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1 A LAICIZAÇÃO DO SÃO PEDRO DE RETIROLÂNDIA BA: 1966 2010. Renicio Lima da Silva 1 Resumo O presente artigo faz uma análise da festa de São Pedro no município de Retirolândia BA, demonstrando que esta festividade de nomenclatura religiosa é celebrada em um espaço laico e profano, sem nenhuma vinculação religiosa com relação à doutrina oficial da Igreja Católica, tornando-se então na maior manifestação da cultura popular deste lugar. Descreve também a origem desta festa, apontando as mudanças e permanências na maneira de comemorá-la entre 1966 e 2010, discutindo as múltiplas relações que ocorrem durante a sua execução, bem como a expectativa da comunidade local em torno de sua realização no mês de junho. Palavras chaves: Cultura Popular; Festa; São Pedro; Retirolândia. Abstract This article make an analysis of the of St. Peter party in the city of Retirolândia - Bahia, demonstrating that this naming religious festival is celebrated in a secular and profane space, with no religious affiliation with respect to the official doctrine of the Catholic Church, becoming then the greatest manifestation of popular culture of this place. It also describes the origin of this party, pointing out the changes and continuities in the way they celebrate it between 1966 and 2010, discussing the multiple relations that occur during its execution, as well as the expectation of the local community around its performance in the month of June. Keywords: Popular Culture; Party; St. Peter; Retirolândia. INTRODUÇÃO Ao longo da história da humanidade, os seres humanos, nas mais variadas sociedades e de diversas formas, buscam expressar seus sentimentos, emoção ou espírito. A cultura de 1 Graduando em História pela Universidade do Estado da Bahia UNEB. VIII semestre. Pesquisa desenvolvida sob orientação da professora doutora Suzana Maria de Sousa Santos Severs.

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1

A LAICIZAÇÃO DO SÃO PEDRO DE RETIROLÂNDIA – BA:

1966 – 2010.

Renicio Lima da Silva1

Resumo

O presente artigo faz uma análise da festa de São Pedro no município de Retirolândia – BA,

demonstrando que esta festividade de nomenclatura religiosa é celebrada em um espaço laico

e profano, sem nenhuma vinculação religiosa com relação à doutrina oficial da Igreja

Católica, tornando-se então na maior manifestação da cultura popular deste lugar. Descreve

também a origem desta festa, apontando as mudanças e permanências na maneira de

comemorá-la entre 1966 e 2010, discutindo as múltiplas relações que ocorrem durante a sua

execução, bem como a expectativa da comunidade local em torno de sua realização no mês de

junho.

Palavras – chaves: Cultura Popular; Festa; São Pedro; Retirolândia.

Abstract

This article make an analysis of the of St. Peter party in the city of Retirolândia - Bahia,

demonstrating that this naming religious festival is celebrated in a secular and profane space,

with no religious affiliation with respect to the official doctrine of the Catholic Church,

becoming then the greatest manifestation of popular culture of this place. It also describes the

origin of this party, pointing out the changes and continuities in the way they celebrate it

between 1966 and 2010, discussing the multiple relations that occur during its execution, as

well as the expectation of the local community around its performance in the month of June.

Keywords: Popular Culture; Party; St. Peter; Retirolândia.

INTRODUÇÃO

Ao longo da história da humanidade, os seres humanos, nas mais variadas sociedades

e de diversas formas, buscam expressar seus sentimentos, emoção ou espírito. A cultura de

1 Graduando em História pela Universidade do Estado da Bahia – UNEB. VIII semestre. Pesquisa desenvolvida

sob orientação da professora doutora Suzana Maria de Sousa Santos Severs.

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um povo é manifestada “em toda a sua riqueza e multiplicidade de formas de existência”.2

Essas variadas formas de existência possibilitam a sociedade contemporânea múltiplas

maneiras de explicitar seus desejos, pensamentos, gestos, opiniões, ainda que cada indivíduo

tenha a sua maneira única de explicitar tais sentimentos. Segundo o antropólogo José Luiz dos

Santos, “cada realidade cultural tem sua lógica interna, a qual devemos procurar conhecer

para que façam sentido as suas práticas, costumes, concepções e as transformações pelas quais

estas passam”.3 Assim, procurando conhecer essas realidades e suas transformações, percebe-

se que a cultura, bem como seu estudo, não se mantém estática no decorrer dos anos, mas se

modifica, se renova, evolui e se diversifica, contribuindo no combate de preconceitos,

buscando a necessidade de relacionar as manifestações e dimensões culturais com as

diferentes classes e grupos que a constituem.

Como afirma Santos,4 apesar da existência de tendências gerais constatáveis nas

histórias das sociedades, não é possível estabelecer sequências fixas capazes de detalhar as

fases por que passou cada realidade cultural. Cada cultura é o resultado de uma história

particular, diante disso é que passaram a surgir em manifestações culturais aparentemente

idênticas formas diferenciadas de comemorações em lugares muitas vezes não tão distantes

umas das outras.

O Brasil historicamente é conhecido por possuir uma grande diversidade cultural. “É

importante considerar a diversidade cultural interna a nossa sociedade; isso é de fato essencial

para compreendermos melhor o país em que vivemos”.5 A diversidade cultural brasileira,

assim como em muitos lugares do mundo não apresenta as mesmas características simbólicas,

pois cada região do país apresenta peculiaridades próprias e tradições muitas das vezes

específicas do lugar, tornando o país multicultural. O Brasil que, ao mesmo tempo, é uno pela

nacionalidade de seus habitantes, torna-se também extremamente diverso culturalmente.

Fatores como a geografia, o clima e o desenvolvimento social do lugar ou de uma região são

extremamente relevantes para a formação de aspectos diferenciados. Muitas manifestações

culturais que ocorrem no sul do Brasil são totalmente desconhecidas para muitos habitantes

do nordeste, por exemplo, e vice-versa.

Com o aperfeiçoamento e o desenvolvimento das ciências humanas no século XIX,

começou a existir uma preocupação sistemática em estudar as culturas humanas. “As

preocupações com cultura se voltaram tanto para a compreensão das sociedades modernas e

2 SANTOS, José Luiz dos. O que é cultura. 14. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. p. 07.

3 Idem, p. 08. 4 Idem, p. 12. 5 Idem, p. 19.

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industriais quanto das que iam desaparecendo ou perdendo suas características originais”,6

possibilitando aos estudiosos compreenderem melhor as diversas formas de cultura, bem

como a sociedade na qual está inserida.

Para José Luiz dos Santos,

cultura está muito associado a estudo, educação, formação escolar. Por vezes

se fala de cultura para se referir unicamente às manifestações artísticas,

como o teatro, a música, a pintura, a escultura. Outras vezes, ao se falar na cultura da nossa época ela é quase que identificada com os meios de

comunicação de massa, tais como o rádio, o cinema, a televisão. Ou então

cultura diz respeito às festas e cerimônias tradicionais, às lendas e crenças de um povo, ou a seu modo de se vestir, à sua comida, a seu idioma. A lista

pode ser ampliada.7

Diante disso, nota-se que a cultura está claramente associada à vida social dos povos

ou de determinados povos, faz parte do cotidiano, pois está enraizada historicamente nos

hábitos, costumes, práticas e modo de vida pessoal ou coletivo. Diante da complexidade do

termo cultura, percebe-se que a mesma está interrelacionada desde as mais remotas tradições,

a exemplo de povos indígenas que ainda não sofreram as influências dos hábitos do “homem

branco” até as moderníssimas invenções humanas, como as tecnologias implantadas pelos

modernos meios de comunicação, perpassando pelas variadas comemorações festivas, sendo

festas tradicionais ou não, estão recheadas de diversas concepções culturais.

Nesse sentido, devemos entender a cultura como algo dinâmico, que se ressignifica

constantemente. Existe uma tendência de buscar uma diferenciação entre as muitas formas de

“culturas”, como se cada uma delas fosse uma realidade estanque, parada, fechada. Pelo

contrário, a cultura e suas manifestações passam por modificações, às vezes perdendo

características originais, outras vezes se repaginando, essas variações ou modificações tornam

a cultura de um povo algo a ser preservado por longos anos.

As discussões sobre cultura abrangem vários aspectos da vida em sociedade. Para

Santos,

cultura pode por um lado referir-se à alta cultura, à cultura dominante, e por

outro, a qualquer cultura. No primeiro caso, cultura surge em oposição à

selvageria, à barbárie; cultura é então a própria marca da civilização. [...]. No

segundo caso, pode-se falar de cultura a respeito de qualquer povo, nação, grupo ou sociedade humana.

8

6 SANTOS, José Luiz dos. O que é cultura. 14. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. p. 21. 7 Idem, p. 22. 8 Idem, p. 35.

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Assim, percebemos a multiplicidade de significados do que seja cultura, porém, esse

trabalho procurará se ater ao segundo caso (pode-se falar de cultura a respeito de qualquer

povo, nação, grupo ou sociedade humana), pois entendemos que o São Pedro de Retirolândia-

BA como manifestação cultural se enquadra nesse caso, apesar de ser visível durante a

festividade algumas características da “cultura dominante”, a exemplo de lugares reservados

exclusivamente para “personalidades importantes”, como: autoridades políticas, artistas,

empresários e aliados políticos ou convidados do poder executivo. Que ficam durante

praticamente toda a festa em camarotes, palcos e barracas situadas em lugares estratégicos no

circuito da festa, obtendo uma visão privilegiada das apresentações artísticas sob a vigilância

atenta de seguranças particulares ou da guarda municipal.

Ciente de que os fatos acima fazem parte do cotidiano desta festa pelo menos desde a

década de 1980, nos atentaremos nas manifestações populares, ou seja, do povo, entendendo

povo aqui como agrupamento de pessoas extremamente diverso e heterogêneo, que se

concentram em frente aos palcos e seus arredores ao longo dos três ou quatro dias de festejos

no São Pedro de Retirolândia.

O município de Retirolândia localiza-se na microrregião de Serrinha, no chamado

Território do Sisal, a 220 km de distância da capital baiana. Sua população é estimada em

12.0599 habitantes, tendo como principal atividade econômica a extração e o beneficiamento

do sisal que, junto à agricultura e a pecuária, exerce papel relevante na economia local.

Retirolândia se emancipou politicamente do município de Conceição do Coité em 27 de julho

de 1962, através da Lei Estadual 1.75210

sancionada pelo governador Juracy Magalhães. Sua

população sempre foi majoritariamente declarada católica, apesar de haver um crescimento

razoável de adeptos das igrejas pentecostais, destacando-se a Assembleia de Deus e a

Congregação Cristã no Brasil, principalmente a partir da década de 1980.

Como fruto disso, a cada ano, no mês de junho, ocorre três grandes festas populares,

todas representadas por um simbolismo religioso católico muito visível: a celebração dos

santos. A primeira festa é em devoção a Santo Antônio, padroeiro da cidade, também

denominada Trezenário de Santo Antonio, aludindo aos 13 dias de festa que ocorre a partir de

01 de junho, e é organizada pela paróquia local. Outra festividade também de relevante

importância é o São João, de caráter religioso e profano, que se espalha por todo o município,

sendo em Retirolândia, realizado em caráter mais privado do que público, o que não ocorre,

por exemplo, na capital. No âmbito privado a festa acontece principalmente, por meio de

9 Dados do IBGE. Censo de 2010. 10 SILVA JUNIOR, Enézio de Deus. Retirolândia: Memória e Vida. Curitiba: Juruá, 2007. p. 36 e 37.

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montagem de fogueiras em homenagem a São João Batista, reunindo na maioria das vezes

familiares e amigos. Já no âmbito público e laico, ocorrem as quadrilhas juninas, promovidas

quase em sua totalidade pelas escolas particulares, estaduais e municipais, sendo esta última

patrocinada, na maioria das vezes, pela Prefeitura. Apesar da festa de São João ser religiosa,

ela tem pouca ou quase nenhuma participação da Igreja Católica, cuja execução fica a cargo

de uma parcela de alunos e professores católicos que participam e organizam essas quadrilhas,

pois na organização desses eventos os professores e estudantes evangélicos não participam.

A terceira e maior festa do município de Retirolândia é o São Pedro. Sobre esta

tratamos neste artigo, procurando analisar a relação entre espaço religioso e espaço laico; o

São Pedro como principal manifestação cultural do município; descrição histórica da festa,

procurando apontar as mudanças e permanências ocorridas ao longo de suas realizações.

O tema deste trabalho justifica-se pelo fato da necessidade do registro histórico desta

festividade, que é a maior manifestação cultural do município de Retirolândia, além de

procurar dá uma resposta a uma problemática que sempre me fez refletir: por que essa festa de

nomenclatura religiosa não condiz com a liturgia da religião católica durante sua execução?

Por conta disso, procuramos fazer uma análise histórica da festa, para perceber alguns

elementos contraditórios durante sua realização, uma vez que a denominação da festa está

imbuída de um simbolismo religioso. No entanto, durante sua celebração é perceptível o

distanciamento das práticas litúrgicas do cristianismo oficial católico e se caracteriza por ser

um espaço de lazer, diversão e descontração extremamente laico desde a sua origem.

Não há muitos historiadores que tenham se dedicado ao estudo das festas nesta região.

No entanto, gostaríamos de citar a dissertação de mestrado da historiadora Iara Nancy Araújo

Rios, cujo tema é Nossa Senhora da Conceição do Coité: poder e política no século XIX. Essa

dissertação faz uma análise da origem da cidade de Conceição do Coité, bem como a origem

da devoção a Nossa Senhora da Conceição, padroeira do referido município, observando as

relações de poder que envolvia a sociedade coiteense no século XIX. Outro trabalho recente é

da graduada em História Jacqueline Rios e Araújo em seu Trabalho de Conclusão de Curso –

TCC denominado Imagens da festa de São Pedro de Retirolândia: uma análise historio –

fotográfica que analisou a interferência política na festa de São Pedro de Retirolândia por

meio de fotografias, demonstrando como a política fez a apropriação da festa. Citamos ainda

o livro memorialista Retirolândia: Memória e Vida, do advogado Enézio de Deus Silva

Júnior, que narra o cotidiano da sociedade retirolandense desde os primórdios, descrevendo os

principais fatos e festas que aconteceram nesta cidade e que será uma das nossas fontes de

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pesquisa. Esses trabalhos ajudaram a refletir sobre o tema deste artigo, motivando-nos a

analisar a festa de São Pedro sobre esta perspectiva.

Apesar de em âmbito geral as festas terem sido objeto de estudos de memorialistas,

viajantes e literatos que já desde o último quartel do século XIX buscavam nas manifestações

lúdicas os fundamentos da nacionalidade brasileira, seguidos por toda uma geração de

estudiosos interessados na chamada pesquisa folclórica, dentre os quais Mário de Andrade e

Câmara Cascudo, somente em meados da década de 1980, na esteira da valorização da

história da vida privada e da perspectiva de politização das práticas cotidianas é que a

historiografia brasileira incorporou definitivamente os fenômenos festivos como campo

historiográfico específico.11

Segundo Arrais Barroso, esse crescente interesse pelo estudo das

festas, rituais e fenômenos de sociabilidade coletiva em nossa historiografia são devedores,

sobretudo, da influência da obra de autores como Mikhail Bakhtin, Norbert Elias, Ernest

Kantorowics, Victor Turner e José Antonio Maravall.12

A festa de São João, segundo Alceu Maynard Araujo é a principal festa do solstício de

inverno realizada em todo território brasileiro e as demais são satélites.13

No entanto, no

município de Retirolândia a festa junina que tem maior visibilidade, repercussão e foliões é o

São Pedro. Assim, contrariamente ao que Alceu Maynard Araujo afirma, o São Pedro em

Retirolândia não é uma festa satélite em comparação ao São João, e sim a festa mais

importante do mês de junho no município.

De acordo com este folclorista, a festa é uma das manifestações da vida social nos

agrupamentos humanos. Neste sentido, as manifestações festivas remontam a eras antigas e

está associada a um elemento religioso, manifestando agradecimentos a entidades

supraterrenas ou divindades que não permitiam que as pragas ou malefícios nas plantações

destruíssem o plantio. Assim, “à festa, com o correr do tempo, foram se associando outros

elementos, tais como padroeiros, entidades sobrenaturais, mais tarde substituídos pelos santos

do hagiológio católico romano”.14

Com o passar do tempo, foram sendo incorporadas às

festividades outras práticas que extrapolam o caráter religioso. Para Araujo

o homem do meio rural usa três vocábulos distintos para designar as festas. Festa é a atividade de cunho religioso, como, por exemplo: festa de Nossa

Senhora do Rosário, festa de Nossa Senhora da Penha, festa de São

11 JANCSÓ, István. & KANTOR, Íris. 2001 Apud Gomes, 2008. 12 GOMES, José Eudes Arrais Barroso. Quando o sertão faz a festa, a monarquia se faz presente: festas e

representações monárquicas na capitania do Ceará (1757 – 1817). 13. ed. Rio de Janeiro. Revista Cantareira.

2008. 13 ARAUJO, Alceu Maynard. Cultura Popular Brasileira. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007. p. 12. 14 Idem, p. 12.

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Sebastião, padroeiro de várias cidades tradicionais do Brasil. Emprega também para aquelas de sentido religioso-profano, tais como: festa do

Mastro, festas das canoas, festas dos congos. [...]. Emprega-se festança para

designar a festa profana em que há muita bebedeira, gritaria, como as que

são realizadas após as carreiras de cavalos, os mutirões de estrada, as gineteadas gaúchas, etc.

15

Levando em consideração a análise dos variados tipos de festa proposto pelo

antropólogo Alceu Maynard Araujo, o São Pedro de Retirolândia se enquadra numa festa

religioso-profana com características de uma festança, em um espaço laico.

Pedro, um dos doze apóstolos de Jesus Cristo, posteriormente denominado São Pedro

pela Igreja Católica, antes de ser chamado por Jesus para ser apóstolo exercia a atividade de

pescador, conforme relatos neotestamentário.16

Uma pequena biografia de Pedro, diz que:

Pedro era um bravo homem. Nascido em Bethsaida, na Galiléia, filho de João, ele

chamava-se Simão de nome verdadeiro. Era pescador e possuía uma barca onde ele

pescava com seu irmão André no Mar da Galiléia. Um dia viu passar Jesus e seguiu-

o. São Mateus conta assim o acontecimento: “como seguia ao lago da costa do Mar

da Galiléia, Jesus viu os dois irmãos, Simão, chamado Pedro, e André, seu irmão,

que lançavam uma rede ao mar, porque ambos eram pescadores”. Ele disse: segui-

me e Eu vos farei pescadores de homens. Imediatamente deixaram as redes e o

seguiram. Pedro foi o primeiro dos doze a tomar o seu papel até ao fim, apesar das

suas fraquezas humanas. [...]. No jardim das Oliveiras, quando os soldados quiseram

prender Jesus, Pedro que tinha sangue vivo nas veias, cortou a orelha direita de Malchus, [...]. Mais tarde pecava negando três vezes, e acabava por chorar essa

negação amargamente. Testemunhou a ressurreição de Jesus e foi o primeiro a

anunciá-la. Saiu da Galiléia, sua terra natal, foi para Jerusalém e Antióquia, e depois

foi para Roma onde pregou e converteu os humildes. Foi condenado e crucificado.

Achando que era pregado na cruz, pediu para o virarem de cabeça para baixo. É o

patrono dos pescadores. Uma imagem, um grande vulto, portuguesa, de 1746, deste

santo encontra-se no altar-mor da Igreja de São Pedro dos Clérigos do Recife.17

Nesse sentido, os festejos a São Pedro tenderiam a ocorrer predominantemente em

locais onde a economia pesqueira é bem desenvolvida e existe uma razoável quantidade de

pescadores que o escolhem como seu padroeiro. A origem da devoção a São Pedro em

Retirolândia é um fato curioso e instigante, pois este município não tem nenhuma relação

histórica com a prática da atividade pesqueira, além da ausência de fontes históricas que

sejam suficientes para realizarmos tal identificação. Segundo Enézio de Deus Silva Júnior,

no período em que é festejado (fim de junho, início de julho), há um motivo

histórico de relevância considerável no lugar: o aniversário do Sr. Pedro

15 ARAUJO, Alceu Maynard. Cultura Popular Brasileira. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007. p. 09. 16 Neotestamentário é um termo utilizado no meio teológico referente aos livros bíblicos do Novo Testamento,

ou seja, os livros bíblicos que foram escritos depois do nascimento de Jesus Cristo. 17 CRUZ, Antonio de Menezes e. Dicionário de Santos Venerados em Portugal e Brasil - Suas biografias,

figurações, símbolos e lendas. 4º volumes. Letra H a Z. Recife: [s. ed.], 1988. verberte: São Pedro, Apóstolo. p.

374 – 375.

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Pinheiro que, [...], detinha grande influência socioeconômica antes da emancipação política (e após esta também), na qualidade de empresário que

lidava com o sisal, tendo sido, na realidade, um dos introdutores da cultura e

da cadeia produtiva deste vegetal em nossa terra. Assim, ele e os seus

familiares costumavam realizar grandes comemorações para festejar o seu natalício. Por isso, São Pedro já era da devoção deste cidadão e o período,

pois, já contava com um lastro muito bom de motivação de parte da

comunidade.18

Com isso, nota-se que em localidades onde a atividade pesqueira é irrelevante para a

economia local, a exemplo de Retirolândia, provavelmente a devoção a São Pedro surgiu por

meio de homenagem de um homônimo do santo ou por pessoas que tenham nascido no dia 29

de junho, dia de São Pedro. Nesse contexto, a festa se apresenta como religiosa no âmbito

privado. Com o passar dos anos, essa festa foi ganhando proporções maiores e,

consequentemente perdendo as características religiosas.

As fontes utilizadas, além da obra memorialista, são as fontes orais, construídas a

partir das entrevistas com pessoas que acompanham a festividade há vários anos. A expansão

da história oral possibilitou ao pesquisador obter informações que não são encontradas em

documentos convencionais, sendo um mecanismo metodológico que proporciona a análise de

fatos históricos que não seria possível sem essa técnica. No caso da festa de São Pedro de

Retirolândia, a respeito da qual não encontramos fontes documentais, necessitamos recorrer à

oralidade como fonte primordial para a produção deste trabalho de pesquisa.

Entrevistamos seis pessoas que forneceram informações sobre a origem, mudanças e

permanências na forma de comemorar esta festa ao longo dos anos, sobre as quais, por

questões éticas, utilizamos nomes fictícios para identificá-las, visando preservar suas

identidades reais. Dentre as pessoas entrevistadas, duas são do sexo masculino e as demais do

sexo feminino. Destes, apenas uma mulher declarou-se evangélica; seu depoimento é

importante porque quando católica tinha atuação na paróquia, mas não na organização da

festa, transmitindo-nos sua impressão de então fiel sobre a origem da festa. Objeto de

destaque dentre os entrevistados é o padre Antonio Elias, atual pároco de Retirolândia, o qual

confirmou o caráter eminentemente profano da festa de São Pedro.

Neste artigo fazemos uma análise dos aspectos culturais, “religioso” e laico que estão

inseridos na realização da festa, procurando perscrutar a natureza da festa, se laica, religiosa

ou ambas, justificando assim, a nomenclatura deste trabalho: “A laicização do São Pedro de

Retirolândia,Ba: (1966 – 2010)”, descrevendo a trajetória e as transformações desta

18 SILVA JUNIOR, Enézio de Deus. Retirolândia: Memória e Vida. Curitiba: Juruá, 2007. p. 80.

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9

festividade desde a sua origem no município de Retirolândia no ano de 196619

até 2010,

buscando apontar as modificações ocorridas na sua realização ao longo destes 44 anos de

comemorações, tempo que é nosso recorte de pesquisa.

Assim, por meio das fontes históricas escritas e orais, com a contribuição teórica de

especialistas que publicaram trabalhos sobre cultura popular e história das religiões, sob a

orientação da Profª. Drª. Suzana Maria de Sousa Santos Severs do Departamento de

Educação, Campus XIV da Universidade do Estado da Bahia, proponho realizar este Trabalho

de Conclusão de Curso em Licenciatura em História pela mesma instituição.

A ORIGEM DA FESTA

No passado, doce alegria! /

Saudade canta e dança o baile de salão. /

Armazém grande, mercado, o brilho... / Festividade! No São Pedro, emoção. /

A fé tão nobre, formoso manto, /

sustenta a gente desta terra varonil. /

Luzente tempo tornou cidade /

um lugar belo da Bahia e do Brasil.20

A origem da festa de São Pedro em Retirolândia está associada com a fundação do

Centro Educacional Cenecista de Retirolândia, colégio vinculado a entidade mantenedora

Campanha Nacional de Escolas da Comunidade – CNEC, que mesmo tendo parceria com o

município cobrava uma taxa mensal dos seus estudantes. Esse colégio foi fundado em

Retirolândia em 1965, conforme afirma a senhora Cristina Anunciação:

o primeiro São Pedro foi realizado nos dias 28 e 29 de junho de 1966, no armazém

ligado à cordoaria do Senhor Pedro Pinheiro, localizado no Pocinho. Esta festa foi

promovida pelo ginásio de Retirolândia que fundado em 1965 sofria dificuldades

devido às condições econômicas da época, onde muitos pais não podiam pagar a

mensalidade.21

Então, essa festa que começou em 1966 com o objetivo de angariar recursos para a

manutenção da referida escola, surge em Retirolândia sem vinculação religiosa.

19

SILVA JUNIOR, Enézio de Deus. Retirolândia: Memória e Vida. Curitiba: Juruá, 2007. p. 80. 20 Trecho do Hino de Retirolândia. O Hino de Retirolândia foi oficializado através da Lei Municipal 166 de 13

de dezembro de 2005, tendo como autor Enézio de Deus Silva Júnior. 21 Entrevista concedida em 17 de agosto de 2011.

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10

A escolha da data para a realização da festividade foi pensada buscando não coincidir

com outras festas, pois no mês de junho ocorria diversas festas na região e o evento da escola

deveria ser realizada em uma data em que não tivesse ocorrendo nenhuma festa, tanto em

Retirolândia como em cidades vizinhas, pois a coincidência com outra festa poderia esvaziar a

festa da escola, que não obteria os resultados financeiros esperados. Nos anos anteriores a

1966, quando Retirolândia era distrito do município de Conceição do Coité, no dia 29 de

junho, o senhor Pedro Pinheiro já comemorava o seu aniversário, promovendo uma grande

festa em sua casa. Cristina Anunciação diz que:

a escolha da data, que até hoje prevalece, se deu por dois motivos: primeiro, porque o São João já era bastante festejado em toda região, e caso fosse realizada nesse

período não teria grandes possibilidades de se obter o êxito desejado; segundo,

porque o senhor Pedro Pinheiro, um dos colaboradores, era devoto de São Pedro,

tendo por costume comemorar o seu aniversário com grandes festas.22

Ao que se percebe, a festa que estava sendo organizada pela escola se aproxima da

festa de devoção/aniversário do senhor Pedro Pinheiro, para se aproveitar do fluxo de pessoas

que costumava frequentar, nesta data, a festa de Pedro Pinheiro, com a intenção de obter seus

objetivos (arrecadar fundos para a escola). Diante disso, a festa no dia de São Pedro viria a ser

mais cabível, pois satisfazia a ambos os interesses.

Durante a festa que foi animada pelos sanfoneiros Agdemar Rios e Osmário Rios, na

qual seriam apresentadas as alunas eleitas “Rainha do Milho e Princesa do Milho” em

reconhecimento pela primeira e segunda colocação na venda de “votos” (bilhetes para ajudar

a escola), demonstra que o que estava em jogo com a realização desta festa era a arrecadação

financeira em benefício da escola. Cristina Anunciação descreve:

esta festa foi alegrada pelos sanfoneiros Agdemar Rios e Osmário Rios, onde seria

apresentada a eleita “Rainha do Milho”, ou seja, a jovem que conseguisse vender

mais “votos”, cabendo o segundo lugar o título de “Princesa”. O peso da

concorrência não era a beleza, mas a contribuição feita à escola através dos “votos”

vendidos. [...]. Sendo eleita a primeira “Rainha do milho” e “Princesa”,

respectivamente, as alunas Elicidalva Freitas Modesto e Antonia Magnólia Oliveira

Rios.23

A primeira festa foi um sucesso, o que motivou o senhor Carlito Guimarães e a

senhora Jalmira Freitas Modesto, diretor e vice-diretora do Colégio Cenecista, juntamente

com os estudantes a se programarem antecipadamente para a próxima festa em 1967. As

alunas interessadas em serem eleitas “Rainha e Princesa do milho” logo começaram a vender

22 Entrevista concedida em 17 de agosto de 2011. 23 Idem.

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seus “votos”, criando na comunidade retirolandense uma expectativa na realização da

vindoura festa, além da curiosidade sobre quais estudantes seriam a “Rainha e Princesa do

milho”. Esses preparativos foram tomando dimensões acima do esperado, tanto é que,

próximo a data da festa, os diretores da escola, percebendo que o armazém de Pedro Pinheiro

não comportaria o grande número de pessoas que afirmavam o desejo de participar da festa,

transferiram a mesma para o espaço do mercado municipal. Acerca disso, Cristina

Anunciação conta que:

Em 1967, ocorreu a mudança da festa para o mercado municipal, devido o sucesso

do evento. Foi neste dia que aconteceu a apresentação da primeira quadrilha

retirolandense e a convite dos organizadores apresentou-se também uma quadrilha

de Valente. Com muita animação tocou para o povo dançar, entre outros o senhor

Aurelino Freitas de Valente – BA, animando a festa com sua banda. A aluna Regina

Célia de Almeida foi eleita “Rainha do Milho” e Maria Cleide Oliveira,

“Princesa”.24

Em 1968 a festa foi novamente realizada no mercado municipal, prédio localizado no

centro da cidade na Praça 27 de julho, em frente ao abrigo municipal onde até hoje estão em

funcionamento diversos bares, porém, o comércio de cereais que acontecia nesse espaço foi

transferido para o novo mercado municipal, no centro de abastecimento durante os anos 90.

Na festa de 1968 tornou-se pequeno o espaço do mercado municipal, devido a grande

quantidade de pessoas que participaram. Nesse ano a aluna Maria Élia de Oliveira foi eleita a

“Rainha do milho” e o “título de Princesa” ficou com a aluna Estelita Andrade, sendo ambas

campeãs na venda de “votos”.

No ano de 1969, os organizadores perceberam que não seria possível continuar com a

realização da festividade no mercado municipal, transferindo-a para um espaço mais amplo,

pois o número de participantes era cada vez maior. Diante disso, realizaram-na no grande

armazém de propriedade do senhor Antílio Araújo, onde futuramente seria construído o Clube

– Associação Cultural Itatiaia, ACI, que seria “palco” de muitos São Pedros, sendo eleita

neste ano “Rainha do milho” Edla Conceição de Andrade e Vera Lúcia Junqueira “princesa”,

ambas, alunas do Colégio Cenecista. Cristina Anunciação comenta que:

os anos passaram, a festa crescia em número de foliões e se tornava cada vez mais

importante. Em 1970, houve o último ano do concurso para a “rainha do milho”. O

título de “rainha” ficou com Creuza Pereira Cunha e Agda Alves Baldoino com o de

“princesa”.25

24 Entrevista concedida em 17 de agosto de 2011. 25 Idem.

Page 12: A laicização do são pedro de retirolândia   ba

12

Em 1970 ocorreu o último concurso da “Rainha e Princesa do milho”. Esse foi o

último ano que a escola estava à frente da organização e programação da festa, pois pela

dimensão e importância que a mesma estava tomando na cidade, a escola percebeu que não

tinha mais capacidade de continuar organizando a festa, passando esta a ser organizada pelo

poder público local.

Em 1971 a prefeitura se apropria do São Pedro, trazendo para Retirolândia o primeiro

trio elétrico para tocar na festa. Cristina Anunciação diz que:

o ano de 1971 foi um marco muito importante, pois o primeiro trio elétrico – o

Tapajós, apresentou-se na cidade, animando a festa. Ai, então, o ginásio de

Retirolândia não era mais responsável pela realização, mas toda a comunidade

representada pelas autoridades municipais, que se responsabilizaram a modernizar e

aperfeiçoar a cada ano.26

O ano de 1971 é um ano de ruptura na forma de comemorar a festa, os foliões passam

a festejar agora em praça pública, correndo e dançando atrás do trio elétrico, a partir das 16h

do sábado e domingo, logo após o encerramento das matinês infanto-juvenis que eram

realizados no Clube Itatiaia e perdurando, às vezes, até o raiar do dia.

Entre 1971 e 1977 a festa ocorre praticamente nos mesmos moldes, matinês infanto-

juvenis pela manhã e tarde nos clubes e trio elétrico ao cair da noite e pela madrugada na

Praça 27 de Julho. Além do trio, existia também a banda Tapajós, “além desta banda, outras

inesquecíveis animaram a grande aglomeração de pessoas nesta praça, como, por exemplo:

Banda Made in Bahia, Banda Skulaxo, Banda Astral...”.27

Utilizamos a palavra clube no

plural porque em 1975 foi inaugurado em Retirolândia o Clube Sisalândia, conforme Silva

Júnior descreve:

Durante muito tempo, de modo paralelo ao Itatiaia, funcionou, em Retirolândia, o

Clube Sisâlandia (em sede própria na rua 31 de março), fundado, na década de 70

(inauguração em 1975), por um grupo de cidadãos – Sr. Agdemar Rios (in

memoriam), Sr. Roque Carneiro, Sr. José Rios e outros, por conta de cisões político-

ideológicas quanto ao grupo que estava à frente do poder político local a época. Este

espaço cultural também promoveu festas e bailes de grande beleza e positivo

impacto para a diversão de muitas famílias retirolandense – especialmente nos dias

do São Pedro.28

Diante disso, a partir de 1975, com a fundação do Clube Sisalândia, Retirolândia passa

a ter dois importantes espaços de lazer. Durante o São Pedro, após o ano de 1975 tanto o

Clube Itatiaia como o Sisalândia tinham atrações no mesmo horário, sendo comum nesses

26 Entrevista concedida em 17 de agosto de 2011. 27 SILVA JÚNIOR, Enézio de Deus. Retirolândia: Memória e Vida. Curitiba: Juruá, 2007. p. 83. 28 Idem, p. 119.

Page 13: A laicização do são pedro de retirolândia   ba

13

espaços a presença de pessoas simpáticas a cada grupo político que estava à frente da direção

dos clubes. O Clube Itatiaia era comandado pelos líderes políticos Adevaldo Martins e

Adelídio Martins que estavam dirigindo o poder público local à época, enquanto o Sisalândia

era comandado por Agdemar Rios e Roque Carneiro, líderes políticos oposicionistas.

Entre os anos de 1977 e 1990 ocorre a consolidação da festa como evento de grandes

proporções para o município, bem como o auge da “era dos clubes”. Cristina Anunciação

conta que:

Em 1977 muita coisa mudou. Não mais comemoramos com os mesmos atributos,

porém, com a mesma emoção. Atrações de peso, bandas de forró, o qual destacamos

o saudoso Trio Nordestino animou durante muitos anos as nossas festas, como

também grandes nomes do axé-music passaram por aqui.29

O crescimento da festa em número de foliões e apresentações de “grandes trios e bandas” vão

aos poucos transformando uma festividade da comunidade retirolandense em show e

espetáculo, se firmando de vez como uma festa profana.

Na década de 1990 o São Pedro de Retirolândia já é muito conhecido na região. A

empolgação dos foliões em dançar e cantar atrás do trio elétrico em praça pública provoca o

enfraquecimento das festas nos clubes, levando inclusive o Sisalândia a fechar. “A partir de

meados da década de 1990, o Clube Sisalândia deixou de existir como local de festas e

eventos (encontrando-se desativado e há um aspecto de abandono). Por outro, o brilho e o

peso de qualidade dos bailes do Clube Itatiaia diminuíram consideravelmente”.30

O ano de

1996 ainda é lembrado como um dos maiores São Pedro que já ocorreu na cidade. Antonia

Junqueira diz “que o melhor São Pedro foi o que veio o „Bel‟” referindo-se à Banda Chiclete

com Banana, que estava no auge do sucesso musical, sendo quase impossível a circulação do

trio na Praça 27 de julho por causa da aglomeração das pessoas, todos querendo chegar perto

da referida banda. Durante a década de 1990, “atrações inesquecíveis, como: Genival

Lacerda; Sandro Becker; Luiz Caldas e vários outros animaram o São Pedro”.31

Os shows de

bandas e cantores famosos ao longo de 1990 fizeram com que o São Pedro de Retirolândia

fosse a festividade de maior repercussão na região nesta data, tornando o espaço da Praça 27

de julho pequeno para acomodar a multidão que comparecia para participar do festejo.

Procurando resolver o problema da falta de espaço, o então prefeito Adevaldo Martins, no

início dos anos 2000, transferiu a realização da festa para o largo do atual centro de

29 Entrevista concedida em 17 de agosto de 2011. 30

SILVA JUNIOR, Enézio de Deus. Retirolândia: Memória e vida. Curitiba: Juruá, 2007. p. 120. 31 Idem, p. 83.

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abastecimento. Essa mudança não agradou a muita gente, pois os trios elétricos deixariam de

tocar no São Pedro, sendo utilizados palcos fixos para os shows. Antonia Junqueira conta que:

Quando foi transferido [...] alguns queriam, outros não queriam, inclusive eu

gostaria que voltasse para a praça, porque hoje não sei qual é o São Pedro de

Retirolândia. O prefeito investe nas bandas para tocar no centro de abastecimento

que pra ele é o local que tá todo mundo da comunidade e os foliões que vem de fora,

mas existe uma descaracterização dos carros de som, eu acho que ficam boicotando

a festa de São Pedro, cada qual coloca o seu carro de som, botam todos na praça, e

fazem uma festa particular. Então, deixou de ser uma festa para a comunidade [...]

cada qual tá fazendo, tocando a música que quer. [...], pra mim as autoridades deveriam tomar uma decisão, depois criam aqueles grupos brigando pelos carros de

som, pelas cervejas, e a praça que foi idealizada nesse momento para a festa fica

vazia, só esperando a noite.32

Algumas pessoas, mesmo passado quase 10 anos, não concordam com a realização da

festa no atual espaço, nem com a eliminação dos trios elétricos. Outra coisa que na visão de

Antonia Junqueira descaracteriza a festa é a disputa de carros com sons potentes na Praça 27

de julho, principalmente no sábado e domingo à tarde, esvaziando completamente o local

onde são montados os palcos. Em 2010 foi realizado mais um grande São Pedro, sendo

contratadas pela prefeitura grandes atrações, destacando-se o show do cantor Reginaldo Rossi.

Neste sentido, a festa de São Pedro iniciada em 1966 através de uma festa da escola

transforma-se ao longo desse período na maior manifestação cultural do município de

Retirolândia.

O SAGRADO E O PROFANO NA FESTA DE SÃO PEDRO EM RETIROLÂNDIA.

A festa de São Pedro em Retirolândia é notadamente a maior festividade deste

município em termos de participação quantitativa da população local e, sobretudo, das

localidades vizinhas. Apesar da festa conter um nome religioso católico, no município de

Retirolândia ela nunca foi organizada pela paróquia local. Segundo a senhora Antonia

Junqueira:

a igreja católica não organizou nenhum São Pedro em Retirolândia, eu acho que esta festa, eu acho não, esta festa não tem nada a ver com a igreja católica. É uma festa

que surgiu da comunidade com a comunidade, e continua até hoje para a

comunidade, a igreja católica fica isenta33.

32 Entrevista concedida em 25 de julho de 2011. 33 Idem.

Page 15: A laicização do são pedro de retirolândia   ba

15

Entretanto, em muitos “São Pedros” durante a abertura da festa houve a entrega da

chave (simbologia do santo católico São Pedro)34

a seus organizadores. A entrega desta chave

simboliza a “autorização” de São Pedro para a execução da mesma. Mesmo a festa não sendo

organizada pela paróquia local, nem sua execução condizer com a liturgia da referida igreja,

paradoxalmente, os participantes da festa em sua maioria são adeptos ou declaram-se

católicos. Diante disso, recorremos ao aporte teórico do “historiador das religiões” Mircea

Elíade, especificamente a sua obra O sagrado e o profano: a essência das religiões, na qual o

autor faz uma discussão sobre a interrelação do sagrado e do profano no cotidiano das pessoas

para tentarmos compreender tal fenômeno.

Nesse sentido, a ruptura das características religiosas ou sagradas se apresenta como a

manifestação “natural” da liberdade humana. De acordo com Elíade, “o sagrado e o profano

constituem duas modalidades de ser no mundo”,35

sendo que essas modalidades são

intimamente ligadas e o profano se apresenta como uma extensão do sagrado. Elíade, diz que:

o homem a-religioso descende do homo religioso e, queira ou não, é também obra deste, constitui-se a partir das situações assumidas por seus

antepassados. [...]. Isto significa que o homem a-religioso se constitui por

oposição a seu predecessor, esforçando-se por se “esvaziar” de toda religiosidade e de todo significado trans-humano. Ele reconhece a si próprio

na medida em que se “liberta” e se “purifica” das “superstições” de seus

antepassados. Em outras palavras, o homem profano, queira ou não,

conserva ainda os vestígios do comportamento do homem religioso, mas esvaziado dos significados religiosos. Faça o que fizer, é um herdeiro. Não

pode abolir definitivamente seu passado, porque ele próprio é produto desse

passado.36

Assim, o sagrado e o profano constituem a forma de vida dos indivíduos ao longo dos

períodos históricos, não sendo diferente na festa em São Pedro de Retirolândia. Diante disso,

a ruptura dos elementos religiosos percebidos nas comemorações desta festividade é uma

característica típica do “homem a-religioso que nega a transcendência e aceita a relatividade

da realidade”.37

Peter Burke, na sua clássica obra sobre a cultura popular na Idade Moderna, já aponta

a grande batalha para a separação entre o mundo sagrado e o profano.38

Essa tentativa em

separar o sagrado do profano é característico dos mais variados agrupamentos humanos,

principalmente com o advento da modernidade no mundo ocidental, no qual o homem passou

34 SILVA JUNIOR, Enézio de Deus. Retirolândia: Memória e vida. Curitiba: Juruá, 2007. p. 80. 35

ELÍADE, Mircea. O sagrado e o profano: a essência das religiões. São Paulo: Martins fontes, 1992. p. 20. 36 Idem, p. 165 e 166. 37 Idem, p. 165. 38 BURKE, 1989 apud MENDONÇA, 2009, p. 4.

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16

a valorizar um certo distanciamento dos dogmas religiosos e uma aproximação dos princípios

laico. No entanto, Azevedo afirma que:

não sendo adversário da religião, o laicismo defende sua separação do Estado, sem, contudo hostilizá-la ou condená-la em quaisquer de suas

manifestações. O termo laicismo, de modo amplo, indica a separação entre a

religião e o profano. E de maneira restrita designa o afastamento do Estado

no tocante aos assuntos religiosos, uma vez assegurada completa independência a todos os sistemas religiosos e a todas as igrejas. Isso não

significa que o Estado venha a ignorar o fato religioso pois é de sua

responsabilidade garantir a tranquilidade pública de qualquer religião.39

É com base nesta separação entre a religião e o profano proposta pelo laicismo que

procuramos defender o argumento de que a festividade do São Pedro de Retirolândia é uma

festa laica (apesar da conotação religiosa), pois não é perceptível nenhuma preocupação dos

participantes em obedecer à doutrina católica, pelo contrário, o que existe é muita diversão,

dança, bebedeira e até agressões físicas por parte de muitos foliões.

ENTRE UM SÃO PEDRO E OUTRO, MUITA EXPECTATIVA.

A expectativa, a esperança e os preparativos também fazem parte de qualquer

manifestação cultural, como bem expressa a pesquisadora Cecília Maria Krohling Peruzzo:

cultura nos parece que é, antes de tudo, um modo de organizar o movimento

constante da vida concreta, mundana e cotidianamente. [...] é, a rigor, nosso sentido prático da vida. Mas a cultura não só permite domesticar nossa

situação presente. Ela é, também, constitutivamente, sonho e fantasia, que

transgridem os cercos do sentido prático.40

O São Pedro de Retirolândia não é caracterizado apenas pela realização de sua

festividade. Ao longo do ano, entre um São Pedro e outro, boa parte da comunidade local que

participa deste festejo espera ansiosa a chegada do mês de junho, período que ocorre a

festividade. Bem não acaba um São Pedro muitas pessoas que moram em Retirolândia ou são

filhos desta terra, e por causa do trabalho ou estudo residem em outros municípios, começam

a se programar, discutir e idealizar o próximo São Pedro, fantasiando-se na sua imaginação e

39 AZEVEDO, 1999 apud SILVA, 2006, p. 82. 40 PERUZZO, Cecília Maria Krohling. A comunicação nos movimentos populares: a participação na construção

da cidadania. Petrópolis: Vozes, 1998. p. 139.

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17

sonhando com atrações melhores que a do São Pedro passado. Acerca disso, Lúcia Oliveira

afirma que:

quando a gente viajava para Serrinha, Feira de Santana, Salvador, o povo falava

muito dessa festa: “olha eu tô preparando minha roupa, já comprei sapato, já

comprei roupa, pois eu quero ir para o São Pedro e eu sei que lá o povo gosta muito

de luxo”, o povo dizia muito isso.41

A cada São Pedro a ansiedade e os comentários das pessoas envolvem cada parte do

município, criando um ambiente de expectativa e planejamento pessoal ou familiar de como

participar destes festejos que é a mais importante manifestação popular do município de

Retirolândia e um dos mais importantes de toda região sisaleira do interior da Bahia. O São

Pedro de Retirolândia possibilita aos participantes o contato com outras pessoas que não

fazem parte do convívio diário da cidade, além de propiciar o encontro de antigos e novos

amigos que na maioria das vezes só se encontram nesta data.

Esses encontros são aguardados com muita ansiedade e quando eles acontecem,

normalmente a partir dos últimos oito dias antes do início da festividade são permeados de

muita alegria. Muitas pessoas começam a chegar à cidade com certa antecedência, causando

um ambiente mais alegre e divertido, surgindo aos poucos um “clima de festa”, rompendo

com a costumeira monotonia que é característica das pequenas cidades do semi-árido baiano.

Esses encontros tem se repetidos anos após anos, sendo caracterizado como um dos

aspectos culturais desta festividade. Segundo Laraia

o homem é o resultado do meio cultural em que foi socializado. Ele é um herdeiro de um longo processo acumulativo, que reflete o conhecimento e a

experiência adquirida pelas numerosas gerações que o antecederam. A

manipulação adequada e criativa desse patrimônio cultural permite as inovações e as invenções.

42

As inovações e invenções em torno do São Pedro tem propiciado a cada ano uma festa

ainda mais atraente e animada para seus participantes. A sociedade retirolandense, entendendo

aqui como o conjunto de pessoas que participam desta festa ou são simpáticas a mesma, tem

dado uma contribuição extraordinária na manutenção, organização, preservação e

transformação desta festividade, participando maciçamente dos três e às vezes quatros dias de

festa. Esta tradição nas últimas três décadas vem aglutinando ainda mais gente, fazendo com

que se renove e seja transmitida para as próximas gerações, perpetuando-se culturalmente.

41 Entrevista concedida em 17 de agosto de 2011. 42 LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico. 15. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002. p.

45.

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18

Assim, Roque de Barros Laraia afirma que “[...] existem dois tipos de mudança

cultural: uma que é íntima, resultante da dinâmica do próprio sistema cultural, e uma segunda

que é o resultado do contato de um sistema cultural com outro”.43

Neste sentido, as pessoas

que vivem em Retirolândia ou são moradores de outros lugares e participam do São Pedro há

muitos anos, se percebem ou se sentem confortavelmente inseridas no seu ambiente natural,

manifestando pouca ou nenhuma estranheza ao que está ocorrendo em sua volta, o que não se

percebe no simples folião (entendendo este como o indivíduo que participa desta festa apenas

como diversão), que curte o São Pedro esporadicamente e não mantém vínculo histórico com

a festa, mas propicia um ambiente de intensa troca cultural.

No entanto, nem sempre toda essa expectativa e ansiedade que se concentra na espera

da realização da festa são confirmadas. Às vezes, muitas pessoas são frustradas, pois não

concordam ou não gostam da organização e das atrações contratadas pelo poder público para

animar os festejos, porém, o desenrolar da festa e sua tradição produz muita alegria que logo

ameniza as frustrações de alguns, ocorrendo mais um grande São Pedro pela quantidade de

pessoas que comparecem a festa e pela repercussão que a mesma ganha na região.

AS RELAÇÕES CULTURAIS DE PODER NO SÃO PEDRO DE

RETIROLÂNDIA.

As relações sociais, culturais e de poder são perceptíveis durante a realização da

festividade do São Pedro. Diversas pessoas de diferentes faixas etárias, classe social e opção

sexual se aglutinam no mesmo espaço para participar dos festejos, propiciando uma rica

interação entre os múltiplos sujeitos, pois a “cultura é uma construção histórica, seja como

concepção, seja como dimensão do processo social. Ou seja, a cultura não é algo natural, não

é uma decorrência de leis físicas ou biológicas. Ao contrário, a cultura é um produto coletivo

da vida humana”.44

A cultura abrange intensamente as relações sociais, possibilitando aos

indivíduos uma troca de valores, conhecimento de mundo e novas experiências de vida, sendo

estes princípios bastante recorrentes no São Pedro de Retirolândia. Para Antonio Augusto

Arantes

43 LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico. 15. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002. p.

96. 44 SANTOS, José Luiz dos. O que é cultura. 14. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. p. 45.

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essa diversidade, que se desenvolve em processos históricos múltiplos, é o

lugar privilegiado da “cultura” uma vez que, sendo em grande medida

arbitrária e convencional, ela constitui os diversos núcleos de identidade dos vários agrupamentos humanos, ao mesmo tempo que os diferencia uns dos

outros. Pertencer a um grupo social implica, basicamente, em compartilhar

um modo específico de comportar-se em relação aos outros homens e à natureza.

45

A festa de São Pedro em Retirolândia tem se tornado um núcleo de identificação, pois

não há possibilidade de desvincular a festa da história do município, ambos são intrínsecos.

No desenrolar dos três ou quatro dias de festejos do São Pedro outra característica

bastante visível são as relações de poder. Para Renato Ortiz46

“a esfera da cultura popular e

dos universos religiosos é o lugar privilegiado para o estudo do embate político que está em

jogo entre grupos e classes sociais”. Com isso, nota-se no São Pedro de Retirolândia o papel

das forças de segurança (Polícia Militar, Polícia Civil e Guarda Municipal) como ferramentas

de monitoramento e controle da população que está festejando o tão esperado acontecimento,

agindo como força institucional para reprimir os “conflitos” que venham a ocorrer. Portanto,

“a cultura em nossa sociedade não é imune às relações de dominação que a caracterizam”.47

As relações de dominação também é característica nas manifestações culturais, havendo

sempre uns que se impõe sobre os outros.

Essa imposição é nítida desde as escolhas das atrações artísticas pelo poder público

municipal até a ocupação de lugares privilegiados no circuito da festa por pessoas tidas como

“importantes”. A partir de 1971, quando o poder público passou a determinar quais seriam as

atrações que iriam animar o São Pedro, não consultando as pessoas sobre quais artistas

contratar, causando em algumas pessoas as citadas frustrações.

A ESPETACULARIZAÇÃO E A INSTITUCIONALIZAÇÃO DA CULTURA.

A cada dia que passa, a cultura popular apresenta sinais da interferência do político e

do econômico em suas manifestações. “Ao se produzir o espetáculo, cortam-se as raízes do

45 ARANTES, Antonio Augusto. O que é cultura popular. São Paulo: Brasiliense, 2006. p. 26. 46 ORTIZ, Renato. A consciência fragmentada: ensaios de cultura popular e religião. Paz e Terra, 1980. 47 SANTOS, José Luiz dos. O que é cultura. 14. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. p. 79.

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20

que, na verdade, é festa, é expressão de vida, sonho e liberdade”.48

Infelizmente, o São Pedro

de Retirolândia nas últimas décadas tem se transformado na espetacularização da festa com a

utilização de moderníssimos palcos, com seus jogos de som e luz, com a intenção de atrair

ainda mais gente, com o objetivo de aumentar a movimentação econômica da cidade,

causando um rompimento nas raízes históricas que eram visíveis na década de 1960 e 1970 e

que hoje quase não se percebe mais.

Na concepção de Antonio Augusto Arantes,

a produção empresarial da arte popular – qualquer que seja a orientação

ideológica e política de seus responsáveis – retira-lhe duas dimensões sociais fundamentais. Alterando data, local de apresentação e a própria organização

do grupo artístico, ela transforma em produto terminal, evento isolado ou

coisa, aquilo que, em seu contexto de ocorrência, é o ponto culminante de um processo que parte de um grupo social e a ele retorna, sendo

indissociável da vida desse grupo. Os gestos, movimentos e palavras, em que

pese todo o aperfeiçoamento técnico possível, tendem a perder o seu

significado primordial. Eles deixam de ser signos de uma determinada cultura para se tornarem “representações” que “outros” se fazem dela.

49

E isso é exatamente o que vem acontecendo na festividade do São Pedro de

Retrolândia há pelo menos desde 1985, na qual a organização ou produção da festa vem

ganhando uma dimensão técnica ou empresarial, proporcionando uma grande

espetacularização da festa, além da utilização político-eleitoral da mesma, pois cada gestor

público quer deixar sua “marca”, intencionando ganhar novos eleitores com um espetáculo

ainda maior, acarretando em prejuízos extraordinários à manutenção tradicional da festa.

É perceptível nos últimos anos que o poder público a cada dia vem se apoderando da

cultura popular e suas manifestações. Na compreensão de Santos,

Hoje em dia os centros de poder da sociedade se preocupam com a cultura, procuram defini-la, entendê-la, controlá-la, agir sobre seu desenvolvimento.

Há instituições públicas encarregadas disso; da mesma forma, a cultura é

uma esfera de atuação econômica, com empresas diretamente voltadas para ela. Assim, as preocupações com a cultura são institucionalizadas, fazem

parte da própria organização social. Expressam seus conflitos e interesses, e

nelas os interesses dominantes da sociedade manifestam sua força.50

O poder público e algumas empresas privadas do setor cultural tem notado que as

manifestações culturais é um negócio atrativo economicamente e por conta disso tem se

preocupado em investir capital e esforço no setor. O poder público tem criado diversos órgãos

48 ARANTES, Antonio Augusto. O que é cultura popular. São Paulo: Brasiliense, 2006. p. 20. 49 Idem, p. 19 e 20. 50 SANTOS, José Luiz dos. O que é cultura. 14. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. p. 82.

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21

para investir em “cultura”, a exemplo de ministérios, secretarias estaduais e municipais de

cultura, conselhos de cultura, departamentos de cultura, entre outros, com o intuito de

alavancar o desenvolvimento econômico de diversas localidades do país. O setor privado tem

criado agências de viagens que vendem pacotes turísticos para grandes eventos culturais

espalhados pelo Brasil em nome de um “progresso social e de valorização das variadas

manifestações culturais”. Tudo isso tem provocado e “forçado” algumas culturas tradicionais

a perderem suas características originais para atenderem aos diversos interesses econômicos e

políticos, sendo que “as preocupações com a cultura mantém sua proximidade com as

relações de poder. Continuam associados com as formas de dominação na sociedade”51

e isso

vem ficando a cada dia mais nítido nos festejos do São Pedro de Retirolândia.

NEM TUDO É FESTA. HÁ MUITO TRABALHO TAMBÉM.

Enquanto muitas pessoas se programam para curtir a festividade, outras veem nela

uma fonte de renda. Dezenas de barraqueiros, camelôs, vendedores ambulantes e seguranças

particulares trabalham incessantemente ao longo da festa, na esperança de obterem uma renda

extra no orçamento familiar. Esses trabalhadores, principalmente os barraqueiros e os

camelôs, começam logo no início da semana anterior à festa a montarem sua estrutura de

trabalho, procurando estrategicamente os melhores espaços no intuito de realizarem uma boa

venda. Assim, enquanto a festa acontece, muitas pessoas trabalham, demonstrando com isso

que as manifestações culturais são compostas por uma multiplicidade de fatores que fazem da

mesma um espaço extremamente complexo, exigindo uma análise bastante profunda dos

múltiplos fatores que compõem a cultura.

A interrelação entre festa e trabalho é bem visível na comemoração do São Pedro de

Retirolândia. Algumas famílias de vendedores ambulantes preferem o trabalho à curtição,

sendo isso também um fator integrante da cultura popular. De acordo com Antonio Augusto

Arantes,

a produção econômica, tanto do ponto de vista das técnicas de trabalho,

quanto da determinação de o quê e quanto produzir, possui marcos culturais,

51 SANTOS, José Luiz dos. O que é cultura. 14. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 82.

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22

já que o uso (ou consumo) é função de escolhas feitas a partir de uma codificação que é cultural.

52

O São Pedro de Retirolândia movimenta a economia do município no mês de junho,

aquecendo o comércio local, principalmente no setor de calçados, roupas e bebidas. Com isso,

a referida festa tem se transformado em um atrativo negócio para o setor comercial,

possibilitando a muitos comerciantes um aumento em suas vendas e, consequentemente um

maior faturamento.

Diante disso, as relações de trabalho, as relações de poder e as relações humanas que

fazem parte do São Pedro de Retirolândia são intrínsecas das variadas manifestações culturais

espalhadas por todo o Brasil. Segundo Octávio Ianni:

o que há bastante, na cultura do povo, é sentido de vida. Pode ser que falte

alguma coisa. Vida é que não falta. E vida no sentido de trabalho, criação, compaixão, ódio, amor, remorso, resignação, fatalismo, assombro,

assombração, feitiço, encantamento, paganismo, companheirismo,

movimento, luta, revolta. É assim que a vida se transforma em liberdade. É assim que se movimentam as gentes e as coisas, as ideias e as criações.

Transformada em liberdade, a vida funda a cultura, a inventiva, o milagre da

criação.53

O São Pedro de Retirolândia manifesta os diversos sentidos da vida cotidiana. Esse

momento é capaz de proporcionar novas formas de lazer, ou seja, pessoas que ao longo do

ano apresentam uma vida muito recatada, no São Pedro agem de maneira totalmente inversa,

demonstrando alegria, empolgação, curtição, companheirismo e isso é uma demonstração das

múltiplas faces que compõe o indivíduo e o ambiente cultural do qual faz parte.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A festividade de São Pedro em Retirolândia faz parte da memória deste povo, sendo

sua mais importante representação da cultura popular. No entanto, apesar de conter um nome

religioso, não há nenhuma devoção ao santo no decorrer da realização desta festa. Assim, o

que foi descrito neste artigo trata-se de elementos e fatos ocorridos em uma festa popular, não

religiosa, pois todas as fontes utilizadas para a elaboração deste trabalho afirmam

52 ARANTES, Antonio Augusto. O que é cultura popular. São Paulo: Brasiliense, 2006. p. 34. 53 IANNI, Octávio. Ensaios de sociologia da cultura. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1991. p. 211 e 212.

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23

categoricamente que o São Pedro de Retirolândia não é, e nunca foi uma festa religiosa. O que

existiu foi a apropriação ou a utilização de uma festa religiosa (no caso, a festa de

devoção/aniversário do senhor Pedro Pinheiro em 29 de junho de 1966) para daí, a escola

poder atingir seus objetivos financeiros, tanto é que no ano seguinte, o São Pedro (a festa da

escola) não acontece mais no espaço do senhor Pedro Pinheiro, nem há evidências que este

tenha participado, pois provavelmente continuou realizando sua festa de devoção em sua casa,

como de costume.

As rupturas ocorridas na forma de realização desta festa, além de suas permanências

são intrínsecas dos processos históricos e nenhuma manifestação cultural está livre à

influência de elementos externos. Determinados elementos deixam de existir, outros surgem,

tornando o “espaço” da cultura popular diverso, heterogêneo, peculiar e acima de tudo,

aglutinador das múltiplas relações e concepções de uma comunidade. As mudanças

perceptíveis nas comemorações do São Pedro de Retirolândia, associada com a preservação

desta festividade, vem se transformando em um verdadeiro símbolo de identidade de uma

parcela do povo retirolandense.

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