo regime de

escravidão, a cultura nativa brasileira foi engolida pela ética europeia, o que pode ser

verificado em diversas áreas: na arte, na política, na economia e no que é mais pertinente a

esse estudo, no Direito. Isso pode ser observado em uma breve comparação feita entre os usos

e costumes indígenas, os quais eram fonte direta das normas reguladoras das suas sociedades,

e as legislações a eles impostas no regime colonial. “Os habitantes originais do território que

hoje é o Brasil eram múltiplos, em tribos, etnias, línguas” (CASTRO, 2007. p. 297).

Para os europeus já acostumados com a centralização política de uma monarquia

absoluta era estranho não identificar alguém nas tribos com poder que pudesse ser

colocado acima dos demais. [...].

Quanto às leis, de fato eles não as tinham, não no modelo europeu, que contava com

códigos (nem sempre organizados) e com autoridades supremas que impunham a lei.

Mesmo Anchieta estranhava o fato deles serem por vezes “desobedientes” e que os

filhos obedeciam aos pais quando lhes parecia interessante.

O estudo antropológico moderno, um pouco distante dos preconceitos dos séculos

passados observa que esta tal desobediência se dá por um fator que para muitos hoje

é uma utopia para o futuro: o respeito à vontade individual. Se por um lado a tribo

toda contribuía para o sustento de todos, por outro ninguém obrigava ninguém a

nada (CASTRO, Flávia Lages. 2007. p. 306).

É a partir do contato dessas culturas divergentes que se constata o início da

concretização do “sincretismo-hierárquico” já mencionado anteriormente no capítulo

destinado à explanação da “lógica da laicidade”, aplicada à República Federativa do Brasil no

que tange ao processo de efetivação da Democracia de Direito positivada na Constituição

Federal vigente. Esse modelo democrático prescinde de um sistema legislativo, judiciário e de

uma Administração Pública, no sentido de ser a concretização dos poderes-deveres do Estado,

essencialmente laica, ou seja, que deva mobilizar suas ações e omissões sob a égide dos

pilares da laicidade, quais sejam, a neutralidade-imparcialidade e a neutralidade-exclusão

dentro da relação entre religião-indivíduo-sociedade.

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O fato é que tal modelo de sincretismo se consolida com o passar dos anos apesar

das mudanças políticas, sociais e econômicas influídas no país desde a ocupação portuguesa

até a consolidação da democracia vivenciada atualmente. Portanto, a problemática da eficácia

de certas normas se sustenta no fato de que a hierarquia social e política existente entre as

culturas religiosas do Brasil vai de encontro aos princípios laicos. Muitas vezes, essa

hierarquia torna ineficazes as normas positivas e ações estatais que têm o fulcro de tutelar de

forma equânime os direitos a liberdade de expressão, culto e crença dos indivíduos e dos

grupos por eles formados.

O Brasil possui uma realidade social recheada de princípios éticos judaicos que se

manifestam, inclusive, em todos os seus sistemas jurídicos já positivados. Porém, a

superioridade numérica de cristãos brasileiros não é o único fator constitutivo dessa realidade.

Para entender o porquê, em um país tão multi-étnico-cultural, há o nítido predomínio (pode-se

dizer até domínio) da ética judaico-cristã, é indispensável a reconstituição histórica do

sincretismo das culturas jurídicas Romana e Hebraica, assim como, posteriormente, a

monarquia nacional portuguesa, herdeira desse sistema, o importa para suas colônias.

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IV – O PREDOMINIO DA MORAL JUDAICO-CRISTÃ NO

ORDENAMENTO JURÍDICO VERSUS A DEFESA DA

DIVERSIDADE CULTURAL PELA DEMOCRACIA

Destarte o histórico vínculo do estado brasileiro com a igreja católica,

É sabido que após a proclamação da República (em quinze de novembro de mil

oitocentos e oitenta e nove), esforçou-se o novo governo em promover a laicização

do Estado. Os interesses econômicos da época já não condiziam mais com a situação

do regime de padroado estabelecido desde a época da colonização do país. Para

tanto, foi editado o decreto n° 119-A, de sete de janeiro de mil oitocentos e noventa,

o qual “proíbe a intervenção da autoridade federal e dos Estados federados em

matéria religiosa, consagra a plena liberdade de cultos, extingue o padroado e

estabelece outras providências” (BRASIL, 1890). Sete de janeiro, aliás, passou a ser

definido como o dia da liberdade de culto (AGUIAR, LIMA, RIBEIRO. 2010, p.

21).

Porém, como já foi mencionado no capítulo sobre a Lógica da Laicidade Brasileira, o

estado laico almejado desde a primeira constituição republicana ainda carece de efetividade

na sua concretização. “A Constituição brasileira, por exemplo, se faz preceder da invocação

de Deus. Mas nenhuma de suas disposições lembra sequer remotamente algum papel

eventualmente reservado à divindade na condução das atividades políticas e administrativas

do país” (PRADO, Junior. 1990, p. 37).

Além do exemplo do preâmbulo constitucional, um olhar rápido no calendário anual

brasileiro exemplifica a intensa influência da cultura cristã nas datas comemorativas

instituídas como feriados pelo Estado. Dentre eles, é possível destacarmos: o natal19

, o dia de

finados20

, o feriado destinado ao culto a Nossa Senhora Aparecida, como é conhecida a

padroeira do Brasil21

, e as celebrações que não possuem numeração fixa no calendário, quais

sejam, quarta-feira de cinzas e sexta-feira santa, ambas com fundamento em passagens

pontuais da vida de Jesus. Todas essas datas estão incorporadas de tal forma ao cotidiano do

brasileiro que mesmo aqueles que não compactuam da mesma ideologia religiosa motivadora

da celebração absorvem tais costumes.

Os feriados não são as únicas evidências da institucionalização estatal das expressões

culturas católicas e protestantes. Há uma gama de prédios públicos, praças, vias urbanas,

monumentos, municípios, etc. que tem sua denominação fundamentada pelo sentimento de

devoção às figuras religiosas de destaque para a comunidade cristã (PEREIRA, HAVENA,

RIBEIRO, 2011, p. 23).

19

Dada escolhida pela cristandade, vinte e cinco de dezembro, para celebrar o nascimento de Jesus, o Cristo. 20

Dois de novembro. 21

A lei que instituiu esse feriado gerou controvérsias jurídicas recentes que serão analisadas mais adiante.

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Como foi exposto anteriormente no capítulo reservado à definição e distinção dos

conceitos de laicidade e secularização, o fenômeno experimentado por países como o Brasil,

Argentina, Portugal, Espanha, etc. É consequência da implantação de um regime de governo

laico em uma sociedade não secularizada.

Sobre a relação do povo brasileiro com a experiência religiosa escreve Oliveira (2009,

p. 107-108):

Ainda que faltem estudos mais sistemáticos com propósito de interpretar a formação

deste traço marcante da cultura brasileira que se reflete na mentalidade e na conduta

religiosa da população brasileira, trata-se de característica amplamente reconhecida,

dada a visibilidade com que se manifesta. Ou seja, o brasileiro é marcadamente

religioso e isso se reflete em sua vida cotidiana, na capacidade de expressão de

múltiplas formas de fé religiosa, de modo que suas condutas e crenças religiosas

constituem parte fundamental do ethos da cultura brasileira.

Partindo dessa constatação, parece relevante questionar a coerência da imposição de

princípios laicos ao estado que governa um povo cuja cultura é essencialmente religiosa. A

orientação doutrinária nacional defensora da laicidade se fundamenta na proposição de que

essa característica da sociedade brasileira, levantada no estudo da autora, não pode ser

dissociada da sua pluralidade cultural.

Nossa premissa central neste estudo é que a mescla e o entrelaçamento entre crenças

e sistemas religiosos de tradições distintas (católica, judaica, reformada, pagã,

indígena e africana), ao longo dos cinco séculos no Brasil produziram diversos

arranjos de experiências sincréticas que se mantêm como característica do

comportamento religioso brasileiro. Tal comportamento tomado individualmente e

historicamente seria facilitado por uma atitude política da igreja católica de

transigência em relação a esses fluxos, dada às dificuldades enfrentadas no processo

de catequese (OLIVEIRA, 2009, p. 109).

Portanto, é inegável a ocorrência do sincretismo entre as diversas culturas postas em

contato no Brasil ao longo de sua história. Porém, conforme já exposto por Ricardo Mariano,

esse fenômeno se processa na sociedade brasileira na modalidade denominada pelo autor de

sincretismo-hierárquico. Neste sentido, a autora Oliveira (2009, P. 108-109) também constata

esse tipo de assimilação entre as culturas religiosas nativas, as introduzidas e as desenvolvidas

no Brasil. Ela ainda vai além ao destacar o complexo de privilégios que sustentou o

catolicismo europeu no topo da hierarquia cultural por tão longo período da história brasileira.

E conforme se demonstra, entre todas as variedades morais e éticas identificadas, o

catolicismo em seu conjunto de tradições é tido como “aquela que deixou marcas mais

profundas, ainda que não se tratasse de um catolicismo puro, mas de um catolicismo

mestiçado pela inserção de variadas crenças e práticas religiosas, inteiramente estranhas ao

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catolicismo, adotadas de forma furtiva e escamoteada” (OLIVEIRA, Maristela de Andrade.

2009, p. 109).

O privilégio católico diversas vezes salientado é colocado em cheque na virada do

século XIX para o XX:

Um marco fundamental na história religiosa brasileira foi o fim do monopólio

católico e a crescente abertura para o pluralismo religioso explícito, de modo que

foram introduzidos no Brasil diferentes sistemas religiosos com destaque para a

vertente Protestante e o Espiritismo kardecista que foram paulatinamente

conquistando segmentos cada vez maiores da população (OLIVEIRA, 2009, p. 109).

Essa eclosão de novas manifestações religiosas reflete de forma intensa nas relações

políticas do país. As instituições eclesiásticas mais expressivas buscam na esfera pública

mecanismos de propagação da sua moral. O mais utilizado é o legislativo, pois se vale da

confiança dos fiéis para eleger seus líderes e esses em resposta ao compromisso moral com

sua fé buscam implantar na res publica todo o conjunto axiológico a que se submete de forma

privada no exercício de sua liberdade de crença e culto.

Esse movimento autorizado pelas instituições religiosas cristãs gera, muitas vezes,

conflitos jurídicos e sociais que atrasam a concretização da democracia almejada pela

Constituição Federal de 1988. Dois exemplos disso foram os acórdãos do Supremo Tribunal

Federal proferidos em votação plenária. Eles representaram duas importantes alterações no

Direito Civil e Penal que, apesar de formalmente intactos, ganham nova interpretação, uma de

viés principológico. Tratam-se da decisão referente à Arguição de Descumprimento de

Preceito Fundamental 54 proposta pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde,

questionando a tipificação penal de abortos realizados em fetos anencéfalos, e a Ação Direta

de Inconstitucionalidade 4.777 que objetivou o reconhecimento institucional da união estável

entre pessoas do mesmo sexo.

Os temas levantados nesses dois julgamentos são tratados de formas muito divergentes

pelo pensamento religioso cristão e pela lógica jurídica da democracia. No caso da prática de

aborto de fetos anencéfalos, a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde se valem

de diversos argumentos técnicos no sentido de provar que a interrupção de tal gravidez não

configura a interrupção de uma vida. Porém, nos interessa mais à exemplificação do conflito

entre cultura religiosa brasileira e a atitude laica esperada do estado, o argumento que se vale

dos princípios da autonomia da vontade, dignidade da pessoa humana e liberdade sexual e

reprodutiva da mulher. Segue trecho do acórdão:

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Em questão está a dimensão humana que obstaculiza a possibilidade de se coisificar

uma pessoa, usando-a como objeto. Conforme ressaltado na inicial, os valores em

discussão revestem-se de importância única. A um só tempo, cuida-se do direito à

saúde, do direito à liberdade em seu sentido maior, do direito à preservação da

autonomia da vontade, da legalidade e, acima de tudo, da dignidade da pessoa

humana. O determinismo biológico faz com que a mulher seja a portadora de uma

nova vida, sobressaindo o sentimento maternal. São nove meses de

acompanhamento, minuto a minuto, de avanços, predominando o amor. A alteração

física, estética, é suplantada pela alegria de ter em seu interior a sublime gestação.

As percepções se aguçam, elevando a sensibilidade. Este o quadro de uma gestação

normal, que direciona a desfecho feliz, ao nascimento da criança. Pois bem, a

natureza, entrementes, reserva surpresas, às vezes desagradáveis. Diante de uma

deformação irreversível do feto, há de se lançar mão dos avanços médicos

tecnológicos, postos à disposição da humanidade não para simples inserção, no dia-

a-dia, de sentimentos mórbidos, mas, justamente, para fazê-los cessar. No caso da

anencefalia, a ciência médica atua com margem de certeza igual a 100%. Dados

merecedores da maior confiança evidenciam que fetos anencefálicos morrem no

período intrauterino em mais de 50% dos casos. Quando se chega ao final da

gestação, a sobrevida é diminuta, não ultrapassando período que possa ser tido como

razoável, sendo nenhuma a chance de afastarem-se, na sobrevida, os efeitos da

deficiência. Então, manter-se a gestação resulta em impor à mulher, à respectiva

família, danos à integridade moral e psicológica, além dos riscos físicos

reconhecidos no âmbito da medicina. Como registrado na inicial, a gestante convive

diuturnamente com a triste realidade e a lembrança ininterrupta do feto, dentro de si,

que nunca poderá se tornar um ser vivo. Se assim é - e ninguém ousa contestar -,

trata-se de situação concreta que foge à glosa própria ao aborto - que conflita com a

dignidade humana, a legalidade, a liberdade e a autonomia de vontade.

Destarte os argumentos apontados pelo Ministro Relator Marco Aurélio, aqueles que

discordam da legalidade do procedimento fundamentam seu posicionamento no princípio

ético cristão de que a vida humana inicia-se no exato momento da concepção, e a partir dela, a

interrupção da gravidez corresponde à subtração de uma vida humana. Além do que, para a lei

bíblica, nenhuma vontade, nem mesmo da gestante, pode se sobrepor a soberania da lei divina

que é enfática em seu mandamento, “não matarás”.

No que tange ao reconhecimento institucional da União Homoafetiva, o conflito segue

o mesmo modelo. O relacionamento afetivo entre indivíduos do mesmo sexo é uma realidade

universal constatada desde os primórdios da humanidade. Porém, nem todas as culturas

recepcionam bem sua incidência no meio social. Muitos são os motivos que explicam tal

aversão, um deles é a aparente anormalidade do vínculo constituído em razão da

impossibilidade de gerar descendência. Em culturas como a hebraica, a capacidade

reprodutiva possui tão relevante valor que condutas que a comprometam são vistas como

afrontas a vontade divina.

Esse raciocínio não encontra sustentação jurídica, visto que, para o direito de família,

o ato de se relacionar afetivamente com outrem não pode ser limitado pela intenção

reprodutiva. Vale destacar a menção que o Ministro Ayres Britto faz em seu voto de plenário:

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Nessa linha de clara irresignação quanto ao modo juridicamente reducionista com

que são tratados os segmentos sociais dos homoafetivos, argui o autor que têm sido

ininterruptamente violados os preceitos fundamentais da igualdade, da segurança

jurídica (ambos topograficamente situados no caput do art. 5º), da liberdade (inciso

II do art. 5º) e da dignidade da pessoa humana (inciso IV do art. 1º). Donde ponderar

que a homossexualidade constitui “fato da vida [...] que não viola qualquer norma

jurídica, nem é capaz, por si só, de afetar a vida de terceiros”. Cabendo lembrar que

o “papel do Estado e do Direito em uma sociedade democrática, é o de assegurar o

desenvolvimento da personalidade de todos os indivíduos, permitindo que cada um

realiza os seus projetos pessoais lícitos”.

Há ainda quem levante questionamento de fulcro formal para contrapor o

entendimento da Suprema Corte, utilizando-se do próprio texto constitucional no seguinte

dispositivo:

art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.

[...]

§ 3º Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem

e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em

casamento.

Nota-se que na Carta Magna a expressão “entre o homem e a mulher” orienta a

interpretação de que o Estado só reconhece a união estável constituída dentro do padrão de

relacionamento permitido pela cultura cristã, excluindo todas as outras possíveis

configurações. Isso deu, durante muitos, embasamento formal para orientações doutrinárias

contrárias ao reconhecimento das uniões homoafetivas.

Muito se fala também sobre esse ativismo do judiciário, apontando a séria

preocupação em ver violado o princípio da separação dos poderes. Porém, visto que o

pensamento jurídico aprimorou os conceitos do que se entende por Direito e por norma, que

não se limitam mais as concepções estritamente positivistas, é dever-poder da função

judiciária garantir que a norma positivada não infrinja os princípios fundamentais desta

manifestação cultural, o próprio Direito, que tem como objetivo promover a manutenção da

harmonia social, assim como o bem estar de cada indivíduo nela integrante. Tal atitude não

corresponde a uma atividade legislativa, prerrogativa que só pode ser exercida por cargos

eletivos dentro da democracia. Trata-se de atitude hermenêutica indispensável à correta

aplicação das intenções normativas.

Outro ponto importante a se destacar é o tipo penal da bigamia, que há muito tempo

carece totalmente de eficácia:

Art. 235 - Contrair alguém, sendo casado, novo casamento:

Pena - reclusão, de dois a seis anos.

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§ 1º - Aquele que, não sendo casado, contrai casamento com pessoa casada,

conhecendo essa circunstância, é punido com reclusão ou detenção, de um a três

anos.

Mesmo sem aplicabilidade prática, essa norma formalmente vigente dentro do Código

Penal escancara o privilégio dado a moral cristã, visto que a monogamia como regra é um

valor extraído também do cristianismo. Muitas são as culturas que permitem que o homem

tenha mais de uma esposa. O islamismo, por exemplo, que inclusive possui representação no

mapa religioso brasileiro, mesmo que não muito expressiva.

As situações práticas que evidenciam o conflito crônico entre o predomínio da ética

cristã na cultura brasileira e o dever do Estado de garantir a boa convivência das diversas

configurações culturais existentes numa sociedade tão complexa quanto a do Brasil são das

mais variadas. Parece conveniente a exposição de algumas jurisprudências referentes às lides

dessa natureza que por si só demonstram o amplo alcance da temática levantada por essa

pesquisa.

O Tribunal de Justiça do estado do Rio de Janeiro conheceu o mandado de segurança

impetrado pelo Sindicato dos Professores do Município do Rio de Janeiro em face da

governadora do estado e da Secretaria de Estado da Educação, com vistas a impugnar edital

de processo seletivo para contratação de professores de ensino religioso. O sindicato

fundamenta a impugnação no argumento de que o número de vagas oferecidas evidenciava

uma clara predileção pelas religiões católicas e cristãs protestantes, o que vai de encontro às

determinações da lei 9.394/96 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional) a respeito do

ensino religioso nas escolas públicas. Nos termos do relatório do ministro Nefi Cordeiro:

Argumentou-se, por ocasião da impetração, que no Edital do concurso só há 26

(vinte e seis) vagas para professores dos demais credos reconhecidos, com 342

(trezentos e quarenta e duas) vagas para a religião católica e 132 (cento e trinta e

duas) vagas para professores do credo evangélico (fl. 5). Sustentou-se que o ensino

religioso na rede pública não pode ser confessional; mas ecumênico, a fim de

contemplar de modo isonômico a universalidade de crenças existentes no país (fl.

5). Aduziu o impetrante a contrariedade da Lei estadual n. 3.459/2000, ao art. 5º,

caput, incisos VI e VIII, da Constituição Federal, bem como aos arts. 9º, § 1º, e 22, §

1º, da Constituição Estadual. Pugnou-se pela sustação do certame, tendo em vista

seu indevido caráter confessional e discriminador (fl. 9).

[...]

Nas razões do recurso ordinário, o sindicato reafirma as razões da impetração. Aduz

que o Edital do certame contraria dispositivos da Constituição Federal (art. 5º, caput

e incisos VI e VIII, da Constituição Estadual (arts. 9º, § 1º, e 22, § 1º), da Lei de

Diretrizes e Bases da Educação Nacional (art. 33) e da legislação local, pois o ensino

religioso na rede pública não pode ser confessional, mas ecumênico, a fim de

contemplar de modo isonômico a universalidade de crenças existentes no país (fls.

190/191). Alega que o Edital do concurso não deixa claro quais critérios teriam sido

utilizados para a fixação da proporcionalidade das vagas relativas às respectivas

religiões. Afirma que o objetivo da impetração não visa combater lei em tese,

todavia o absurdo caráter confessional, fundamentalista mesmo, do ensino religioso

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no Rio de Janeiro, oferecendo-se vagas para professores, na sua maioria maciça,

católicos e protestantes (fl. 194).

Destarte a argumentação do sindicato e o parecer do Ministério Público no sentido de

dar provimento ao recurso, ele foi negado sob o fundamento da súmula 266 do Supremo

Tribunal Federal: “não cabe mandado de segurança contra lei em tese”. Percebe-se que o

indeferimento do recurso é substanciado apenas em aspectos formais do processo, porém, o

conteúdo da argumentação do pedido recursal tem sustentação em direito material de extrema

relevância, e ignorá-la implica em ignorar também os princípios da segurança jurídica e da

inafastabilidade do dever de jurisdição do estado.

A jurisprudência do Tribunal Regional Federal da Primeira Região guarda o

julgamento de um recurso de apelação civil movido contra sentença da Ação de Reparação

por Danos Morais interposta pelos litisconsortes Luciane Mota Farias Correia, Luiz

Goncalves Martins, Ailton Jose Santos Oliveira e Josue Felipe De Paula. O pedido se

fundamentava na inconstitucionalidade da lei 6.802/80, que em seu artigo primeiro dispõe: “É

declarado feriado nacional o dia 12 de outubro, para culto público e oficial a Nossa Senhora

Aparecida, Padroeira do Brasil” (BRASIL, 1980). Os autores argumentam que a instituição

desse feriado constitui um ato de discriminação para com outras profissões de fé que não

compartilham do costume católico. O juiz federal Rodrigo Navarro De Oliveira, relator

convocado, nega o provimento da ação se valendo de um argumento já utilizado em julgado

similar:

Dessa forma, para caracterizar o dever de indenizar do Estado basta prova do dano

material ou moral sofrido decorrente de uma ação ou omissão imputada a um agente

estatal e o nexo de causalidade entre o dano e a conduta, não tendo a vítima, pois,

que provar culpa ou dolo do agente público.

[...] não existe nexo de causalidade porque da narração do fato – a edição da Lei

6.802/80 – não decorre logicamente a conclusão de violação de direito subjetivo

individual de pessoas evangélicas ou que professam outra fé, de modo a dar

cabimento à pretendida indenização para reparação de danos morais, até mesmo

porque a referida lei não prescreve a obrigação de culto a pessoas que tem outra

religião ou que não tem religião. A lei prescreve que é feriado nacional o dia 12 de

outubro para permitir o culto pela parcela majoritária dos brasileiros de religião

católica.

Assim reafirmo que os autores não estão obrigados por lei a exercer culto que se

contrapõe à opção religiosa de cada um deles, mesmo porque a Constituição Federal

brasileira assegura liberdade de culto e religião a qualquer pessoa.

Importante também destacar a decisão monocrática proferida pelo Juiz Eugênio Rosa

da Araújo em face da Ação Civil Pública que o Ministério Público Federal peticionou,

recentemente, em abril do ano de 2014 na 17ª Vara Federal do Rio de Janeiro. Essa ação que

teve, inclusive, repercussão midiática em sites jurídicos e revistas eletrônicas, pretendia que a

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empresa Google Brasil Internet LTDA retirasse do ar vídeos com conteúdo ofensivo dirigido

aos cultos afro-brasileiros praticados por fiéis do Candomblé. Também pretendia autorização

judiciária para o fornecimento dos endereços de IP dos divulgadores. Na decisão, o juiz

indefere a liminar peticionada com base nos seguintes argumentos, ipsis litteris:

Com efeito, a retirada dos vídeos referentes a opiniões da igreja Universal sobre a

crença afro-brasileira envolve a concorrência não a colidência entre alguns direitos

fundamentais, dentre os quais destaco:

• Liberdade de opinião;

• Liberdade de reunião;

• Liberdade de religião.

Começo por delimitar o campo semântico de liberdade, o qual se insere no espaço de

atuação livre de intervenção estatal e de terceiros.

No caso, ambas manifestações de religiosidade não contêm os traços necessários de

uma religião a saber, um texto base (corão, bíblia etc) ausência de estrutura

hierárquica e ausência de um Deus a ser venerado.

Não se vai entrar, neste momento, no pantanoso campo do que venha a ser religião,

apenas, para ao exame da tutela, não se apresenta malferimento de um sistema de fé.

As manifestações religiosas afro-brasileiras não se constituem em religiões, muito

menos os vídeos contidos no Google refletem um sistema de crença – são de mau

gosto, mas são manifestações de livre expressão de opinião.

Quanto ao aspecto do direito fundamental de reunião, os vídeos e bem como os

cultos afro-brasileiros, não compõem uma vedação à continuidade da existência de

reuniões de macumba, umbanda, candomblé ou quimbanda.

Não há nos autos prova de que tais “cultos afro-brasileiros“ - expressão que será

desenvolvida no mérito – estejam sendo efetivamente turbados pelos vídeos

inseridos no Google.

Enfim, inexiste perigo na demora, posto que não há perigo de perecimento de

direito, tampouco fumaça do bom direito na vertente da concorrência – não

colidência – de regular exercício de liberdades públicas.

Não há, do mesmo modo, perigo de irreversibilidade, posto que as práticas das

manifestações afro-brasileiras são centenárias, e não há prova inequívoca que os

vídeos possam colocar em risco a prática cultural profundamente enraizada na

cultura coletiva brasileira.

Isto posto, revogo a decisão de emenda da inicial, indefiro a tutela pelas razões

expostas e determino a citação da empresa ré para apresentar a defesa que tiver no

prazo legal.

Justifica-se o extenso trecho acima citado, que corresponde a quase integralidade

literal da decisão, tendo em vista o caráter polêmico do tema versado. Parece desleal do ponto

de vista científico que no âmbito acadêmico exponha-se o texto apartado de todo o seu

contexto, dando margem a conclusões parciais incoerentes com a pesquisa jurisfilosófica.

Não é intensão na presente pesquisa olvidar da erudição e competência das autoridades

judiciais mencionadas, porém, ficará evidente mais adiante na conclusão desta dissertação que

alguns de seus posicionamentos colidem com as doutrinas jurídicas e sociológicas aqui

apontadas.

Neste caso concreto catalogado na jurisprudência da Justiça Federal do Rio de Janeiro,

é relevante lembrar que a própria Organização dos Advogados do Brasil – Seção do Estado da

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Bahia – publica em maio do mesmo ano nota de crítica a decisão, assinada pelo presidente

Luiz Viana Quiroz:

A Presidência da OAB da Bahia entende que o Estado brasileiro, por todos os seus

órgãos, inclusive através do Judiciário, deve respeitar e defender a pluralidade

cultural, étnica, religiosa e de gênero da sociedade, combatendo a intolerância

religiosa e não desconsiderando jamais - no país com a maior população negra fora

do continente africano - o papel histórico e as contribuições que as religiões de

matriz africana tiveram e continuam a ter na formação da identidade e dos costumes

do nosso povo.

Aquelas características apontadas pela decisão aplicam-se apenas às religiões

monoteístas abraâmicas, que não dão conta da diversidade religiosa e das matrizes

étnicas e culturais que formam o povo brasileiro.

Vale ainda citar mais dois casos pertinentes divulgados em revistas eletrônicas que

contém os elementos característicos do impasse doutrinário sobre as liberdades de culto,

crença e manifestação religiosa e de pensamento, e dos níveis de neutralidade e

imparcialidade que devem fundamentar as atitudes estatais em suas diversas esferas de

atuação, no sentido de alcançar as finalidades propostas pela ideologia laica.

A OAB da Seção do Estado do Sergipe, em nota publicada em quatro de setembro

deste ano, se posiciona contra as determinações judiciais que tem impedido o culto de alguns

grupos de Candomblé do município de Nossa Senhora do Socorro em razão de denúncias

justificadas pelo incômodo barulho das reuniões. O Conselho da Seccional da Ordem

determina que sejam providenciadas as medidas judiciais e administrativas pertinentes para

barrar os impedimentos que ofendem a liberdade de culto22

.

Conflitante também foi o caso ocorrido ainda este ano do estudante Herácliton dos

Santos Barbosa, que após se recusar, sob fundamentos de credo religioso, a tirar seu eketê23

,

foi expulso de forma abusiva do fórum do município de Santo Amaro da Anunciação no

Recôncavo, Bahia. A vítima foi orientada pelo Centro de Referência Nelson Mandela a

denunciar o ocorrido na Corregedoria do Tribunal de Justiça da Bahia.

Em se tratando de casos muito recentes, ainda não há bibliografia que relate as

resoluções desses conflitos. Contudo, todos os exemplos apresentados, a despeito das

calorosas divergências doutrinárias que ainda compõem o pensamento jurídico brasileiro,

demonstram a emergente necessidade em se pautar o tema da relação entre estado e as

instituições religiosas. Visto que a realidade experimentada pelo Brasil não se contenta com a

importação de modelos implantados em outros países. A laicidade positivada na Constituição

22

Disponível em:

<http://oabse.jusbrasil.com.br/noticias/100075619/integrantesdocandomblesaoproibidosderealizarseuscultos>). 23

Indumentário litúrgico de religiões afro-brasileiras que representa proteção para o fiel que o veste.

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Federal ainda não foi capaz de promover a harmonia na convivência das diversas culturas

religiosas em voga no país, dada a sua falta de eficácia social.

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CONCLUSÃO

Toda a dissertação de conceitos e fatos até aqui produzida e reproduzia teve o escopo

de elaborar o questionamento que paira ao redor da eficácia das normas constitucionais

instituidoras do regime laico no governo da República Federativa do Brasil. Provada a

pertinência do tema para o pensamento jurídico contemporâneo nacional, pretende-se

responder com fundamentos adiante expostos que tais dispositivos da atual Carta Magna não

são plenamente eficazes dentro das diversas e variadas realidades sociais brasileiras. E ao

final, dentro dos despretensiosos limites do modelo de pesquisa realizada neste trabalho

acadêmico aqui defendido, será esboçada uma hipótese que pode iniciar um processo de

solução do conflito entre o caráter não secular inerente a experiência social nacional e a

laicidade concordada democraticamente na lei que constituiu o Estado Brasileiro em 1988.

A diferenciação dos conceitos de laicidade e secularização evidencia que o Brasil

experimenta a inserção dos preceitos laicos por meio de um fenômeno estritamente político,

ao contrário dos históricos de países europeus protestantes que vivenciaram um processo de

mudanças sociais assimiladas ao longo da história que conferiram às suas sociedades a

característica secular. Ou seja, a divisão entre as obrigações civis e religiosas foi se

acentuando não devido a imposições legais, mas, ao complexo ético assimilado pelos

indivíduos. Essa ética secularizada é internalizada em cada experiência social de acordo com

as peculiaridades de cada Estado.

O fato é que o Brasil não experimentou tal assimilação. O caráter religioso da

sociedade brasileira, análogo aos casos português e dos países latino-americanos, força a

política a implantar a ideologia laica por meio de imposição legal. Porém, nem sempre o

direito positivado é capaz, por si só, de garantir a eficácia das normas que propõe. É inegável

a importância da laicidade em um território tão multicultural quanto o Brasil, porém, o legado

que a doutrina cristã impingi na sociedade nacional torna a assimilação social dessa ideologia

bastante prejudicada.

Esse conflito de eficácia se deve não apenas a herança axiológica da doutrina cristã,

mas também ao modelo institucional da relação entre religião e estado. O modelo importado

de Portugal dificulta a emancipação autonômica dessas duas esferas. Mesmo na atualidade,

conforme evidenciam os exemplos postos nesta dissertação, os cargos públicos exercidos

pelos cidadãos acabam se vinculando à sua crença individual. Isso ocorre porque a ideia laica

não nasceu na mentalidade do brasileiro de forma natural, como é o caso das sociedades que

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passaram pelo processo de secularização. E deste modo, princípios como o do livre

convencimento motivado, aplicado aos magistrados, dão margem a decisões judiciais que

privilegiam a ética cristã em detrimento de outros modelos axiológicos encontrados na imensa

diversidade cultural brasileira.

Afinal, a realidade ontológica de um bem cultural, isto é, sua essência, é

necessariamente teleológica. São os fins, os quais já são em si construções humanas,

que constituem o sopro de vida dos fenômenos culturais. Desse modo, o direito

apenas pode encontrar sua razão de ser nos valores que se propõe a realizar, os quais

só podem ser encontrados no processo histórico da cultura que o produz

(MARCIEL, 2010, p. 49-76).

Outra evidência encontrada é a composição dos órgãos legislativos, com destaque para

a Câmara dos Deputados Federais. Há uma recorrente formação de coligações partidárias no

sentido de centralizar a influência política de deputados que intencionam legislar orientados

pelos princípios éticos da confissão religiosa que professam. Em meio à diversidade religiosa

brasileira, apenas a cultura cristã encontra número suficiente para que esse tipo de coligação

seja possível. Essas Bancadas Evangélicas, como são conhecidas, exercem uma influência

negativa sobre o movimento de efetivação da laicidade brasileira, assim como prejudica os

avanços necessários ao desenvolvimento do processo de redemocratização que teve início em

1988, mas, ainda não se pôde dar por concluído. Dentre os avanços prejudicados por esse

movimento, que sob um olhar constitucionalista se mostra inconstitucional, estão, a

criminalização da homofobia e a descriminalização do aborto de fetos anencéfalos, que assim

como o reconhecimento da instituição da união homoafetiva, tiveram que se valer do ativismo

da suprema corte judiciária para se adequar a realidade social atual. Também é importante

levantar a questão da isenção tributária a que estão submetidos os templos de qualquer culto,

que dão margem para lavagem de dinheiro e o disfarce de crimes tributários. Porém, esse

questionamento não é levado a cabo em razão da maciça representação que as igrejas

possuem dentro das casas legislativas.

Porém, se de um lado os radicalismos religiosos geram um movimento de retrocesso

nas diretrizes políticas e jurídicas, não se pode olvidar das consideráveis contribuições que o

cristianismo trouxe para o princípio dos direitos e garantias fundamentais dos indivíduos.

Dentre elas, destacamos no presente trabalho a própria ideia da separação entre religião e

estado proposta, em vida, por Jesus, mas, que no processo de cristianização do Império

Romano foi reinterpretada de forma a descaracterizar sua essência.

Além disso, há que se observar que a despeito do sentimento religioso individual

que um ocidental nutre pela fé cristã, ele é produto de uma tradição cultural da qual

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o cristianismo é uma parte substancial, tendo, portanto, recebido e incorporado

crenças, símbolos e valores cristãos, que influenciam seu modo de perceber o mundo

e seu comportamento social (MARCIEL, 2010, p. 64).

A moral judaico-cristã disseminada pela Igreja Católica Romana por toda a Europa no

período medieval diverge dos usos e costumes das tribos nativas brasileiras e das

descendências africanas que, após a década de 1530 quando o desenvolvimento da

monocultura demanda grandes quantidades de mão de obra, tornam-se a etnia mais numerosa

do território brasileiro. Esse histórico somado a complexidade cultural que toma forma no

decorrer da história, cria um clima de tensão na convivência dessa diversidade. Pois, como foi

mostrado, o modelo de sincretismo experimentado no Brasil impôs uma hierarquia rígida

entre as culturas religiosas existentes. Dentro dessa estratificação, a religião cristã e os

costumes europeus sempre ocuparam lugar de destaque, enquanto que as culturas afro-

brasileiras e indígenas vivenciam ainda hoje a discriminação muitas vezes institucionalizada

nos atos administrativos e jurídicos do estado.

Porém, com o advento da Constituição Federal de 1988 e das novas correntes

doutrinárias do pensamento jurídico que dão ênfase ao caráter principológico do Direito, tal

configuração mostra sinais de decadência. As arbitrariedades cometidas em favor de uma

ética religiosa dominante já não passam despercebidas, e mesmo os cidadãos leigos dão sinais

de um movimento bem menos resignado a essa herança colonial brasileira.

Existe sim uma assimilação gradativa dos princípios laicos que vem sendo percebida

de forma sutil, porém efetiva, que é consequência da consolidação do processo de

redemocratização que se concretiza no Direito em 1988 com a promulgação da Carta Magna e

que vem processando desde lá sua inserção nas diversas ideologias políticas, jurídicas e até

econômicas.

A religião também deve assimilar esse modelo de governo, porém, a estrutura ética

dos credos cristãos evidencia a necessidade de uma fidelidade ideológica colidente, muitas

vezes, com a democracia cultural.

Esta tensão, porém, não pode chegar a ponto de ofuscar, limitar ou impedir

totalmente que o espaço público seja acessível à razão secular ou religiosa. Isso

implica, dentre outras coisas, a aceitação da crítica e a tolerância para com opiniões

contrárias28. Ou seja, o desconforto ocasionado pela opinião contrária é elemento

intrínseco a qualquer ideia verdadeira de democracia e qualquer ato visando impedir

isto se afigura como um ataque ao próprio Estado Democrático de Direito

(BOTELHO, 2012, p. 290).

Evidenciada a problemática, é natural à atitude científica e filosófica a busca de

proposições que solucionem tão relevante conflito. Não é pretensão dessa pesquisa estruturar

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um projeto acadêmico com conteúdo o bastante para descrever caminhos metodológicos

capazes de solucionar os impasses apresentados. Porém, a própria pesquisa orienta uma linha

de raciocínio bastante plausível.

Visto que a doutrina cristã teve como instrumento eficaz de disseminação as missões

jesuítas, parece lógica a constatação de que os princípios laicos possam se valer do mesmo

modelo de propagação ideológica. A Companhia de Jesus concretizava seu projeto de

evangelização através de experiências pedagógicas, ou seja, os jesuítas eram verdadeiros

professores e guias das comunidades indígenas a que se vinculavam. Deste modo, a cultura

cristã foi cultivada por instrumentos educacionais. Os índios, negros e demais etnias

brasileiras foram educados desde a infância pela ideologia cristã. É por esse motivo, que se dá

tanta importância à proibição de ensinos confessionais nas escolas públicas.

É uma proposta evidente, de certa forma, e aparentemente muito distante do âmbito

acadêmico das escolas de Direito. Visto que, dada a autonomia das ciências, o jurista está

impossibilitado de interferir nas diretrizes pedagógicas dos ensinos de base. Porém, está

plenamente ao alcance da ciência jurídica, permitir que em sua grade curricular sejam melhor

representadas a filosofia, sociologia e história, pois, esses ramos do conhecimento conferem

ao acadêmico uma visão menos codicista do Direito, e prepara melhor seu intelecto para

elaboração de críticas às regras detentoras de vigência, mas, carentes de eficácia.

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