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A joia de Medina

A joia de Medina - Grupo Editorial Record · nar uma das mais importantes do mundo, tendo sua origem nas pala-vras de um homem que, até completar 40 anos, era considerado uma

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A joia de Medina

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SHERRY JONES

A joia de Medina

Tradução deAna Luiza Dantas Borges

R I O D E J A N E I R O • S Ã O PAU L OE D I T O R A R E C O R D

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CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTESINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ.

_____________________________________________________________________

J67j Jones, Sherry, 1961- A joia de Medina / Sherry Jones ; tradução Ana Luiza Borges. – Rio de Janeiro : Record, 2009.

Tradução de: The jewel of Medina ISBN 978-85-01-08542-9

1. Romance americano. I. Borges, Ana Luiza. II. Título. 09-1787. CDD: 813 CDU: 821.111(73)-3

Título original inglês:The Jewel of Medina

Publicado mediante acordo com a Nathasa Rern Literary Agency.Traduzido da versão em inglês JEWEL OF MEDINA Copyright © by Sherry

Jones, publicada nos EUA pela Beaufort Books, New York.

Diagramação: ô de casa

Todos os direitos reservados.Proibida a reprodução, no todo ou

em parte, através de quaisquer meios.

Direitos exclusivos de publicação em língua portuguesa somente para o Brasil adquiridos pela

EDITORA RECORD LTDA.Rua Argentina 171 – Rio de Janeiro, RJ – 20921-380 – Tel.: 2585-2000

que se reserva a propriedade literária desta tradução________________________________________________________________

ISBN 978-85-01-08542-9PEDIDOS PELO REEMBOLSO POSTAL

Caixa Postal 23.052 – Rio de Janeiro, RJ – 20922-970

Impresso no Brasil2009

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Para minha mãe, que me ensinou a tentar alcançar

as estrelas, e para Mariah, a estrela mais brilhante no meu céu.

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Nota da autora

V enha comigo para uma viagem a outro tempo e lugar. Um

mundo exótico, severo, repleto de açafrão e lutas de espa-

das. De nômades que vivem no deserto, em cabanas feitas

com couro de camelo. De caravanas carregadas de tapetes persas e olí-

bano. Um mundo de túnicas coloridas e esvoaçantes, olhos escurecidos

com kohl* e braços perfumados fi ligranados com hena.

Estamos no Hijaz do século VII, no oeste da Arábia Saudita, não

distante do litoral do mar Vermelho, um vasto deserto pontilhado por

oásis magnífi cos, onde beduínos lutam para sobreviver e as mulheres

têm poucos direitos. Onde se professa uma religião destinada a se tor-

nar uma das mais importantes do mundo, tendo sua origem nas pala-

vras de um homem que, até completar 40 anos, era considerado uma

pessoa comum.

Esse era o mundo da bint de Abi Bakr, A’isha. Quando ela nasceu,

por volta de 613 d.C., as mulheres eram vistas como bens pessoais,

propriedades dos homens. Eram tão desvalorizadas que poderiam ser

enterradas vivas ao nascerem, caso tivessem sido concebidas muitas

meninas naquele ano. Quando A’isha fi cou noiva, aos 6 anos, foi confi -

* Para esse e outros termos citados em árabe no original, consultar o glossário, no fi m do livro. (N. da T.)

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nada na casa dos pais, proibida de correr ou brincar do lado de fora. Foi

impedida até de falar com meninos. Ainda assim, A’isha se tornou uma

mulher forte e poderosa: uma beldade ruiva com uma inteligência viva

e sagaz, sendo também uma conselheira política infl uente. Era ao mes-

mo tempo uma guerreira e uma sábia religiosa. Além disso, se tornou a

esposa favorita do profeta Maomé, dando origem a uma das histórias de

amor mais comoventes já registradas.

Segundo vários relatos, A’isha casou-se com Maomé, o revelador

do islã, quando tinha 9 anos. O casamento, porém, só foi consumado

mais tarde, depois de seu ciclo menstrual ter início. Embora hoje sua

pouca idade possa nos chocar, a política é apontada como a razão para

ela ter se casado tão jovem. O pai de A’isha, Abu Bakr, supostamente

apressou o casamento com o intuito de fi rmar sua posição como o prin-

cipal Companheiro do Profeta. Maomé se mostrava muito afeiçoado a

A’isha, brincando de boneca com ela quando era ainda uma criança, até

incluí-la, já adulta, no conselho político.

No entanto, o casamento tinha suas difi culdades. Marido e mulher

eram indivíduos obstinados, dinâmicos, complexos. Tendo conhecido

Maomé durante toda a vida, A’isha era extremamente ciumenta com re-

lação às outras esposas e concubinas — 12, no total — que ele introdu-

ziu em seu harém. Intrigante e corajosa, ela pregava peças nas demais

esposas e em Maomé, com o objetivo de frustrar o romance dele com

qualquer uma delas. Às vezes, suas manobras obtinham sucesso, para

desgosto de seu marido.

A tensão também os atingiu para além da relação a dois. Como líder de

uma comunidade crescente de seguidores, Maomé teve de combater rumo-

res frequentes referentes às suas mulheres. (Aos 14 anos, A’isha foi envol-

vida em um escândalo devastador que quase acabou com seu casamento.)

Mas também existiam outros problemas. A poderosa tribo Quraysh, de

Meca — formada por parentes de Maomé —, repudiava a mensagem do

Profeta, que pregava a existência de um único Deus. Assim, a tribo atacava

Maomé de forma cruel e incessante. Mas o Profeta de Deus não se calava. O

anjo Gabriel tinha-lhe dito: “Recite!” E Maomé estava fadado a obedecer.

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O islã apareceu a Maomé em uma visão no monte Hira, em Meca,

por volta do ano 610. Os membros da sua família, incluindo sua mu-

lher Khadija, com quem ele manteve um casamento monogâmico

por 25 anos, e seu primo Ali, criado por ele, foram os primeiros a

acreditar na sua mensagem de um único Deus. Os outros se mostra-

ram menos crédulos. Meca era a capital da adoração dos ídolos do

mundo árabe. Centenas de deuses ocupavam o Ka’ba, o santuário em

forma de cubo no centro da cidade, e atraíam caravanas que vinham

de perto e de longe para adorar e fazer comércio. Para os mercadores de

Quraysh, a nova religião representava um desastre econômico. Ela e

seu Profeta tinham de desaparecer.

Depois de anos de perseguição aos muçulmanos, os líderes de Meca

fi nalmente enviaram seus fi lhos para assassinar Maomé. Ele escapou,

com a ajuda de Ali e Abu Bakr, e se uniu ao resto da umma, a comunidade

de crentes em Medina. O local era considerado um oásis a cerca de 400

quilômetros ao norte, onde membros das tribos árabes da cidade, os Aws

e Khazraj, tinham se oferecido para abrigar e proteger os muçulmanos.

Mas também em Medina a vida era perigosa. Os Quraysh continuaram

a atacar, recrutando a ajuda de novos vizinhos da umma. Particular-

mente ameaçadoras eram três tribos judias: a Kaynuqah, Bani Nadr e

Qurayzah. O fato de Maomé adorar o seu Deus não foi o bastante para

conquistar sua lealdade. Não somente tratavam com escárnio sua de-

claração de ser um Profeta vaticinado em seus textos religiosos — Deus

escolheria um árabe para essa honra? —, como as tribos estavam nego-

ciando com os Quraysh, de Meca.

Nesse contexto de escândalo, perigo e opressão, A’isha cresceu, casou-se

com Maomé e o amou. Segundo a maioria das fontes, ele a adorava, sendo

indulgente com sua franqueza e solicitando sua opinião sobre vários assun-

tos. O papel dela nas batalhas da umma parece ter sido apenas o de carregar

água e fazer curativos, mas outras mulheres, como Umm’Umara, lutaram

realmente ao lado dos homens nos primeiros anos do islã.

Sabemos muito pouco sobre as mulheres de Maomé. Frequen-

temente os detalhes de suas vidas variam segundo quem os narra.

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Naquela época a história, assim como a genealogia e a poesia, era

transmitida apenas oralmente — e assim continuou até centenas de

anos depois da morte de Maomé. Aparentemente, quase todas as in-

formações a seu respeito estão abertas a discussões: desde a idade de

A’isha na consumação de seu casamento até a postura de Maomé em

relação a ela. Foi A’isha a sua esposa favorita, como os sunitas alegam,

ou ele não gostava dela por causa de sua desobediência?

Independentemente da opinião geral sobre A’isha, ela continua

sendo uma heroína inesquecível, que não escondia seus ideais, seguia

seu coração, amava seu Deus e conquistou um lugar em sua comunida-

de e na História como a Mãe dos Crentes. Para mim, ela é um modelo,

uma sobrevivente que superou imensos obstáculos culturais e pessoais

para deixar sua marca no mundo.

Maomé morreu aos 62 anos. A versão sunita — endossada pelos

estudiosos ocidentais que li — acredita que ele tenha falecido com a

cabeça sobre o peito de A’isha. Já os xiitas defendem que o Profeta mor-

reu nos braços de Ali. Aos 19 anos, A’isha estava apenas começando

sua vida e sua obra. Uma defensora dos interesses de sua família, assim

como do legado de Maomé, A’isha foi conselheira dos três califas que

sucederam o Profeta e conduziu soldados contra Ali na Batalha do Ca-

melo, a primeira guerra civil islâmica. Mas essa é outra história...

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PRÓLOGO

Um único dedo acusador

Medina, janeiro de 627

14 anos

O escândalo fora soprado pelo vento errante quando cheguei

a Medina na garupa de um cavalo, agarrada na cintura de

Safwan. Meus vizinhos correram para a rua como as águas

de uma tempestade transbordando de um vádi. Crianças se agrupa-

vam, apontando perplexas. Suas mães as puxavam contra as saias e fi n-

giam desinteresse. Homens cuspiam no chão de terra e resmungavam,

criticando. A boca do meu pai tremia, uma lágrima prestes a correr.

O que viram: minha túnica caída sobre os ombros, negligenciada.

O cabelo solto batendo em meu rosto. A mulher do Profeta de Deus

abraçada a outro homem. O que não podiam ver: meus sonhos de me-

nina destruídos aos meus pés, pisoteados por uma verdade tão dura e

grosseira quanto cascos de cavalos.

Fechei os olhos, evitando o meu refl exo nos olhares espantados de

umma, a minha comunidade. Lambi meus lábios rachados, sentindo

o gosto de sal e de minha desgraça. A dor comprimia meu es tômago

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como mãos fortes torcendo a roupa molhada, só que eu já estava seca.

Minha língua pendia como a de um lagarto queimado pelo sol. Descan-

sei minha face no ombro de Safwan, mas o galope do cavalo fazia osso

bater contra osso.

— Al-zaniya! — alguém gritou. — Adúltera!

Entreabri ligeiramente os olhos. Membros da nossa umma ou aponta-

vam o dedo para mim e gritavam ou abriam os braços para me receber. Vi

outros, os Hipócritas, zombando e exibindo seus dentes sujos. Os ansari,

nossos auxiliares, permaneceram em silêncio e cautelosos. Milhares de

pessoas se reuniam na rua, absorvendo nossa poeira com sua respiração

forte. Olhavam espantados como se eu fosse uma caravana resplandecen-

do com um tesouro em vez de uma garota de 14 anos queimada de sol.

O cavalo parou, mas eu continuei em cima de seu fl anco, envolvida

pelos braços de Maomé. Mais uma vez, sob o controle do meu marido,

suspirando de alívio. Tentar forjar meu próprio destino quase me des-

truíra, mas o seu amor tinha o poder de cura. Sua barba espessa afagou

minha bochecha, me acariciando com sândalo. Miswak desprendia-se

de seu hálito, limpo e penetrante como um beijo.

— Dou graças a Alá por você ter retornado ao lar sã e salva, minha

A’isha — murmurou Maomé.

A multidão aglomerada resmungava, ferroando minha espinha.

Ergui minha cabeça pesada para ver. Umar apareceu, vociferou, com

feição de desagrado. Era conselheiro e amigo de Maomé, mas não era

amigo das mulheres.

— Onde, por Alá, você esteve? Por que estava sozinha com um

homem que não é o seu marido?

Suas acusações açoitaram como o vento através da multidão,

transformando faíscas em chamas.

— Al-zaniya! — gritou alguém novamente. Retraí-me como se a pa-

lavra fosse uma pedra lançada com força.

— Não é de admirar que A’isha rime com fahisha… prostituta!

O povo riu e logo começou a entoar: “A’isha-fahisha! A’isha-fahisha!”

Maomé guiou-me pela multidão em direção à entrada da mesquita.

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Como em um mosaico, seus rostos giraram diante de mim: Hamal e sua

papada cor de ameixa, gritando, e sua pálida mulher, antes chamada

Fazia, e agora Jamila, a fofoqueira da cidade. Umm Ayman, franzindo

seus lábios enrugados. Abu Ramzi, o joalheiro, ostentando seus anéis de

ouro. Eu tinha esperado murmúrios quando retornasse, e sobrancelhas

erguidas — mas isso? Pessoas que me conheciam desde que eu nascera

agora queriam me destruir. E destruir Safwan — procurei por ele com os

olhos, mas tinha desaparecido. Como sempre.

Dedos rudes puxaram meu cabelo. Gritei e os afastei, e um fi o de

cuspe acertou meu braço. Maomé me fi rmou e encarou a multidão,

depois levantou as mãos. O silêncio caiu como uma mortalha, abafan-

do até mesmo os olhares ferozes.

— A’isha precisa descansar — disse Maomé. Sua voz ressoou tão

cansada quanto eu me sentia. — Por favor, voltem para as suas casas.

Passou seu braço ao meu redor e entramos na mesquita. Minhas

irmãs de harém permaneceram perto da entrada do pátio, em grupos de

duas. Sawdah avançou, lamentando alto, e me envolveu com seu corpo

roliço. Louvou a Alá por meu retorno seguro, depois beijou seu amuleto

para afastar o mau-olhado. Em seguida, veio Hafsa, chorando, e beijou

minhas mãos e rosto. Falou em um sussurro:

— Achei que a tínhamos perdido para sempre.

Não lhe disse que ela estava quase certa. Umm Salama balançou a

cabeça, sem sorrir, como se temesse que ela se soltasse de seu pescoço

comprido. Zaynab lançou de soslaio um olhar lascivo a Maomé, como

se os dois estivessem a sós no quarto.

Mas as preocupações de meu marido estavam concentradas ape-

nas em mim. Quando meu estômago se contraiu de novo, fazendo-

me vergar de dor, ele me levantou como se eu fosse feita de ar. Na

verdade, pouco mais restava dentro de mim. Flutuei em seus braços

até meu aposento. Ele abriu a porta com um chute, carregou-me

para dentro e me pôs de pé enquanto preparava minha cama. Recos-

tei-me na parede, grata pelo silêncio… até o grito de Umar irromper

no quarto, seguido por ele próprio.

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— Veja como ela envergonha o santo Profeta de Alá! — gritou

ele. — Entrando a galope pelo centro da cidade, com as mãos em outro

homem e o cabelo agitando-se como o de uma prostituta!

— Uma prostituta com o hálito fedendo a vômito e o cabelo ema-

ranhado como um ninho de pássaro? — falei inadvertidamente. Até

mesmo em meu estado, tive de rir.

— Por favor, Umar — disse Maomé. — Não consegue ver que ela

está doente?

— Você é indulgente com ela.

— Estou feliz em vê-la viva, louvado seja Alá. — O amor no

olhar do meu marido me fez corar. Como tinha chegado perto de

traí-lo com aquele tratante! Safwan tinha me seduzido com a liber-

dade, depois atado meu destino aos seus desejos. Nada diferente de

qualquer outro homem. Exceto, talvez, Maomé. — Yaa habibati, que

re compensa devo oferecer a Safwan ibn Al-Mu’attal por trazê-la a

salvo para mim?

— Cem chicotadas seriam apropriadas — resmungou Umar.

— Mas Safwan salvou a vida dela.

— Aparentemente, Umar acha que eu deveria ter sido deixada à

mercê dos chacais ou dos beduínos — falei.

— Pelo menos você morreria com a sua honra intacta.

— Nada aconteceu com a honra de A’isha — disse Maomé.

— Diga isso a Hassan ibn Thabit — replicou Umar. — Momentos

atrás o ouvi recitar um maldito poema sobre a sua mulher e aquele

soldado mulherengo.

Um poema. Não era de admirar que, ao entrar na cidade, a umma

tivesse querido abocanhar meus calcanhares como uma matilha de

cães. As palavras de Hassan eram capazes de incitar o frenesi em uma

multidão quase tão imediatamente quanto a mão erguida de Maomé

era capaz de aquietá-la.

Mas não deixei Umar me ver tremer.

— Eu, com Safwan? Isso é um absurdo — falei. — Sou mulher do

santo Profeta de Alá. Iria querer um pobretão como ele?

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Senti os olhos de Maomé me observando. O calor se espalhava feito

chama sob minha pele. Teria ele percebido a mentira por trás do meu riso?

Passos rápidos ecoaram no pavimento de pedras do pátio. A mão

de um homem abriu a porta do meu apartamento. Seu anel de prata

brilhou como a lâmina de uma espada: Ali, parente de Maomé de três

maneiras — primo, fi lho adotivo e genro —, e amargamente invejoso

do amor de meu marido por mim. Punhaladas de dor perfuraram meu

estômago. Apoiei minha cabeça no ombro de Maomé.

— Aí está ela! — Ali estendeu o braço para me apontar. — Medina

se revolve de náusea por sua ruína, A’isha. Homens estão brigando na

rua, lutando por sua culpa ou inocência. O nosso próprio povo voltou-se

um contra o outro. A unidade da umma está ameaçada por sua causa.

— Você me defendeu? — No momento em que o desafi ei, eu já

sabia a resposta.

Ele virou-se para Maomé.

— Como posso defendê-la quando o próprio Safwan não fala em

sua defesa?

É claro. Não somente Safwan tinha desaparecido quando a multidão

se tornou mais ameaçadora, como também, quando meu pai e Ali o abor-

daram com perguntas, tinha se escondido na casa de seus pais. Um salva-

dor e tanto. Senti as lágrimas queimarem meus olhos, mas as reprimi. A

única pessoa que poderia me salvar, ao que parecia, seria eu mesma.

— Safwan não precisa me defender — eu disse, apesar de minha

voz tremer e ainda me recostar em Maomé, em busca de apoio. — Posso

falar por mim mesma.

— Deixe-a descansar — disse Maomé. Ajudou-me a andar até a

cama, mas, antes que eu me deitasse, Ali insistiu para que eu contasse

a minha versão. A umma não podia esperar para saber a verdade, disse

ele. Outra aglomeração estava se formando do lado de fora da mesquita

nesse exato momento, exigindo respostas.

Fechei os olhos, relembrando a história que eu e Safwan tínha-

mos combinado contar a caminho de casa, durante meus momentos

de lucidez.

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— Estava procurando o meu colar de ágata — falei, tateando as

pedras lisas. — Meu pai me deu este colar no dia do meu casamento.

Lembra-se? — Olhei para Maomé. — Signifi ca tanto para mim quanto

os colares que você deu para as suas outras esposas.

Sua expressão não se alterou. Prossegui, inventando uma história

que começava comigo fugindo para trás das dunas para me aliviar e de-

pois retornando ao meu hawdaj. Enquanto esperava ser erguida para o

lombo do camelo, passei a mão pelo pescoço e senti falta do colar.

— Procurei em minha roupa, no piso do hawdaj, no solo. Teria pe-

dido ao condutor para me ajudar, mas ele estava dando de beber aos

camelos. — Minha voz tropeçava como pés delicados em um solo ro-

choso. Respirei fundo, tentando me acalmar. — Fiz o caminho de volta

às dunas. Remexi na areia e, quando estava prestes a desistir, encontrei-o.

Corri de volta para a caravana, mas vocês estavam longe. Pareciam for-

migas se arrastando em fi la única. Sabia que nunca os alcançaria. Então

me sentei e esperei que alguém voltasse para me buscar.

— Alguém? — Ali apontou seu nariz pontudo para mim, farejando

mentiras. — Você quer dizer, Safwan.

— Yaa Ali, deixe-a terminar — disse Maomé.

— Na verdade, isso não passa de uma história. — Ali cuspiu no

chão e enxugou a boca com as costas da mão, olhando furioso para

mim. — Você está nos fazendo perder tempo com essa fantasia, quando

todos conhecemos a história verdadeira.

— Ali, por favor — interrompeu Maomé, mais rispidamente. Ali cru-

zou os braços e espremeu os lábios. Minha coragem vacilou diante do seu

escrutínio. Saberia ele realmente por que eu tinha perdido a caravana?

Talvez fosse melhor eu contar a verdade, mas um rápido olhar para a ex-

pressão preocupada do meu marido me fez mudar de ideia. Até mesmo

Maomé, que me conhecia como se nossas almas fossem uma só, não

compreenderia por que eu havia arriscado tanto por tão pouco. E talvez

não acreditasse quando eu lhe dissesse que continuava pura.

— Você se sentou para esperar — disse Umar. — O que aconteceu a

seguir nessa história improvável?

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Fechei os olhos, quase desmaiando. Qual era a história? Eu e Safwan

a havíamos ensaiado no caminho de volta. Dei um longo suspiro, acal-

mando minha pulsação acelerada. A parte seguinte era verdade.

— Quando o sol se levantou, procurei me proteger sob um bosque

de tamareiras — prossegui. — Deitei para me refrescar. Depois devo ter

adormecido, pois a lembrança seguinte que tenho é da mão de Safwan

em meu ombro.

Umar resmungou.

— Ouviu isso, Profeta? Safwan ibn Al-Mu’attal agora toca em sua

mulher. Todos sabemos aonde isso leva.

— Por que vocês dois não vieram para casa nesse mesmo instante?

— vociferou Ali.

— Algo me aconteceu. — Essa parte também era verdade. — Sen-

ti uma cãibra lancinante, como uma facada no meu estômago. — O

olhar de Maomé pareceu se abrandar: um bom sinal, demonstrando

que acreditava em mim, pelo menos um pouco. — Eu não conseguiria

viajar, não enquanto estivesse com tanta dor. Então Safwan armou

sua tenda para que eu repousasse nela, protegida do sol.

Ali deu uma gargalhada.

— E onde fi cou Safwan enquanto você estava deitada na tenda? —

Ignorei-o, querendo apenas encerrar esse interrogatório e dormir.

— Vomitei por horas. Safwan tentou me ajudar. Deu-me água e me

abanou com uma folha de tamareira. Por fi m, ele fi cou assustado e vol-

tamos para buscar ajuda. — Não contei como ele quase me fi zera gritar

com sua mão me apertando. Alá está nos punindo, gemera ele repetida-

mente. Junto com a água, comecei a vomitar bile e remorso. Leve-me

para Medina, falei mal-humorada. Antes que Alá mate nós dois.

Quando encerrei a minha história, Ali estava de cara fechada.

— Essa não é a história toda — disse ele. — Por que Safwan fi cou

para trás da caravana? Não seria porque ele sabia que você o estaria

esperando à sombra das tamareiras?

— Pedi a Safwan que fi casse para trás — replicou Maomé. — Para

vigiar o retorno da tribo de Mustaliq ao seu acampamento.

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— Ela fl erta com ele há anos!

Resfoleguei, como se suas palavras me divertissem em vez de gela-

rem meu sangue. Ele falava a verdade. Porém, quem mais sabia?

— Onde está a sua prova, Ali? — perguntei, encarando por um mo-

mento seu olhar irado, depois baixando os olhos por medo de que ele

visse o pânico neles. — A marca deixada por um único dedo acusador

é insignifi cante.

* * *

ENTÃO, COM A AJUDA DE Maomé, deitei-me na cama e dei as costas para

todos eles: o sempre desconfi ado Umar; Ali, tão ansioso por pensar o

pior de mim; e meu marido, que podia calar uma multidão enfurecida

com uma das mãos levantada, mas que permitia que esses homens me

difamassem. Por que eu tinha retornado? Fechei os olhos e sonhei, de

novo, com a fuga. Dessa vez, no entanto, eu sabia que era apenas um

sonho. Não havia como escapar do meu destino. Na melhor das hipó-

teses, se Alá quisesse, eu poderia moldar meu destino, mas não podia

fugir dele. Eu tinha aprendido isso com meus erros nos últimos dias.

Dormi mal, agitando-me por causa da febre e do arrependimento,

até que sussurros revolveram em minha cabeça como areia aguilhoan-

do, sacudindo-me de volta à consciência. Maomé e Ali estavam senta-

dos em almofadas do lado da minha cama, discutindo a meu respeito.

— Não acredito que A’isha seja capaz de fazer esse tipo de coi-

sa — disse Maomé. Sua voz soava como uma concha quebrada, frágil e

recortada. — Eu a amo desde que saiu do útero de sua mãe. Brinquei de

boneca com ela e suas amigas. Bebi do mesmo copo que ela.

— Ela tem 14 anos — replicou Ali, sua voz aumentando. — Não

é mais uma menina, embora seja muitos anos mais nova que você.

Safwan tem a idade muito mais próxima da dela.

— Silêncio, Ali! Não perturbe o repouso dela.

— Então, vamos a um lugar mais apropriado para conversarmos.

— Ouvi o farfalhar do tecido. Não vá, quis pedir, mas estava fraca de-

mais, de modo que gemi. Maomé pôs a mão na minha testa.

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— Sua pele está quente — disse ele. — Não posso deixá-la só.

— Então, terei de falar aqui.

— Por favor, primo. Prezo o seu conselho.

Prendi a respiração, temendo as próximas palavras de Ali. Que tipo

de castigo ele iria propor para mim e Safwan? Açoite? Banimento da

umma? Morte?

— Divorcie-se dela — disse Ali.

— Não! — Sentei-me, pronta para lançar meus braços ao redor do

pescoço do meu marido e abraçá-lo com toda a minha força. Maomé

acariciou minha testa úmida, seu sorriso mudando como uma sombra

sob um sol inconstante. — Não me abandone — falei, esquecendo-me

de Ali, a última pessoa que eu teria querido que me ouvisse suplicar.

— Não a estou abandonando, habibati. Mas resolvi mandá-la para a

casa dos seus pais por algum tempo. Abu Bakr e Umm Ruman vão curá-

la, se Alá quiser, longe dessas más línguas.

— Não se divorcie de mim.

Semanas depois, enquanto eu aguardava na casa dos meus pais o

veredicto de Maomé, estremeci ao me lembrar de como havia agarrado

sua mão e gritado na frente de Ali: “Eu o amo, habibi.”

Pronunciei essas palavras como nunca as tinha pronunciado an-

tes. Aprendera muito durante aquelas horas no deserto com Safwan, o

mesmo homem que havia prometido uma coisa para mim e feito outra,

assim como quando éramos crianças.

— Também a amo, minha querida. — Mas sua voz soou distante, e

seus olhos pareceram perturbados.

Deitei-me e segurei fi rme a mão dele, como se fosse uma boneca,

depois retornei lentamente ao sono, mas ainda cheguei a ouvir a voz de

Ali, urgente e grave.

— Pense na umma, em como sua trama é delicada — disse ele. —

Um escândalo como este poderia destruí-la. Tem de agir agora, primo.

Mande-a de volta para Abu Bakr, para sempre.

— Divorciar-me de minha A’isha? — A risada de Maomé ressoou

nervosa e fraca. — Antes eu arrancaria o meu próprio coração.

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— Ela está maculada! — disse Ali, aumentando o meu ódio por ele

a cada palavra que proferia. — Precisa se distanciar dela antes que este

escândalo também o comprometa. Muitos homens nesta cidade adora-

riam ver a sua queda.

Lentamente Maomé retirou sua mão da minha, deixando-me sozi-

nha à deriva no mar de meus medos.

— Não pode ver isso? — insistiu Ali. — Sei que pode. Então por

que parece tão preocupado? É fácil adquirir esposas. Você encontrará

outra noiva-menina.

* * *

SÉCULOS DEPOIS, O ESCÂNDALO AINDA assombra o meu nome. Mas aqueles que

zombaram de mim, que me chamaram de “al-zaniya” e “fahisha”, não me

conheciam. Nunca souberam a verdade sobre mim, sobre Maomé, sobre como

salvei a sua vida e ele salvou a minha. Sobre como salvei a vida de todos eles.

Se soubessem, teriam me criticado tanto?

É claro que agora sabem. Onde estamos agora, toda verdade é co-

nhecida. Mas ainda desconcerta o mundo de vocês. Onde vocês estão,

vocês, do tempo de hoje, os homens continuam querendo esconder

as mulheres. Eles as cobrem com mortalhas ou mentiras sobre serem

inferiores. Nós, no passado, eles apagam de suas histórias sobre Maomé,

ou as alteram com falsos relatos que queimam nossos ouvidos e o fundo

dos nossos olhos. Onde vocês estão, mães castigam suas fi lhas com um

único nome. “Sua A’isha!”, gritam, e as meninas se afastam com vergo-

nha. Não podemos escapar do nosso destino nem mesmo na morte. Mas

podemos reivindicá-lo e tentar moldá-lo novamente.

As garotas se afastam porque não sabem a verdade: que Maomé quis

nos dar liberdade, mas que os outros homens a tiraram. Que qualquer

uma de nós só se torna viva quando pode se apropriar de seu próprio

destino. Até poder escolher.

Tantas incompreensões. Aqui onde estamos, tomamos a verdade

com nossas mãos em concha, como água, tentando contê-la, obser-

vando-a escorrer. A verdade é escorregadia demais para ser segura. Ela

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tem que ser passada adiante, ou escorrerá como a chuva na terra, até

desaparecer.

Antes que desapareça, transmitirei minha história para vocês. A

minha verdade. A minha luta. E então, quem sabe o que acontecerá

depois? Se Alá quiser, o meu nome reconquistará o seu signifi cado. Dei-

xará de ser sinônimo de traição e vergonha. Se Alá quiser, quando a mi-

nha história se tornar conhecida, o meu nome evocará, mais uma vez, o

bem mais precioso, que reivindiquei para mim mesma e pelo qual lutei

até, por fi m, ganhá-lo do Profeta de Deus — não somente para mim

mesma, mas também para todas as minhas irmãs.

O signifi cado do meu nome, “A’isha”, é “vida”. Que volte a ser as-

sim. Para sempre.

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I

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Beduínos no deserto

Meca, 619

6 anos

F oi o meu último dia de liberdade. Mas teve início mais ou

menos 1.001 dias antes disso: um raio de sol e o meu grito de

alarme, atrasada de novo, o salto de minha cama, a fuga pelos

cômodos sem janelas da casa do meu pai, minha espada de madeira na

mão, meus pés descalços batendo no piso frio de pedras, estou atrasada

estou atrasada estou atrasada.

Lampiões tremeluziam sua luz fraca nas paredes, uma pobre substituta

do sol que eu amava. Quando passei pela cozinha, o cheiro forte e fermen-

tado de mingau de cevada me enjoou. Mais rápido, mais rápido. O Profeta

vai chegar logo. Se ele me vir, vai querer brincar, e sentirei falta de Safwan.

Mas eu devia saber que minha mãe me encontraria. Ela era mais

vigilante que o demônio.

— Aonde pensa que está indo? — gritou ela quando, no meio do

caminho, dei de encontro com a parede sólida formada por seu corpo

com as mãos nos quadris.

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Eu ia recuar, recuperar o fôlego e contorná-la, mas ela me agarrou

com mãos fortalecidas por anos fazendo pão. Seus dedos seguraram

meus ombros como garras de um falcão. Ela correu os olhos como mãos

rudes sobre meu cabelo emaranhado pelo sono, minha camisola cor de

areia marcada como um mapa da brincadeira do dia anterior: borrões

arredondados onde eu havia me ajoelhado na terra, escondendo-me de

inimigos beduínos. Um rasgão na manga causado na luta contra meus

captores, Safwan e nossa amiga Nadida. Manchas vermelhas do suco

de romã da refeição da véspera. Riscos de poeira da pedra imensa que

Safwan e eu tínhamos rolado, silenciosamente, para debaixo da janela

do nosso vizinho Hamal, o mais novo recém-casado de Meca.

— Você está imunda — disse minha mãe. — Não vai sair de casa

desse jeito.

— Por favor, ummi, estou atrasada! — repliquei, mas ela chamou

minha irmã.

— Nenhum fi lho meu vai a lugar algum parecendo um animal sel-

vagem — disse ela. — Vá vestir uma roupa limpa e se encontrar com

Asma no pátio. Ela vai domar esses seus cabelos desordenados enquan-

to busco água para lavar o cabelo da rainha de Sabá.

Ela estava se referindo à sua irmã de harém, Qutailah. Hatun de meu

pai, a “Grande Dama”, ou primeira esposa, Qutailah distribuía todas as

tarefas no harém. Alta, pele morena, e cada vez mais gorda, ela inve-

java a pele clara e as mechas ruivas e revoltas de minha mãe, além de

temer seu gênio temperamental. Desse modo, Qutailah estava sempre

lhe lembrando quem era a primeira na casa, chamando minha mãe

de durra, ou “papagaio”, o nome para a segunda esposa. E designava

à minha ummi as tarefas que geralmente cabiam às criadas, tais como

puxar imensos alforjes de couro cheios de água do poço de Meca. Era

uma tarefa humilhante, pois o poço de Zamzam fi cava no centro da

cidade e todos podiam ver minha mãe voltando para casa irritada, com

os alforjes pendendo de uma vara sustentada em seus ombros estreitos,

respingando água. Enfrentar esse trabalho sempre deixava minha mãe

mal-humorada. Não era a hora apropriada para discutir com ela.

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— Ouvir e obedecer — eu disse, fazendo uma mesura, mas quan-

do ummi desapareceu, de volta ao escuro, escapei para a cozinha.

Nossa vizinha Raha, sentada em um canto na sombra, se abanava

com uma palma de tamareira. Ao me ver, sorriu, mostrando suas

covinhas, e tirou de sua sacola uma romã tão brilhante e vermelha

quanto suas bochechas.

— Mas primeiro tem de me dar um beijo — me provocou, quan-

do tentei pegar a fruta da sua mão. Sentei-me em seu colo só por um

instante, o tempo sufi ciente para pressionar meu rosto no dela e sentir

o cheiro de alfazema no cabelo trançado. Ela esfregou a ponta do seu

nariz na ponta do meu, me fazendo rir e esquecer minha pressa, até

Asma entrar. Parti a romã ao meio, sem me importar com as sementes

que caíam no chão, fazendo um barulhinho como o de água, enquanto

disparava porta afora, escapando das mãos de minha irmã.

— Yaa A’isha, aonde está indo? — ouvi Asma chamar, como se ela

não soubesse a resposta. Ela e Qutailah, sua mãe, estavam sempre me

repreendendo por causa da minha “obsessão” por Safwan. Ele só vai lhe

causar problemas. Brincar com seu futuro marido incita o mau-olhado.

Fugi, ignorando os gritos de minha irmã, agitando minha espada

de brinquedo, levantando a areia quente e macia ao passar pela confu-

são de casas altas de pedras escuras, com terraços, entradas em arcadas

e telhados de palmas descoradas pelo sol; casas amontoadas, que me

observavam como velhos fofoqueiros com falhas nos dentes. Para além

delas, a caravana de Meca avançava pela cordilheira, rochosa aqui e ali,

sob o olho implacável do sol.

Encontrei Safwan abraçado com Nadida dentro da tenda de brin-

quedo dela, falando em sussurros.

— Marhaba, pombinhos — falei. O rosto comprido e fi no de Na-

dida enrubesceu. Comecei a rir, mas Safwan deu um pulo e me puxou

para dentro da tenda.

— Silêncio! — falou ele, irritado. — Quer que nos ouçam? — Indi-

cou com um movimento da cabeça a janela do recém-casado Hamal e,

debaixo dela, a pedra que tínhamos rolado para lá na noite anterior.

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— Eles estão lá, agora — disse Nadida. — Você tinha de vê-la. Tem

a minha idade e se casou com aquele bode velho. — Tocou na pequena

fi gura vermelha que pendia de um cordão em seu pescoço. — Que Hu-

bal me proteja do mesmo destino. — Naquele tempo, seus pais ainda

adoravam ídolos, não o Deus de verdade, como eu e Safwan fazíamos.

Safwan pôs um dedo nos lábios e puxou uma de suas orelhas gran-

des, escutando. Um grito agudo, penetrante, como o lamento das car-

pideiras de Medina, me arrepiou. Em seguida, ouvimos o resmungo de

um homem, e sua risada tão áspera quanto pele arranhada.

— Por Alá, ele a está matando? — perguntei.

Safwan e Nadida abafaram um risinho.

— Ela provavelmente queria estar morta — respondeu Nadida.

Safwan foi até a entrada da tenda e fez sinal para que eu o seguisse.

Agachados, fomos em silêncio até a grande rocha. Safwan levantou o

pé para subir nela, e um gemido alto vindo lá de dentro me atordoou:

esse Hamal era um gigante. Se nos pegasse olhando, nos esmagaria com

uma só mão. Puxei a manga de Safwan, mas ele se soltou e espiou pela

ponta da janela, depois sorriu com malícia para mim.

— Venha — sussurrou ele. — Não aja como um bebê. — Estendeu

a mão para me ajudar a subir, mas subi depressa como um lagarto, ig-

norando as batidas do meu coração, que, tinha certeza, seriam ouvidas

por Hamal. Quando meus olhos se ajustaram à penumbra lá dentro,

consegui ver somente roupas espalhadas pelo chão, depois bandejas

com comida pela metade, pratos sujos e um narguilé caído de lado. O

cheiro de cevada, carne deteriorada e maçã apodrecida misturava-se ao

odor úmido de suor.

Um gemido grave e regular atraiu meu olhar para a cama. Um fi o

de suor escorria pelas costas largas e nuas de Hamal enquanto ele erguia

e depois baixava o corpo na cama, com força, repetidamente. Olhei es-

pantada para o seu traseiro coberto de pelos, tão grande quanto a bexiga

de um bode, enquanto ele o tensionava e relaxava, a cada impulso. Por

baixo do velho, braços e pernas muito fi nos se projetavam como as pati-

nhas de um besouro debaixo de uma sandália, se debatendo e tentando

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segurá-lo. Uma voz de menina parecia soluçar, e seus calcanhares batiam

nos quadris dele. Arfei e segurei o braço de Safwan: ele a estava matando!

Mas ao olhar para Safwan, ele estava sorrindo largo, e quando a voz

de Hamal foi soando mais alta e seu corpo batendo mais rápido, Safwan

me fez abaixar. Sem sermos vistos por eles, ouvimos Hamal gritar “Ai! Ai!

Ai!”, como uma hiena. Tapei minha boca com a mão e olhei assustada para

Safwan, mas ele estava reprimindo o riso. Fingi rir também, sem querer

que ele percebesse o meu horror, enquanto a imagem do corpo da menina

espremido debaixo daquele animal peludo não saía da minha cabeça.

Recostei-me na parede, tentando manter a respiração regular e re-

zando para que Safwan não ouvisse meu estômago se revirando. Um

dia eu me casaria com ele — e faríamos isso? O seu sorriso era feroz,

seus olhos pareciam debochar de mim, como se estivesse pensando no

mesmo. Mas, ao contrário de mim, parecia gostar da ideia. É claro, ele

seria aquele que esmagava, enquanto eu seria a pobre menina embaixo,

soluçando e agitando meus braços e pernas.

— Isto é o casamento, A’isha — disse ele num sussurro, e tive von-

tade de fugir. Pensei na minha mãe: não era de admirar que quase sem-

pre estivesse de cara feia.

E então, como se eu a tivesse invocado, ummi surgiu virando a es-

quina, sua túnica escura esvoaçante como asas de um corvo agitado.

— O que está fazendo aqui? — berrou ela. Gritos vindos de dentro

do quarto a fi zeram olhar para cima, para a janela, e ela deu um grito

esganiçado, como se tivesse sido queimada. Olhei para Safwan, mas o

seu lugar na pedra estava vazio. Ele tinha desaparecido como um djinni,

me deixando enfrentar sozinha os insultos furiosos de minha mãe. Não

somente eu a tinha desafi ado saindo de casa sem me lavar, como ela

havia me encontrado na janela do quarto de Hamal ibn Affan, com o

atordoamento e o medo tateando, como mãos, o meu rosto.

Sorri para ela, a imagem pura da inocência, imaginei. Seu rosto pa-

receu se partir e se refazer, como pedaços de massa de pão.

Então Hamal ocupou a janela. E o senti me dar um cascudo. Gritei,

desci da pedra e corri para ummi. Uma parte minha queria se esconder

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nas saias dela — mas eu sabia que me entregar à minha mãe não era o

melhor. Depois que me segurasse, ela não me soltaria até deixar a marca

da sua mão no meu rosto e no meu traseiro.

— Mil desculpas, Umm Ruman — disse Hamal, pondo o cabelo

para trás da orelha. Tinha vestido uma túnica azul desbotada e a fecha-

do com uma faixa larga na cintura. Seu rosto estava sarapintado e com

gotas de suor. — Achei que tinha fechado a cortina.

— Tenho certeza de que fechou. — Minha mãe olhou para mim.

— Mas outra pessoa a abriu.

— Não — repliquei —, já estava aberta. — Ai! O que eu tinha dito?

Agora iam saber que eu estava olhando. Desejei que o calor do meio-dia

me fi zesse desmaiar, ou que eu pudesse desaparecer, como Safwan, em

um piscar de olhos. O rugido de Hamal me fez pular para as saias da

minha mãe, com mais medo dele do que dela.

— Se vai espionar, menina, é melhor aprender a mentir — disse ele

com raiva. Minha mãe pediu desculpas, mas ele disse para ela não se preo-

cupar: ele também tinha fi lhos. — Casei minhas fi lhas assim que o san-

gramento mensal delas começou. É a única maneira de evitar problemas.

Eu tinha ido para ver sua nova mulher?, perguntou-me. Sua beleza

era do que mais se falava em Meca.

— Yaa Jamila — disse ele, sem se virar. Seu nome verdadeiro era Fa-

zia, que signifi cava “vitoriosa”, mas Hamal o mudara, nos contou, para

que ninguém pudesse dizer: “A esposa de Hamal é vitoriosa.”

Uma menina pálida e frágil apareceu na janela ao lado de Hamal,

segurando um lençol ao redor do corpo e mantendo os olhos baixos.

Com os lábios inchados, ela sorriu timidamente, revelando enormes

dentes da frente, que se projetavam para fora. E seu nariz era tão

grande que cobria metade do rosto. Uma verdadeira beldade! Tive

vontade de rir, mas percebi as olheiras em seu rosto e o tremor da

mão que segurava o lençol.

Era realmente uma menina, mais nova do que minha irmã, e casada

com um homem da idade do meu pai. Parecia tão tímida e assustada que

tive vontade de estender a mão e acariciar sua testa, da maneira como

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Asma às vezes faz comigo, quando tenho pesadelos. Mas esse não era

nenhum pesadelo. Para Fazia-agora-Jamila, essa era a vida de uma mu-

lher, vida que teria de ser suportada com os olhos baixos e sem nenhu-

ma lamúria ou queixa. Não para mim, jurei. Se algum homem um dia

tentasse me machucar, eu revidaria. E quando eu tivesse alguma coisa a

dizer, não o faria com a cabeça baixa, como se tivesse vergonha. Se meu

marido não gostasse, que se divorciasse de mim, e eu nem me impor-

taria. Preferia ser uma leoa solitária, rugindo e livre, do que um pássaro

engaiolado, sem nem mesmo ter meu nome verdadeiro chamado.

— Ahlan, Fazia — eu disse, devolvendo-lhe seu nome. Ela levan-

tou a cabeça para olhar para mim, com um sorriso que tinha alcan-

çado seus olhos.

Minha mãe se despediu rapidamente e me puxou para casa, ofe-

gando como se eu fosse tão pesada e grande quanto Hamal. Com seus

dedos fortes e raivosos ela apertou minha mão com tanta força que

achei que meus ossos se quebrariam. Eu seria açoitada, sem dúvida, mas

não estava pensando nisso. Simplesmente repassava mentalmente as

imagens que tinha acabado de ver, de Hamal em cima da frágil menina.

Aquilo aconteceria comigo um dia — mas não, graças a Deus, com um

homem tão mais velho do que eu. A menina devia ter sentido dor, pela

maneira como tinha gritado e agarrado tão impotentemente as costas

de Hamal. Nenhum homem ou mulher exerceria esse tipo de poder

sobre mim. Exceto, por enquanto, minha mãe.

Dentro de casa, ummi largou minha mão que latejava, e eu a massa-

geei, mas me recusei a me retrair na sua frente.

— O que você estava fazendo debaixo daquela janela? — pergun-

tou ela.

— Sentando-me à sombra.

— Sentando-se à sombra. — Cruzou os braços. — Sobre uma pedra

que estava, por acaso, debaixo da janela do quarto de Hamal ibn Affan?

E como essa pedra foi parar lá? Hamal disse que não estava lá ontem.

Arregalei os olhos o máximo que pude.

— Talvez ele não a tivesse notado antes.

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— Estava espiando! — gritou ela. — E levou Safwan para espiar

também. — Seu olhar foi cortante, como se tivesse sido ela, e não

Qutailah, que tivesse me advertido para fi car longe de Safwan. Como

se ela não tivesse zombado das superstições de mau-olhado de sua irmã

de harém. O conhecido é melhor do que o desconhecido, minha mãe tinha

dito, depois me mandara brincar com ele.

— Estávamos sentados, só isso. Não sabíamos que eles estavam lá.

— Basta! — Ela levantou a mão bem no alto. — Eu devia lhe dar

uma surra para que parasse de mentir. — Seu cabelo ruivo parecia

em chamas.

Sem me mexer, esperei que me atingisse. Como Safwan fi caria orgu-

lhoso de me ver enfrentar meu castigo sem demonstrar o menor sinal

de medo! Quando ele partir de Meca para se unir aos beduínos, estarei

pronta para ir com ele.

Em vez de me bater, a mão de ummi baixou lentamente e afastou o

cabelo da minha testa. Examinei seu rosto. O que ela iria fazer comigo?

Seus lábios se torceram no canto, reprimindo alguma coisa.

— Tinha quase me esquecido da razão pela qual fui procurá-

la — disse ela. — Você vai fi car confi nada em casa, A’isha. Está proibido

que garotos ou homens adultos a vejam, a não ser que sejam parentes.

— Ficar dentro de casa? — franzi o cenho. — Mas eu e Safwan va-

mos ao mercado ver a caravana que vem da Abissínia.

— Não haverá mais idas ao mercado, nem a lugar nenhum, sem

mim ou sem seu pai — replicou ela, no tom cortante de voz que usava

para dar uma ordem. — A partir de hoje, você está em purdah.

— Purdah? — Meus sentidos se aguçaram. — Isso é para Asma, não

para mim.

— É também para você, a partir de agora.

— O quê? — Fiquei boquiaberta, como um peixe que acabou de ser

pescado, tentando respirar. — Por quanto tempo?

— Até seu marido ordenar o contrário.

— Meu marido? — Pela primeira vez na vida, levantei a voz para

minha mãe. Sabia que apanharia por meu tom agudo, mas também sa-

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bia que tinha de convencê-la a mudar de ideia já, antes que ela fechasse

a boca com força, se recusando a falar, sinal de que sua decisão estava

tomada e nenhum argumento a faria voltar atrás.

— Safwan não desejaria que me escon desse — implorei. — Pergun-

te a ele, ummi. Ele vai lhe dizer.

— Safwan não tem nada a ver com isso — replicou minha mãe.

Do pátio, ouviu-se a voz de Qutailah: “Yaa durra! Papagaio! Onde está

a minha comida?”

O suspiro de ummi arranhou como uma lâmina em uma pedra

quando ela se virou de costas para mim.

— Quando você se casar, fi lha, faça de tudo para ser a primeira esposa

em sua casa. Não deixe de controlar o seu destino, ou ele a controlará.

A batida do meu coração, assim como os cascos de cavalos assus-

tados, me mandaram correndo para ela, tonta com a necessidade de

impedir esse aprisionamento antes que começasse. Em purdah, eu não

teria permissão para pisar fora da casa dos meus pais até o dia do meu

casamento. Ficaria presa naquele túmulo frio e assustador até o dia em

que começasse a menstruar, dali a seis anos ou mais, sem nenhum Sa-

fwan com quem brincar, sem nenhum garoto, só as garotas tolas que

vinham, com suas mães, nos visitar.

— Não é justo me trancar! — lancei os braços ao redor da cintura

de minha mãe e a segurei fi rme quando ela tentou se afastar. — Está me

castigando, não está? Eu fi z você fi car envergonhada na casa de Hamal

e agora quer se vingar.

— Largue-me!

— Não até que mude de ideia. Quero sair, ummi. — Agarrei-a mais

fi rme, insistindo na ideia de que essa era apenas mais uma de suas brinca-

deiras cruéis. Tinha medo de que, se a largasse, eu despencaria no chão.

Anos carregando água e fazendo pão tinham transformado minha

pequenina mãe em uma mulher surpreendentemente forte. Ela esten-

deu o braço para trás e segurou meus braços com tal força que pensei

que fosse parti-los. Mas continuei ali agarrada, até ela me soltar e me

imobilizar no chão.

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— Vai fazer como mando, a não ser que queira ser açoitada — falou

rispidamente. — Esse confi namento não é um castigo.

Estirada aos seus pés, olhei para seu rosto enrubescido pelo esforço

e percebi que ela não ia mudar de ideia. Senti como se mãos estivessem

se fechando ao redor de meu pescoço, espremendo lágrimas dos meus

olhos, roubando meu ar.

— Não quero fi car presa dentro de casa! — queixei-me. — Vou

morrer nesta velha caverna abafada.

— Alá abençoou esta família hoje. — A voz de minha mãe soou

dura e fria como pedras. — Mas a honra de uma garota pode ser facil-

mente roubada. Se a perde, é como se estivesse morta.

Qutailah chamou-a de novo, dessa vez com um tom de voz mais

severo: “Por Alá, você vai limpar a latrina se eu precisar pedir minha

comida de novo!” Minha ummi virou-se e se foi com passos rápidos — e

ombros caídos — para a entrada do pátio.

— Quando eu me casar com Safwan, vamos fugir para o de ser-

to! — gritei para ela. — E você nunca mais vai me ver! E então vai se

arrepender!

Ela parou e me lançou um demorado e último olhar.

— Não pense que sabe o que Alá planejou para você, A’isha. — Pres-

sionou os lábios, virou-se de costas e saiu da casa.

Fiquei de pé e corri atrás dela, mas me detive na arcada para o pá-

tio. Lá fora, as folhas rendilhadas da nossa árvore ghaza’a pendiam dos

galhos como se estivessem tristes. Embaixo, minha mãe de lábios sotur-

nos servia uma porção grande de cevada a Qutailah, que a repreendia

por tê-la cozinhado demais.

— Depois de todos esses anos ainda não aprendeu a preparar a co-

mida, Umm Ruman? — disse ela com uma expressão de desdém, olhan-

do para minha mãe como se ela cheirasse mal. — Um bebê sem dentes

comeria este mingau ensopado. Pedi que fi zesse uma comida de bebê?

As mulheres que estavam visitando Qutailah começaram a rir com

escárnio, mas minha mãe continuou a servir a cevada, os olhos baixos,

embora eu pudesse ver seu rosto avermelhar-se. Senti minhas boche-

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chas se enrijecerem onde minhas lágrimas tinham secado. Eu me pre-

parei para correr para o pátio e defender minha ummi, mas sabia que só

iria piorar a situação para ela — e para mim. Em vez disso, corri para o

meu quarto, onde joguei meus brinquedos nas paredes, gritei e esmur-

rei minha cama com força.

Enterrada viva nesta casa pelo resto da minha vida.

Eu sabia que isso aconteceria um dia, mas não quando tivesse ape-

nas 6 anos. Somente poucas meninas fi cavam noivas ao nascer, como

eu, mas nunca eram confi nadas antes de começarem a menstruar. Co-

meçar o purdah na minha idade era totalmente fora do comum.

Um dia, Safwan e eu iríamos para longe de Meca e de todas as suas

tradições insensatas. Já tínhamos feito o juramento com sangue, furan-

do nossos dedos, passando um no outro e jurando partir quando nos

casássemos, para nos tornarmos beduínos no deserto. Nada poderia que-

brar esse voto. Se tentassem me trancafi ar para sempre, eu fugiria. Com

os beduínos, seria livre para viver a minha vida como eu quisesse, livre

para correr, gritar e lutar em batalhas, para fazer minhas próprias esco-

lhas. Pois no deserto não importava se você era mulher ou homem. No

deserto, não havia muros. Controle o seu destino, ou ele a controlará.

Com esses pensamentos, minhas mãos agarradas ao travesseiro,

meu corpo tão rígido e reto como uma fl echa, saí do meu mundo

infeliz para entrar em sonhos profundos e excitantes: cavalgar com o

vento batendo em meus cabelos e uma espada em minha mão, fi nal-

mente livre.

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