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A Liderança Feminina nas Lutas Urbanas Direito e Política no Caminho das Mulheres

A Liderança Feminina nas Lutas Urbanas

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Expediente:Coordenação institucional: Sandra KokudaiJornalista responsável: Tânia Coelho Reg. Prof.16.903Edição de texto: Tania Coelho, Inaê Amado e Malu MachadoProjeto gráfico e direção de arte: Espalhafato Comunicação / Márcia AzenColaboração: Rosane de Souza, Verônica CoutoTranscrição: Marina Fernandes, Alexandre Braz, Fernanda FreireRevisão: Rita LuppiFotos: Adriana Medeiros / Arquivo Bento RubiãoProdução: Espalhafato ComunicaçãoImpressão: Zit

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Page 1: A Liderança Feminina nas Lutas Urbanas

A Liderança Feminina nas Lutas UrbanasDireito e Política no Caminho das Mulheres

Page 2: A Liderança Feminina nas Lutas Urbanas

As retroescavadeiras, as máquinas, entram derrubando tudo e estamos vivendo em meio aos escombros. O lixo dos entulhos cresce a cada dia como pressão, como ameaça, trazendo ratos e humilhando os moradores.

Francicleide da Costa Souza, Franci, presidente da Associação de Moradores da Favela do Metrô

Na Cidade de Deus, um bairro de 60 mil moradores, em um determinado momento vimos que somos muito desunidos, mas de uma resistência histórica porque como fomos tirados do Centro e levados para um lugar hoje valorizado, vemos as ameaças da remoção novamente. O que nos une é a consciência de classe. Nas décadas de 70 e 80, as lideranças de futebol, de samba, cada um lutando a sua luta, os artistas, o pessoal da associação de moradores, juntos deram à Cidade de Deus uma enorme capacidade de resistência, para não aceitar qualquer política, para dizer não à remoção. Cleonice Almeida, Comitê Comunitário da Cidade de Deus

Pensamos que não somos alienados, mas nessa questão de como a mulher ocupa um espaço da cidade, pude perceber como estou alienada. Como as políticas são pensadas? Não são pensadas dentro das perspectivas de gênero. Antes de implantarem tal política, não ouvem a comunidade local, muito menos as mulheres. Mas quando as pessoas começam a trazer as questões ambientais, questões geográficas, territoriais, eles mandam um agente deles para nos convencer de que aquela política é boa e não tem do que reclamar.

Carmen Camerino, Jacarezinho, União Brasileira de Mulheres

Sou nordestina. A mulher nordestina é muito forte. E firme. Nós moramos no Rio de Janeiro, mas em todo lugar a mulher tem esse problema de inferioridade, preconceito. A própria sociedade quer passar para a mulher que nós somos inferiores, mas não somos. A mulher tem que se sentir valorizada, poderosa. A mulher tem que fazer o que tem vontade, desde que não prejudique ninguém. Eu trabalhei com vários políticos, é um horror. Não dá para saber quem rouba mais. Idealismo só não basta, tem que ter a união de todo mundo. Enquanto só se pensar em dinheiro, nada vai para frente.

Joana D’ Arc - nascida em Recife, criada no RJ, líder comunitária

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Colhendo os Frutos

O projeto A liderança feminina nas lutas urbanas – Direito e Política no caminho das mulheres é uma proposta da Funda-ção Centro de Defesa dos Direitos Humanos Bento Rubião em parceria e com o patrocínio da ONU MULHERES e ONU HABITAT, com o objetivo de reunir em uma publicação, com lançamen-to nacional, o sentimento e a visão de mulheres líderes, mili-tantes ou cidadãs comuns, na busca de uma cidade mais hu-mana, com recorte principal no direito à moradia. Estas duas agências das Nações Unidas fazem parte do Programa Inte-ragencial de Gênero, Raça e Etnia no Brasil, financiado pelo Fundo dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio. Desde a construção de projetos de geração de trabalho e renda, pas-sando pela violência cotidiana, até movimentos mais amplos pela defesa de direitos, as lideranças femininas se destacam. Mais de 50% da população brasileira, as mulheres são as mais penalizadas na dinâmica urbana e, também, as mais com-bativas. Esta capacidade de liderança e o crescente investi-mento em formação cidadã são pontos que a Fundação Bento Rubião, organização encarregada da execução do projeto no Rio de Janeiro, vem constatando de maneira cada vez mais significativa em seu trabalho de apoiar o desenvolvimento do movimento organizado e popular pelo direito à cidade.

Page 4: A Liderança Feminina nas Lutas Urbanas

Fundação de direitos Humanos Bento ruBiãoAv. Beira Mar 216, sala 701 - Castelo CEP: 20221-060Rio de Janeiro, RJ, Brasil - Tel: (55 21) 2262 3406Email: [email protected]

Fundação Bento RubiãoA Fundação Centro de Defesa dos Direitos Humanos Bento Rubião (FBR)

é uma organização não governamental que desenvolve atividades no

estado do Rio de Janeiro na área da proteção, defesa e garantia do

acesso à terra e à moradia digna desde 1986. Atualmente, a Fundação

Bento Rubião tem por missão a “Defesa, a difusão e a garantia dos

direitos da população pobre das favelas e periferias, com ênfase dos

direitos de moradia e da infância e adolescência, promovendo-a como

sujeito do seu próprio desenvolvimento, como forma de contribuir

para a defesa dos Direitos Humanos Econômicos, Sociais, Culturais e

Ambientais - DHESCAs”.

Programa Interagencial de Promoção da Igualdade de Gênero, Raça e EtniaExecutado por seis agências do Sistema ONU (ONU Mulheres, UNICEF, UNFPA, OIT, ONU-HABITAT e PNUD) e pelo governo do Brasil, por meio da SPM e da Seppir, visa promover a igualdade entre os gêneros, entre mulheres brancas e negras e o empoderamento de todas as mulheres.

RicaRdo de Gouvêa coRRêadiretor executivo

eliana auGusta de c. athaydevice-diretora executiva

valéRio da silvavice-diretor excutivo

sandRa hiRoMi KoKudaicoordenadora do Programa direito à habitação

PRiscila soaRes da silvacoordenadora do Programa direito à terra

clayse MoReiRa e silvacoordenadora do Programa criança e adolescente

Manuel GoMes alvescoordenador adm. Financeiro

luis FujiwaRacoordenador

andRea azevedoassistente da coordenação

Programa interagencial para a Promoção da igualdade de Gênero, raça e etnia eQsw 103/104 lote 01 Bloco c - 1o andarsudoeste – Brasília, dF - Brasil - ceP 70670-350 tel. +55 (61) 3038-9147http://generoracaetnia.org.br

ONU HABItAtONU-HABITAT é a agência das Nações Unidas para os Assentamentos Humanos que promove cidades social e ambientalmente sustentáveis, com o objetivo de oferecer habitação adequada a mulheres e homens. O escritório regional para América Latina e o Caribe, opera no Rio de Janeiro, Brasil.

ONU MULHERES A ONU Mulheres é a Entidade das Nações Unidas para a Igualdade de Gênero e o Empoderamento das Mulheres. Trabalha com as premissas fundamentais de que as mulheres e meninas têm o direito a uma vida livre de discriminação, violência e pobreza, e de que igualdade de gênero é um requisito central para se alcançar o desenvolvimento.

eunice BoRGes

Ponto Focal da onu Mulheres para o Programa interagencial para a Promoção da igualdade de Gênero, Raça e etnia e Programas conjuntos MdG-F(61) 3038-9280 | Fax: (61) [email protected]

alain GRiMaRd diretor Regional

diana Medina de la hoz coordenadora Regional de Gênero

escritório regional para américa Latina e o CaribeRua Rumânia, 20 - cosme velho22240-140 - Rio de janeiro, Brasiltel: +55 (21) 3235-8550Fax: +55 21 3235-8566e-mail: [email protected] sitio web: http://www.onuhabitat.org

Page 5: A Liderança Feminina nas Lutas Urbanas

sumárioex

pedi

ente

Copyright: Fundação de direitos humanos Bento Rubiãoapoio: Misereor

Colaboração: Sandra Kokudai, Maria Amélia Franklin e Sonia Carvalho (FBR), Rossana Tavares e Monica Ponte (Fase), Laura Burocco (Ibase), Monica Gurjão (UBM), Cleonice Almeida (Comitê Comunitário Cidade de Deus), Patricia Evangelista (Fórum Social Manguinhos) e Evaniza Rodrigues (UNMP). Jornalista responsável: Tânia Coelho Reg. Prof.16.903edição de texto: Tania Coelho, Inaê Amado, Malu Machado, Rosane de Souza, Verônica CoutoProjeto gráfico e direção de arte: Espalhafato Comunicação / Márcia Azentranscrição: Marina Fernandes, Alexandre Braz, Fernanda Freirerevisão: Rita LuppiFotos: Adriana Medeiros / Arquivo Bento RubiãoProdução: Espalhafato Comunicaçãoimpressão: Zit

A Liderança Feminina nas Lutas Urbanas - Número 1, dezembro de 2011

06.

18.

10.

20.

13.

24.

28.

30.17.

M O v I M E N t O S S O C I A I S

A R t I G O S

O F I C I N A S

27.

29.

32.

34.

38.

Mulheres e Direito à Cidade: o sentido da liberdadeTaciana Gouveia

Mulheres são a base da reforma urbanaInês Magalhães

Nós somos a contraculturaEvaniza Rodrigues

Desafios da implementação da plataforma feminista no campo do Direito à CidadeMércia Alves

O barro que molda mulheres de atitude Patrícia Evangelista, Manguinhos

Entrar, resistir e viver com dignidade Maria de Lourdes Lopes Fonseca , Movimento Nacional de Luta pela Moradia, Ocupação Manuel Congo

Quando a luta nos aproximaAngela de Morais, Maria Ivanilda Moraes Maria, Aparecida SilvaBarbosa, Quilombo das Guerreiras

trabalho solidário, renda e cidadania Mônica Francisco, Grupo das Arteiras, Morro do Borel

Uma arquiteta popular na zona oeste de São PauloVera Eunice Rodrigues da Silva, União dos Movimentos de Moradia de São Paulo

Mutirão com autogestãoJurema da Silva Constâncio, União Nacional por Moradia Popular no Rio de Janeiro

A gente não quer só comidaGraça Xavier, Central dos MovimentosPopulares

vizinhos Ilustres: Mangueira e MaracanãFrancicleide da Costa Souza, Favela do Metrô

A cada dia a sua dor, a sua alegriaZeni de Paula Costa, Custódia Dias Pereira, Jurema Dias Pereira, Josefa Matias da Silva, Associação Vila União da Barra da Tijuca

Caminhos para intervir nas políticas públicas

nosso agradecimento a todas e todos que participaram da construção desta publicação:

união Brasileira de Mulheres, união nacional por Moradia Popular, central de Movimentos Populares, Movimento nacional de luta pela Moradia, Mulheres de atitude, ocupação Quilombo das Guerreiras, ocupação Manuel congo, associação vila união da Barra da tijuca, associação de Moradores da Favela do Metrô, Mulheres arteiras, centro dom helder câmara, Fase, ibase, Fórum nacional de Reforma urbana, Fórum Movimento social de Manguinhos, comitê comunitário cidade de deus, Fundação centro de defesa dos direitos humanos Bento Rubião, onu habitat e onu Mulheres.

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Programa Interagencial de Promoção da Igualdade de Gênero, Raça e Etnia

Lançado em 2009, o Programa Interagencial de Promoção da Igualdade de Gênero, Raça e Etnia, financiado pelo governo espanhol, é executado por seis agências do Sistema ONU (ONU Mulheres, UNICEF, UNFPA, OIT, ONU-HABITAT e PNUD) e pelo governo do Brasil, por meio da SPM (Secretaria de Políticas para as Mulheres) e da Seppir (Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial).

O Programa visa apoiar a implementação dos Planos Nacionais de Polí-ticas para as Mulheres e de Promoção de Igualdade Racial, e tem como objetivos promover e consolidar a transversalidade de gênero, raça e etnia em políticas públicas e em iniciativas da sociedade civil, fortalecer institucionalmente e desenvolver capacidades de contrapartes governa-mentais e entidades parceiras da sociedade civil. Busca ainda estimular o controle social das políticas públicas por meio do fortalecimento de entidades, redes, articulações e organizações feministas, de mulheres e do movimento de mulheres negras.

No âmbito do trabalho que realizamos com a sociedade civil, cabe destacar a parceria do Programa Interagencial, por meio da ONU-HABITAT e da ONU Mulheres, com a Fundação Centro de Defesa de Direitos Humanos Bento Rubião.

Tal parceria visa estimular a participação política e o empoderamento de mulheres para que a população feminina possa demandar seus direi-tos de forma efetiva, inclusos o direito à habitação e o direito à cida-de. Mulheres e homens vivenciam seus domicílios, cidades e territórios de forma distinta, mulheres e meninas sofrem mais com a ausência de políticas públicas e aparelhos urbanos de cuidado social, com a falta de moradias dignas, de água e energia, e com vários outros aspectos relacionados com a dinâmica urbana e territorial, como por exemplo, discussões sobre a ocupação e uso do solo e sobre a ocupação do es-paço público.

Entretanto, as mulheres têm se organizado e se estruturado socialmen-te de maneira mais efetiva, tanto para demandar seus direitos, de suas famílias e comunidades, como também para garantir e legitimar sua participação em instâncias públicas e comunitárias relacionadas com o planejamento e gerenciamento de recursos urbanos diversos. Por isso é tão importante garantir que a voz feminina seja ouvida em toda sua plenitude e diversidade quando se trata de discutir a cidade, seus terri-tórios e o direito a uma habitação digna.

Empoderar as mulheres, garantir a autonomia do trabalho de cuidado, e promover a liderança feminina nas lutas urbanas são processos que ge-ram ganhos não somente para a população feminina, mas para a socie-dade como um todo, tendo como resultado final habitações, territórios e cidades cada vez mais comprometidas com a cidadania e com o bem estar de seus e suas moradoras.

Luis FujiwaraCoordenador do Programa Interagencial de Promoção da Igualdade de Gênero, Raça e Etnia

O Programa Interagencial de Promoção da Igualdade de Gênero, Raça e Etnia é uma iniciativa do Fundo para o Alcance dos ODM (Objetivos do Milênio) para promover as metas de desenvolvimento humano acordadas pelos países-membros da ONU.

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Em nossa trajetória institucional no campo da reforma urbana, do direi-to à moradia e do direito à cidade, a visibilidade deste tema é imensa, seja pelo lado positivo, seja pelo negativo. É flagrante a preponderância da participação e da luta das mulheres nas cooperativas habitacionais por autogestão, na luta pelo acesso e permanência na terra que ocu-pam, assim como na regularização fundiária e, ainda, na luta por equi-pamentos e serviços urbanos. Digo na luta porque, por outro lado, não testemunhamos a mesma visibilidade quanto à ocupação dos espaços de poder.

Recordo de uma cooperativa habitacional, que não fugiu à regra das de-mais, na qual por meio de indicadores “medimos” as relações de gênero e de ocupação dos espaços de representação: enquanto na ajuda mútua para a construção das moradias, as mulheres representavam 70% da participação, nas assembléias, 70% das intervenções eram feitas por homens, conduzindo assim o processo. Igualmente eram os homens que ocupavam em preponderância os postos de direção. A cultura e as estruturas de poder da sociedade se vêem reproduzidas na base da mesma. Aliás, não poderia ser diferente, já que, infelizmente, este é o “DNA” desta sociedade.

Esta publicação, portanto, pretende contribuir com a construção da pauta de todas e todos que se indignam com estas desigualdades e lutam para superá-las. O fazemos dando voz a estas mulheres, retratando suas vidas, esperanças e tenacidade cidadã.

Visando atingir nossos objetivos editoriais, fixados com ONU MULHE-RES e ONU HABITAT, nos juntamos a atores que vêm construindo esta pauta de valorização da luta urbana das mulheres em todo Brasil: movimentos socias, organizações não governamentais e entidades da sociedade civil. Realizamos oficinas, entrevistamos militantes guerreiras, fotografamos seus rostos, desejos e experiências.

O resultado deste rico processo está registrado nestas páginas que con-tam a história de um novo olhar: há que se fazer uma reforma urbana com o olhar e a prática feminina. Elas já o fazem. Precisamos reco-nhecê-las, valorizá-las e denominá-las. Moradia, saúde, transporte - a cidade para todas e todos, cidadãs e cidadãos. Uma prática combativa e humana, de quem possui a experiência visceral de reproduzir, cuidar e perpetuar a vida.

Ricardo de Gouvêa CorrêaCoordenador ExecutivoFundação Centro de Defesa de Direitos Humanos Bento Rubião

5

É com imenso orgulho que lançamos a presente

publicação, elaborada em parceria com ONU

MULHERES e ONU HABITAT, órgãos da

Organização das Nações Unidas. Com ela, mais do

que dar continuidade, ampliamos ações e

debates desenvolvidos pela instituição,

tendo como referência as questões de

gênero.

Há que se fazer reforma

urbana com o olhar e a prática feminina

Page 8: A Liderança Feminina nas Lutas Urbanas

Mulheres e Direito à Cidade: o sentido da liberdadeTaciana GouveiaSocióloga e educadora feminista

Refletir sobre a relação entre as mulheres e o direito à cidade requer, antes de qualquer coisa, uma precisão do que aqui estamos tratando como direito à cidade, pois este é tanto um direito recente, quanto uma noção que amplia e transforma o que comumente se pensa ser uma cida-de. Dizer que o direito à cidade é recente não significa ignorar que suas origens estão nas formulações de Henri Lefebvre no final da década de 1960, mas ir além da aceleração do tempo em que vivemos e pensar que em termos de tempos e lutas quatro décadas de história é pouco. Além disso, se é apenas no final dos anos 1960 que o conceito surge, a sua legitimação como um direito na sociedade brasileira tem apenas exatos 10 anos, dado que ela se institui em termos políticos e jurídicos com a promulgação do Estatuto da Cidade em julho de 2001.

Contexto

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Page 9: A Liderança Feminina nas Lutas Urbanas

Por outro lado, se tomarmos a perspectiva de que conceitos e, mais ainda, direitos, não são invenções do pensamento, mas de-rivam das ações e lutas políticas concretas e cotidianas, teremos que concluir que o não direito à cidade, a negação dos conteú-dos que o definem são seculares, sendo em realidade definidoras das condições de vida de um imenso contingente de pessoas por um tempo tão extenso que se entrelaça com a existência de todos os sistemas de dominação que conhecemos e estruturam nossas vidas até o presente: o capitalismo, o patriarcado, o racis-mo, o heterossexismo, dentre outras.

Contudo, ainda permanecendo no pensar sobre o tempo, po-demos estabelecer outra sincronia que nos traz caminhos para tocar em alguns dos pontos que delimitam o campo do que se tem tratado por mulheres e direito à cidade na contemporanei-dade. Não é por acaso que o conceito de direito à cidade é uma formulação do final dos anos 1960. As dinâmicas políticas inter-nacionais naquele período davam conta do surgimento de novos sujeitos políticos e, portanto, novas formas de lutas e reivindica-ções de direitos até então não pensados como tais, pois muitas dessas reivindicações eram inscritas como questões privadas ou pessoais. Para fins deste texto, ressalto as lutas feministas. Ao mesmo tempo o final da década de 1960 e começo da década de 1970 são marcados pelo surgimento e/ ou consolidação das grandes cidades e de sua centralidade na dinâmica capitalista.

No Brasil, nesse mesmo período estamos imersos nos momen-tos mais cruéis da ditadura militar, de modo que os efeitos mais visíveis dos processos acima citados serão percebidos a partir de meados da década de 1970. Não foi por acaso que junto com o surgimento do novo sindicalismo, o outro elemento que mar-cou a movimentação sóciopolítica – ainda bastante contida pelos rigores do regime de exceção – tenha sido os chamados mo-vimentos de bairro, numa relação direta com as comunidades eclesiais de base desenvolvidas pela Igreja Católica. Ou seja, a reorganização e resistência da sociedade civil a partir da segunda metade da década de 1970 vêm a partir das lutas cotidianas, das carências imediatas vividas pela população das áreas mais pobres das grandes cidades, seja a zona sul da cidade de São Paulo, seja o entorno do Morro da Conceição em Recife, para ficar em ape-nas dois exemplos.

No começo dos anos 1980, com a consolidação dos sujeitos que faziam as lutas urbanas, muitas análises acadêmicas começam a ser produzidas para dar conta desse fato que não parecia previs-to. Sua imprevisibilidade era tanta que se criou um conceito para nomeá-lo: novos movimentos sociais. Onde estavam incluídas não só as organizações e movimentos urbanos, como também os movimentos de mulheres e feministas, o movimento negro e o que à época, se chamava de movimento homossexual.

Contudo, o cerne das análises se concentrava no “movimento de bairro”, motivo de várias polêmicas, mas talvez a mais importan-te para a presente análise seja o questionamento sobre a capaci-dade desses movimentos em realizar transformações estruturais na sociedade, dado que suas carências e reivindicações estavam relacionadas à esfera da reprodução social e não da produção. Não irei aqui analisar os equívocos dessas formulações, mas sim chamar a atenção para o fato de que historicamente a esfera da reprodução social é considerada um domínio das mulheres. E tanto foi e continua sendo que nas bases das lutas urbanas encontramos um número muito maior de mulheres do que de

homens, seja “segurando” uma ocupação, seja reivindicando a construção de escolas, creches, postos de saúde.

À primeira vista pode parecer um grande paradoxo que o direito à cidade derive das questões e lutas da esfera da reprodução social e que nestas lutas as mulheres sejam majoritariamente pre-sentes e, ainda assim, tenhamos que criar outra frente de batalha, o direito das mulheres à cidade.

Acontece que há grandes distâncias entre as letras postas em palavras que formam conceitos e promulgam direitos e a vida experimentada no cotidiano. No cotidiano, a separação estrita entre público e privado ainda é a lei que demarca a experiência das mulheres, tanto que para muitas mulheres a cidade não é um lugar onde elas estão, mas sim um lugar em que vão quando necessitam. E vão para a cidade com o sentimento de serem de “fora do lugar”, estrangeiras, ainda que na formalidade do direito sejam cidadãs. Para muitos/as esta afirmação parece equivocada ou no mínimo estranha, pois o que se vê é a presença e circula-ção de muitas mulheres pelas ruas, em especial nos grandes cen-tros. Contudo, presença e circulação não quer dizer que estas se deem em igualdade de condições com os homens. Presença e circulação podem se dar de modo subordinado.

Penso que uma das maiores forças das formações ideológicas é tomar a aparência pela realidade e essa mistificação tem sido uma resposta muito usual quando se reivindica o direito das mulheres à cidade, seja ao dizer que as mulheres estão nas cidades, portanto, usufruindo a mesma, seja quando se diz que os homens das camadas pobres da sociedade também não têm direito à cidade e, consequentemente, estão na mesma situa-ção das mulheres.

Entretanto nos pontos mal costurados da trama ideológica1 essa aparência se desfaz, revelando as localizações subordinadas das mulheres na experiência cotidiana das cidades. Para apresentá-las vou utilizar reflexões produzidas por mulheres adultas durante a minha experiência de trabalho no SOS CORPO Instituto Femi-nista para a Democracia2.

Quando perguntadas se gostavam de estar na cidade à noite, quase todas respondiam que não, porque preferiam estar em casa ou porque tinham medo. Quis saber também o que as mu-lheres viam, pensavam, quando se deslocavam, nos lentos trans-portes coletivos, dos seus bairros para a cidade – sim porque para grande parte das mulheres a cidade não inclui os lugares onde habitam, talvez possamos até dizer que a cidade para as mulheres são todos os espaços que não lembram ou não se parecem com o seu habitat. A grande maioria delas afirmava não ver nada, pois ficavam presas nos seus pensamentos. Pensamen-tos que se relacionavam com o que haviam deixado em casa e o que fariam quando lá retornassem.

1. O uso que faço da noção de ideologia se refere aos processos e discursos que são legitimadores da dominação.

2. O SOS CORPO Instituto Feminista para a Democracia é uma organização feminista que há 30 anos atua na defesa dos direitos das mulheres e fortalecimento do feminismo a partir de sua sede no Recife.

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Direito e Política no Caminho das MulheresA Liderança Feminina nas Lutas Urbanas

Page 10: A Liderança Feminina nas Lutas Urbanas

O espaço público, o transitar entre os seus vários pontos, o deslocamento por tempos extensos, é experimentado pelas mulheres como sendo apenas um caminho em linhas retas, por mais curvas que ele tenha, uma seta que aponta sempre para o mesmo sentido, a casa.

Por ser transitório, é um espaço que não lhe possibilita o per-tencimento; o estar fora de lugar gera ansiedade, o medo de que algo a qualquer momento aconteça e lhe confirme de modo brutal a ousadia de sua breve apropriação indébita. As mulheres têm muito medo da cidade à noite, medo da violência em geral, mas acima de tudo medo da violência sexual, afinal ainda persis-tem as figuras das “mulheres da rua” ou das “damas da noite”, figuras que marcam as mulheres como “do sexo”, seja ele pago ou forçado.

E por vezes nem é necessário que seja noite real, pois como nos contou uma mulher, era final de tarde quando, depois de uma manifestação política que havia participado, sentou-se em um banco de praça para descansar enquanto esperava a condução. Estranhou um pouco que suas amigas não fizessem o mesmo. Estranhou ainda mais quando um homem sentou ao seu lado e lhe perguntou, sem mais nem menos, quanto custava o pro-grama. Um tanto surpresa, demorou até entender do que se tratava. Assustada, levantou correndo e se juntou às suas amigas contando a história muito espantada. Suas amigas se espantaram porque ela não sabia que aquele banco de praça era um lugar marcado e que marcava. Mas ela não sabia pelo simples fato que aos 38 anos era a primeira vez que estava naquela praça, um dos lugares mais conhecidos da sua cidade.

Esses pequenos exemplos podem se multiplicar ao infinito, pois são situações tão corriqueiras que, em realidade, constituem a própria vida das mulheres nas cidades. São vários os elementos que podemos explorar para entender os mecanismos sutis e poderosos que fazem com que as mulheres por vezes sequer se pensem pertencentes à cidade. Entretanto, a permanência da distinção entre público e privado e a articulação desta com o masculino e o feminino é, do meu ponto de vista, onde se amarram as demais situações de exploração, exclusão e subal-ternidade.

Digo isto porque a divisão do mundo nestas esferas suposta-mente apartadas sequer passa por igualitária, ou seja, homens e mulheres teriam seus próprios domínios de poder. Desde sem-

pre o feminismo denunciou a falácia dessa estranha divisão, pois a casa nunca pertenceu às mulheres, elas no máximo tomam conta dela, cuidam para que seus verdadeiros donos “se sintam em casa”. Evidente que muitas coisas já não estão do mesmo modo; mulheres têm ampliado – e tornado visível – sua ocupa-ção do espaço público. Contudo, tais conquistas não erradicam a divisão, apenas as reconfiguram e apenas no sentido do espa-ço público, dado que o espaço privado continua operando do mesmo modo, a partir das mesmas coordenadas. Homens que, vez por outra, lavam os pratos ou tomam conta das crianças são exceções que não confirmam a regra, e que os tornam homens “especiais”.

Ou seja, uma dicotomia não se desfaz apenas porque um dos polos da relação se reconfigura, e se a luta pelo direito à cidade é marcada em sua origem pelas condições da reprodução social, ela tem como uma de suas fontes de contradição a relação entre a casa e a rua.

É interessante observar que a definição de direito à cidade – um dos princípios gerais do Estatuto da Cidade – trata quase que exatamente dos elementos que são necessários à reprodu-ção social, se não apenas da força de trabalho, em sua versão clássica, como também, numa aproximação imprecisa de ter-mos, “força de consumidores/as”, posto que a forma assumida pelo capitalismo contemporâneo tem o/a consumidor/a como figura central. O direito à cidade nesta definição é a associação de vários outros direitos: terra urbana, moradia, saneamento ambiental, infraestrutura urbana, transporte público, ao traba-lho e ao lazer.

Esse conjunto de direitos – além de revelar que uma mino-ria tem privilégios, pois em sociedades desiguais os bens que deveriam ser públicos são apropriados privadamente – em se realizando, com certeza traria melhores condições de vida para grande parte da sociedade brasileira. Contudo, a realização dos mesmos não só é impedida pela lógica do capital – afinal não há como ter condições iguais de acesso à terra urbana sem afetar a concentração fundiária e os mecanismos da especulação imo-biliária (não é a toa que em 10 anos avançamos muito pouco na efetivação do Estatuto da Cidade) – como necessariamente não irá modificar radicalmente a experiência das mulheres com a cidade.

Tomemos, por exemplo, as recentes modificações do Programa Minha Casa, Minha Vida. Há vários anos que os movimentos de mulheres e as mulheres que atuam nos movimentos urbanos lutam para que a titularidade das habitações de interesse social seja em nome das mulheres. Esta foi, do ponto de vista da legis-lação, uma conquista relativamente simples, na medida em que a argumentação que muitos/as dos seus/suas defensores/as fazem se baseia não exatamente no direito das mulheres a terem uma casa para si, mas sim no fato de que os homens, quando da se-paração, em geral não ficam com os/as filhos/as, além de terem por vezes o costume de “beber a casa na cachaça” como diz o dito popular. Em certo sentido, podemos dizer que as mulheres foram as beneficiárias secundárias, dado que mais que um direi-to, a titularidade da casa em nome das mulheres é uma espécie de proteção do patrimônio e da família.

Evidente que esta é uma conquista positiva, ainda que não desfa-ça, na verdade reafirme, a divisão público/privado. Contudo, na

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Não é por acaso que o conceito de direito à cidade é uma formulação do final dos anos 1960. As dinâmicas políticas internacionais naquele período davam conta do surgimento de novos sujeitos políticos e, portanto, novas formas de lutas e reivindicação de direitos até então não pensados como tais, pois muitas dessas reivindicações eram inscritas como questões privadas ou pessoais. Ressalto as lutas feministas.

Page 11: A Liderança Feminina nas Lutas Urbanas

prática houve e há uma enorme dificuldade de implementá-la, pois os homens resistem a ela e muitas vezes as mulheres termi-nam por abrir mão desse direito.

A recentíssima Lei 12.424 de 6 de junho de 2011, que traz as novas regras para a fase 2 do Programa Minha Casa, Minha Vida, avança em dois pontos: o artigo 73-A afirma que as mulheres chefes de família com renda mensal inferior a R$ 1.395,00 pode-rão ter contratos de residência firmados independente da outor-ga do cônjuge. Esta mudança irá beneficiar as mulheres que estão separadas de fato, mas não de direito e que até então viviam o dilema de não poderem adquirir um imóvel porque não tinham a permissão do marido, ainda que este não mais fizesse parte da sua vida há décadas.

Outra mudança importante refere-se a um acréscimo ao artigo 9-A da Lei 10.406 de 10 de janeiro de 2002. É o artigo 1240-A que afirma que se alguém exercer por dois anos a posse direta com exclusividade sobre um imóvel urbano de até 250 metros quadrados, cuja propriedade dividiu com o ex-cônjuge ou com-panheiro que abandonou o lar, utilizando-o para sua moradia ou da sua família, terá o domínio integral do imóvel.

Contudo, nos dois casos, que são legislações positivas para as mulheres, podemos encontrar algumas questões que expressam os limites das lógicas da dominação patriarcal e que, na verdade, só se tornavam visíveis sob determinadas condições. Como até pouco tempo atrás não havia políticas habitacionais para as popu-lações de baixa renda, a limitação de adquirir um imóvel, quando separada de fato e não de direito, sequer era pensada.

As limitações para as mulheres separadas de fato e não de di-reito, para serem superadas levaram à criação de situações de exceção relativas às determinações presentes no Código Civil, que regula as relações relativas ao matrimônio e ao patrimônio. Assim sendo, uma proposição de políticas públicas, no primeiro caso, que foi uma resolução aprovada na Conferência Nacional das Cidades de 2007, não poderia se efetivar sem outro instru-mento jurídico que criasse exceções. Sim, porque são exceções, já que no primeiro caso, a renda familiar tem que ser menor que R$ 1.395,00. Ou seja, uma mulher que esteja nas mesmas condições de separação de fato, mas não de direito, continua impedida de adquirir um bem se ganhar R$ 3.000,00.

O que explica tal exceção? É provável que o valor do patrimônio adquirido por alguém que ganha R$ 3.000,00 seja maior que aquele do posto no artigo mencionado, e assim mantêm-se a proteção aos homens, no sentido de evitar uma possível perda de seu poder e dos bens que tal poder lhe traz, ainda que não seja justo.

Na segunda alteração feita sobre o domínio do bem, também se mantém a lógica da defesa patrimonial de maior valor, pois os ca-sos em que o imóvel tenha mais de 250 metros quadrados tam-bém não estão enquadrados nesta exceção. Além disso, temos outra ordem de problema que o torna mais complexo, dado que é uma lei que trata os desiguais de forma igual, o que também se configura em uma injustiça. Os motivos que levam uma mulher a abandonar o lar são, em muitas situações, diversos daqueles que levam os homens a tomarem essa atitude. E dentre esses motivos, um infelizmente ainda é bastante comum: as mulheres abandonam o lar para manterem-se vivas, para fugir da violência doméstica. É justo que uma mulher que construiu e cuidou de sua casa durante anos, mas foi forçada a se ausentar dela para manter a vida não tenha direito sobre o seu bem?

Com isto estou querendo demonstrar que apesar dos importan-tes e significativos avanços da luta pelo direito à cidade, incluindo o acesso das mulheres a determinados bens coletivos, ainda há imensos obstáculos que não se desfazem por acréscimos ou ex-ceções à lógica vigente. Se pensarmos bem, todas as legislações específicas que tratam da situação das mulheres são mais prote-ções do que direitos reais. Em tese, não deveria ser necessário existir uma lei que tratasse especificamente dos casos de violên-cia contra as mulheres, pois, sendo mulheres seres humanos, crimes contra elas deveriam ser tratados do mesmo modo que os demais. Mas como na vida real as mulheres não têm o mes-mo estatuto de humanidade dado aos homens, é urgente prote-ger o seu direito mais básico: o de existir.

Todos os importantes debates e ações em torno do tema das cidades seguras para as mulheres terminam por confirmar que as cidades não foram estruturadas nem são vividas como sendo o espaço das mulheres; elas precisam ser protegidas na cida-de. Ou poderíamos dizer que as mulheres na verdade precisam ser protegidas das cidades e suas lógicas a serviço da dominação masculina? Repito aqui: se alguém reivindica um direito é porque outro tem um privilégio e assim a luta das mulheres pelo direito à cidade não pode se restringir às ações de proteção contra estes privilégios, isso é uma condição necessária, mas não suficiente. É preciso dar um passo além, um passo que não se revela ou se efetiva em tal ou qual legislação, mas sim na criação de condições para que as mulheres possam ter a liberdade fundamental de ir e vir, dimensão esta que não consta nos conteúdos formais da definição do direito à cidade.

As mulheres não são consideradas até hoje como seres de li-berdade, mesmo que lutemos todos os dias da nossa existência para sermos a liberdade que nos constitui. O filósofo alemão Heidegger demonstra a articulação que há entre os termos ha-bitar, construir, permanecer, ser. Para ele “eu sou, quer dizer eu habito”. Mas não no sentido de se localizar em uma casa deter-minada, portanto, em um espaço privado, mas sim na morada de si e do mundo, na escolha de sair, voltar, permanecer, ser e estar em qualquer lugar e em qualquer tempo, em companhia ou em solidão. Este é o ponto de origem e o ponto de chegada da luta das mulheres pelo direito à cidade: a liberdade de ser sujeito de si e do mundo.

Direito e Política no Caminho das MulheresA Liderança Feminina nas Lutas Urbanas

Há grandes distâncias entre as letras postas em palavras que formam conceitos e promulgam direitos e a vida experimentada no cotidiano. No cotidiano a separação estrita entre público e privado ainda é a lei que demarca a experiência das mulheres, tanto que para muitas mulheres a cidade não é um lugar onde elas estão, mas sim um lugar em que vão quando necessitam. E vão para a “cidade” com o sentimento de serem de “fora do lugar”, estrangeiras, ainda que na formalidade do direito sejam cidadãs.

Page 12: A Liderança Feminina nas Lutas Urbanas

Mulheres são a base da reforma urbanaInês MagalhãesSecretária Nacional de Habitação

Ministério das Cidades

O fato mais significativo na história recente da questão habitacional tal-vez tenha sido a criação do Ministério das Cidades, que veio consolidar o compromisso assumido pelo presidente Lula de fortalecimento dos espa-ços de gestão democrática e participativa. Não apenas pela criação dos Conselhos das Cidades, mas principalmente pela criação do Conselho Gestor do Fundo Nacional da Habitação, resultado da luta histórica de movimentos sociais pela reforma urbana. O projeto tramitou por anos no Congresso Nacional, mas foi sancionado por Lula em 2005. Esse compro-misso do presidente permitiu que fôssemos estabelecendo novo patamar para as instâncias de intervenção direta da população na definição de políticas públicas.

O melhor exemplo é o da Lei 11.124 de 2004 que, ao dispor sobre o Sis-tema Nacional de Habitação de Interesse Social, cria o Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social e institui seu Conselho Gestor. Essa Lei obriga estados e municípios a terem seus próprios Conselhos e Fun-dos, ao mesmo tempo institucionaliza a participação das entidades da sociedade civil organizada, como associações comunitárias e sindicatos. Em toda essa estrutura, com certeza, a atuação feminina é muito forte, assim como nos movimentos pela moradia.

Poder Executivo

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Page 13: A Liderança Feminina nas Lutas Urbanas

No eixo da produção habitacional expresso no Minha Casa Mi-nha Vida, também há algumas coisas interessantes. A própria Lei 11.977/2009 – que criou o programa – dá destaque e prioridade às mulheres tanto na regularização fundiária quanto na assinatu-ra do contrato. Para assegurar essa prioridade, a MP 514/210, fez algumas alterações no Programa, e estabeleceu, para maior proteção à mulher chefe de família, com renda mensal de até R$ 1.395,00, que os contratos tanto do Minha Casa Minha Vida quanto os de regularização fundiária de interesse social, promo-vidos pela União, estados, DF ou municípios, poderão ser firma-dos sem a outorga do cônjuge.

Foi uma decisão muito importante se considerarmos que boa parte da rejeição dos cadastros advinha da irregularidade civil dessas famílias. Muitas vezes, a mulher que cria seus filhos so-zinha não podia assinar porque não tinha sua situação civil re-gularizada.

Porém, mulher sempre foi prioridade no atendimento do Minha Casa Minha Vida: quase 90% dos contratos na primeira etapa do programa foram assinados por mulheres. Mesmo assim, havia uma rejeição significativa de cadastros por conta dessa limitação dos cônjuges terem que autorizar a dívida. Ora, a mulher exerce o papel de chefe de domicílio dessas famílias! Essa alteração, por-tanto, é muito importante e deverá ter impacto bastante positivo na assistência a essas famílias.

Existe o mito de que o investimento feito pelo governo nessa área surgiu para atender a demanda provocada pelos próximos megaeventos que o Brasil sediará: Copa do Mundo e Olimpía-das. Não é justo. No caso da habitação, por exemplo, a urbani-zação dos assentamentos precários está sob o guarda-chuva do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC): serão R$ 30 bilhões de investimentos nesses próximos quatro anos.

RECURSOS PAC 1 HABITAÇÃO

Os Conselhos têm conseguido intervir efetivamente na formu-lação das políticas públicas? Têm. Com certeza, no debate sim. Mas há uma reflexão necessária, que começa a ser feita, sobre a necessidade de confluência dos diversos conselhos criados para garantir essa participação popular direta. A redemocratização do país ensejou a formação de vários sistemas: o de saúde, de edu-cação, de assitência e mais recentemente, o de habitação. Ora, cidades de cinco, seis mil habitantes, precisarão de um número de conselhos igual ao de cidades como São Paulo ou Rio de Ja-neiro? Acho que essa discussão faz parte do amadurecimento do processo democrático brasileiro. Temos uma democracia ainda jovem. Portanto, nesse processo de amadurecimento, esse de-bate é importante e tem conseguido pautar, em maior ou menor grau, com mais ou menos qualidade, as questões das políticas públicas. É um debate fundamental nesse momento e não deve-mos esquecer que o amadurecimento trará mudanças na forma de atuação desses Conselhos, na sua articulação e na ampliação de seu foco para questões mais abrangentes de maneira a fazer com que tenhamos políticas públicas mais articuladas.

Quanto à participação das mulheres em todo esse processo, o que há, ainda, é um grande descompasso entre a importância que elas têm na base dos movimentos sociais e sua represen-tação nas instâncias institucionais, em cargos de coordenação ou de direção. Do ponto de vista restrito do Ministério das Ci-dades, percebe-se um grande esforço dos movimentos sociais em considerar a questão de gênero quando da escolha de suas representações. Mas não só sob esse viés: existe, também, a preocupação com a representação regional, de maneira a per-mitir um revezamento das lideranças tanto por um quanto pelo outro critério.

Em termos mais específicos, o momento é bastante interessan-te no sentido de que os instrumentos necessários à construção de uma política de habitação sustentável já estão colocados. Isso, somado ao aumento expressivo dos recursos investidos nos últimos anos, permite, por exemplo, executar a política de urbanização de favelas como uma política estruturante da po-lítica habitacional, resgatando esse passivo urbano e social que as favelas representam. O trabalho é feito com uma visão mais ampla. O objetivo de dotar esses assentamentos precários de infraestrutura é apenas um entre vários outros, como a melhoria do acesso das populações a serviços e o desenvolvimento do potencial dessas pessoas.

Há um investimento expressivo, no contexto dessa política, no aspecto social: no mínimo 2,5% dos recursos da urbanização dessas favelas são utilizados para garantir educação sanitária am-biental, organização comunitária, reforçar o tecido social das comunidades e investir na geração de trabalho e renda. E aí, as mulheres têm um papel importante porque são as principais participantes dessa capacitação.

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Direito e Política no Caminho das MulheresA Liderança Feminina nas Lutas Urbanas

O Minha Casa Minha Vida tem programada a construção de dois milhões de unidades. São metas já estabelecidas que não devem ser alteradas. Alguns outros empreendimentos faziam parte do planejamento de estados e municípios e seriam implantados in-dependente desses megaeventos, porque são fundamentais para as cidades e muitos deles terão impacto significativo em termos de mobilidade.

É um exagero rotular esses empreendimentos como vinculados à Copa ou à Olimpíada.

EIXOS NO de Operações Famílias beneficiadas

R$ bilhões

Urbanização 624 1.243.309 16,59

Urbanização SI 135 379.285 6,77

TOTAL 759 1.622.594 23,36

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Ampliação dos Investimentos em Habitação no Brasil

A discussão importante deveria se dar no âmbito de se avaliar a maneira, os instrumentos por meio dos quais são feitos esses financiamentos e como é que a população é informada deles. Como é que é tratado o reassentamento dessas famílias. Esse é o processo que exige nossa atenção.

A questão de como ter cidades mais democráticas, do ponto de vista do acesso à terra, é sem dúvida alguma um desafio para o próximo período. Temos um crescimento de investimento e a dis-puta da terra se dá, sobretudo, em nível municipal. Isso quer dizer que a discussão dos Planos Diretores de Ordenamento Territorial (PDOT) se torna fundamental. É esse debate que definirá as áreas da habitação de interesse social. Tanto do ponto de vista da sua localização quanto da sua infraestrutura. A partir dela é que se po-derá acelerar a implantação do Minha Casa Minha Vida.

Esse é um tema polêmico num país federativo como o nosso. A União tem limites nessa discussão. O planejamento urbano e a definição do uso e da ocupação do solo são prerrogativas exclusivas do município e o governo federal, apesar de ter, em determinados períodos, financiado vários Planos Diretores, não pode intervir, mas vem procurando desenvolver a cons-ciência da importância da participação popular na elaboração dos PDOTs. A implantação das chamadas zonas de interesse social, a ocupação dos vazios urbanos, só chegou a um número pequeno de municípios. Não é um instrumento que tem sido usado pelos municípios, o que dificulta a execução do Progra-ma Minha Casa Minha Vida em várias cidades, por isso a impor-tância de debater a mobilidade urbana como componente fun-damental ao planejamento das cidades e ao estabelecimento de zonas de interesse social para implantação da habitação. Mais, talvez, no contexto metropolitano. Dois dos grandes desafios para o próximo período.

A questão do déficit habitacional deixou de ser uma perspectiva prioritária no trabalho do Ministério. Nossa perspectiva hoje é de que há um crescimento anual da demanda por novas habitações da ordem de mais de um milhão de moradias, decorrente da al-teração da pirâmide demográfica brasileira. Houve um aumento da quantidade de famílias que se formam a cada ano, consequ-ência do “envelhecimento” e do “enriquecimento” da população brasileira. E esse dado não está computado como déficit. É uma nova demanda.

Subsídio FGTS: Res.460/04 – a partir de 01/jun/05

Recursos OGU = valores empenhados no exercício (habitação e saneamento)

PMCMV = total de contratações PF e PJ

Fontes: CEF (Quadro-Presi de 31/12/10 e Relatório preliminar PMCMV de 31/12/10) e MCidades (OGU 31/12/10)

A projeção de formação dessas famílias expressa o crescimento de uma nova classe média. Qual o desafio então? Por um lado, atender ao déficit e, de outro, criar condições de atender à nova demanda com a criação de um mercado capaz de produzir, de construir o que essa faixa da população pode adquirir por meio de juros subsidiados. É a única maneira de não gerar novos dé-ficits. Mais do que combater o déficit existente, o fundamental é não permitir que ele cresça exponencialmente.

A curva de fecundidade nacional é decrescente, mas a de forma-ção de novas famílias, pelas razões já colocadas, é ascendente. Nos próximos 15 anos, se espera uma demanda nova por cerca de 23 milhões de domicílios.

Enfim, hoje há instrumentos e volume de recursos capazes de gerar uma mudança na questão da moradia. Há uma política de urbanização de favelas, há também o marco regulatório e a questão da regularização fundiária já é agenda dos municípios, dos estados e da própria União. O Brasil tem um programa de produção habitacional em larga escala e uma política de subsídio para essa produção que permite, por exemplo, que uma famí-lia com renda de três salários mínimos tenha acesso ao crédito habitacional.

Resultados MCMV 1 – 2009-2010

1.005.128 unidades contratadas

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A perspectiva é de que essas conquistas sejam consolidadas para que se possa, nos próximos anos, equalizar e equacionar a ques-tão do déficit habitacional.

Direito e Política no Caminho das MulheresA Liderança Feminina nas Lutas Urbanas

15%

149.035571.321

Valores em R$ MilMeta: R$ 48.927.985

0 a 3 SM

3 a 6 SM

6 a 10 SM284.77217% além da meta

28% 57%

PMCMVRecursos OGUSubsídio do FGTSRecursos onerosos FGTS, FAR, FDS e FAT

EmpenhadoOGU PMCMV

6.680.000

EmpenhadoOGU PMCMV

5.250.000

2002

5.248.623 5.703.712 6.139.477

10.148.671 10.161.138 11.688.46114.190.108

27.660.839

48.456.071

4.779.812 4.844.924 5.141.6268.566.761 7.332.937 8.046.061

10.865.2029.872.293

7.044.521

1.178.5002.206.0571.599.891

2.109.169

14.079.486

38.026.993

1.361.9021.963.004

1.799.9401.842.460

899.500 1.824.1881.004.014682.409

198.871 472.276 293.692269.940 386.512 704.159

2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010

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Direito e Política no Caminho das MulheresA Liderança Feminina nas Lutas Urbanas

Nós somos a contraculturaEvaniza RodriguesConsultora da Presidência da Caixa Econômica Federal

Coordenadora da União Nacional por Moradia Popular à época das oficinas

É importante discutir e ajudar a construir a agenda de intervenção das mulheres na política de reforma urbana – uma caminhada com conquis-tas importantes. Como falar de uma cidade mais igual num contexto de absoluta desigualdade? O que entendemos por cidade? Qual é a nossa pauta urbana? A desigualdade se mostra cada vez mais complexa e mais difícil de ser superada. Por isso, acredito que seja esse o momento de re-pensar a política pública urbana e as formas de intervenção.

Em São Paulo, quando pequena, ouvia da minha mãe e da minha avó: “Hoje vamos à cidade”. Morava no município de São Paulo e cidade, nes-se caso, era o Centro de São Paulo. Cidade é o lugar onde se concentram os serviços, os equipamentos, o trabalho. As pessoas vão à cidade buscar trabalho, oportunidades.

Políticas públicas

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No entanto, o acesso às oportunidades é negado à maioria. A cidade também é a sede do sistema capitalista. É onde se tomam as grandes decisões, onde se organiza o funcionamento do siste-ma, que é excludente, não existe para todos. Essa cidade que é lugar de oportunidades, nega essas oportunidades a uma imen-sa maioria. É um processo histórico que vai revelar que alguns lugares são mais cidade que outros, que algumas políticas que deveriam ser para todos são mais para uns que para outros.

Portanto, a cidade já não é só o espaço onde tudo acontece. É fa-tor de inclusão de alguns e de exclusão da maioria. Acentua esse movimento de concentração econômica, de renda e de poder de decisão nas mãos da minoria. Essa desigualdade cresce e se aprofunda quando se trata de gênero. As mulheres acabam afo-gadas nessa desigualdade de classes, que se soma à desigualdade racial. Neste percurso vamos montando o quadro da exclusão.

Quando falamos de Direito, estamos falando de questões estru-turais que dizem respeito a todas as pessoas, da construção de uma relação social mais igual, quando bens, serviços e conquistas da sociedade são distribuídos igualmente entre todos.

Cabe ao Estado a função de ter políticas públicas que atendam a esses Direitos. Não existe conquista de Direito sem política pública correspondente. No Brasil, nós já temos, pelo menos o conceito de saúde para todos definido na nossa cabeça e lutamos por isso. Ninguém acha que o sistema de saúde deveria acabar!

As pessoas que perderam suas casas em tragédias, por exemplo, por mais que exista uma comoção nacional, em algum momen-to alguém vai dizer que a culpa é de quem construiu a casa ali. Como se casa não fosse uma questão de política pública. Não foi o cidadão que gostou de morar na beira do córrego ou achou a vista linda, construiu e pronto! Não. Foi o modelo de política urbana que o colocou, com sua família, nesse lugar.

Moradia é Direito. Só que a ação do poder público garantin-do esse direito é bastante precária. A maioria das casas não foi construída por programas de políticas públicas, mas pela própria população. Saneamento é Direito e, portanto, depende de po-lítica pública. Temos saneamento nos bairros consolidados, de classe média, de classe alta e não temos saneamento nos bairros populares. É justo que se pergunte por que esse direito, que corresponde a uma política pública, é respeitado de forma tão desigual? Os investimentos também estão submetidos às regras de mercado: coloca-se água e esgoto em lugares que são rentá-veis, mas onde a tarifa é social deixa-se para depois.

Entender essa dinâmica é fundamental para que nossos olhares sejam menos ingênuos na busca de direitos. Quando tratamos de políticas públicas e direitos estamos falando também de omissão. A omissão é uma tomada de posição. Todo mundo já ouviu falar em “crescimento desordenado das cidades”. Se você se omite (afinal, você não mandou ninguém morar no morro...) está assumindo uma posição política. Há alguns anos atrás era impensável falar de moradia popular sem falar de po-lítica pública.

Mulheres na construção de políticas

Somos mulheres atuantes nos movimentos populares, líderes em nossas comunidades, que estamos tanto em movimentos mais amplos, quanto nos que tratam de questões específicas, onde atuamos mais territorialmente. Fomos criadas no tem-po da escassez. Na década de 1980, quando nasceu a maioria desses movimentos, a época era de recessão, desemprego e inflação incontrolável. Momentos, de fato, de depressão eco-nômica. Será que o que foi reivindicado e pensado naquele momento vale, da mesma forma, para um momento de cres-cimento econômico?

Hoje, a discussão sobre a área portuária do Rio de Janeiro é inte-ressantíssima, porém, quando o porto não tinha perspectiva de crescer, de melhorar, a região era só degradação. Naquela épo-ca até era possível aos mais pobres, comprando, ocupando ou alugando, morar por ali. Agora, com a região revitalizada, tudo muda (“ já não é mais para vocês”).

Em São Paulo acontece o mesmo. O projeto de uma nova Luz (a Luz é o bairro onde fica a Cracolândia) é mirabolante: inspirado em capitais européias. A primeira providência a ser tomada é ar-rancar os pobres de lá. A política higienista, longe de estar supe-rada, se impõe sempre que é preciso recuperar um espaço para que ele garanta lucro: implantar rodovias, hidrelétricas e também nas revitalizações da cidade, como no porto do Rio ou na Luz em São Paulo. Sabemos que não existe sociedade sem dinheiro. A questão é estabelecer padrões éticos, padrões de convivência, não mediados apenas pelos interesses econômicos.

E nem percebemos que nossa atuação na cidade, muitas vezes, é moldada pelos governos, que atuam de maneira descentrali-zada, em secretarias distintas. Não há um projeto de governo que enxergue o desenvolvimento de maneira global, fazendo com que todas as áreas atuem juntas por um mesmo objetivo. Há uma disputa de poder interna nas estruturas governamen-tais que não permite isso. Nós atuamos nos nossos movimen-tos, nas nossas lutas, pautadas por essa divisão. Esquecemos que nossa vida é permeada por todas as políticas, por todos os direitos: a mesma pessoa que precisa de transporte, pre-cisa de saúde, de educação, de lazer, de moradia... Porém, a nossa ação é organizada de maneira fragmentada. Acabamos por trazer para os nossos movimentos a mesma fragmentação institucional dos governos.

Um dos meios de lutar pela reforma urbana é lutar pelo Plano Diretor. É ele que vai determinar onde vamos morar, como va-mos circular, como a cidade vai se organizar. É um momento interessante de discussão. Infelizmente, na maioria dos casos, é só um momento. No dia a dia, as necessidades são tantas que nos deixamos envolver por movimentos específicos, ou seja: se preciso de creche, vou integrar um movimento por creche; se preciso de casa, vou à associação por moradia... Essa fragmenta-ção é um dos problemas a enfrentar.

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Direito e Política no Caminho das MulheresA Liderança Feminina nas Lutas Urbanas

Mulheres no processo de organização

Quando há remoção de favela as mulheres que participam, que lideram o processo, têm na cabeça todas as dimensões que pre-cisam ser atendidas para aquela remoção acontecer da maneira menos traumática: pensam no deslocamento para o trabalho e das crianças para a escola, da vaga das crianças na nova escola ou creche, no atendimento de saúde, no acesso ao comércio etc. Montam na cabeça todo um sistema altamente complexo. A mulher faz imediatamente um checklist no seu sistema de sobre-vivência, da vida que leva onde está para o lugar para onde que-rem levar suas famílias. Já o homem, a primeira e mais comum das perguntas que faz é sobre o valor da indenização.

A participação deve se dar em todos os momentos, da definição à implantação das políticas públicas. Na definição de urbanização, no desenho do espaço. Se não tiver perspectiva de gênero esse espaço vai ser desenhado à luz da reprodução do que a cidade já é, sem preocupação com essas questões, que excluem a mulher do espaço público.

Como é possível reverter isso, para que homens e mulheres assumam coletivamente as tarefas de reprodução da vida: edu-cação, alimentação, limpeza até construção e transformação da sociedade? Para a consciência coletiva evoluir precisamos traba-lhar coletivamente. As revoluções são das pessoas.

Hoje, nós mulheres, participamos de várias instâncias institucio-nais responsáveis pela política pública de habitação. Do Conse-lho Nacional da Cidade, do Conselho Municipal de Habitação, do Conselho Estadual. Sem dúvida, grandes conquistas. Mas isso não basta. É preciso saber o que está por trás de cada pessoa ou de cada organização que assume seu papel no Conselho. O que acumulamos de força, de propostas é o que temos para colocar perante o poder público. Muitas vezes as brigas na vaga pela elei-ção de Conselhos ficam irracionais. Participar é, também, supe-rar a dificuldade de, muitas vezes, enxergar somente o pontual.

Trabalhar para que haja uma política de moradia em áreas con-solidadas é uma contribuição específica das mulheres que têm esse olhar que permite olhar o todo, sem deixar de enxergar o que está a seus pés. Com a perspectiva de melhorar partici-pamos de oficinas de capacitação, reuniões na prefeitura e na comunidade. A necessidade nos impõe essa realidade e nos dá uma base real. Mas é preciso ter um projeto político. Por isso nos organizamos.

Não é por que alguém foi educado de maneira mais tradicional, mais conservadora, tanto na questão política quanto na relação entre homem e mulher, que não vai se modificar. Os nossos problemas não são problemas individuais e, por isso, as soluções são sempre coletivas. Estamos condenados a nos organizarmos. O desafio é superar os limites que nosso dia a dia estabelece.

O sucesso coletivo

A cultura do consumo é individualista e o mundo do consumo vai contaminando outras esferas da nossa vida, sem falar no senso comum: “o trabalhador que trabalha muito tem suces-so”. “Era camelô, trabalhou muito, vendeu muito no trem e hoje é empresário”. O Silvio Santos era camelô e chegou lá. Todavia, conheço muitos outros camelôs que lutaram, traba-lharam muito e 50 anos depois são camelôs. Essa cultura que prega que o sucesso é resultado do esforço individual é super-valorizada o tempo todo e, muitas vezes, nem percebemos. Muitos são os filmes de heróis que assistimos, mas poucos são os filmes de lutas coletivas. Pouquíssimos. Não é essa a idéia a ser reforçada.

Para começar a se organizar, para que a pessoa saia da sua casa para participar de uma organização, o primeiro passo é a supera-ção dessa imagem de que o sucesso é individual, que é a imagem do capitalismo, no qual é preciso criar um sistema de mobilidade no qual algumas pessoas vão ter sucesso, vão ser invejadas. As-sim, todas as outras vão querer ser como ela e fazer como ela. Como se isso fosse a meta de todo mundo.

Aí entra a questão de gênero novamente, da mulher que par-ticipa. Essa mulher acaba tendo que superar várias outras limi-tações. Os limites da organização familiar, das relações com os filhos, com o marido, com as obrigações do lar. E também com a imagem pública que ela vai ter junto à família, aos que são próxi-mos a ela, ao ciclo de amigos e à vizinhança. “A casa dessa mulher é uma bagunça porque ela não para em casa”; “Essa mulher não assume as obrigações da casa!”. Superar esses limites e esses preconceitos é um passo fundamental.

Cada vez fica mais difícil que mais pessoas rompam esses para-digmas, essas ideias preconcebidas e acreditem mais na compa-nheira que mora do seu lado do que nas lideranças já estabele-cidas. É muito mais difícil acreditar num igual, exatamente por conta daquela imagem de herói. Superar essa imagem do super herói e mostrar que a solução do seu problema está num igual a você, é outro passo de superação importante.

É preciso que as pessoas conheçam que existe este trabalho. Às vezes tem algumas práticas que são “meio umbiguistas”: um gru-po de dez pessoas faz reunião cinco vezes por semana, no mes-mo lugar sempre. Se você chega à ponta da rua e pergunta onde é que fica o grupo que discute a questão do córrego do bairro: “Ah, eu nunca ouvi falar”. Então como é que vamos trabalhar para que a nossa luta vá envolvendo, mobilizando, sendo conhecida? Primeiro por quem está interessado e depois, claro, ultrapassan-do esses limites. Eu brinco que para a pessoa “começar a existir para a cidade”, quando mora na periferia, é preciso acordar com R$ 6,00 no bolso. Se não tiver, está condenada a passar o dia restrita ao espaço que consegue cobrir caminhando.

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Sobre as remoçõesTodo mundo tem um história trágica para contar sobre um des-pejo. É raro conseguirmos juntar cinco, dez, vinte áreas amea-çadas de despejo para fazer uma luta conjunta. Geralmente é um por um. Enviamos cartas de solidariedade, mas não conse-guimos costurar essa solidariedade entre as diferentes frentes de luta. É fundamental essa articulação de base! Ainda que existam divergências entre nós. Temos muita coisa que nos divide, com certeza. Entretanto, se colocarmos num quadro vamos ver que temos muito mais coisas que nos unem.

Queremos ser reconhecidas como interlocutoras das políticas públicas. Isso não é uma coisa que é dada. Quando é dado, tem interesse por trás. Conseguimos esses espaços através de orga-nização. O que nos sustenta, o que está por trás de cada pessoa, de cada organização é a força que acumulamos.

Participar é conseguir enxergar mais longe e mais profundo, e não apenas mirar o ponto alto. Por isso, a importância da con-tribuição da mulher. Sem esse olhar, nossa organização acaba na hora que resolve o problema específico. Temos que trabalhar para que as organizações que construímos não fiquem esvazia-das da relação com o concreto e o cotidiano. Atrás do concreto – a casa, a creche – , vamos construindo, no caminho, a consci-ência da cidadania que é esse processo de fortalecer o coletivo. Podemos não concordar em tudo, mas tem aquela pauta que é a nossa pauta conjunta. E ela nos levará juntos.

Copa e Olimpíadas Em São Paulo não tinham nem definido onde seria o estádio e já estava tendo despejo com a desculpa da Copa e da Olimpíada. E não só por esses dois grandes eventos, mas também por grandes investimentos, grandes interesses no território das cidades.

Quando se tem esses investimentos, não se passa por instân-cia nenhuma da estrutura institucional de definição das políticas públicas da área, nem por nenhuma instância de participação popular. Até da legislação se passa, às vezes, ao largo. Nossa luta tem sido para fazer com que essas ferramentas, essas ins-tâncias, funcionem. É principalmente nesses momentos que têm que funcionar. Talvez muitas coisas estejam passando por fora dessas instâncias que construímos e não percebemos. Um bom exemplo disso são os Planos Diretores. Plano Diretor nenhum, de cidade nenhuma, previu a realização da Copa do Mundo. Agora, as cidades têm instrumentos pra investigar os impactos, para você distribuir de maneira equitativa tanto os ganhos quan-to as perdas desses processos. É a hora de nós radicalizarmos na defesa desses instrumentos. Na defesa da participação dos Conselhos – os conselhos municipais de habitação, os estaduais e o Conselho Nacional da Cidade – na discussão e elaboração dos projetos que irão preparar nossas cidades para receber esse grande evento.

Em São Paulo, a área Nova Luz é uma Zona Especial de Inte-resse Social (ZEIS), marcada para ser área de habitação popular! Agora vem este plano que é muito mais bonito e passa bem em cima. Não pode ser assim: existe um projeto demarcado, temos uma Lei determinando isso. Está na hora de radicalizar na defesa da aplicação desses instrumentos. Falo radicalizar tanto no senti-do de fazer a luta direta, quanto no de abrir a luta jurídica. Temos que levar nossa luta a todas as frentes de ação, caso contrário va-mos simplesmente assistir a Lei, que nós construímos com tanto esforço, ser rasgada e jogada no lixo.

Pouca participação das mulheres nas instâncias de poder O poder não é pecado. Nos evangelhos, poder é serviço. Se tenho o poder, tenho maior capacidade de fazer as coisas pelo bem comum. Tenho acesso a vários meios, a mais ferramentas, mais recursos. No entanto, é comum pessoas que dizem não disputar poder. Essa disputa deve ser feita, mas não como maneira de manipular as formas de conquista do poder tradicional. Se há uma boa proposta e ela se opõe a outra que você julga não ser tão boa, você tem obrigação de disputar para que sua proposta seja ouvida, seja entendida e ganhe mais adeptos. Você pode ter uma idéia maravilhosa, mas se ninguém ouviu, ninguém gostou, ela vai ficar na gaveta. Temos que tirar os “demônios” das disputas dos espaços de poder. Claro, isso não deve ser feito com tru-culência, nem desrespeitando o outro que tem a ideia diferente. Uma ideia diferente pode, e é o que quase sempre acontece, enriquecer a sua proposta.

É importante perceber que quando as mulheres estão no lugar de poder, elas transformam a realidade, a vida das pessoas, não só a das mulheres. Elas estão preocupadas em assumir aquele lugar para transformar a vida da comunidade, dos filhos, dos jovens, dos pais, dos idosos.

Nós mulheres somos agentes de contracultura, estamos falando uma coisa que ninguém está falando. Seja na política, nas rela-ções de direitos, nas relações raciais, e nas relações de gênero. Nós não necessitamos só de diagnóstico, precisamos de ação. A imagem da presidente Dilma, na rampa do Palácio do Planalto sozinha, vale por mil oficinas de capacitação. É uma mulher que tem uma trajetória política, fez suas escolhas e hoje é presidenta da República. Essa é uma mensagem que chega a todo mundo ao mesmo tempo, não podemos perder essa oportunidade. Especialmente agora, a presidenta de todos os brasileiros e brasileiras é mulher. Chamá-la de presidenta não é uma questão semântica, é demarcação de espaço.

Direito e Política no Caminho das MulheresA Liderança Feminina nas Lutas Urbanas

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Desafios da implementação da plataforma feminista no campo do Direito à CidadeMércia AlvesAssistente Social, Coordenadora do Programa Direito à Cidade do Centro Dom Helder Câmara (CENDHEC) e integrante do Fórum Nacional de Reforma Urbana

Participação e Controle Social

A discussão da gestão democrática e participativa no campo das cidades é recente, por mais que a defesa de uma gestão demo-crática na política urbana date dos anos 70, como parte da agen-da de luta da reforma urbana e pelo Direito à Cidade. Dentro deste lugar de pensar a cidade de forma democrática, e olhando para a diversidade e as desigualdades sociais, de gênero, raça e geração, é uma questão ainda mais recente. Não que não venha a ser um tema relevante, mas o objeto das preocupações era e é, a questão da moradia, e não poderia ser diferente uma vez que a falta de moradia atinge mais de 80% da população de 0 a 3 salários mínimos.

A dimensão da agenda feminista na luta da reforma urbana, de olhar para as cidades percebendo os sujeitos, homens e mulheres, que contribuem para a dinâmica produtiva e reprodutiva das cida-des. A luta política por uma cidade mais equitativa e democrática, significa pensar em um conjunto de ações políticas que afirmem o lugar dos “sujeitos ocultos nas cidades”, as mulheres. Ocultos no sentido de que é preciso pensar no diálogo das políticas urba-nas e as ações afirmativas para igualdade de gênero nas cidades. Esse olhar não pode ser visto como uma concessão, mas como direito. Se as mulheres que atuam no campo urbano e que vivem no urbano são em sua maioria lideranças comunitárias, chefes de famílias, não podem ser invisivibilizadas no espaço das cidades. São sujeitos políticos, presentes na luta histórica dos movimentos so-ciais urbanos por uma cidade de direitos.

O Fórum Nacional de Reforma Urbana, como uma articula-ção nacional, assumiu essa tarefa de construir uma plataforma feminista pelo Direito à Cidade e incidir no âmbito do Con-selho Nacional das Cidades e em suas conferências, o marco desta discussão nacional é 2005, na 2ª Conferência Nacional das Cidades. E a marca desta plataforma feminista no âmbito da Política Urbana é incorporar nas políticas setoriais urbanas – Habitação, Transporte e Mobilidade, Saneamento Ambiental

e Acesso à Terra Urbanizada – a dimensão de gênero e mais re-centemente a dimensão racial, por compreender que as expres-sões das desigualdades nas cidades atingem de sobremaneira a população negra e de mulheres.

Nestes últimos seis anos de proposição de uma plataforma feminista, e de sete anos de Conselho Nacional das Cidades, uma centralidade da agenda feminista é a ampliação e parida-de na participação das mulheres no âmbito do Conselho, com representação nos seis segmentos que o compõe (poder públi-co, movimentos sociais urbanos, trabalhadores, empresariado, entidades profissionais e acadêmicos e ONGs), totalizando 184 conselheiros e conselheiras entre titulares e suplentes. Neste período há um crescimento no número de participação de mu-lheres, e na quarta gestão do CONCIDADES (2011- 2013), do total dos conselheiros 45 são mulheres, sendo que destas 21 são titulares. De fato, um avanço quantitativo, mas do ponto de vista da agenda política de incidir no âmbito das políticas públicas urbanas, os avanços não são significativos.

A título de exemplo, a Plataforma Feminista Urbana defende que as políticas Urbanas devem dar maior visibilidade a proble-máticas das mulheres nas cidades, elaborando as diretrizes das políticas a partir da análise estruturante das desigualdades nas cidades e o fortalecimento da atuação das mulheres no cam-po da reforma urbana. Avançar qualitativamente significa levar, aprofundar esse debate na via institucional, Conselho e Confe-rências, de forma a promover ações no campo formativo e de-finir estratégias para incorporar essas definições no âmbito das políticas urbanas. O avanço político ainda encontra-se restrito a um grupo de mulheres que são sujeitos políticos e lideranças em suas organizações. Resta-nos investir na ampliação desta plataforma no âmbito da gestão pública de forma a transformar intenções e gestão em ação política, de forma a reverter as desigualdades de gênero nas Cidades.

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Patrícia Evangelista

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O barro que molda

mulheres de atitude

“O governo do estado é cruel; enquanto diz que está ao lado dos moradores, procura

discutir com eles, elogia Manguinhos por

sua participação em massa e organização social, pratica ações

premeditadas para afastá-los”

Patrícia Evangelista, secretária executiva do

Fórum do Movimento Social de Manguinhos

Mas foi o que fizeram ao obrigar os ideali-zadores do maior projeto de intervenção ur-bana do governo federal a discutir o destino dos que moravam bem no meio dos croquis dos engenheiros, assim como os contornos das construções previstas em Manguinhos, bairro do subúrbio do Rio de Janeiro, próximo à estação ferroviária de mesmo nome, mas que também engloba áreas de favela, como Coréia, Mandela de Pedra e Amorim, além de abarcar ocupações ao longo de espaços públicos e privados, como as fincadas no ter-reno das empresas CCPL, Embratel e Cia. de Abastecimento (Conab).

Manguinhos

Participação e Controle Social

Direito e Política no Caminho das MulheresA Liderança Feminina nas Lutas Urbanas

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Patrícia Evangelista

Patrícia Evangelista, secretária executiva do Fórum do Movi-mento Social de Manguinhos, recorda que houve muito cho-ro e medo durante todo o processo de discussão levando a dispersão de grande parte do grupo e ela própria teve que se afastar do movimento por um determinado período, revela, acrescentando que o governo dizia que executava as obras do PAC local com a participação do povo, quando, de fato, já estava tudo pronto. Ela lembra, inclusive, da expressão de alguns dos quase 400 moradores que participaram da reu-nião do Fórum Social de Manguinhos, em 2007, ao serem apresentados ao projeto original do PAC: “Eles apontavam os mapas dos projetos de engenharia e exclamavam: “aqui é a minha casa” ou “essa é a minha rua”, sem entenderem direito como foram parar dentro de desenhos que mostravam a linha férrea e as ruas arborizadas tragando tudo e todos”, contou.

A secretária executiva do Fórum do Movimento Social de Manguinhos relata que, de início, as obras do PAC eram bem mais modestas, em termos de construção de moradias, e mais faraônicas na intervenção urbana do local. “Eles não levaram em conta que Manguinhos tinha necessidades mais prioritárias do que a elevação da linha férrea. Esta obra era secundária para a nossa qualidade de vida, diante da necessidade urgente

de moradia e de saneamento básico, já que moramos às mar-gens de dois dos rios que mais poluem a baia de Guanabara”, explicou.

Segundo a líder comunitária, o PAC, inicialmente, previa a urbanização de parte de Manguinhos e a construção de ape-nas 545 casas. “O resto dos moradores iam ser simplesmente removidos para a zona oeste. Mas quando chegamos para dis-cutir as remoções, muita coisa mudou no traçado da obra, o que ampliou para 2.100 a construção de moradias no bairro”, disse ela, que também trabalha na área de Saúde da Família de Manguinhos, que envolve, além dos cuidados com o bem estar da população, o empenho na redução dos níveis de vio-lência.

Apesar de tudo, Patrícia Evangelista está convicta de que, em-bora ainda não seja o projeto dos sonhos, o PAC resolveu o problema de muita gente em Manguinhos. Hoje, o bairro conta com uma ampla e bonita biblioteca, uma creche e até uma escola de ensino médio com capacidade para 1.200 alu-nos, que atendem uma boa parte das necessidades dos mo-radores. “Custou o sangue de algumas pessoas, mas valeu cada lágrima derramada”, finalizou, enfatizando que o PAC, como marco aglutinador de pessoas, até que deu certo.

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Entrar, resistir e

viver com dignidade

“O primeiro prédio comprado pelo Fundo

Nacional de Habitação de Interesse Social no Brasil

é o nosso. Esse aqui! Comprado na primeira

semana de novembro de 2010. Está fazendo um

ano, mas a ocupação já tem quatro...”

A ocupação começou na noite de 30 de se-tembro para 1º de outubro de 2007. Nessa data, os integrantes do Movimento Nacional de Luta pela Moradia (MNLM) ocuparam um edifício privado, conhecido como Cine Vitória, no centro do Rio de Janeiro. O prédio esta-va abandonado há onze anos. Uma semana depois, foram despejados. Em 8 de outubro, após pressionarem sem sucesso a Secreta-ria Estadual de Habitação e o Ministério das Cidades, os militantes do MNLM ocuparam outro prédio abandonado, agora público, da Secretaria de Fazenda, de onde foram ex-pulsos pela polícia. Dias depois, ocuparam o prédio em que estão até hoje, na rua Alcindo Guanabara 20. É um prédio que era do INSS e estava sem uso há 10 anos.

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Ocupação Manuel Congo

Moradia nas áreas centrais

Direito e Política no Caminho das MulheresA Liderança Feminina nas Lutas Urbanas

Page 23: A Liderança Feminina nas Lutas Urbanas

O centro do Rio de Janeiro viveu três experiências: Chiquinha Gonzaga, Zumbi dos Palmares e Quilombos das Guerreiras. Hoje, Zumbi dos Palmares não existe mais, foi despejado.

A ocupação do edifício do INSS na rua Alcindo Guanabara, 20, centro do Rio de Janeiro, batizada de Manuel Congo é integrada por 42 famílias, mas, quando tudo começou, ainda na ocupação do Vitória, eram 126. Quem conta a estória é Maria de Lourdes Lopes Fonseca, líder da ocupação. Ao seu lado, Clara Silveira Belato, jovem militante que formou-se em direito e integra o movimento.

“Ocupamos o Cine Vitória, do dia 30 de setembro para dia 1º de outubro, no Dia Internacional de Luta pela Moradia, o Dia do Habitat, – nessa data internacional, a gente sempre se mexe de alguma forma, se mobiliza – éramos 126 famílias já reunidas e nos organizando pra isso há cerca de um ano.”

Depois dos despejos do Vitória e da Secretaria da Fazenda, os militantes decidiram, em assembleia, que a próxima ocupação seria vitoriosa. Para isso era preciso que houvesse compromisso: “Não seríamos despejados, não negociaríamos a nossa saída. O compromisso era de entrar, resistir, e ficar!”

O debate era fundamental para que não houvesse recuo. Nas úl-timas vezes, o medo da violência – “era gente com muita família, muita criança” – fizera com que aceitassem sair.

Porém, para isso era preciso melhor preparação, uma boa es-tratégia. Só o espírito de luta não bastava. Assim, “tivemos duas semanas de treinamento pra ver como é que entrava no prédio que, se de um lado era muito bem fechado, de outro tinha a segurança muito relapsa, que custava para o INSS, por mês, o olho da cara. Era um contrato como se tivessem câmera, sistema de alarme, e segurança 24 horas, mas não tinha nada. Só esgoto entupido, cocô, e um guarda que dormia e saía de manhã. En-tão, nós entramos aqui de manhã, no domingo”. O relato é de Maria de Lourdes, Lourdinha.

A organização do grupo havia sido testada em outras oportunida-des. Criaram uma brigada de frente: o pessoal que ia descobrir os caminhos da água, o caminho da luz, onde era o melhor local para as crianças dormirem, onde era mais seguro... Foram dois meses preparando tudo cuidadosamente.

O primeiro momento da ocupação foi difícil: muita ameaça de despejo, medo da polícia, ações na Justiça. Mas foi um período de fortalecimento do movimento: ”As famílias não se dispersa-ram. Foi quando a gente esteve mais unido e serviu muito para deixar claro de que lado nós estávamos”. As dificuldades levaram à construção de uma identidade coletiva, já que não havia espaço para o indivíduo: a cozinha era coletiva e o dormitório também era coletivo. Por meses, as famílias dividiram suas vidas em ape-nas dois andares dos dez do prédio.

Ao mesmo tempo, as pessoas em volta iam vendo toda sujeira, todo abandono do patrimônio público enquanto o povo conti-nua sem ter onde viver.

As tentativas de despejo não paravam. As defesas eram feitas por apoiadores, mas, principalmente, por militantes que haviam se formado em direito exatamente para atuar nessa área. Clara Silveira Belato, uma dessas militantes, faz uma análise da situação: “O embate jurídico não leva à vitória. O que se consegue na Justiça é ganhar tempo para levar à frente a luta política. Essa sim, responsável pelas vitórias”.

Lourdinha vai mais longe: “O Judiciário é ideológico. Defende o direito à propriedade de forma abstrata. A função social, a causa da nossa luta, pro Judiciário não tem o menor cabimento!” Ela continua: “O direito à propriedade, ele é. Ponto. Não tem vír-gula, não tem dois pontos. Mas a gente quer botar dois pontos. Você tem o direito à propriedade se você der um uso social a ela. Se ela está abandonada, você perde o direito. A Justiça não pode resguardar a propriedade que está abandonada, que não serve de nada para a coletividade. No entanto, o Judiciário não entende assim; não aceita isso. E isso é ideologia do poder. Na maioria das vezes, o Judiciário só sacramenta a derrota.”

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A dificuldade de interlocução com a Justiça resulta em esvazia-mento dos movimentos populares. Segundo Lourdinha não é fácil convencer as pessoas de que vale a pena continuar lutando. Pois acabam se sentindo como marginais, criminosos, porque o juiz falou que está errado. “Então”, conclui, “às vezes, recorrer ao Judiciário é um tiro que pode sair pela culatra; porque se você perde lá...”

Numa das tentativas de despejo, o processo de regularização estava avançado. Já havia uma determinação do Ministério das Cidades para declarar o imóvel de interesse social. No entan-to, as instâncias burocráticas do Rio de Janeiro não cumpriam a determinação e mantinham o caso na Justiça. Foi preciso que o Movimento Nacional de Luta pela Moradia fizesse uma articu-lação em Brasília para que o governo federal encaminhasse ao Judiciário documento comprovando que o imóvel fora declarado de interesse social. Porém, como sempre, começou o jogo de empurra: o INSS em Brasília responsabilizava a procuradoria do Instituto no Rio e a procuradoria do Rio queria o despejo.

Até que chegou o dia da Conferência Nacional das Cidades, promovida pelo Ministério das Cidades, com representantes dos Conselhos de todas as cidades brasileiras e que seria aberta pelo presidente da República. O MNLM se preparou e foi ao encon-tro do presidente pouco antes da abertura da Conferência. Ao abrir o encontro, o presidente elogiou a garra dos militantes e garantiu que não ia admitir o despejo.

Lourdinha lembra com humor: “Ele não sabia, na prática, o que isso significaria. Mas isso ressoou dentro do governo. Essas bre-chas, essas trincas que esses pronunciamentos foram criando, abriram espaços que fomos ocupando”. Finalmente, o docu-mento saiu de Brasília, mas não chegou ao processo. A ordem de despejo deveria ser executada às 9 horas do dia seguinte. A tarde já chegava ao fim quando se descobriu que o escrivão da Vara onde tramitava o processo havia escondido o documento e se recusava a anexá-lo. Foi necessária a intervenção do procura-dor da Advocacia Geral da União no Rio para que o documento aparecesse.

Mas ainda não era hora de comemorar. Em seu despacho, a ju-íza carioca determinou que a compra do edifício fosse concluída em 180 dias. Não foi e tudo recomeçou. Mais fortes, certos de que não poderiam esmorecer, os militantes ocuparam a Caixa Econômica Federal – responsável pela compra – com um bolo enorme para comemorar o terceiro aniversário da ocupação. Uma semana depois, a compra estava fechada.

Era a primeira compra feita pelo Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social no Brasil.

A fase agora é de uma nova luta: que sejam feitas as obras neces-sárias para adequar o prédio. Os moradores não estão parados. Já entregaram ao governo do estado do Rio um projeto no qual se comprometem a assumir todo o ônus da organização das fa-mílias durante a obra. A comunidade se compromete a fazer os remanejamentos necessários, a entregar os espaços a serem reformados desobstruídos para que não haja atraso nas obras. Quando uma área estiver pronta, antes de pintar, eles a ocupam e deixam livres outras. Assim sucessivamente até que a reforma esteja concluída.

Mas o movimento não pára aí: está se preparando para enfren-tar a luta por todo o centro do Rio. Para a Gamboa – bairro a ser “revitalizado” na região portuária da cidade – querem que pelo menos a metade da área seja reservada à população com renda de até três salários mínimos. Nacionalmente, os militan-tes ocupam todos os espaços institucionais criados pelo gover-no para debater as questões que os afetam diretamente. Alguns exemplos são a participação nos Conselhos das Cidades em seus níveis municipal, estadual e federal, no Grupo de Trabalho da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República e no Grupo de Trabalho da Secretaria de Patrimônio da União, onde estão levantando os imóveis públicos abandonados para apresentar propostas de gestão.

Enquanto isso, o grupo da Alcindo Guanabara número 20, ao mesmo tempo em que procura azeitar os caminhos da burocra-cia oficial e fazer as coisas andarem, continua a sonhar. E, como sonho que se sonha junto é realidade, já prepara a inauguração de um restaurante no edifício, projeto que conquistou o finan-ciamento da Petrobras. Em plena Cinelândia, vizinho do Teatro Municipal, da Biblioteca Nacional, da Câmara de Vereadores, do Cine Odhon, no coração da “Cidade Maravilhosa”.

A questão, para o Movimento Nacional de Luta pela Moradia, é fundamental. De nada adianta conquistar a moradia se não se terá como mantê-la. Atrelada à vitória da ocupação é fundamen-tal um projeto de geração de emprego e renda. E as famílias da Manuel Congo saíram, mais uma vez, na frente: encaminharam para uma seleção pública da Petrobras o projeto do restaurante. Argumentos não faltaram: 1º. Tratava-se da primeira experiência de habitação de interesse social numa grande capital. 2º. Não ha-via entidade alguma por trás, nem OCIP, nem ONG, nem Igreja. Ninguém. 3º. A comunidade estava aceitando o desafio de mos-trar que quem pensa em habitação de interesse social, precisa pensar na sustentabilidade das famílias e na manutenção do pré-dio, pois um condomínio é caro. E, sem apoio para projetos de geração de emprego e renda, tudo vira cortiço. 4º. Que se as políticas públicas se falarem, forem transversais, se houver um cruzamento entre educação, saúde, transporte etc, é possível sim criar políticas públicas de sustentabilidade para a população.

A idéia é que seja um restaurante para disputar o mercado do centro da cidade. Não será um restaurante popular, mas servirá um trivial simples e, com uma periodicidade ainda a ser defini-da, comidas regionais brasileiras. Lourdinha explica: “Nós temos muito forte na nossa cabeça a questão da afirmação das culturas, então a gente pensou em tentar trabalhar isso na gastronomia...” Agora é arregaçar as mangas porque há muito a fazer: primeiro, qualificar o pessoal e criar a cooperativa.

No edifício, já hoje, funcionam uma biblioteca, uma escola – onde as crianças fazem seus deveres e têm aulas extras –, a praça de alimentação, a sala das assembleias – onde a vida do grupo é decidida – e outra sala para emprestar aos outros movimen-tos que, como eles no começo, precisam pedir emprestado um cantinho para conversar.

As crianças frequentam as escolas do centro, mas o grupo tem uma atenção toda especial com sua educação. Lourdinha conta que “crianças que tinham vindo do norte há pouco tempo, crian-

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Direito e Política no Caminho das MulheresA Liderança Feminina nas Lutas Urbanas

Page 25: A Liderança Feminina nas Lutas Urbanas

Manuel Congo e Mariana Criola

Madrugada de 5 de novembro de 1838. Na Fazenda Freguesia, em pleno regime escravocrata fluminense, as portas das senzalas da Fazenda Freguesia foram derrubadas e abertas por negros que resgataram suas mulheres e ganharam o mundo na luta pela liberdade e contra a escravidão. Liderando o movimento, entre outros, Manuel Congo e Mariana Criola iniciavam a heróica trajetória que os levou à morte e à eterna homenagem de cidadãos brasileiros que ainda hoje lutam contra a opressão e a violência do Estado.

Mulher é bicho de coragem“As mulheres têm uma coragem, nesse tipo de luta, inigualável, porque quando decidem ir, não recuam. Os homens, no primeiro obstáculo, voltam. Não é nenhum discurso de defesa de gênero, é de consta-tação. Na maioria dos casos, as mulheres vão pras reuniões durante um ano de preparação e os homens não vão. Quando elas vêm pra ocupação, no dia de ocupar, os homens não vêm; só vêm no dia se-guinte, de tarde, dois dias depois, quando percebem que o sangue não jorrou. Alguns ainda demoram, vêm um pouquinho, voltam pra casa de aluguel. Passam um mês indo e voltando, pra ver se vai dar certo, e a mulher aqui, firme, segurando a onda, 24 horas, com criança peque-na, muitas vezes saindo pra trabalhar”.

Maria de Lourdes Lopes Fonseca

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ças que não sabiam ler, aprenderam a ler em três, quatro meses; crianças com nove, dez anos, com três anos de escolaridade, passavam de ano na escola: o rendimento é outro, o entendi-mento é outro. Elas têm uma agenda delas. Desde o começo, sempre tivemos o espaço da criança, até hoje temos o espaço CRIARTE – que se chama Mariana Crioula – onde as crianças se reúnem pelo menos duas vezes por semana. E temos os meni-

nos da Pedagogia, do Serviço Social, da UFF, da UERJ, que vêm para trabalhar com elas”. A Manuel Congo também fez parceria com a Associação Cristã de Moços, na rua da Lapa, que permite às crianças de seis a 14 anos praticarem até três modalidades de esportes, a sua escolha, três vezes por semana.

E o sonho segue em construção...

Page 26: A Liderança Feminina nas Lutas Urbanas

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Quando a Luta nos

AproximaCaminhos diferentes unem mulheres em um endereço

que jamais esquecerão. Nem elas, nem a cidade do

Rio de Janeiro: Francisco Bicalho 49, Centro. Ali,

com a força da resistência e a solidariedade dos movimentos sociais,

elas mudaram o rumo de suas vidas, de suas

famílias e de muitas outras famílias que

lutam pelo direito à moradia e à

cidade.

Quilombo das Guerreiras

Direito e Política no Caminho das MulheresA Liderança Feminina nas Lutas Urbanas

Angela de Morais sempre militou em pasto-rais e veio da zona oeste envolvida no apoio à ocupação Chiquinha Gonzaga, na rua Ba-rão de São Felix, centro do Rio. A grande di-ficuldade era o tempo, já que trabalhava em horário integral no shopping DownTown, na Barra da Tijuca e só folgava um dia. A mara-nhense Maria Ivanilda Moraes (Nilda) tinha casa montada e pagava aluguel caro. Jamais imaginou o envolvimento com ocupações, mas, entre outras dificuldades, ficou desem-pregada “e as reuniões foram me abrindo a mente”, reconhece. Maria Aparecida Silva Barbosa (Cida) vem da Baixada Fluminen-se, tem três filhos, é ambulante, e sempre acalentou o sonho de um dia poder morar no bairro de Fátima, centro do Rio, próximo a seu trabalho.

Moradia nas áreas centrais

Page 27: A Liderança Feminina nas Lutas Urbanas

As três, em maior ou menos intensidade, viveram a violência e a tensão das ocupações: Chiquinha Gonzaga (2004), Zumbi (2005) e Quilombo das Guerreiras (2006), no centro do Rio. Hoje são lideranças, entre tantas outras que se formaram na luta, na ocupação Quilombo das Guerreiras, no imóvel da rua Fran-cisco Bicalho, próximo à Rodoviária Novo Rio, propriedade da Companhia Docas, à época da ocupação abandonado há dez anos. Na madrugada do dia 8 para o dia 9 de outubro de 2006 mais de 100 famílias ocuparam o prédio. O quadro visível de de-gradação do imóvel, onde há inclusive um teatro, foi denunciado à opinião pública. A reação da empresa foi acionar os órgãos policiais.

Foram muitos momentos, durante anos, de tensão e repres-são, desde a proibição pelos seguranças da empresa e a guarda portuária da entrada e saída de pessoas, do abastecimento de alimentos e água, do corte da luz até a constante presença de oficiais de justiça para entregar liminares de reintegração de pos-se à Docas ou de execução do despejo dos ocupantes. Discipli-na e trabalho em comissões que cuidavam da portaria, serviços hidráulicos e elétricos, cozinha, limpeza e finanças, entre outras, garantiram a organização,

Entidades da sociedade se uniram em defesa do direito à moradia e pela resolução negociada do impasse. Em paralelo à luta polí-tica deram início à luta jurídica, acionando o Ministério Público, reivindicando junto ao Instituto de Terras e Cartografia do Estado do Rio de Janeiro (ITERJ) uma saída. Em ocupação anterior o Iterj havia cadastrado as famílias com a promessa de buscar uma solução. Finalmente, com a intermediação da Fundação Bento Rubião foi feito um projeto de reassentamento para 142 famílias. Hoje, seis anos depois, vitoriosas, preparam o futuro... e conti-nuam na luta.

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A ocupação é mais um momento de um movimento que se propõe a atuar dentro da sociedade, pela saúde, pela educação, pelo transporte. A gente passa a ser um instrumento de luta.

Nosso objetivo é resgatar ou acender o espírito militante de mulheres que estão desiludidas, com a vida ociosa, e que muitas vezes depois de casadas, com os fi lhos criados, fi cam deprimidas. O trabalho no grupo Mulheres pela Cidadania contribui para que essas mulheres encontrem um sentido na vida, e esse sentido está na militância. Não só na luta por moradia, mas também pelo direito de ser cidadã por completo.

O que dói é a construção do que vale a pena: o coletivo, a autogestão, a possibilidade de desconstruir a sociedade que está aí. Não é um coletivo subjetivo. É algo que constrói e emociona o dia a dia.

Projetos de remoção que levam o trabalhador do centro da cidade para a periferia são desumanos. O trabalhador tem que estar perto do seu trabalho. Desde que nascemos somos estimulados a competir e temos que enfrentar isso diariamente porque a disputa política não é pessoal, é um projeto de luta coletiva.

Maria Ivanilda Moraes - Nilda - Quilombo das Guerreiras

Maria Aparecida Barbosa - Cida - Quilombo das Guerreiras

Angela de Morais - Quilombo das Guerreiras

Sandra Regina Pimentel da Silva, Mulheres pela Cidadania, grupo vinculado a União Nacional de Moradia Popular – UNMP

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trabalho Solidário, Renda e Cidadania

Favelas

Direito e Política no Caminho das MulheresA Liderança Feminina nas Lutas Urbanas

Hoje, o Grupo das Arteiras, que começou com a produção do pão nosso de cada dia, reúne 17 mulheres. Expandiu seus do-mínios para o Morro da Formiga e os bairros da Glória e Rio Comprido e seu segmento de mercado, ao passar a oferecer serviços de bufê e a confeccionar cadernos e blocos em papel reaproveitado.

Porém, a maior vitória dessas mulheres, certamente, foi a de pa-cificar, antes mesmo da ocupação das comunidades da Tijuca – e só com a arma do trabalho solidário –, duas comunidades com histórico sangrento de inimizade: Borel e Casa Branca. “Na épo-ca, os moradores da Casa Branca eram inimigos ferrenhos do pessoal do Borel, por conta de rivalidades de facções do tráfico. Não falávamos uns com os outros. Mas foi lá, na Casa Branca, que foi fundado o grupo de trabalho em papel das Arteiras, em meados de 2003, e ainda, foram tomadas importantes decisões para o desenvolvimento da cooperativa, como reciclar papel e se reunir para trabalhar em conjunto, aos sábados, na Casa da Auto-Estima”, relata Mônica.

Vale registrar: no intuito de recuperar o ânimo na comunidade, alguns moradores, juntamente com a equipe da Agenda Social, tiveram a iniciativa de criar um espaço para as mulheres se reu-nirem, surgindo então a Casa da Auto-Estima. Neste espaço são despertados talentos da comunidade, com a elaboração de vá-rias oficinas.

Esse foi o grande estímulo para as Arteiras alçarem vôos mais altos, realizando trabalhos de desenvolvimento comunitário, a exemplo da produção de guia de ruas e serviços no Morro da Formiga e até de um grande encontro no SESC Tijuca, que reuniu mulheres de inúmeras comunidades, para trocar expe-riências. “Dele, participaram a Cooperativa das Costureiras da Rocinha (Coopa-Roca) e o grupo Abayomi, de Santa Tereza, que trabalha as questões de gênero e etnia através do artesana-to, da produção de bonecas negras”, conta a líder comunitária do Borel.

O Grupo Arteiras conta, atualmente, com o apoio do Fundo Elas, antes batizado, in memorian, de Ângela Borba, em homenagem a uma importante liderança do movimento feminista nacional. Com isso, se credencia para fazer parte do Sistema Nacional de Eco-nomia Solidária do Ministério do Trabalho, que visa organizar de maneira oficial todos os que protagonizam a luta para viabilizar e fazer florescer uma nova vertente da economia: o comércio justo, criado para promover o desenvolvimento sustentável de comu-nidades e grupos de produtores, a partir do acesso a mercados interno e externo e da dinamização da economia local.

Mônica Francisco lembra que ainda existem pedras no caminho das mulheres que vivem de sua arte miúda, cotidiana e tenaz – uma delas, a atual política de remoção de famílias inteiras, que penaliza principalmente as mulheres: “Algumas são removidas para locais distantes, como Paciência, nos quais, confidenciou uma delas, não consegue fazer nem R$ 1,00 por dia para so-breviver”. Apesar disso, há inumeráveis conquistas, assinala. “Em setembro, o Café com Arte e Cidadania, evento que realizamos a cada dois meses, reuniu um grupo expressivo de mulheres e possibilitou o entrosamento com diversas redes de luta por direitos comuns, tais como o Movimento Urbano de Luta pela Moradia, a Associação dos Moradores do Morro dos Prazeres e da Vila Autódromo. Não temos o mesmo viés de atuação, mas estamos todos envolvidos na mesma questão, a luta por traba-lho, renda e cidadania”, sentenciou.

Sete mulheres dos morros do Borel, da Casa Branca e da Chácara do Céu, na zona norte do Rio de Janeiro, no início de 2001, descobriram que tinham muito mais em comum do que o simples espaço geográfico. Resolveram, então, influenciadas pelas ações do programa Favela-Bairro, fundar um grupo de reflexão sobre sua própria condição feminina e discutir as dificuldades de integração de suas comunidades à cidade. “Na verdade, nós fazíamos parte do Grupo de Trabalho de Comunicação, que criou a Rádio Comunitária local. Foi dele que nasceu o embrião de fundação do grupo de reflexão das mulheres da Grande Tijuca e de uma cooperativa de trabalho por afinidade com o nome de Grupo das Arteiras”, revelou Mônica Francisco, líder comunitária do Morro do Borel, carioca de 40 anos, casada, dois filhos e estudante do curso de Ciências Sociais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).

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Ela não fez faculdade de arquitetura, mas sabe decifrar os traçados cifrados das plantas de construção e calcular tempo, custos e es-forço necessários para pôr um projeto de pé, seja de uma casa, um apartamento ou de um conjunto de prédios, para milhares de unida-des. Aprendeu ajudando o pai, que trabalha-va na construção civil como mestre de obras, levava para casa as plantas, e pedia ajuda à filha para estudá-las, porque não sabia ler. Hoje, Vera Eunice Rodrigues da Silva, a Veri-nha, 43 anos, é a coordenadora para a zona oeste da União dos Movimentos de Moradia de São Paulo (UMM), entidade com 5 mil filiados, e traz uma experiência de 21 anos como militante do movimento por moradia.

Aos 22, Vera se separou: o marido foi embora para a Bahia e nun-ca mais deu notícia. Ela morava com o filho Pedro, de dois anos, em um pequeno espaço de dois cômodos e banheiro, erguido no quintal dos pais, na região da Brasilândia, zona norte paulistana. “Eu era mãe e pai. Tinha que garantir um teto para o meu filho. Decidi que ele ia ter uma casa.” Era o final da década de 1980, e a prefeitura de São Paulo, então sob comando de Luiza Erundina, havia lançado um programa de financiamento a mutirões realiza-dos com autogestão popular – o Mutirão com Autogestão/Funaps Comunitário. Na comunidade de base da Igreja Católica do bairro, Verinha soube que estavam acontecendo reuniões para formação de mutirões no Jardim Elisa Maria, um subdistrito da Brasilândia. Começou a frequentá-las.

Nessa época, trabalhava como operadora de caixa num super-mercado, de segunda a sábado. Entrava às10 horas e encerrava o expediente, às vezes, depois das 22 horas. Aos domingos, ia para a reunião do mutirão com o filho. “Falavam do financia-mento, da moradia, da realização de atos de apoio ao movimen-to...”, lembra.

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Uma arquiteta

popular na zona oeste

de São Paulo

Quem é você, Verinha?

Sou uma arquiteta popular.”

Direito e Política no Caminho das MulheresA Liderança Feminina nas Lutas Urbanas

Mutirão

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O interesse cresceu. E quando a coordenação avisou que precisa-va de gente para a comissão organizadora – marcar as presenças, fazer as inscrições das famílias, entre outras tarefas –, se ofereceu para ajudar. O programa municipal dos mutirões (hoje desativado) atendia pessoal de baixa renda que morasse em áreas de risco, estivesse articulado em um grupo e se dispusesse a trabalhar nos finais de semana na construção. Eram habitações de 72 metros quadrados, com três dormitórios, dois banheiros, sala, cozinha e garagem. “Na região de Elisa Maria havia um terreno da Cohab com 40 mil metros quadrados”, conta Vera. “E a luta, naquele momento, era para que essa área fosse cedida aos mutirões.” O grupo do qual ela participava reunia mais de 500 famílias. “A gente saía em dez ônibus. Ia na sede da Prefeitura, do governo do estado, pedir que as áreas de governo fossem passadas para o movimento organizado. E eu sempre levava meu filho.”

O pai era opositor ferrenho da militância da filha. Não acredi-tava que o movimento podia dar certo. “Meu pai dizia que eu não precisava disso, que era uma vergonha. Imagina, filha dele, que comprou sozinho a própria casa.” Para piorar, ela chegava das reuniões às dez, onze horas noite, porque, além da reunião do mutirão também participava dos encontros do movimento. O movimento era a Associação dos Trabalhadores Sem Terra da Zona Oeste, filiada à União Nacional dos Movimentos de Moradia de São Paulo. Vera lembra que, entre 1993 ou 94, o movimento por moradia realizou um grande ato no palácio do governo estadual de São Paulo, sob gestão de Luiz Antônio Fleu-ry Filho. Partiram em dez ônibus, mas o dela desviou da rota. “Nós nos perdemos. Quando chegamos, já estavam lá a polícia, o

batalhão de choque, helicópteros. De repente, vimos os helicópte-ros em cima da gente e aquele monte de cavalos se aproximando. A gente gritava calma, calma. Aos poucos, conseguimos chegar até onde estavam os demais do movimento, mas foi um momento de muita angústia e de medo.”

Resultado desse ato, o governo desapropriou vários terrenos na zona oeste. Surgiram, por exemplo, o CDHU da Brasilândia e o CDHU Panamericano do Jaraguá. “O governo do estado não tinha política de financiamento para casa, nem sobrado, só para apartamento. Então, na Brasilândia, topamos fazer o primeiro projeto de prédio, com 160 unidades construídas com mutirão e autogestão – prédios de térreo e quatro pavimentos.” Ao todo, no bairro, o movimento já apoiou a construção de 1.500 uni-dades. No Jaraguá, outros 800 apartamentos, inclusive o de Vera. Aquela moradia, que ela resolveu conquistar aos 22 anos, idade atual do filho Pedro, que tinha oito quando a mãe tomou a decisão de ir à luta para lhe dar uma casa. Para ela, as mu-lheres têm um papel especial na luta por moradia. “Dentro do nosso movimento, hoje, 90% são mulheres”, diz. “A gente não tem nada contra os homens. Mas as mulheres parecem ter mais persistência, garra, perseverança. Esse espaço de luta foi consoli-dado na nossa região pela vontade da mulher de fazer as coisas.” Até na direção, elas predominam. Na região da zona oeste da UNM, são três coordenadoras, além da segunda e da terceira tesoureiras e de duas outras mulheres que fazem a secretaria do movimento. Apenas o primeiro tesoureiro é homem. E é mito a conversa de que obra é coisa de homem. A história de Vera mostra que basta ter a chance de aprender.

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Mutirão com autogestãoJurema da Silva Constâncio liderou a implantação da União Nacional por Moradia Popular no Rio de Janeiro, em 2005, a partir da experiência de São Paulo. Hoje, o movimento tem sede em 21 estados e no Rio já conta com seis regionais. “Foi um salto de qualidade, num processo marcado por momentos distintos da luta”, lembra Jurema. tudo começou, porém, dez anos antes, com a criação da Cooperativa Habitacional e Mista Shangri-lá, em Jacarepaguá, em parceria com a Fundação Bento Rubião. Eram 16 famílias. Com a enchente de 1998, somaram-se outras 14. “Não tínhamos qualquer recurso público”, diz Jurema, “mas a constatação de que juntos temos muito mais consistência e condições de vitória, nos animou”. A Cooperativa chegou a criar uma fábrica de cimento, construir casas e vender o material, mas o retorno era pouco e foi preciso parar por um ano, até que recursos do Fundo Rotativo da Misereor – uma ONG alemã – permitiram o reinício do projeto. “Foram quatro anos em mutirão nos fins de semana, marido, mulher e filho maior de 16. Foi a primeira cooperativa habitacional do estado”, conta. Hoje a principal bandeira da luta é mutirão com autogestão: “trabalhando em mutirão a obra sai muito mais barata e a qualidade é outra”. Ainda são muitos entraves burocráticos, mas é grande a experiência acumulada, fruto da luta de diferentes movimentos nacionais.

Renzo Gostoli-Austral Foto

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Graça é a primeira Secretária de Mulheres da União Nacional por Moradia Popular -UNMP, Co-ordenadora geral da União dos Movimentos de Moradia - UMM/SP da Grande São Paulo e Inte-rior; membro da Executiva da Central dos Movi-mentos Populares - CMP; representante da Rede Mulher e Habitat no Brasil e membro do Conselho da Coalizão Internacional do Habitat-HIC.

“No movimento por moradia, a grande maioria é de mulheres; talvez devido à responsabilidade com os filhos”, acredita Graça. “A gente calcula quanto tem para pagar o aluguel, comprar a co-mida, quanto falta para roupa, sapato, material escolar. As mulheres não pensam em uma coisa só, nem apenas para o dia de hoje. Elas plane-jam: dia tal vou precisar ter esse dinheiro, quan-to tempo vou levar para juntar aquele valor.” Por isso, Graça diz que o movimento não deve se pre-ocupar apenas com a conquista da casa, “mas em pensar uma cidade onde as mulheres possam viver com segurança e bem.” Ela entendeu o que o grupo musical Titãs cantou na canção Comida: “a gente não quer só comida, a gente quer a vida como a vida quer”.

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A gente não

quer só comida

A baiana Graça Xavier saiu de casa, em Santa Cruz de Cabrália, na Bahia, aos 13

anos, para trabalhar como empregada doméstica

em São Paulo. Dez anos depois, em 1990,

estava envolvida no planejamento de um bairro inteiro

para centenas de moradores, em uma

equipe composta por ativistas,

parlamentares, advogados e

padres.

Direito e Política no Caminho das MulheresA Liderança Feminina nas Lutas Urbanas

Segurança e Direito à Cidade

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Para essa visão abrangente, percorreu muitos caminhos no movi-mento popular: atuou na militância sindical, na luta por moradia, movimento feminista e nas reivindicações por estruturas básicas de serviços públicos. Também andou pelas ruas da capital paulista cuidando de adolescentes em conflito com a lei e esteve nas manifestações públicas dos movimentos de favela que ganharam o país nos anos 1980. Com estas experiências Graça formou um entendimento da apropriação social da cidade que inclui saúde, educação, saneamento básico, entre outros direitos cidadãos.

Dois meses depois de ter chegado à São Paulo, a então adoles-cente desistiu da vida “em casa de família”, e se empregou em uma gráfica, onde conheceu o namorado com quem iria se casar aos 16 anos e ter três filhos. Graça trabalhou em gráfica, tecela-gem, metalúrgica, enquanto a inflação roía sem dó a década de 1980. “Foi ficando muito difícil pagar o aluguel, e comecei a partici-par da Pastoral da Moradia no Jardim Maristela, perto de casa, no bairro do Ipiranga,” lembra Graça. No entanto, não deu certo.

“Naquela Pastoral estavam parlamentares, advogados, muitos ho-mens. E eles eram muito autoritários. Soube pela minha cunhada que, na Vila Livieiro, havia uma mulher, uma advogada, a Vitória, tratando da questão. Fui conferir. Gostei e comecei a ir nas reu-niões.” Assim, deixou a Pastoral que ficava ao lado da sua casa, para frequentar o movimento no outro bairro, na divisa com o município de São Bernardo, a meia hora a pé de distância. Com a presença de uma mulher entre as lideranças, sentiu-se mais à vontade.

As quatro mariasUma vez por mês havia assembleia geral das comunidades, reu-nidas na sede regional da Cúria no Ipiranga. Era um dia inteiro de formação. As pessoas se apresentavam, assistiam vídeos, deba-tiam, encontravam representantes de movimentos organizados – como o então MUF (Movimento Unificado de Favelas) – e também das sociedades de amigos de bairros. A pedido de Vi-tória, Graça passou a ajudar na coordenação das reuniões, com três companheiras, duas Sônias e a Cida, logo chamadas de as “quatro marias”.

Quando Luiza Erundina foi eleita, desapropriou uma área bastante extensa na região do São Savério, também na zona sudeste. A área, depois batizada de Jardim Celeste, seria des-tinada a 200 famílias, selecionadas em dez bairros diferentes. Foram contempladas 20 unidades para moradores da Vila Li-vieiro, entre elas as de Graça e das outras “três marias”. Como o terreno era muito grande, foi preciso estruturar um grupo e uma coordenação executiva para administrar a construção. Ou seja, pensar no projeto, no mutirão, como buscar a assessoria dos arquitetos, acompanhar as obras, definir o modelo das ca-sas, entre outras tarefas.

“Quando começamos a discutir a proposta de casa, também co-meçamos a levar em conta a construção do bairro como um todo”, explica Graça. Alguns integrantes da executiva foram ao Uruguai conhecer o modelo de moradia popular adotado lá, e que foi replicado aqui: casas sobrepostas, em que o quarto ficava so-bre a área de sala e cozinha da casa do vizinho, para evitar o barulho. Freiras ligadas à Pastoral elaboraram um questionário

para ser preenchido pelas 200 famílias que iriam ocupar o novo bairro. A ficha levantou informações como número de crianças na casa, idade, grau de escolaridade etc. E, com esses dados, a coordenação do grupo em que Graça atuava começou a planejar o futuro. Escola, creche, os horários do mutirão, saneamento básico... “Fomos à Sabesp (a empresa de saneamento do estado), que não tinha nenhuma adutora para atender à região. No maior sacrifício fizemos uma ‘vaquinha’ e pagamos uma adutora para a Sabesp. É esse encanamento que ainda hoje atende à região.” No dia 5 de janeiro de 1990, começaram a construir os protótipos do Jardim Celeste.

Durante as obras, o grupo de Graça decidiu erguer um centro de convivência – em estrutura de metal doada pelo governo fe-deral – , para abrigar os filhos dos mutirantes nos fins de semana de trabalho, e as crianças de 7 a 12 anos do bairro, nos demais dias da semana. As pessoas do projeto também montaram uma cozinha comunitária e fizeram uma parceria com uma creche próxima. Quem trabalhava nesses serviços de apoio tinha o ho-rário descontado no mutirão. Idosos que não podiam pegar no pesado, nem na cozinha, nem na limpeza, ajudavam levando água aos que estavam na obra. Portadores de deficiências físicas montaram uma equipe para controlar o ponto e o tempo dedi-cado ao mutirão.

Durante esse período, Graça observou que algumas mulheres chegavam ao mutirão com hematomas, o olho roxo, dando desculpas improváveis para seus machucados. “A gente começou a desenvolver um trabalho com as mulheres. De forma discreta, muito devagarzinho, chamando para as atividades, contando, ou-vindo.” Ao mesmo tempo, ela estava militando na Central de Movimentos Populares (que já se chamou Anampos, Pró-Cen-tral), e na pauta das mulheres estava um amplo discurso sobre o conhecimento e o respeito ao próprio corpo. Foi construindo, assim, uma compreensão ampla das necessidades populares, com ênfase na perspectiva feminina.

Esse ativismo que cercou a criação do Jardim Celeste e envolveu um projeto comunitário de acesso a direitos e serviços urbanos, feminismo, e trabalho solidário, sofreu um revés violento em 1992, quando Erundina perdeu as eleições. Paulo Maluf assumiu a prefeitura paulista e paralisou 130 mutirões na cidade, cortou a ajuda de custo dos coordenadores, acusou muitos de desvios. “Fiquei quase um mês indo ao Tribunal de Contas do Município prestando conta nota por nota”, diz Graça.

Um dia, uma integrante da Central de Movimentos Populares (CMP), Maria de Fátima Costa, perguntou à Graça porque ela não juntava o trabalho com mulheres à luta por moradia. Em pouco tempo, Graça se viu retratada em uma revista de esquerda como “liderança feminista. ” Ao longo dessa história, cada família acabou por assumir o esforço para concluir sua casa no Jardim Celeste, o casamento de Graça entrou em crise, ela se separou, voltou a estudar, terminou os supletivos do Ensino Fundamental e do Ensino Médio, fez a Faculdade de Direito, uma especialização em Políticas Púbicas na PUC, um curso de Direitos Humanos no Equador e outro no Uruguai. Além disso, mergulhou para valer nas questões sobre direitos humanos, sempre do ponto de vista da cidade, até ser convidada a ser a representante no Brasil para questões de mulheres e moradia da Coalizão Internacional do Habitat, posto que ainda ocupa.

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É o caso da cearense Francicleide da Costa Souza, a Franci, atual presidente da Asso-ciação de Moradores, moradora há dez anos e liderança na luta de resistência contra as ações de despejo.

“A comunidade surgiu na construção do Metrô Mangueira, formada em sua grande maioria por nordestinos que trabalhavam nas obras e não tinham onde morar. Fizeram suas casinhas e depois do término das obras venderam e foram embora. As pessoas que invadiram também se foram e não moram mais aqui. Ficaram em sua grande maio-ria os que compraram, como eu, que fui ao cartório e reconheci firma dos documentos. Hoje temos 126 comércios, entre restauran-tes, bares, lojas e muitas oficinas de motos e carros.”

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vizinhos Ilustres:

Mangueira e Maracanã

Há 33 anos o bairro popular conhecido como Favela do

Metrô foi se formando no entorno da Mangueira.

De um lado a escola de samba Estação

Primeira e de outro, bem pertinho, o Maracanã e a

Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).

A maioria comprou a casa em que vive.

Direito e Política no Caminho das MulheresA Liderança Feminina nas Lutas Urbanas

Megaeventos e Despejos

Favela do Metrô

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Dia 22 de julho de 2010, Franci estava no trabalho, quando a filha ligou dizendo que a prefeitura estava entrando nas casas, medindo, tirando fotos e dizendo que era para o Programa Bolsa Família. O passo seguinte foi o laudo de interdição alegando que as casas estavam em área de risco.

“Nós não moramos em área de risco. A prefeitura está consciente disso. Os engenheiros da Pastoral de Favelas deram laudo confir-mando que não vivemos em área de risco, mas foi um pânico, por-que segundo os moradores antigos era a quarta vez que a prefeitura ameaçava tirar todo mundo pela proximidade com o Maracanã. Queriam que até outubro de 2010 a área estivesse limpa. Jamais se falou em indenização.”

O presidente da Associação de Moradores, que concordava com a prefeitura e dizia que eles não tínham direito às suas moradias foi questionado e a comunidade partiu para buscar apoio da Pas-toral de favelas e da Defensoria Pública. Em um ano, desde julho de 2010, dois presidentes passaram pela Associação, até que Franci, em pleno movimento de resistência assumiu a liderança.

“Havia uma pressão imensa para levar as pessoas para um conjun-to habitacional em Cosmos. A prefeitura disse que nós só tínhamos três opções: Cosmos, depois de Campo Grande, a 70 quilômetros da Favela do Metrô; abrigo ou rua. Com isso tudo as pessoas não dormiam, não comiam, não iam ao trabalho. Não sabiam quando a prefeitura ia chegar. Mas muitos foram pra Cosmos. Assinavam um documento como arrendatários, não como proprietários. Em

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dez anos, se estiver tudo correto e taxas de serviços pagas passam a ser donos do imóvel. Meu marido trabalha aqui, eu vivo aqui. A Prefeitura não pode chegar e mudar toda a minha vida assim.”

De cerca de 700 famílias resistem hoje aproximadamente 300. Com medo das ameaças, para Cosmos foram 100. Outras 240 famílias aceitaram ir para Mangueira 1, que é um conjunto habi-tacional próximo à Favela do Metrô, na Visconde de Niterói. Mas depois que Franci assumiu, para Cosmos não foi mais ninguém. As que foram já haviam se comprometido antes.

“O projeto da Visconde de Niterói prevê dois conjuntos: Mangueira 1 e 2. Em fevereiro de 2011 aconteceu o término da construção do Mangueira 1 e encaminhamos a proposta de esperar o término das obras de Mangueira 2 (248 apartamentos) para a comunidade sair toda de uma vez. Mas a prefeitura entrava pressionando. Foi uma sangria desatada, e o pessoal foi pro Mangueira 1, como se fosse um presente. Sabe que vai para um imóvel legalizado, que nunca mais ninguém vai dizer “Sai que não é seu”. Isso mexe muito com todo mundo.”

Difícil impedir. Se a luta é para não sair da área em que mora, Mangueira 1 não deixa de ser uma conquista. Mas se a meta era a urbanização da comunidade e não o reassentamento, a derrota é real. Mesmo assim, algumas vitórias são contabilizadas, como a reurbanização do comércio local: segundo a prefeitura, um polo automotivo, com oficinas e lojas legalizadas, está previsto para aquela área.

Page 36: A Liderança Feminina nas Lutas Urbanas

A cada dia a sua

dor, a sua alegria“Um dia, nós fomos

surpreendidos pela manhã com um oficial de justiça

entregando para as pessoas da frente uma intimação, dizendo que teríamos que

sair dentro de 24 horas. Foi aquele desespero:

não tínhamos o meu pai, nem meu irmão, eu era a mais velha. Entrei em

desespero... Fui pega de surpresa! Eu

queria ir embora, mas pra onde?

Infância feliz“Meu pai, ele se chamava Armando Perei-ra. Ele tinha um triciclo, botava o peixe ali e saía... Porque não existia somente nós na Barra: tinha uma casa aqui, outra ali e ele ia vendendo... Tinha uma balança manual pra pesar os peixes”.

“Nascemos todos aqui, vivíamos da pesca e fomos crescendo... Até chegar um ponto em que nosso pai foi embora de casa e minha mãe ficou com os filhos. Meu irmão mais velho faleceu. Então, eu passei a ser a filha mais ve-lha da família. Nascemos aqui e tivemos uma infância maravilhosa, tinha uma igrejinha de madeira onde nós fomos batizados...”

A infância não durou muito tempo. As meninas, mal começando a tomar corpo de moça, foram enfrentar, desarmadas, os que lhe queriam tomar o teto:

“Um dia, nós fomos surpreendidos pela manhã com um oficial de justiça entregando para as pessoas da frente uma intimação, dizen-do que teríamos que sair dentro de 24 horas. Foi aquele desespero: não tínhamos o meu pai, nem meu irmão, eu era a mais velha. En-trei em desespero... Fui pega de surpresa! Eu queria ir embora, mas pra onde? Minha mãe começou a passar mal, mas nos chamou e conversou com a gente: “Nós temos que lutar. Temos que negociar pra, pelo menos, termos onde ficar”. Não tínhamos para onde ir.

A mãe era Maria Sebastiana Dias, analfabeta, cozinheira profissio-nal de forno e fogão e já havia trabalhado na casa de um ministro em Copacabana.

“Foi ela que nos deu força: ‘temos que resistir’. Saímos para o lado de fora só com o corpo”.

União da Barra

Megaeventos e Despejos

Direito e Política no Caminho das MulheresA Liderança Feminina nas Lutas Urbanas

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Page 37: A Liderança Feminina nas Lutas Urbanas

terra de desova“Até então não sabíamos de nada. Isso aqui era um manguezal. Era terra de desova. Matavam pessoas na zona sul. Só tinha mato e cadáver.

Aqui, bem aqui, tinha uma ruazinha, não tinha água nem luz. Um ônibus vinha de manhã e voltava à tarde. Éramos três famílias. Isso aqui era deserto. Morávamos em palafitas dentro do brejo, do mangue da lagoa. Ninguém nunca nos incomodou. Não tínhamos nada, mas éramos muito felizes. Água para beber tínhamos que buscar no Alto da Boa Vista. Aqui tinha um poço em que minha mãe lavava a roupa. Tinha enchentes. De vez em quando a água cobria tudo, vinha da lagoa e cobria tudo. Tínhamos que ir para o outro lado. A Igreja sempre nos ajudou com mantimentos, roupas, agasalhos, essas coisas”.

“De quem era a terra? Quem a estava querendo de volta? Por que a queriam?

Imobiliária Barra da Tijuca, Prefeitura, União, SPU... Depende!

Eles querem é nos tirar daqui. Agora a última moda é o município: quer uma praça pública aqui. Esse nosso processo que durou trinta e poucos anos!”

O dia que levou a infânciaNaquele dia, contam: “O desespero era forte, de uma ponta a outra estava tudo tomado de caminhões da COMLURB com pás, enxadas, picaretas, escavadeiras. E muitos, muitos homens. Nes-sa época, já éramos um número maior de famílias. Os homens diziam: ‘Vamos começar por aqui’. E nós: ‘Por aqui não passa’, ‘por aqui não vai’.”

“É um problema: os homens aqui se escondem nessas horas, então ficamos nós, mulheres, fazendo resistência com o próprio corpo.

Diante de nossa resistência foi chamada a 16ª Delegacia Policial, com um delegado de polícia para nos tirar à força. O delegado Hélio Luz, dizia para a minha irmã: ‘Procura a Igreja’. Mas estavam todos muito nervosos. Ela não entendia porque tinha que procurar a Igreja no meio de uma desgraça daquelas. Então ela nos disse: ‘Tem um homem dentro do carro da PM dizendo para procurarmos a Igreja’, mas se a gente vai procurar a Igreja, eles vêm aqui e derrubam a nossa casa.”

“Aí, uma de nós ficou e a outra foi encontrar Frei Constantino. Ele disse: ‘Fica calma que vou ligar para a Arquidiocese’. E veio a pas-toral nos ajudar”.

“Nesse meio tempo, tinha muita empregada doméstica aqui, en-tão, tiveram uns três ou quatro advogados que se propuseram a correr na Justiça para fazer alguma coisa. Era gente que nem co-nhecíamos. O que também ajudou, porque de repente foi suspenso o despejo por 24 horas. A mamãe trabalhava na casa da D. Helena que era advogada, tinha o seu Toninho que era advogado também. Por isso foram aparecendo essas ações solidárias. O Frei conseguiu que a Pastoral viesse nos socorrer. Nós fomos para a Pastoral, Dr. Hélio Luz e Martins foram nos assessorar”.

Das meninas, quase moças, fez-se guerreiras “A doutora Eliana Ataíde era advogada, doutora Maria Alice tam-bém. Eram da Pastoral e vieram nos ajudar. Ana Maria Noronha foi um amor. Ela era assistente social. Abraçou-nos como filhas.

Como o Vidigal havia passado por um problema desses um ano antes, trouxeram o pessoal de lá pra nos orientar. Vieram Carlinhos Duque, Armando e o Pernambuco... Aí começaram a nos movi-mentar, pra que nos reuníssemos e criássemos uma associação registrada. Pra que tivéssemos mais força, para lutar e ouvirem o nosso grito.

Mas, como iríamos criar associação se éramos todas menores de idade? Todas nós éramos meninas, não sabíamos de nada. Tinha-mos vergonha, as nossas mães não sabiam falar, e por isso, a única coisa que podiam fazer era dar força. Quem tinha que ir à luta éramos nós. Nós nos formamos na luta, mas esquecemos de nos formar no estudo.

Participávamos de várias reuniões, tínhamos que nos fazer conhe-cidas nas comunidades e unir forças. Porque é assim: um ajuda o outro e quando é preciso, todos se ajudam. Trabalhávamos de dia em casas de família e de noite íamos para as reuniões.

Conseguimos que a ordem de despejo fosse cassada por uma li-minar de mandado de segurança. As pessoas que nos ajudaram entraram com esses pedidos. Elas bancaram. Foi o que nos deu condições de continuar lutando. Foi época de remoção no Vidigal, na Rocinha... Nesse tempo nós completamos 18 anos, fundamos e registramos a Associação”.

Associação vila União da Barra da tijuca continua a lutaCom o registro da Associação, os moradores passaram a ter um pouco mais de confiança. A possibilidade de despejo tinha deixa-do todo mundo perdido. O Papa estava para vir ao Brasil e então começou novamente a pressão.

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Page 38: A Liderança Feminina nas Lutas Urbanas

“Fomos pra São Conrado receber o Papa. Eles (os homens da prefeitura) vieram e começaram a entrar aqui (na comunidade). Então, ligávamos para a polícia, não nos atenderam. Ligávamos para os repórteres, também não nos atenderam.

Eu fui a pé daqui pra São Conrado, no auge do desespero, a gente precisou se dividir de novo e eu fui, a pé, pedir socorro porque nin-guém nos ouvia.

Eu descobri que tinha o telefone da capelinha que o Papa estava inaugurando e onde a comitiva do Dom Eugênio (arcebispo da igreja católica) ia recepcioná-lo. A Ana Maria estava nessa comitiva. No meio do desespero, liguei pra dentro da capelinha. O Papa já estava saindo... Fecharam a capelinha e vieram todos pra cá: os repórte-res, o pessoal da Pastoral... Quando a Ana saltou e viu aquele trator imenso invadindo pulou na frente e gritou que ele não iria fazer aquilo. Então começaram a ser cercados de repórteres, do pessoal da pastoral, advogados, o que os deixou com medo. Rapidamente nós revertemos o quadro.” Essa foi apenas uma batalha. Foram muitas, várias outras, “a gente nunca descansou aqui”.

Direito e esperançaA luta judicial foi intensa: “A gente ganhava na justiça assim: 30 dias. Tenho isso documentado em jornais, está muito velho, mas dá para ver bastante coisa ainda. Nós perdemos muita gente aqui dentro, que o coração não aguentou e morreu. Eles nos davam vinte dias, dez dias...

E o processo? “Nada de ser julgado. Nós entramos com o pedido de concessão e uso do local e nada era julgado... Mas no decorrer desse tempo, muita coisa rolou. A Barra evoluiu cada vez mais e veio o metrô. O metrô queria nos indenizar, o consórcio queria nos dar a indenização. Foi quando o município provou que a terra não era nossa. Aí o metrô recuou e nós ficamos entregues à sorte. Mas, com o apoio da Fundação Bento Rubião, marcamos uma reunião com a Secretaria de Habitação e a Prefeitura. Pedimos ajuda e eles disseram que compravam essa briga. Assim que pegaram o acórdon, nos disseram: “Já foi julgado e eles querem desvalorizar a indenização de vocês”.

Agora, coisa de poucos meses atrás, deram perda total pra gente, sem direito a indenização nenhuma porque o tempo que moramos aqui já dava pra termos adquirido outra casa, em outro lugar.”

Entre mortos e feridos, quantos se salvaram? “Nós vivemos e envelhecemos e não conseguimos ter uma solução. Com essa vinda do metrô pra cá, nós já perdemos cerca de quatro moradores. Se for para contar antes, morreu foi muita gente...”

Mas o desafio continua. Elas querem continuar ali onde nasce-ram: “É o metrô chegar e nós continuarmos aqui. A vida passou assim: a gente tinha uma felicidade hoje, amanhã tínhamos um desespero. Como é o caso do metrô. Tava todo mundo feliz, so-nhando. De repente, nos jogaram um balde de água fria. Tudo que achávamos que tínhamos conseguido, que estava resolvido, que se tinha chegado a uma conclusão boa para todo mundo... estávamos nos sentindo vitoriosas. Depois de tanta luta tanto sofrimento, a vinda do metrô nos indenizando assim!”

Mesmo cansadas, elas agradecem. A solidariedade, a ajuda que receberam tornou-as mulheres mais fortes, de personalidades definidas. “Mas isso não foi só na luta pela moradia, não. Isso foi

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na nossa vida: nos tornamos mulheres mais decididas. Um tipo de mulher que é difícil alguém encarar. Porque nós perdemos o medo muito cedo. Ninguém precisou nos dizer como é que se tinha que fazer as coisas. Nunca um órgão público veio aqui dizer: eu vou botar luz, vou botar água pra vocês. Tudo que existe aqui fomos nós que conseguimos. Somos outras mulheres.”

“A preocupação com os vizinhos vem de longa data, foram criadas junto. É muito triste ver um morador, nascido e criado aqui e hoje tá desmemoriado pelo AVC. Eu fiquei desesperada por conta dessas pessoas, o que iríamos fazer com elas?”

Política e cidadania“Tudo bem, que venha o progresso, mas que também se reconheça a nossa história. Porque eles falam com a gente, eles tratam a vida do ser humano como nada. Eles são muito práticos, mas a prática deles está mexendo com a nossa vida. Com a minha idade, me adaptar em outro lugar é muito difícil. Eu trabalho, tenho carteira assinada, estou prestes a me aposentar.”

“Uma coisa que me chamou a atenção na reunião, quando a gente sentou com o Consórcio do Metrô, uma das primeiras coisas que que eles nos mostraram foi um esquema preparado para o caso da remoção. Com ambulâncias, médicos... porque nós somos uma comunidade velha. Quando falamos de remoção, é o seguinte: ou você tem uma indenização miserável ou você vai para o condomínio na colônia que é excelente.

Mas ninguém se preocupou com o lado humano. O Consócio se preocupou: quais são as famílias, quais são casos de doenças que têm, qual hospital, qual posto de saúde vocês se tratam? Eles vi-ram este lado. Nem que fosse só por perguntar, mas fizeram este levantamento e está no documento tudo que eles propõem. Muito diferente de “nós vamos dar três meses de aluguel social e vocês se viram. Vai pra casa de parentes. Quem for parente, junta as famílias e ficam lá uns dois anos. Vocês juntem o dinheiro para pagar o alu-guel”. Com R$ 400,00, você vai alugar o quê? Porque cada um tem as suas individualidades... Nós temos uma moradora aqui que vive em 27 metros quadrados, então teve alguém que perguntou assim: “Dá pra alguém viver aqui?” E eu disse: “Com extrema dignidade”.

A luta da Vila União da Barra se confunde com a história da Fun-dação Bento Rubião. São praticamente 30 anos de resistência, que começou com a militância dos técnicos na Pastoral de Favelas.

Hoje a Vila União da Barra da Tijuca possui 54 famílias que contam com a assessoria da Fundação Bento Rubião em ações na justiça e nas negociações com o poder público, por um processo que pos-sa lhes garantir uma moradia digna ou uma indenização justa.

* As aspas desta matéria referem-se a vários depoimentos. Foram ouvidas:- Zeni de Paula Costa, 50 anos, nascida na Vila pela qual luta desde os 13

anos de idade. Tem três filhos, todos nascidos lá: uma com 23, outro com 13 e o caçula com 11 anos.

- Custódia Dias Pereira, 56 anos e uma filha com 38 anos.- Jurema Dias Pereira, 58 anos, perdeu o único filho vítima de bala perdida. - Josefa Matias da Silva: Mudou para a Vila em 1977 e, desde então, se

integrou à luta.

Nota:Até o fechamento desta edição, sem possibilidade jurídica de evitar o des-pejo, lutando para obter uma indenização justa e uma saída com dignidade, os moradores ainda não sabiam exatamente o que poderia acontecer e qual seria o destino da maioria.

Direito e Política no Caminho das MulheresA Liderança Feminina nas Lutas Urbanas

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Festa para Alguns. tragédia para outros.“Na tv as imagens da façanha do Brasil eleito para sediar a Copa do Mundo e as Olimpíadas. Onde moro todo mundo fora das suas casas dizendo que a partir daquele dia a nossa comunidade esta-va com os dias contados. Nós pressentimos isso. E foi o que aconteceu. O problema maior é que a prefeitura não chega falando a verdade. Chega ameaçando, gritando que não temos direitos, que a máquina vai derrubar as casas e passar por cima de tudo e de todos, e que todos só têm um des-tino: o olho da rua. São cenas terríveis. Pessoas passam mal, senhoras afl itas sem saber o que fa-zer, porque vamos para o trabalho e deixamos os fi lhos em casa com medo do que pode acontecer. Parece que aqueles homens não têm pai, nem mãe, nem coração e nos tratam como se precisassem limpar a área daquele lixo e como se todo pobre fosse desonesto. Essas políticas têm que pensar em benefi ciar todos, o pobre, o rico, como trabalhador, como gente honesta e digna.”

Não foi só luta pela moradia, não. Isso foi na nossa vida: nos tornamos mulheres mais decididas. Um tipo de mulher que é difícil alguém encarar. Porque nós perdemos o medo muito cedo. Ninguém precisou nos dizer como é que se tinha que fazer as coisas. Nunca um órgão público veio aqui dizer: eu vou botar luz, vou botar água pra vocês. Tudo que existe aqui fomos nós que conseguimos. Somos outras mulheres.

Como criar associação se éramos todas menores de idade? Todas nós éramos meninas, não sabíamos de nada. Todo mundo tinha vergonha, as nossas mães não sabiam falar, a única coisa que podiam fazer era nos dar força. Quem tinha que ir à luta éramos nós. Nos formamos na luta, mas esquecemos de nos formar no estudo.

Custódia, União da Barra

Jurema, União da Barra

Franci, presidente da Associação de Moradores da Favela do Metrô.

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Caminhos para Intervir nas Políticas Públicas

Esta oficina foi realizada com os mesmos parceiros do primeiro módulo e contou com a parceria da ONU Mulheres e ONU Habitat. Seu objetivo foi qualificar o debate para uma ação política sobre as questões discutidas no primeiro módulo, a fim de evidenciar os problemas sociais e urbanos desen-cadeados pelas desigualdades de gênero e servir de subsídio para esta publicação.

Os ricos encontros debateram e apontaram cami-nhos de superação das barreiras que dificultam a participação das mulheres na formulação de po-líticas públicas e na construção de seus espaços como cidadãs, protagonistas que são das lutas ur-banas por cidades mais humanas. Também permi-tiu que se aprofundasse a proposta da criação de uma Frente de Mulheres pelo Direito à Cidade do Rio de Janeiro. Com a palavra as lideranças deste movimento, que redigiram documento de mobili-zação que transcrevemos a seguir.

Dias 24 de novembro, 1o de dezembro e 8 de dezembro de 2010, a FASE realizou três oficinas, com o apoio da Fundação Rosa Luxemburgo e em parceria com o Ibase, o Fórum Movimento Social de Manguinhos, o Comitê Comunitário Cidade de Deus, Fundação Centro de Defesa dos Direitos Humanos Bento Rubião, União Brasileira de Mulheres e União de Moradia Popular do Rio de Janeiro. Este primeiro módulo – Aprendendo com a Cidadania, Direito à Cidade, Políticas Públicas e Gênero – , pretende formar mulheres e homens envolvidos em movimentos sociais urbanos, que se mobilizam para o debate do direito à cidade, contribuindo num processo de articulação para enfrentamento das desigualdades de gênero nas cidades.

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Mulheres pelo Direito à CidadeO modo como as cidades contemporâneas têm sido discutidas negligenciam a dimensão das mulheres e sua experiência urbana. A segregação, os problemas socioambientais, pobreza e violência urbana são apenas uma das formas de caracte-rizar as consequências do modelo de desenvolvimento urbano excludente das cidades brasileiras.

O processo de desigualdade de gênero não deve ser menosprezado, pois as mulheres são as mais vulneráveis aos riscos sociais em uma cidade, principalmente mulheres jovens e negras.

O espaço público é um desafio todos os dias para nós, no transporte público precário, na calçada mal iluminada, nos becos. Num lugar que parece não nos pertencer. Às dificuldades do acesso ao trabalho soma-se a ausência de creches e serviços públicos adequados. Ir ao trabalho ou procurar um emprego se torna um desafio todos os dias.

Além disso, são as mulheres chefes de família que estão em maior número em bairros periféricos, favelas, assentamentos precários sujeitos às enchentes ou ainda com sistema de saneamento ambiental precário.

No debate sobre a política habitacional no país, conquistamos o direito de garantir a titularidade da moradia, mas a efeti-vidade deste direito tem encontrado barreiras, para as mulheres solteiras, chefes de família e casadas. Ao mesmo tempo, nos programas de moradia popular não há discussão sobre o tamanho das casas e apartamentos para que seja adequada ao número de pessoas e a fonte de renda das famílias.

Estamos à frente da organização e na resistência das ocupações e por isso também mais sujeitas à violência policial em processos de despejos forçados, hoje em dia, motivados principalmente pelos chamados megaeventos esportivos, como Copa e Olimpíadas.

Sobre violência urbana temos os territórios tidos como de exceção devido à ação do tráfico de drogas e milícias. Iso-lamento, medo, estigmatização e violência contra mulheres, mães chorando a morte de seus filhos, são o retrato do cotidiano das mulheres de áreas periféricas e favelas. Além disso, temos as favelas pacificadas onde se estabelece a lei do silêncio.

O lazer voltado às mulheres é algo secundário nas políticas urbanas e para as próprias mulheres. Nas praças ou em locais públicos de lazer, na maioria das vezes, somos só coadjuvantes.

Por isso, estamos articulando a Frente de Mulheres pelo Direito à Cidade a fim de construir uma ampla resistência, avan-çar na proposição de cidades mais democráticas e justas para todos e todas, disputando os espaços de diálogo com os governos e com a sociedade.

Participe da construção da Frente de Mulheres pelo Direito à Cidade

Nossa luta:• Garantir participação nos espaços institucionais de debate e deliberação sobre a política urbana, habitacional, de sane-

amento ambiental, de transporte e segurança pública;

• Discussão sobre a política urbana municipal e estadual que considere as reivindicações das mulheres;

• Ajuste de conduta e procedimentos da prefeitura com relação aos processos de despejos motivados por grandes obras relacionadas à Copa e às Olimpíadas, a fim de evitar violação de direitos às mulheres, comuns hoje na cidade, e garantir plenamente o direito à moradia;

• Debate sobre segurança pública que considere a violência urbana e as consequências sobre a vida das mulheres na cidade;

• Política de geração de emprego e renda direcionada às demandas das mulheres e integração com projetos de constru-ção de creche, escolas e formação profissional.

Venha construir e ampliar nossa agenda de luta das mulheres pelo direito à cidade!

Comitê Comunitário Cidade de DeusFórum Movimento Social de ManguinhosFundação Centro de Defesa dos Direitos Comitê Humanos Bento RubiãoFundação de Atendimento Sócio Educativo – FASEInstituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas – IbaseUnião Brasileira de MulheresUnião por Moradia Popular do Rio de Janeiro

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Falta vontade política, quando eles querem, eles fazem. É muito dinheiro gasto e pouco retorno para o povo. Nós temos deficiência na saúde. Nós temos dinheiro, mas não temos projetos, porque não é interessante ao governo fazer. Eu falei para o governador que a saúde onde eu moro é muito precária. Ele me disse que não podia fazer tudo ao mesmo tempo. O hospital está fechado há 4 anos, com a UPA em construção há mais de 2. Nós estamos entregues à própria sorte.

tânia Regina Bento, Fórum do Movimento Social de Manguinhos

A mulher é muito desclassificada em todas as áreas, a mulher é injustiçada, mas está conseguindo conquistar o seu espaço. Sou uma mulher e eu posso ter o meu domínio. A gente mora numa comunidade que há cinco meses está passando pela remoção e, graças ao encontro com vários grupos e várias ONGs, conseguimos força para permanecer onde estamos. O prefeito nunca enxergou a gente. Agora ele enxergou e quer derrubar a gente, mas graças a Deus primeiramente e aos encontros e Oficinas estamos permanecendo no mesmo lugar.

taís Pedreira Santos, Favela do Metrô

Eles apontavam os mapas dos projetos de engenharia e exclamavam: “aqui é a minha casa” ou “essa é a minha rua”, sem entenderem direito como foram parar dentro de desenhos que mostravam a linha férrea e as ruas arborizadas tragando tudo e todos.

Patrícia Evangelista, secretária executiva do Fórum do Movimento Social de Manguinhos

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Sou nordestina, piauiense. Sempre trabalhei e sou muito conhecida como a Maria José. Me candidatei, no último pleito, a deputada federal. Obtive 465 votos. Sou muito feliz por isso, porque fiz uma campanha só com a cara e a coragem. Nós, donas de casa, se formos lavar, passar e cozinhar não fazemos mais nada. Temos que deixar um pouco o cotidiano e irmos para a rua. Você tem que fazer um sacrifico, porque se não fizer, não sai de dentro de casa. Temos que viver e procurar nosso espaço.

Maria José, União Brasileira de Mulheres

Existe uma luta interna grande. Toda mulher que faz parte do movimento social, que está militando, quando está em casa não se sente pertencendo àquela casa. Você não é plena ali, você não existe totalmente. Você não se adéqua àquele espaço, porque você é outra coisa lá fora. Quando a mulher retorna para o lar, ela não tem direito a sua própria casa. Direito a própria casa dela.

Ludmila – moradora de São João de Meriti

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