4
A LÍNGUA DOS BANDEIRANTES Pesquisadores descobrem traços do portuu!s dos s"cu#os $ de )abita'tes das rei*es percorridas pe#as e+pediç*es Reprodução Visão romantizada do bandeirante Domingos Jorge Velho Rei'a#do ,os" Lopes free-lance para a Folha Em regiões isoladas do interior do Brasil, marcas de u ancestral ainda sobrevivem, trazidas por uma gente ue se !ltimos anos por sua suposta incapacidade de utilizar esse l$ngua portuguesa usada pelos bandeirantes de %ão &aulo, Brasil central nos s'culos () e (* e, no rastro do massacr e da e+ploração das primeiras minas de ouro, implantaram um idioma ultraconservador, muito pr +imo do passado medieval lusita do ue afirmavam pesuisas hist ricas mais recentes, a l$n como costumam ser chamados nos documentos da 'poca, não er adaptada do tupi conhecida como /l$ngua geral/, mas uma ve português, redescoberta em seus descendentes por um grupo ue percorreu seu antigo territ rio durante uatro anos" 0 no sertão lingu$stico brasileiro esteve 1eitor 2egale, pro l$ngua portuguesa da 3%&" 4ogo no começo da conversa, 2ega 6. desmonta a primeira ilusão do idioma criada em s'culos /7s bandeirantes nunca se denominaram bandeirantes/, afirm pega documentos da 'poca lavrados em cart rio ou escrito e+pressão ' sempre /fulano est. no sertão/ ou /fulano est. mandou buscar algo na armação/" 2egale tem conhecimento de !ltimos anos, ele coordenou um esforço de pesuisa ue seg ou menos livre a trilha da grande /bandeira/ :ou armação;< &aes, em (5)>" &enetrando no sertão dos ?ataguases, ue en

A Língua Dos Bandeirantes

Embed Size (px)

DESCRIPTION

A língua dos Bandeirantes

Citation preview

A LNGUA DOS BANDEIRANTESPesquisadores descobrem traos do portugus dos sculos 17 e 18 na fala de habitantes das regies percorridas pelas expedies paulistasReproduo

Viso romantizada do bandeirante Domingos Jorge Velho

Reinaldo Jos Lopesfree-lance para a FolhaEm regies isoladas do interior do Brasil, marcas de um portugus ancestral ainda sobrevivem, trazidas por uma gente que se celebrizou nos ltimos anos por sua suposta incapacidade de utilizar esse idioma. Trata-se da lngua portuguesa usada pelos bandeirantes de So Paulo, que varreram o Brasil central nos sculos 17 e 18 e, no rastro do massacre de tribos indgenas e da explorao das primeiras minas de ouro, implantaram um idioma ultraconservador, muito prximo do passado medieval lusitano. Ao contrrio do que afirmavam pesquisas histricas mais recentes, a lngua dos "paulistas", como costumam ser chamados nos documentos da poca, no era s a forma adaptada do tupi conhecida como "lngua geral", mas uma verso arcaica do portugus, redescoberta em seus descendentes por um grupo de pesquisadores que percorreu seu antigo territrio durante quatro anos. frente desse avano no serto lingustico brasileiro esteve Heitor Megale, professor de filologia e lngua portuguesa da USP. Logo no comeo da conversa, Megale, de 61 anos, j desmonta a primeira iluso do idioma criada em sculos de historiografia. "Os bandeirantes nunca se denominaram bandeirantes", afirma. "Quando voc pega documentos da poca lavrados em cartrio ou escritos por um deles, a expresso sempre "fulano est no serto" ou "fulano est numa armao", mandou buscar algo na armao". Megale tem conhecimento de causa: nos ltimos anos, ele coordenou um esforo de pesquisa que seguiu de forma mais ou menos livre a trilha da grande "bandeira" (ou armao?) de Ferno Dias Paes, em 1674. Penetrando no serto dos Cataguases, que engloba quase a totalidade do atual Estado de Minas Gerais, Paes abriu o caminho para outras expedies que iriam descobrir ouro e diamantes em Minas, Mato Grosso e Gois, iniciando uma das fases mais prsperas da Colnia. O trabalho de Megale e sua equipe foi duplo: de um lado, quase mil pginas de manuscritos dos sculos 17 e 18 foram recolhidas em arquivos e cartrios das regies que marcaram a expanso bandeirante: em Taubat (SP), no vale do Paraba; em reas perifricas do ciclo mineiro do ouro, como Paracatu e Ibituruna; na regio de Cuiab, em Mato Grosso; e em Catalo (GO), apenas para citar as localidades principais. De outro, houve um rduo processo de garimpagem humana, no qual os pesquisadores foram em busca de pessoas cujo falar ainda sofresse a influncia do portugus trazido pelos primeiros povoadores. A unio de documentos e fala viva, diz Megale, deu nova dimenso ao trabalho.Isolar para conservarMas que lugar e que pessoas em pleno Brasil central poderiam ter conservado elementos lingusticos to remotos? "H um conjunto de fatores", explica Megale. "O isolamento geogrfico um deles. Ns tomamos o cuidado de evitar reas onde a influncia moderna fosse muito marcante. Por isso fomos no s reas centrais do ciclo do ouro, mas s cidades e vilas da periferia, na zona rural. Pessoas com baixa ou nula escolaridade, com pouco contato com a mdia ou que at tm um certo aborrecimento com ela, tambm se encaixam nesse perfil", afirma o pesquisador. Some-se a tudo isso a idade avanada e os estudiosos do projeto conseguiram definir os testemunhos relevantes para verificar a sobrevivncia da lngua bandeirante. Cerca de 30 pessoas foram entrevistadas, com centenas de horas de gravao. Um impedimento para conseguir a conjuno ideal entre depoimentos modernos e manuscritos antigos poderia ter sido a linguagem cartorial, que representa grande parte dos textos, todos inditos, recolhidos pela equipe do projeto. "Muita gente caracteriza a linguagem dos cartrios como cheia de frmulas, incapaz de refletir o dia-a-dia", conta Silvio de Almeida Toledo Neto, 35 anos, colega de Megale na USP. "Mas possvel encontrar em muitos casos no apenas o texto feito pelo escrivo, mas tambm bilhetes, recibos ou, mais raramente, dirios de quem estava numa armao ou foi listado numa partilha de bens", afirma Toledo. "A importncia desse tipo de registro, feito com "mos inbeis", como a gente costuma dizer, muito grande". Esses rabiscos apressados testemunham o conhecimento do portugus e um contato, ainda que limitado, com a cultura escrita. Nos inventrios constam tambm, ainda que raramente, livros impressos: hagiografias (biografias de santos), cartilhas, obras devocionais, s vezes registradas com o ttulo em latim errado. De acordo com os pesquisadores, dois fatos revelados pelos documentos lanam dvidas sobre a hiptese da "lngua geral": h pouqussimo registro de palavras indgenas, exceto nos nomes de lugares. E, aqui e ali, h referncia aos "lnguas" - em portugus de hoje, os intrpretes, sujeitos que dominavam o portugus e pelo menos um idioma dos ndios que eram a imensa maioria nos territrios dos bandeirantes, servindo como tropas de choque, trabalhadores rurais e guias no serto. " uma situao de bilinguismo e at de polilinguismo", resume Megale.Portugus medievalTraos arcaicos ficaram no idioma dos bandeirantes e de seus descendentes. " difcil afirmar algo sobre o portugus do sculo 17 [trazido pelas expedies paulistas", mesmo porque nunca foi feita uma descrio exaustiva dele", diz Megale. "Mas d para perceber que ele extremamente conservador, muitas vezes medieval, prximo do galego-portugus [do sculo 13 ao 15"".Esse conservadorismo do portugus bandeirante se reflete em palavras como "mensonha" (mentira), usada por Gil Vicente (teatrlogo do sculo 15), ou "mentireiro" em vez de mentiroso. "Mamparra" para alguns entrevistados pelo projeto quer dizer "fingimento", enquanto as variantes fonticas arcaicas de palavras comuns, como "pessuir" (possuir), "fruito" (fruto) e "frol" (flor) enchem fitas gravadas. "Treio" (traio), que aparentemente cai nessa categoria, tem um sentido especfico e inesperado: " quando h um grupo construindo uma casa em mutiro e uma parte dele resolve terminar o trabalho s escondidas, noite, fazendo uma festa com o dono da nova casa depois", conta Megale.Perto de Cuiab, uma pronncia sabidamente ligada ao portugus do sculo 17 permaneceu: "tchapu", "tchuva". A faceta medieval do falar bandeirante se mostra outra vez na dificuldade de pronunciar consoantes nasais ("uma" vira algo parecido com "ua", pronncia registrada at em Cames). E o "r" caipira, arrastado, pode ser a nica marca deixada na fontica do portugus do Brasil por influncia indgena.Claro que os quase dois sculos que entraram na mira de Megale, Toledo e seus colegas no representam uma lngua homognea no espao ou no tempo, mas uma sequncia de ondas do portugus que se sobrepunham e se influenciavam mutuamente. O afluxo violento de imigrantes do Reino, especialmente depois da descoberta do ouro em Minas Gerais, em 1692, trouxe uma lngua em muitos aspectos estranha ao portugus bandeirante, que era mais conservador. Talvez isso explique o choque de dom Francisco Lima, bispo de Olinda, ao se encontrar com o bandeirante Domingos Jorge Velho, o destruidor de Palmares, em 1697: "Este homem um dos maiores selvagens com quem tenho topado: quando se avistou comigo trouxe consigo lngua [intrprete", porque nem falar [portugus" sabe nem se diferencia do mais brbaro tapuia".Como hoje se sabe, Sua Eminncia estava exagerando: Jorge Velho no s falava como escrevia (mal, admita-se) portugus. "Mais do que um confronto entre portugus e tupi, isso deve ser encarado como um embate entre dois tipos de portugus", afirma Megale. A inteno dos pesquisadores, que ainda depende de mais financiamento, disponibilizar manuscritos e depoimentos num CD-ROM para que a compreenso desse choque de mundos possa ser ampliada.[LOPES, Reinaldo Jos (2002). A lngua portuguesa falada pelos bandeirantes. Folha de S. Paulo, Caderno Mais!, 10 de maro.]