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A INTEGRAÇÃO CONCEPTUAL EM CHARGES Paulo Henrique Duque Departamento de Letras - UFRN Resumo: A mesclagem conceptual é uma teoria geral da cognição que descreve a capacidade humana de imaginar identidades entre conceitos e integrá-los para criar e formar novos modelos de pensamento e ação. Desenvolvida por Fauconnier e Turner, a teoria da mesclagem conceptual prevê que o significado emerja da coexistência e cooperação de espaços mentais distintos. Um dos grandes benefícios dessa abordagem é o fornecimento de compressões de matrizes difusas da realidade tendo em vista a preservação da escala humana. A cultura, por exemplo, com todos os elementos que a integram, é muito difusa e ampla para ser compreendida como um todo pelo ser, ao passo que situações de escala humana são facilmente apreendidas por humanos, uma vez que apresentam tipicamente poucos participantes, intencionalidade direta e efeito imediato. A compressão (a fim de se atingir a escala humana) acontece por projeção seletiva dos espaços de input e integração no espaço-mescla. No caso de representações não-verbais, os itens selecionados precisam ser passíveis de descrição e suficientes para sinalizar a complexidade de relações humanas abstratas. Uma charge publicada no Jornal do Brasil será analisada tendo como referencial teórico a concepção de mesclagem, por nos fornecer subsídios para demonstrar a importância dos elementos visuais no processo de integração conceptual e identificar estratégias de compressão e difusão da realidade sociocultural em tais elementos. Dentro desse quadro, enfatizaremos a importância dos aspectos visuais salientes culturalmente na criação e interpretação das mesclas visuais identificadas na charge. A escolha desta categoria textual se deu por exibir vários elementos visuais relevantes culturalmente, resultantes de diferentes estratégias de compressão, possibilitando a investigação do papel de elementos visuais determinados na criação e compreensão de mesclas visuais. Acreditamos que, nas representações visuais da charge, as relações conceptuais abstratas se concretizem em propriedades físicas, tais como forma e cor. Além disso, por se tratar de uma categoria discursiva, cujas temáticas normalmente estejam alicerçadas nas marcas socio-culturais e políticas do período em que os textos são produzidos, a concretização serve

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A INTEGRAÇÃO CONCEPTUAL EM CHARGES

Paulo Henrique Duque Departamento de Letras - UFRN

Resumo:

A mesclagem conceptual é uma teoria geral da cognição que descreve a capacidade humana de imaginar identidades entre conceitos e integrá-los para criar e formar novos modelos de pensamento e ação. Desenvolvida por Fauconnier e Turner, a teoria da mesclagem conceptual prevê que o significado emerja da coexistência e cooperação de espaços mentais distintos. Um dos grandes benefícios dessa abordagem é o fornecimento de compressões de matrizes difusas da realidade tendo em vista a preservação da escala humana. A cultura, por exemplo, com todos os elementos que a integram, é muito difusa e ampla para ser compreendida como um todo pelo ser, ao passo que situações de escala humana são facilmente apreendidas por humanos, uma vez que apresentam tipicamente poucos participantes, intencionalidade direta e efeito imediato. A compressão (a fim de se atingir a escala humana) acontece por projeção seletiva dos espaços de input e integração no espaço-mescla. No caso de representações não-verbais, os itens selecionados precisam ser passíveis de descrição e suficientes para sinalizar a complexidade de relações humanas abstratas. Uma charge publicada no Jornal do Brasil será analisada tendo como referencial teórico a concepção de mesclagem, por nos fornecer subsídios para demonstrar a importância dos elementos visuais no processo de integração conceptual e identificar estratégias de compressão e difusão da realidade sociocultural em tais elementos. Dentro desse quadro, enfatizaremos a importância dos aspectos visuais salientes culturalmente na criação e interpretação das mesclas visuais identificadas na charge. A escolha desta categoria textual se deu por exibir vários elementos visuais relevantes culturalmente, resultantes de diferentes estratégias de compressão, possibilitando a investigação do papel de elementos visuais determinados na criação e compreensão de mesclas visuais. Acreditamos que, nas representações visuais da charge, as relações conceptuais abstratas se concretizem em propriedades físicas, tais como forma e cor. Além disso, por se tratar de uma categoria discursiva, cujas temáticas normalmente estejam alicerçadas nas marcas socio-culturais e políticas do período em que os textos são produzidos, a concretização serve

também como um sinal representativo dos tipos de relações humanas estabelecidas numa dada época. Desse modo, os aspectos visuais da charge parecem comunicar essas informações, por meio da exploração de certos elementos já rotinizados na cultura. Esperamos, com este trabalho, contribuir para o estudo da mesclagem conceptual ao fornecer um relato estruturado e descritivo acerca dos elementos visuais salientes culturalmente nas charges como estratégia de compressão de uma realidade socio-cultural ampla e difusa.

Palavras-chave: Teoria da Mesclagem; Compressão Conceptual; Linguagem não-verbal.

1. Introdução

A análise da mesclagem de elementos não-verbais pode ser realizada

a partir da Teoria da Mesclagem (Blending Theory), de Fauconnier e Turner (2002). Interpretações de cartoons, realizadas por Fauconnier e Turner (1994) e Coulson (2005) evidenciam que projeções metafóricas e metonímicas podem ser estabelecidas em configurações visuais. De acordo com Turner (1996), esse processo de compressão de representações não-verbais é o mesmo identificado na compressão de elementos verbais, e o esforço necessário para interpretá-lo é, na maioria das vezes, não percebido pelo compreendedor1. A realização da mesclagem conceptual pode estar relacionada com a capacidade de criar novas ações, emoções e entendimentos (FAUCONNIER e TURNER, 1994), quer para enviar uma mensagem ou para atrair (e prender) a atenção do leitor/ouvinte. As representações visuais são caracterizadas por concretizarem relações conceptuais abstratas por meio de propriedades físicas, tais como forma e cor. Entretanto, no caso da charge, com mensagens socioculturais salientes, essa concretização serve também como um conjunto de sinais representativos de relações humanas bem mais complexas.

Esses índices visuais, para a Teoria da Mesclagem, funcionam como gatilhos que possibilitam uma composição pictórica que comprime

1 Estou usando o termo compreendedor aqui, no mesmo sentido utilizado por Bergen (2010), de acordo com o qual, durante o processo de compreensão de enunciados, o compreendedor (comprehender) simula mentalmente ou imagina o seu conteúdo perceptivo ou motor. Nesse sentido, quando compreende um enunciado, o compreendedor deve adotar um conjunto de estratégias cognitivas de construção do sentido que melhor se adaptem ao enunciado a ser compreendido. Uma parte fundamental desse processo diz respeito aos procedimentos de descompressão conceptual (cf. FAUCONNIER & TURNER, 2002).

uma ampla realidade sociocultural. Na análise, eu pretendo demonstrar que uma representação visual é capaz de comunicar informações ricas e difusas de fundo sociocultural, por meio da exploração de determinados elementos visuais específicos, já rotinizados em uma dada cultura. A intenção deste artigo, pois, é mostrar a importância desses elementos visuais salientes culturalmente durante o processo de criação e compreensão de mesclas visuais. Acredito que sua contribuição para o estudo da mesclagem conceptual consista no fornecimento de uma avaliação das estruturas e descrições de elementos não-verbais, como legítima estratégia de compressão de uma dada realidade sociocultural.

2. A Teoria da Mesclagem Conceptual

Na Teoria da Mesclagem, o significado decorre da coexistência e

cooperação de, pelo menos, quatro espaços mentais separados: dois ou mais espaços de input, contendo informações sobre determinados domínios considerados relevantes para o processamento cognitivo on-line, um espaço genérico, com estruturas abstratas, que são comuns a todos os espaços de input; e um espaço-mescla, onde as informações selecionadas a partir de todos os espaços de input são projetadas e, de onde, novos e inesperados significados podem emergir.

Como demonstrado por Fauconnier e Turner (2002), um dos benefícios centrais desse processo é a viabilidade de se fornecerem compressões de matrizes difusas da realidade a fim de se atingir a escala humana. Ora, uma dada cultura, com todos os elementos que lhe são pertinentes, é uma realidade muito difusa e ampla para ser apreendida cognitivamente como um todo. Ao serem colocados numa escala humana, os elementos são facilmente compreendidos, uma vez que são constituídos de "poucos participantes, intencionalidade direta e efeito imediato" (FAUCONNIER & TURNER, 2002, p. 312).

Para alcançar a escala humana, uma compressão conceptual acontece pela projeção seletiva dos espaços de input e consequente integração no espaço-mescla. É possível, por exemplo, compactar um grupo inteiro, ao selecionar apenas um membro, e "fingir que há uma homogeneidade na experiência e comportamento de todos os seus membros" (FAUCONNIER & TURNER, 2002, p. 117). No caso das representações visuais salientes culturalmente, os elementos selecionados precisam ser retratados concretamente, sinalizando, dessa forma, a complexidade das relações humanas abstratas.

A charge, em especial, encontra-se nas seções de opinião, nos editoriais ou mesmo na primeira página dos jornais, transmitindo informações que envolvem fatos, de forma crítica e humorística. É a representação pictórica de um assunto conhecido dos leitores, segundo a visão crítica do chargista ou do jornal. Quanto à forma, representam figuras com possibilidades existentes no mundo real. Em geral, nas charges, são utilizadas caricaturas e símbolos. Para a sua elaboração, é preciso ter detalhes que forneçam dados suficientes para a compreensão, tais como a caracterização do cenário e as marcas que simbolizam o tema tratado.

Essa categoria discursiva pode ser constituída apenas por linguagem não-verbal, mas é bastante comum apresentar, concomitantemente, linguagem verbal. A linguagem verbal geralmente aparece em balões (que representam a fala ou o pensamento das personagens). Na figura 1, por exemplo, a fala é apresentada num balão; na figura 2, a fala da secretária e o pensamento do senador José Sarney são caracterizados pelo balão de pensamento (em forma de nuvem). A linguagem verbal pode aparecer também, em forma de legendas (figura 3) ou representando ruídos e sons (figura 4).

Figura 1 – Jornal Bom Dia, em 08/09/2009

Figura 2 – Jornal Bom Dia, em 26/07/2009

Figura 3 – Tribuna da Imprensa, em 15/04/2008

Figura 4 – Conversa de Buteco (blog), em 15/05/2009

Ao compararmos as charges, através dos tempos,

identificamos grandes mudanças, principalmente com o advento das ferramentas tecnológicas. Com as charges virtuais, que têm possibilidade de animação, o tão característico balão de fala tornou-se dispensável, já que os personagens literalmente falam.

3. A Charge Analisada

Do corpus de charges relativas ao período do governo Lula

(2003- 2010), do Grupo de Pesquisa Cognição & Práticas Discursivas, do Departamento de Letras, da UFRN, selecionei uma charge publicada no Jornal do Brasil, em 21 de Janeiro de 2010, durante o período de chuvas intensas que culminou no alagamento de várias regiões do Estado de São Paulo. Vale lembrar que isso aconteceu no período em que teve início (extraoficialmente) a corrida presidencial. O então governador do estado de São Paulo, José Serra, foi responsabilizado pelos transtornos, por ter destinado boa parte do dinheiro das obras de prevenção à publicidade.

Figura 6 – Jornal do Brasil, em 21/01/2010

Selecionei uma charge totalmente não-verbal (figura 6), por

apresentar um número maior de elementos visuais, resultante de diferentes estratégias de compressão, o que viabiliza uma investigação mais precisa do papel dos elementos visuais determinados culturalmente, na criação e compreensão de mesclas visuais.

Originalmente publicada como ilustração no setor de opiniões do Jornal do Brasil, a charge selecionada apareceu como complemento da notícia: "São Paulo Volta a Entrar em Estado de Atenção". A imagem em si parece incongruente: o atual presidente da república, Lula, e os presidenciáveis Dilma e Serra num ambiente de enchente, ou se divertindo como se estivessem numa praia (Dilma e Lula) ou imersos até o pescoço na água suja (Serra). Surpreendentemente, os três estão no mesmo local, apesar de expressões diferentes (alegria e realização, no caso de Lula e Dilma, e desolação, no caso de Serra). O que torna o desenho mais surpreendente, até mesmo engraçado, é a circunstância em que as coisas acontecem. Por exemplo, Dilma ensaia alguns passos enquanto surfa e é puxada por um Jet Ski pilotado por Lula, enquanto Serra parece estar desolado com a situação. Obviamente, com essa representação, o chargista pretende comunicar não apenas a enchente, mas alguma coisa mais abstrata, embora a imagem seja formada por elementos que denunciam tratar-se de uma enchente, tais como a água, as placas, o pneu e as latas, e os personagens da sucessão presencial.

A integração de todos esses elementos, num mesmo local e num mesmo tempo, é um convite para que se compreenda a imagem, a partir da descompressão dos seus espaços mentais subjacentes.

4. Análise

Nesse caso, as sugestões que conduzam a uma interpretação

metafórica não são meramente pictóricas, pois a estrutura operacional metafórica dominante no mundo das charges é estabelecida por uma sugestão externa: a matéria impressa, colocada na mesma página: “São Paulo Volta a Entrar em Estado de Atenção”.

Isso não é de todo surpreendente, uma vez que as charges são compostas de imagens que, constantemente, cruzam a fronteira entre o verbal e o não-verbal. A manchete “São Paulo Volta a Entrar em Estado de Atenção” pode ser considerada como uma solicitação para se estabelecerem os principais espaços mentais e suas conexões. Somos levados a criar um espaço mental para representar aspectos relevantes da enchente e um espaço mental para representar aspectos relevantes da sucessão presidencial e um espaço de mescla, onde todos esses aspectos são integrados, como mostra a figura 7.

Figura 7: Modelo de Rede. Os espaços mentais principais da rede

Ambos os espaços de input tiram proveito do conhecimento prévio do leitor, pois todos sabem que as enchentes criam um grande transtorno na vida da população, como disseminação de doenças, desabamentos e mortes. Por outro lado, vem sendo amplamente divulgado pelos meios de comunicação que Dilma e Serra são os principais candidatos à presidência da República e que a campanha de Dilma está alicerçada na popularidade do presidente Lula.

Além disso, o artigo ao qual a charge está anexada chama a atenção para os transtornos causados pela chuva que atingiu São Paulo naquela madrugada e, em outras reportagens afins, para as suspeitas de ilegalidade, inconstitucionalidade e improbidade na gestão de José Serra, por ter reduzido os recursos para a prevenção e o combate às enchentes. O governador tucano, naquele período, estava sendo denunciado por remanejar recursos da prevenção das enchentes para a publicidade do seu governo, visando às eleições presidenciais de 2010.

Que a enchente, naquele momento, poderia prejudicar o candidato Serra na corrida presidencial é uma das conclusões centrais trazidas à tona pela charge (figura 6). A placa de trânsito, ao lado esquerdo do Serra, no input, tem o papel genérico de sinalizar a situação do seu partido, o PSDB (tucano), como consequência da calamidade que havia se instalado em São Paulo naquele período. A Figura 8 mostra como essa inferência pode ser levada para o domínio da sucessão presidencial.

Figura 8. Projeção de inferências centrais

Algumas das conexões de espaços-cruzados são globalmente

compartilhadas por projeções metafóricas, também chamadas de "modelo de

mescla" (FAUCONNIER E TURNER, 2002, p. 383), tais como a mescla entre o caos provocado pela enchente e o caos provocado na campanha presidencial de Serra ou o prolongamento de esquemas imagéticos como “recipiente”, "ligação", "origem/caminho/meta" e "escalas" do físico para o não-físico, no caso em tela, do caos na cidade de São Paulo para o caos na campanha presidencial. Essa estrutura esquemática imagética não é adequada ao domínio altamente abstrato de uma sucessão presidencial. Ela é o resultado de mesclas anteriores: por exemplo, a noção de que uma campanha presidencial é tomada por experiências positivas no histórico de gestão do candidato eleito e que problemas na campanha de um candidato podem significar o crescimento na campanha do seu adversário. À primeira vista, a mesma enchente que corresponderia ao caos para a campanha de Serra seria positiva para a campanha de Dilma. Daí, a imagem de Dilma surfando sobre a mesma enchente. Essas conexões principais de espaços-cruzados são apresentadas na Figura 9.

Figura 9: As conexões através dos espaços

Algumas entidades, aparentemente absurdas, surgem durante o

processo de composição (FAUCONNIER E TURNER, 2003, p. 42), quando os elementos previstos para o espaço-mescla são criados a partir da fusão dos itens do input “campanha presidencial” e os itens do input “enchente em São Paulo”. Esses itens, tais como a prancha de surf em forma de faixa presidencial, a placa de trânsito com o desenho de um tucano e Dilma sendo rebocada pelo Jet Ski conduzido por Lula não estavam presentes em nenhum dos espaços de input. Curiosamente, o que realmente vemos não é apenas a

mesclagem dos elementos desses dois inputs, mas há também uma dica bem visível da pertinência sociocultural, assinalada pelos trajes, objetos e veículos representados na charge. Isso cria estranheza e humor ao compreendedor da charge em questão, uma vez que ninguém, sob circunstâncias normais, iria relacionar os candidatos à presidência a uma situação com a apresentada: o candidato Serra imerso nas águas imundas da enchente de São Paulo, enquanto Dilma e Lula se divertem na mesma água, por meio da prática de “esqui aquático”. Vale ressaltar que, aparentemente, nenhum desses “absurdos” aparece nos inputs 1 e/ou 2.

Embora alguns objetos e a cena não estejam relacionados a nenhum dos espaços de input, eles surgem durante o processo de integração (FAUCONNIER E TURNER, 2002, p. 43) do ambiente visual. De maneira bastante lógica, o chargista projeta a repercussão da enchente de São Paulo na intenção de voto do eleitor. São apresentados os personagens (candidatos e o presidente Lula) e o cenário da enchente e o desenho é complementado com prédios ao fundo (São Paulo), latas e pneus boiando e as placas parcialmente submersas. Por meio da figura 10, apresento um esboço do processo cognitivo de integração dos elementos pertencentes aos dois domínios (da enchente e da sucessão presidencial) e da inclusão de itens complementares do cenário representado.

Figura 10. Complementação de um esquema abstrato com

elementos visuais de conhecimento de fundo

No universo criado pelo chargista, torna-se possível inferir que o segundo domínio trata da sucessão presidencial, por meio da imagem dos presidenciáveis Serra e Dilma, do tucano representado na placa (símbolo do partido de Serra), da prancha de Dilma (faixa presidencial) e do atual presidente, Lula (pilotando o Jet Ski). Por outro lado, o primeiro domínio nos remete à enchente de São Paulo, por meio da imagem da água suja (latas, pneus e papeis boiando), da placa de parada de ônibus parcialmente submersa, dos prédios ao fundo (São Paulo) e das nuvens negras (sugerindo mau tempo).

Claramente, um modelo cultural, ou mais precisamente, a prática cultural acionada pela charge em questão, revela que as pessoas são capazes de identificar que a água por onde Dilma surfa não é a água de um lago, de um rio ou de uma praia, graças aos detalhes da complementação (lixo boiando e placas submersas). O próprio ato de surfar nos remete a uma noção, culturalmente partilhada, de superioridade humana (“tirar onda”, para cariocas e paulistas), de construções como: “ele tirou onda comigo”. O fato de Dilma estar sendo rebocada pelo Jet Ski de Lula, ao compreendedor, sugere uma dependência da candidata em relação à imagem do presidente. E mais, com o total controle do aparelho, Lula é o responsável direto pela rota a ser tomada pela presidenciável. Por se tratar de um esporte aquático, as manobras de Lula e Dilma só são viáveis graças à água represada, no caso, provocada pela enchente que afligiu a cidade de São Paulo, principal reduto político de Serra (e do PSDB), na madrugada do dia 21 de Janeiro de 2010. Os poucos personagens e elementos existentes na charge são suficientes para representar não só a intensidade da enchente ocorrida em São Paulo, mas também a complexidade de fatores que estão envolvidos numa campanha à presidência. Apresentar todos esses dados num mesmo desenho comprometeria a compreensão da charge. Por causa disso, o chargista emprega aquilo que Fauconnier e Turner chamam de compressão de escala humana (2002, p. 312).

Figura 11 – Alcançando a escala humana

Como vimos, a rede de integração apresentada é o resultado da

combinação e fusão de elementos a partir do input “sucessão presidencial” (agentes: Dilma e Lula, Serra) com o input “enchente em São Paulo” (agentes: praticante de esqui aquático – situação privilegiada – e vítima da enchente – situação problemática). Como analisado por Fauconnier e Turner (1999), a mescla pode combinar um número desigual de elementos de cada um dos inputs. No nosso caso, o espaço mescla aciona elementos que formam o cenário da enchente em São Paulo, do input 1, e os principais personagens envolvidos na sucessão presidencial, do input 2. Vemos que o Jet Ski e a prática do esqui, a priori, não deveriam compor nenhum dos dois inputs, mas associa-se, através de redes semânticas, à água represada. Além disso, há uma relação metonímica entre os pontos de enchente e a totalidade da cidade, o que possibilita uma imagem bem humorada da situação, uma vez que o compreendedor passa a visualizar São Paulo como uma imensa lagoa (a ponto de a prática do esqui aquático ser possível).

Alguns objetos (e pessoas públicas) são especialmente importantes, altamente representativas, e, como tal, facilmente reconhecíveis

como pertencentes a uma determinada esfera de atividade sociocultural e, por isso, são ícones (recorrentes em charges) que invocam conjuntos específicos de valores, normas e crenças das dimensões socioculturais que representam. Essa representatividade dos ícones é obtida através de compressões metonímicas, ou seja, quando um membro passa a representar todo o grupo a que pertence. Em certa medida, um ícone cultural recorre à sinédoque, pelo fato de um elemento saliente e, geralmente, muito popular passar a representar o todo, expandindo-se com grande quantidade de significado simbólico.

Na charge em questão, alguns dos ícones mais proeminentes culturalmente são os próprios personagens, a faixa presidencial e os equipamentos do esqui aquático, que incorporam características socioculturalmente determinadas, respectivamente, acerca dos partidos representados, da relevância do cargo de presidente da república e da diversão proporcionada por certas atividades aquáticas.

5. Observações finais

O objetivo principal deste trabalho foi destacar o papel dos

elementos visuais culturalmente arraigados na produção e interpretação de mesclas conceituais. Na charge escolhida para análise, identificamos algumas características marcantes da integração conceptual. Com sua economia formal, fomos capazes de visualizar as consequências da enchente em São Paulo, ocorrida em Janeiro de 2010, para o desdobramento da disputa entre os candidatos Serra e Dilma pela presidência da república, em um cenário totalmente integrado. Através da manipulação de itens característicos (e ícones culturais) característicos de dois domínios conceptuais aparentemente inconciliáveis (uma enchente e uma campanha eleitoral), o chargista foi capaz de criar um mesmo espaço (o espaço-mescla), no mínimo, surpreendente. Tal compressão absurda foi legitimada pela categoria discursiva utilizada: a charge. Por meio da estratégia de descompressão conceptual, o compreendedor ativa conhecimentos prévios que o auxiliam no processo de compreensão.

Referências

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