A Linguagem de Beckett - Berrettini

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    Clia Berrettini

    A Linguagem

    de Beckett

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    Copyright ( c ) Editora Perspectiva S.A., 1977.

    Direitos reservados EDITORA PERSPECTIVA S.A.Av. Brigadeiro Luis Antonio, 302501401 So Paulo Brasil

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    INTRODUCO

    Entre os dramaturgos da dcada de 50, o irlandsSamuel Beckett , sem du vida, o de obra mais rica,profunda e complexa, o que Ihe garantiu, com justia, oprmio Nobel, em 1969. Se com Ionesco e Adamov, entreoutros, viveu a poca conturbada da guerra, e a nomenos agitada e confusa aps-guerra, quem, certamente,com maior originalidade, exprimiu sua posio diante davida e do universo, usando de trgicas notas, de profundasressonncias, e cuja universalidade lhe tem valido uma

    audincia internacional. Atestam-no as freqerites ence-naes, em distintos paises e para os mais diversospublicos.

    Beckett, o grande trgico do sculo XX, que pintao absurdo da condiao humana, as grandes dificuldadesdo homem moderno, sem absoluto, sem Deus, complta-mente desamparado num universo hostil, desprovido dequalquer sentido, um moderno clssico. Um modernoclssico que lana mao de procedimentos modernos, mastambm antigos e mesmo arcaicos. Inspiram-no o mimusantigo, a Commedia delPArte, os bufes da Idade Mdia,as cmicas personagens shakespearianas, a literature ofverbal nonsense, o surrealismo, o music-hall anglo-ame-ricano, os filmes de Laurel e Hardy, de Carlitos, de Buster

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    Keaton e dos Irmos Marx. o teatro beckettiano umteatro novo, antitradicional, que tem tambm sido desig-nado por: teatro do absurdo, teatro de protesto, metatea-

    tro, farsa metafisica, comdia sombria, tragicomdia mo-derna, teatro apocaliptico, teatro de choque, teatro daderriso, teatro da condiao humana, ou mesmo ateatro,a exemplo do termo aliteratura> na medida em que ostermos teatro e literatura indicam formas esclerosadas,trazendo em si um sentido pejorativo. Teatro novo, antitradicional, mas que , paradoxalmente, um teatro tradi-

    cional, pela sua identidade com o passado. E, se bemque sejam validas e plausiveis todas as designaes assi-naladas, preferimos a do Teatro da Condiao Humana,

    pois este o seu grande tema, compreendendo uma sriede temas eternos e modernos.

    A vida, feita de incomodidade, de sofrimento, desolido, de incomunicabilidade, com o malogro do amor

    e da amizade; a vida, feita da destruio da esperana,do malogro da cincia, enfim, da angustia, da misriado homem num universo ilogico, inospito, hostil, lugubre,vazio. Isto o teatro beckettiano: a ilustrao da con-dio humana, simbolizada por Vladimir e Estragon,Pozzo e Lucky, personagens daquela primeira obra-primado autor Esperando Godot (En attendant Godot, ence-

    nada em 1953) , e cujos nomes, por sua origem eslava,francesa, italiana e inglesa respectivamente, parecem uni-versalizar sua condiao de homem e no indicar indivi-dualidades; simbolizada ainda pelos enfermos Hamm,Clov, Nagg e Nell, de Fim de Jogo (Fin de Partie, estreadaem 1957); ou pelos solitrios Krapp de A ltima Gra-vao (La dernire bande, levada ao palco em 1958),

    Winnie de Oh os Belos Dias (Oh les beaux jours, ence-nada em 1961) ou ainda Henry da pea radiofnica

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    Cinzas (Cendres, criada em 1959), para citarmos apenasalguns dos mais conhecidos seres beckettianos.

    Folheando ao acaso certas obras, deparamo-nos comfalas que contm esses temas bsicos e que, mesmo iso-Iadas no contexto, no perdem sua carga expressiva: oprotesto do homem diante do universo, diante de suacondiao, e da quai no h forma de evadir-se. Em Fim de Jogo, lemos: Mas reflita, reflita, voc esta na terra, sem remdio! (p. 73). o homem preso -suacondiao de homem; nada pode salv-lo. o irreme-

    divel, o insanvel!Ainda em Fim de Jogo, parodiando o racionalista

    Descartes, numa amarga e desiludida reinterpretao doser humano, e das suas reais possibilidades, lemos:

    Ele chora, Portanto ele vive.

    Vida, sinnimo de sofrimento; vida, sinnimo de priso,de irremedivel enclausuramento, desde o abrir dos olhosdiante do universo. E o dilogo continua, sem vislumbrede otimismo :

    Voc j teve alguma vez um instante de felicidade? No, no meu conhecimento (p. 85).

    Embora a solidao no seja prerrogativa das perso-nagens beckettianas ou das de qualquer outro dramaturgodo absurdo, posto que j a ilustrara a gerao anterior

    a de Sartre e Camus, por exemplo , vai ser elaagora retratada de peculiar maneira. A solidao do Orestesde Sartre em A s Moscas, ou da protagonista de Antgona

    de Anouilh lhes conferia uma aurola de grandeza, en-

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    quanto a solidao das personagens dos dramaturgos dadcada de 50 - e, entre eles, de Beckett se manifesta como uma espcie de doena que as atinge profun-

    , damente, sem transmitir-lhes nenhuma elevao ou glria.Aparece traduzida fisicamente, concretamente, e materia-lizada inclusive atravs do cenrio.

    A solidao ainda que as personagens surjam fre-qentemente em par o tema beckettiano por exce-lncia. Estragon e Vladimir, os dois protagonistas daquelaobra que um autntico marco na Histria do Teatro,nao se sentem menos solitrios, embora juntos e esperade Godot; amigos e inseparveis no infortnio, nem assimdesaparece sua solidao. O desgaste da vida destroi-lhesa cordialidade; se vivem lado a lado, porque pior sriaa total solidao fisica. A vida a dois acentua-lhes talvezmais o isolamento, uma vez que a comunicao nemsempre possivel. Tentam entabular dilogo, porm estelogo se esgota, caindo num arrasador e fatal silncio,como a significar que cada ser prisioneiro de suas idiase idiossincrasias, e isto por mais que procure abrir-se aooutro, acolhendo-o ou oferecendo-se-lhe. A atividadeverbal no consegue fazer diluir a solidao que os envolve;nao passa de simulacro de dilogo, pois o monologo continua, acentuando-se o carter trgico da solido a dois.

    Se Estragon se aproxima de Vladimir atravs docontato fisico, este prontamente repelido, de ambos oslados, numa traduo visivel da natural separao entreos homens. Diz ele:

    Vejamos, Didi. (Silncio.) Me d a mao! ( Vladimir se volta.)

    Me d um abrao! ( Vladimir fica rigido.) Deixe que eu o abrace!(Vladimir se distende. Abraam-se. Estragon recua.) Voc fedea alho! (p. 21).

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    Impossivel a aproximao, a boa comunicao. . Masimpossivel tambm a separao, criando-se verdadeiroimpasse, sem soluo, profundamente aniquilador, comoquando Estragon lana ao outro um grito repleto deangustia:

    No me toque! No me pea nada! No me diga nada!Fique comigo! (p. 81).

    Atraao e repulso. Atroz constatao da necessi-dade de companhia, ainda que no a queira. a rgica

    incomunicabilidade entre os seres, uma das constantes dopensamento beckettiano, encontrvel em romances Mercier e Camier, que o antecedente mais prximo deEsperando Godot, com seus dois miserveis protagonistas,sempre juntos, mas que se separam no final , e emensaios, sobretudo em Proust. Neste ltimo, lemos quedois seres so dois dinamismos separados e imanentesque no so ligados por nenhum sistema de sincronizao;e ainda: a tentativa de comunicao quando no

    possivel nenhuma comunicao simplesmente um vulgararremedo ou uma horrivel comdia. a comdia queele, Beckett, ilustra atravs de suas personagens e suasfrustradoras tentativas de aproximao. . . Ou a tragdiade s^res que se dilaceram num relacionament sadoma-soquista, transformando a solido em sofrimento a

    dor a substituir outra dor.As personagens se caracterizam pela dor, pela soli

    do, pela angustia, pelo desespero, pela decadncia fisica,pela ruina, enfim. Beckett este profeta de um sculodesesperador, na opinio de Pierre de Boisdeffre (Histoire vivante de la littrature d'aujourdhui, p. 340), vemdesumanizando paulatinamente suas criaturas, no que se

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    ope a Ionesco, que evolui em sentido inverso. Vladimire Estragon ainda eram seres humanos que esperavam algoou algum, mas as quatro personagens de Fim de Jogo

    Hamm, cego e paralitico; Nagg e Nell, seus pais, sempernas e sempre recolhidos em latas de lixo; Clov, im-possibilitado de sentar-se so antes restos de criaturashumanas. Se os dois primeiros ainda esperavam Godot

    Deus, algum ou algo para aliviar-lhes o sofrimento ' j os quatro seguintes nada esperam. o ceticismode Hamm, ao gritar violentamente a uma das personagens da historia que ele narra: Mas enfim quai suaesperana? Que a terra renasa primavera? Que omar e os rios se tornem novamente cheios de peixes?Que ainda haja man no cu para os imbecis comovoc? (p. 73) . Ou talvez apenas esperem a morte libe-radora de sua desprezivel condio, uma vez que Todaa casa fede a cadver. Todo o universo (p. 65). Eas primeiras palavras da pea espelham a desagregaoreinan te: Acabado, esta acabado, isto vai acabar, istovai talvez acabar . a total desesperana, pois se Hammse dirige a Deus, logo apos o renega, dizendo: O sujo!Ele no existe (p. 76). Nem fim, nem renovao.O Nada.

    Seres-troncos : Nagg, Nell e Winnie; seres enfermos:Dan, da pea radiofnica Todos os que Caem (Tousceux qui tombent), um rebotalho humano com sua ce-gueira e seu corao desfalecente; Krapp miope e quasesu rd o .. . a decadncia fisica, a mutilao, o depau-

    peramento gradativo do organismo, seja no teatro, sejano romance, com Malone estendido no seu leito, emMalone Morre (Malone meurt)ou com Mahood, o homemsem pernas de O Sem Nome (VInnommable), formando

    as personagens uma verdadeira galeria de mortos, se-

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    gundo o prprio autor, pois atravs da obra desfilam:paralisia, cegueira, tumores e outras enfermidades. Ohomem beckettiano um ser em processo de desagrega-

    o e no um ser normal: a normalidade parece ter sidoextinta do universo como uma espcie de cegueira desi proprio. Ou talvez seja ainda a maneira de representara marcha progressiva da decadncia fisica das criaturasnum mundo sem ressonncia espiritual. Onde os valoresespirituais, se o homem esta preso ao corpo e s suasfunes e necessidades? Homem-matria, matria emdecomposio, nauseabunda; heri deplorvel de ummundo absurdo, fechado, sem s aida. Homem infeliz.

    A expresso beckettiana do sofrimento lembra em certa medida a de Camus, atravs de Calgula,ao dar-se este conta do absurdo existencial. Os homensmorrem e no so felizes, dizia ele, pretendendo alcanara lua, isto , o impossivel (pp. 27-8). E Estragon e Vladimir tambm sentem a inviabilidade da supresso da

    infelicidade, do sofrimento, da dor do mundo; mas issoos leva a pensarem no liberador suicidio, uma vez queGodot, o to esperado Godot no vem. Referem-se emvarias ocasies inteno de sair da vida, embora nochegue a concretizar-se tal idia, o mesmo se dando como protagonista da pantomima A to Sem Palavras I (ActeSans. Paroles I). como se, atraidos pelo sonho de uma

    saida liberadora, sentissem ao mesmo tempo uma incon-fessada esperana, ou talvez o medo diante do ignoradoalm. Na terra, tudo vai mal; e, para alm da terra? a angustia em face do mistrio da existncia extra-terrena que ainda prende o homem beckettiano a este

    planeta que no lhe traz seno sofrimentos e cuja vidase rsum em: nascer-sofrer-morrer, nada justificando sua

    vinda ao mundo. a angustia metafisica, uma vez que

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    piente, o coveiro aplica seus ferros. Temos o tempo deenvelhecer. O ar esta repleto de nossos gritos. (Eleescuta.) Mas o hbito uma grande surdina (p. 128).Amargura, pranto, morte, decorrncia do mal do nasci-mento a vida. E ridiculariza Beckett o amor fisico,o instinto de procriao. Hamm e Clov, entre outraspersonagens, exprimem profunda averso a que a vidacontinue ou renasa: o primeiro, ao saber, por Clov, daexistncia de uma pulga viva, diz preocupado: A huma-nidade poderia reconstituir-se (p. 50); e o segundo, aover um menino, pela janela, tem a inteno de exterminaro procriador em potncia (p. 105).

    Se Esperando Godot mostrava humanidade o tra-jeto de algo assim como uma espcie de viagem atravsda noite viagem quase esttica, em que os viajantespassavam da espera ao desnimo porque Godot no che-gava, e eram obrigados a arrastar o fardo de uma esperasem esperana; se Esperando Godot exprimia a lenta,dolorosa crucifixo dos viajantes naquele longo percursoatravs da noite, vitimas da solido porque, se bem queamigos, cada um se encontra s o em face de seu destino

    particular, j Fim de Jogo o quadro da vida, tendo:de um lado, a eterna maldio dos filhos que no pediramo nascimento e, do outro, a mentirosa mentira dos paisque julgam ter procriado para o futuro. Quadro da histo-ria da humanidade, com a maldosa separao entre fortese fracos Hamm, o dspota; e Clov, o submisso (comotambm sria o caso de Pozzo e Lucky). Painel da con-dio humana, com a vaidade das realizaes; pavorosaimagem do universo em desagregao, produto de umapoca que no animada pela f num absoluto. Misriado homem sem Deus, sem esperana, vazio. E mesmoOh os Belos Dias, com seu alegre e otimista tftulo, no

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    deixa de ilustrar a vida melancolica, desoladora, absurda:Winnie, que quer vencer os borbotes de melancolia,inventariando seus bens todos os miudos objetos desua bolsa-sacola e falando sem trgua, num cmico e

    dilacerante monlogo (o marido esta praticamente invi-sivel e mudo) se eleva a simbolo da solidao e da usurada vida. Suas frases joviais, repetidas insistentemente,so, no fundo, tristes como se ela se esforasse taluma criana por espantar o mal que a iniquila grada-tivamente, tentando aplacar as divindades infernais. Eseus gestos, inuteis, bem ilustram a frivolidade da agita-

    o, e a falta de sentido dos atos humanos.Viso trgica do homem e do universo muitos autores

    a tiveram e a tm. Mas a de Beckett talvez a maistrgica, pois nela, como o notou Ionesco, a totalidadeda condio humana que entra em jogo, e no o homemde tal ou tal sociedade (citado por Pierre Mlse, Beckett,

    p. 156), havendo ruptura com o didatismo, o engajamento

    e a ideologia caracterizada, seja religiosa como a de Claudel, seja poltico-filosofica como a de Sartre. Ensaios,poesias, romances, novelas, contos, peas para o teatro,radio e televiso revelam, incansavelmente, suas preocupa-es o homem e sua condio expressas atravs deuma linguagem cujos elementos tentaremos precisar nestebreve estudo, que focaliza apenas as peas e um curtofilme mudo.

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    1. LINGUAGEM SONORA

    Falando do teatro, disse Barthes que uma espciede mquina ciberntica, em repouso, oculta atrs de. umacortina, e que, ao ser descoberta, se pe a emitir aosespectadores um certo numro de mensagens simultneas,se bem que em ritmo diferente. Em determinado pontodo espetculo, so emitidas seis ou sete informaoes pro-vindas do cenrio, da iluminao, do lugar ocupado pelos

    atores, de seus trajes e pintura, de seus gestos e palavras,havendo pois uma autntica polifonia informacional,ainda que algumas dessas informaoes permaneam (comoo cenrio), enquanto outras se movam (palavras e gestos) . a teatralidade, com a sua espessura de signos(Essais critiques, p. 258).

    Com efeito, a linguagem teatral no apenas a ver

    bal* mas a linguagem cnica em sua totalidade o drama-turgo moderno aumenta a eficincia de seu Verbo, refor-ando-o com a linguagem paraverbal, ampliando o ato dacomunicao: Verbo e elementos auditivo-visuais. oaperfeioamento dos instruments de comunicao, a ma-nipulao mais cuidada e sutil de todos os elementos que

    vo falar ao publico. Este v e ouve, captando a men-sagem que lhe enviada de diferentes maneiras, uma vezque o teatro novo que no mais to novo lana

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    mao de muitos elementos a fim de atingir os espectado-res, dirigir-se ao seu espirito por intermdio dos sentidos. a promoao do sensorial que se manifesta ainda mais

    acentuadamente no uso sistemtico das materializaespregadas por Antonin Artaud, isto , simbolos visuais eauditivos, que tm uma notvel importncia, mormente porseu carter hiperblico.

    parte as pantomimas, em que prdomina a lingua-gem visual e, em particular, a gestual, em todas as demaispeas de teatro de Beckett sem excluir a visual estaprsente a linguagem sonora, que compreende vrios elementos diferentes pela sua natureza e pelo papel querepresentam. Ao lado da linguagem verbal, da palavraarticulada, esta o que Claudel chamou de voz inarticula-da, o resmungo, a exclamao, a duvida, a surpresa, todosos sentimentos humanos expressos por simples entona-es (citado por Pierre Larthomas, Le langage dramatique, p. 114) porque no h duvida que esses elementosfazem parte da linguagem, exprimindo e comunicandosentimentos, em apoio s palavras, ou mesmo isolados.

    E a linguagem musical e a linguagem dos ruidos comple-tam a parte sonora do teatro de Beckett, prsente ao ladoda visual quando no se trata de pea muda , e prdominante nas peas radiofnicas, substituindo a visual,

    pois permite evocar ambientes, criar atmosferas, graasao seu alto poder de sugesto.

    Linguagem verbal: Se dramaturgos do sculo XX,como Claudel e Giraudoux (se bem que com sua carga

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    inovadora) ou Gide e Montherlant consideraram a lin-guagem verbal como o meio de expresso por excelncia,admirando-lhe a beleza e reconhecendo a supremacia do

    Verbo; e se lhe atribuiram o poder de ordenar o universo,uma vez que representa situaes de maneira inteligivel o otimismo em relao linguagem , j o teatro novo,do quai Beckett o maior reprsentante, se caracteriza poruma posio completamente oposta. a desconfiana dalinguagem verbal, a duvida em relao ao seu poder decaptar a realidade, de comunicar enfim, o que d origem a

    uma atitude de derriso. Derriso da linguagem verbal,paralela da condio humana.

    Beckett e os outros dramaturgos desse tipo de teatrotransformaram o dommio da expresso verbal. O velhoestilo a que se rfr a protagonista de Oh os Beios Dias bem o estilo que Beckett vita em suas obras, ao eli-minar os elementos que caracterizam a linguagem liter-

    ria tradicional. No estilo nobre ou elevado; no adomosnem emprego de tempos e modos verbais abolidos dalinguagem coloquial, da mesma forma que so suprimidoso bom tom e o espirito de salo. Se, em A ltima Gra-vaao, atravs das fitas gravadas no passado, quando ovelho protagonista ainda era jovem, surgem certos termoscomo viduit (e nao o usual veuvage, para indicar a

    viuvez), tal emprego obedece a pura inteno irnica,tanto assim que, quem os proferiu em tempos idos, nomais os reconhece ou compreende, revelando-se incapazde associar a camada sonora ao significado.

    Paralela supresso das caractersticas da linguagem literria tradicional, vem a introduo de termos eexpresses familiares, de giria ou escatologicos, prsentes

    tanto nesta ltima pea, como em Fim de logo e outras,

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    e cuja inteno parece a de sacudir o leitor ou especta-dor, tocando-o mais agudamente.

    A atitude revolucionria dos dramaturgos da dcada

    de 50 nao foi necessrio reconhecer pioneira. Nofaltam antecedentes sua reformadora postura no campoda linguagem e obrigatria a lembrana de Valry, que,entre outros, assinalou no so a impossibilidade da pa-lavra no que diz respeito captao da realidade, comotambm seu aspecto despotico, isto , a linguagem, porser algo que herdamos dos outros, impe-nos seu pensa-

    mento. Sem que houvessem previsto, Valry e algunsmais contribuiram para uma nova filosofia da linguagem,sendo que Antonin Artaud, este metafisico do teatro, o

    primeiro que dirige criticas linguagem, ao pensar emtermos de teatro teatro a arte da representaao e noda palavra e ao pregar a supremacia do espetculo.Ficava ento a palavra relegada a um piano secundrio,

    uma vez que o gesto e o signo podiam e deviam falarmais e melhor. E assim que dramaturgos como Ionescoou Beckett para citarmos os maiores procederamao emprego de elementos que pudessem exprimir idias,no dizendo com palavras, mas fazendo sentir tais idias.Ou, como afirma Ionesco, seguindo as pegadas artaudia-nas: Tudo linguagem no teatro: as palavras, os gestos,

    os objetos, a propria ao porque tudo serve para exprimir, para significar (Notes et Contre-Notes, p. 197).Vai, pois, materializar angstias, presenas interiores,fazer com que representem os objetos, vivam os objetos,animem os cenrios, concretizem os simbolos (lbid.} p.63), alm de que os gestos, a pantomima, continuem a

    palavra ou a substituam. No s falar com palavras,

    verbalmente; mas falar, comunicar mediante todos osmeios de expresso: auditivos e visuais.

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    Mas, de entre os novos dramaturgos da dcada de50, talvez Beckett o critico mais agudo e feroz da linguagem. Conhecedor da obra do filsofo Fritz Mauthner

    que dedicara sua vida critica da linguagem, e tendo inclusive lido trechos desse autor ao amigo Joyce, vai Beckett ficar alerta s imperfeies da linguagem para a boacaptao da realidade. E isto explica sua arte teatral. Semque tenha realizado uma total inveno, o que fez foiutilizar sistematicamente certos procedimentos antigos, se

    bem que renovados, associando-os a outros novos. Estu-demos, porm, mais de perto o dilogo beckettiano.

    Dilogo: O dilogo do teatro de Beckett se caracte-riza pelo empobrecimento, pelo depauperamento, isto ,

    pela presena de falas curtas em que subsistem os traosdo dilogo tradicional. E nestas so encontrveis tantoa oposio, como a repetio ou a esticomitia, cujo em-prego nada tem de inovador, visto remontar seu empregoa sculos passados. Se desde o teatro tradicional, surgiam

    personagens animadas pela oposio de sentimentos, pelaoposio de valores, e tal choque se traduzia verbalmente,o mesmo vai ocorrer no teatro de Beckett, como porexemplo em Esperando Godot, no dilogo em que seopem Estragon e Vladimir, ou ainda em Fim de Jogo,quando $e chocam Clov e Hamm. a oposio, expressaatrays de poucas palavras, concisamente, como aqui:

    Vladimir Oh perdao!Estragon Eu escuto voce!VI. Mas nao!Est. Mas sim!VI. - Eu interrompi.Est. Ao contrario.

    Olham-se com clera.VI. Vejamos, nada de cerimnia.Est. No seja cabeudo, ora.

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    VI. Acabe a frase, digo eu.Est. Acabe a sua.

    (P. 127).

    Este e tantos outros exemplos que poderiam sertranscrites revelam a presena da oposio, concisa, r-pida. a oposio pura, inovadora em relao aos clssi-{Cos, e que sugere a parodia ou a caricatura do teatro tradicional e da prpria vida. ainda a procura da essn-cia teatral, sob a forma ldica, como quando lemos:

    Vladimir Obrigado a voce.Estragon De nada.VI. Mas sim.Est. Mas no.VI. Mas sim.Est. Mas nao.

    (P. 79).

    Dir-se-ia o jogo de palavras, paralelo ao jogo de

    objetos que circulam das mos de Estragon s de Vladimir, ritmicamente, regularmente. . . Animando o di-Jogo, tirando-o do marasmo, graas mudana do ritmoe ao carter ludico, a tradicional oposio agora renovadase faz, pois, prsente na obra beckettiana.

    Quanto esticomitia, este duelo verbal entre as per-sonagens em oposio, e que se apoia na antftese e no

    paralelismo verbal, tambm utilizada por Beckett, comoo foi pelos gregos e latinos e pelos grandes dramaturgosdo sculo XVII francs, entre outros. A esticomitia, quetambm apresenta um carter ludico, bem refletindo aessncia teatral, adquire no entanto nas mos beckettianasum novo aspecto, graas elipse da parte inicial. Beckett o grande utilizador desta forma tradicional, reno

    vada pela construo eliptica; alias a elipse freqenteem sua obra, dando margem a amplas sugestes. E, para-

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    lelamente, recorre ao emprego de termos com dbil desviosemntico, de maneira que ha oposio entre les, aomesmo tempo em que so uma estranha mescla de ant-

    nimos-sinnimos. Entre os inumeros exemplos, o maisdigno. talvez de menao por seu carter eminentementepotico e musical razo pela quai o citamos em fran-cs, j que perderia com a traduo o que se segue:

    Vladimir- a fait un bruit dailes.Estragon De feuilles.VI. De sable.

    Est. - De feuilles.SilncioVI. Elles parlent toutes en mme temps.Est. Chacune part soi.

    Silncio

    VI. Plutt elleschuchotent.Est. Elles murmurent.VI, Elles bruissent.Est. Elles murmurent.

    VI. a faitcomme un bruit de plumes.Est. De feuilles.VI. De cendres.Est. De feuilles*.

    (p. 88).

    * Vladimir Isto faz um rudo de sas.Estragon D e folhas.

    VI. D e areia.Est. D e folhas.Silncio

    VI. Elas falam todas ao mesmo tempo.Est. Gada uma parte.

    SilncioVI. Antes elas cochicham,Est. Elas murmuram.VI. Elas fazem rudo.Est. Elas murmuram.VI. Isto faz como que um rudo de penas.Est. D e folhas.

    VI. De cinzas.st* De folhas.

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    Como vemos, pelo pessoal emprego da esticomitiatradicional, esta conservada a simetria, embora partial,graas elipse (visivel leitura; audivel representaao),

    ficando destruido o carter de sentena ou de aforismo. forma pardica dizem , mas impossivel deixar dereconhecer seu alto valor potico, como no caso citado.

    Quanto repetiao, esta figura de retorica de torico emprego no apenas entre os clssicos, tambmusada por Beckett, que procd de duas maneiras: ora,numa nica fala, a personagem rpt varias vezes o

    mesmo termo; ora, reiterado o termo ou uma frase, espa-adamente, tal um tema musical ou leitmotiv, assim subli-nhando ou evocando um conceito-chave. Inumeros soos exemplos, entre os quais pode ser citado o caso da falada protagonista de Oh os Belos Dias: solitria em mei aum deserto escaldante (o marido esta praticamente ausen-te), em que nada acontece, ela se entrega a montono

    monologo; tenta em vo evocar os tradicionais versosclssicos, procedendo derrisoria repetiao. Ao invsde avanar a expresso, esta retardada pelos termos quevoltam uma e outra vez, como:

    Quais sao esses versos delicados? (Um tempo.) Tudo . . .ta-la-la.. . tudo se.e sq uec e.. . a va ga.. . no. : > se quebra... tudo ta-la-la se quebra... a va ga ... n o.. . on da... sim ... a

    onda sobre a onda se esquece.. . dobra.. . s im .. . a onda sobrea onda se dobra... e a onda... nao... a vaga... sim... e avaga que passa esquece... (Um tempo. Com um suspiro.) Agente perde os clssicos (pp. 79-80).

    a linguagem dos clssicos que no conservada;linguagem que aparece cortada, em fragmentos, repetidos,e no na sua elegante fluncia, na sua tranqila correo,

    ou melhor, no velho estilo expresso freqentemente

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    empregada pela cinqentona Winnie e quai se opeo novo estilo, no citado mas subentendido. O velhoestilo, como a gente espera Godot (Esperando Godot),acabar, isto vai acabar (Fim de Jogo) ou Isto me

    parecia sem esperana (A ltima Gravao) todas soreiteradas, como o retorno de um tema musical ao longodas peas, salientando-se assim o velho, o tradicional,como a espera , o fim do jogo, ou o desalento . a constante, a nota permanente, mediante a reiterao,se bem que s vezes com pequenas variantes; fora dereiterar, esta garantida a presena.

    A repetio, sensivel em diversos mveis em Esperando Godot, bem traduz o tdio da vida, o interminvelrecomear. Partindo da dramaturgia da pea, tipicamenteciclica, tudo o mais repetio: gestos, vocbulos, expres-ses. Procedendo ao levantamento da freqncia de cer-tos termos e frases, verificamos o seguinte:

    O termo Nada, usado num total de 50 vezes, eque abre a pea Nada possivel fazer, diz Estragon,referindo-se dificuldade em tirar o sapato que o inco-moda , coloca-a sob a marca do negativismo, emborahaja a espera, freqente no refro: A gente esperaGodot.

    A frase a gente espera Godot (8 vezes) ; Espe-

    rar Godot (4 vezes); Esperei Godot; Esperamos queGodot venha (uma vez), pela sua freqncia, se tornaautntico refro a atravessar a obra, vindo seguido doinevitvel verdade (10 vezes). O esperar Godot arealidade sobre a quai no pairam dvidas, quem querque ele seja: Deus (Godot = do ingls God e mais osufixo francs ot, de teor pejorativo), algum ou algo

    indefinido. A formula porm mais freqente :

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    Vamonos. No podemos. Por qu? Esperamos Godot. verdade.

    So falas que, tal uma cantilena, atravessam estafarsa trgica ou metafisica (p. 16, 67, 95/6, 100, 109,118), com pequenas variantes, sendo que, numa das ulti-mas vezes, sublinhando comicamente a lio aprendidaem virtude da continua repetio, diz Estragon, sozinho,sinteticamente:

    Vamo-nos. No podemos. verdade (p. 127).

    A espera (2 vezes), o verbo esperar (37vezes), num total elevado, com a excluso dos casos acimareferidos, acusam explicitamente o ato de esperar, quevem enunciado desde o tftulo a espera de Godot,nome que repetido 36 vezes, sem computar os casos

    citados e o emprego dos ele, alm das constantes su-gestes.

    O emprego dos verbos dizer (115 vezes), fa-lar (23 vezes), tagarelar (2 vezes), conversar (2vezes), contar (4 vezes), com seu elevado total (146vezes) assaz expressivo da tagarelice e da obsesso daspalavras nas personagens, que assim preenchem o longo

    tempo de espera de Godot. O emprego dos verbos saber , na forma nega-tiva ou interrogativa (com valor negativo), num total de49 vpzes, assim como do verbo compreender (5 vezes),perfazem um numro bastante elevado a testemunhar aincapacidade das personagens, e portanto do homem queelas representam, de saberem e compreenderem alguma

    coisa do universo em que se encontram prisioneiras; donde

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    a impossibilidade de crerem em algo. Alias, elas nopodem, termo muito freqente na pea.

    O emprego do verbo poder , na forma negativa(24 vezes), bem traduz a privao de poderem elas fazeralgo ou suportar a vida. Donde a descrena. Paradoxal-mente, porm, ainda esperam.

    O emprego de talvez (peut-tre), num total de24 vezes, alm das formas no seguro (3 vezes), nada seguro (1 vez), voc esta seguro? (7 vezes), numtotal grai de 35 vezes, parece confirmar, com os verbosanteriores, a idia da impossibilidade de as personagens

    obterem certeza, segurana quanto a qualquer coisa. Tudo incerto, duvidoso, instvel, sendo que quando h certeza, justamente de algo incerto, constituindo tal afirma-o categrica a derriso da certeza absoluta. E curiosa ainda a afirmao de segurana quanto falta de vera-cidade de algo que foi dito anteriormente; uma vezmais a impossibilidade de segurana, ironicamente subli-

    nhada pela rubrica que mostra Pozzo cada vez mais senhorde si, justamente no momento em que nega a veracidadedo que dissera: No sei mais muito bem o que disse,mas podem estar certos de que la no havia uma palavrade verdade (p. 47).

    A repetio da pergunta Que que a gente fazagora? (7 vezes) e ainda de Mas agora vai ser prcisa

    achr outra coisa, alm do emprego do agora (24vezes) acusam a importncia do agora para as personagens e a necessidade de fazerem algo para o preenchi-mento do vazio existncia, patente nas reiteradas per-guntas: Que fazer?, Que devemos fazer? (pp. 100,118, 119, 22, 19, 62). a expresso de sua angustiaexistencial, de sua necessidade de fazerem algo, embora

    la esteja a constatao inicial e que no muda no curso

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    da pea: Nada possivel fazer. Apenas lhes sobra,alm da espera de Godot, seus agissements que se torna-ram hbito (p. 113).

    A repetio de outros termos ou frases traduzpor outro lado a dificuldade de transmisso de mensagem,o problema da comunicao, quando por exemplo o inter-locutor no ouve bem, ou quando no compreende o quelhe transmitido. Assim, no dilogo:

    Estragon(inquieto) E nos?Vladimir Por favor?

    Est. Eu digo, e nos?VI. . No compreendo.Est. Quai nosso papel nisso?VI. Nosso papel?

    (P. 24)

    para no transcrevermos o dilogo, mais longo, em quese estabelece a confuso entre Godot e Pozzo, com a con-

    seqente repetio dos nomes (pp. 29-30). Beckett lana,pois, mo da tradicional repetio, del tirando partidopara exprimir sua cosmoviso, suas obsesses.

    A repetio de certos termos regulares ou anma-los pelo tartamudeio, associada ausncia de pontuaoou de pausa, ao jogo de palavras, ironia, elipse, conotaao escatologica, faz do discurso de Lucky o

    melhor exemplo de uma linguagem absurda a servio daexpresso do absurdo do homem no universo. o domi-nio do absurdo, do irracional, coerentemente apresentadode maneira absurda originalidade beckettiana e deoutros dramaturgos desse tipo de teatro (ainda que comsuas peculiaridades). Focalizemos apenas o inlcio dalonga tirada da personagem ironicamente batizada com o

    nome de Lucky (felizardo) e que um knouk, neologis-

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    mo que, como em Mallarm, compreendido menos con-ceptualmente que contextualmente. Ouamo-lo:

    Lucky, monotonamente Considerando a existn-cia tal como ela jorra dos recentes trabalhos pblicosde Poinon e Wattman, de um Deus pessoal quaqua-quaqua de barba branca quaqua fora do tempo do es-pao que do alto de sua divina apatia sua divin a atam-bia sua divina afasia nos quer bem salvo algumasexcees no se sabe porque mas isso acontecer ( . . . ) apos pesquisas inacabadas no antecipemos pesquisasinacabadas mas no obstante coroadas pela Acacacaca-

    demia de Antropopopometria de Berna-en-Bresse deTestu e C onard.. . (p, 59)

    a derriso sob um aspecto de incoerncia dos fundamentos das convicoes religiosas, intelectuais ecientificas, convicoes que se deram ao homem do pas-sado a sensao de apoio e perenidade, se revelaram aohomem do aps-guerra entre os quais Beckett fr-geis e efmeras. Irreverncia em relao a Deus, a quemso atribuidas trs caracteristicas inusuais: atambia (totalindiferena), afasia (traumatismo mental que provoca aperda da fala ou da compreenso da linguagem) e a apatia(desinteresse e insensibilidade) : caracteristicas que noconstituem qualidades, como o sugere o reiterado emprego do termo divina, principalmente por estar anteposto.

    Ironia em relao a Deus que reforada pela associaode Deus pessoal e quaquaquaqua, tendo este ultimoelemento dois significados simultneos: quoi? quoi?, isto, que? que? que dprcia o primeiro; e o escatolo-gico caca que ridiculariza a noo de religio antro-pomrfica. a mesma derriso com respeito ao intelectoe cincia, graas ao tartamudeio na articulao dos ter-

    mos Academia e antropometria, com suas conotaes

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    escatolgicas, engenhando-se o dramaturgo para a irnicaintroduo de anomalias, quer no mvel do vocbulo:Wattman (condutor de bonde e What man?), Testu (ttu,isto , teimoso, obstinado), alm de outros nomes queaparecem no texto e que se prestam a grotescos trocadi-lhos; quer no mvel do grupo de vocbulos, pois a exis-tncia no jorra nem so publicos os trabalhos dochamado Wattman (alm das referncias divindade).

    A repetio prsente na logorria de Lucky, recaindosobre determinados termos e grupo de termos-chave, taiscomo: homem (4 vezes), cabea (6 vezes), Deus (5 ve

    zes, incluindo-se o divina), no se sabe porque (10vezes), impede que percamos de vista as derrisorias inten-es de Beckett quanto criatura humana e suas limita-es no que diz respeito compreenso do universo absurdo universo em que, ironicamente, ele v a divina apa-tia, a divina atambia, a divina afasia.

    Retomando o assunto do dilogo, mas no que con

    cerne sua progresso, notamos que apresenta, em parte,caracteristicas do dilogo tradicional, isto , a continui-dade semntica, com o jogo de perguntas e respostas. Adescontinuidade porm se impe, testemunhando a difi-culdade de comunicao, e a solidao das personagens,ainda que vivam em par.

    Continuidade e descontinuidade se alternam em meio

    a inumeros e longos silncios, com mal-entendidos e qi-proqus, chegando a dar muitas vezes a impresso de umaconversa que est desfalecendo e acabar. Mas explodenovo.impeto, nova partida, num dilogo continuo, e de-

    pois descontmuo, at novo desfalecimento e novo relanarda bola do dilogo: tal o dilogo de Esperando Godot,da quai nos permitiremos mais algumas citaes, a partir

    do infcio. Estragon, que tenta debalde tirar o sapato que

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    o incomoda, pronuncia palavras que so empregadas nosentido literal, isto , Nada possivel fazer com o sa-

    pato; estas porm so compreendidas no sentido metafo-rico por Vladimir, que entra em cena nesse momento, eque pensa na vida e nas lutas del decorrentes, carregan-do-as de angstia. o pseudodilogo, pois na realidadeso dois justapostos monologos, mergulhado cada um emseu problema, em suas preocupaoes:

    Estragon Nada possivel fazer.Vladimir (aproximando-se com passinhos rgidos, e as

    pernas separadas) Eu comeo a acreditar nisso.(Fica imvel) Resisti muito tempo a esse pensamento,dizendo-me, Vladimir, seja razovel. Voc ainda naoexperimentou tudo. E eu retomava o combate, (Ele serecolhe, pensando no combate).

    H ento a interrupo do dilogo se queassim podemos cham-l dominando o silncio, que

    depois quebrado com nova tentativa de comunicao, comnova base,

    Vladimir Ento, voc esta aqui, voc.Estragon Voc acha?

    #V1. Estou contente em ver voc. Eu pensavaque voc tinha partido para sempre.

    ' a continuidade semntica, com base em perguntase respostas pertinentes, como no teatro tradicional. Masadvm novo silncio, nova interrupo, que ser seguidade novo reencetar de dilogo. E, assim sucessivamente.

    Enquanto durou o dilogo houve a progressao nalinhatradicional; mas esta no a unica e aqui se situaumadas inovaes beckettianas na tcnica do dilogo: a

    progressao pela associao de conceitos e a progressao

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    pela associao baseada na justaposio de dois niveis dedilogos alternados.

    Do primeiro caso, podem ser dadas como exemploas falas de Winnie, se bem que possam ser consideradasum longo monologo, na medida em que Willie, o marido,quase no intervm, ficando a maior parte do tempo ocultoatrs de uma elevao. Sozinha, pois, vai entregar-se aosseus pensamentos que se sucedem, encadeando-se por viaassociativa e indo de reflexes a impresses, de reflexesa evocaes. E, espontaneamente, naturalmente, vosaindo suas palavras, do seu mundo interior, uma vez que

    nenhum acontecimento exterior, imprevisto, vem anima--la. Se, no Ato I, enterrada at cintura, podia moverseus braos e mos e assim revistar os fundos de sua boisa,

    ponto de partida de muitas de suas palavras, j no AtoII, estando enterrada at o pescoo, no dispe seno desua mente que a leva a falar de coisas e fatos, medianteassociao de idias. Ainda que quase toda a obra apre-

    sente tal tipo de linguagem, limitamo-nos a citar algumaspoucas linhas, com a supresso das rubricas, e em queproliferam os silncios, as pausas, sumamente sugestivas,'traduzidas pelos travesses:

    Pobre Willie no mais por muito tempo enfim nada ' possivel fazer pequena infelicidade ainda uma sem remdio nenhum remdio ahsim pobre caro Willie.

    (P. 12)

    Pobre Willie nenhum gosto para nada nenhu-ma finalidade na v ida. pobre caro Willie ( . . . )logo cego enfim bastante visto sem dvida desdeo tempo quais so esses versos maravilhosos? infeliz de mim que vejo o que vejo...

    (P. 14)

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    E assim se desenrola a pea, saltando o pensamentoda protagonista do passado ao prsente, com a sucessode reflexes e reminiscncias.

    Quanto progresso do dilogo pela associao ba-seada na justaposio de dois nveis: o concreto e o abstra-to, ou o srio e o cmico, alternando-os, encontra exem-

    plos, de maneira especial, em Esperando Godot. QuandoEstragon, tendo tirado o sapato que o incomodava, passaa examin-lo, e depois, o proprio p, estabelece-se o se-guinte dilogo, cujo ponto de partida o concreto: osapato, e dai, o p, dando ocasio a Vladimir de meditarsobre o homem, e por associao, sobre o problema daculpabilidade, evocando o caso dos ladres que se encontra no Novo Testamento. E isto conduz idia de arre-pender-se. Transcrevamos a passagem:

    Vladimir Entao?Estragon Nada.

    VI. Deixe-me ver.Est. Nada h para ver.VI. Tente cal-lo de novo.Est. (tendo examinado seu p) Eu vou deixar res-

    pirar um pouco.VI. Eis o homem inteirinho, preocupando-

    -se com o sapato quando o p oculpado. ( . . . ) Um dos ladres foisalvo. (Um tempo.) uma porcenta-gem honesta. (Um tempo.) G ogo . . .

    Est.

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    Como vemos, a partir da gag do sapato situaoconcreta chega Vladimir idia da redeno; passa,

    pois, do contingente ao grai, do particular ao universal,

    e assim avana o dilogo, oscilando entre os dois pianos.E tal oscilao se faz tambm prsente entre o srio e ocmico, como quando Estragon sugere ao companheiroo suicidio, o que suscita uma srie de rplicas opostas trgica idia (p. 25). H neste, como no caso anterior,a ruptura da continuidade e tal tcnica freqente entreos dramaturgos do teatro do absurdo, bem ilustrando,comicamente, suas preocupaes.

    A progressao do dilogo pode ainda ser feita pelainterveno da msica, alternando-se frases musicais comas verbais, o que se verifica nas peas radiofnicas: Pala-vras e Msica (curta pea escrita para a BBC de Londres, e cuja verso francesa, Paroles et Musique, feita

    pelo prprio Beckett, se encontra como Cascando, no pe-queno volume Comdia e Atos Diversos (Comdie et actes

    divers). Como o indica o primeiro titulo, um duo sus-tentado por uma msica, cuja autoria de John Beckett,

    parente do dramaturgo. Ouvem-se duas vozes: a de Pa-lavras e a de Croak nome que significa resmungos,e mais precisamente, o grasnar das ras ou o crocitardos-corvos, sugerindo ainda o termo croaker, nomede desprezo conferido ao que d demasiada importncia

    aos acontecimentos politicos. Nova ironia de Beckett,que, como sabemos, viveu e vive afastado da polftica, oque lhe atraiu a critica dos escritores engajados?

    Palavras, com termos confusos, entrecortados, redo-brados, fala de maneira prolixa sobre a paixo da pre-guia, sobre o amor e sobre a velhice, atendendo ao pe-dido de Croak, que o interrompe com seus suspiros e ge-

    38 midos. Exprimem ambos a preocupao do homem que

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    ao mesmo tempo que o narrador, sem no entanto serseu acompanhamento.(Citado por Pierre Mlse, Samuel Beckett, p. 155).

    Duas vozes, como em Palavras e Musica, se fazemouvir; mas 'na realidade, no so seno de uma nicapersonagem: a do Ouvreur (Abridor), que abre, fecha,e novamente abre as comportas das lembranas e refle-xes expressas pela Voz, havendo ainda, como sabemos,a Musica, que ora sublinha a Voz, ora fala por si s o,tal outra personagem. E assim se expressa a queda no

    abismo da desolao, a queda da esperana Cascando.Musica das palavras: A presena da musica comopersonagem, ou da musica estreitamente ligada com otema da obra como veremos mais adiante atesta apreocupao de Beckett pela parte sonora e, conseqente-mente, a importncia que ele lhe atribui.

    Segundo o testemunho de seu encenador, Jean-Marie

    Serreau, por ocasio da montagem de Comdia, revelavaBeckett um cuidado extremo com a dico, com o ritmoda entonao, o que o levava a fazer trabalhar as sxla-

    bas e at mesmo a redigir um comentrio por escritopara cada frase , obrigando os atores a repetirem, incan-savelmente, cada rplica (Citado por Pierre Mlse, Beckett, p. 150). Estes criosos e intressantes comentrios

    que, salvo erro de nossa parte, no foram publicados,seriam muito teis para um estudo que pretendesse serprofundo, no que diz respeito importncia da camadasonora na sua obra.

    Consta que essa pea Comdia , de apenas de-zessete minutos de durao, foi ensaiada de fevereiro ajunho, tal a exigncia do dramaturgo no que diz respeito

    40 dico, entonao. E, valendo-nos ainda do depoi-

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    mento do mesmo encenador, quanto pea citada, e, emparticular quanto espcie de coro do seu imcio, em quefalam, ao mesmo tempo, as trs personagens, ficamos sa-

    bendo que Beckett anotou com separao em colunas, afim de marcar a correspondncia exata de cada palavra,de cada sflaba, e isto apesar de que o conjunto permancemais ou menos incompreensivel; mas ele se atm ao efeitoritmico do conjunto . So os incontestaveis dotes musi-cais do autor.

    A preocupao beckettiana pelos sons, pelos seusmatizes, no diminui em outras peas, sendo suficintelembrarmos as observaes de Madeleine Renaud, a intr-prete de Winnie, de Oh os Belos Dias. Assim se mani-festou ela sobre as exigncias do dramaturgo, em 26 deabril de 1965: durante os trs meses de ensaios, Beckett

    procurava e indicava novas sutilezas vocais, de maneira

    que a atriz estava persuadida de que aps um periodode repouso, ao retomarem a pea, no inverno seguinte,deveriam retrabalhar juntos o texto, refinando ainda maiso autor quanto s tais sutilezas (Citada por Pierre M-lse, Beckett} p. 153). Alias, essa pea extraordinriapelo seu texto despojado, de extrema economia de meios,mas. de acentuada riqueza semntica, e em que o silncio(ao quai nos referiremos oportunamente) fala tanto oumais que as palavras associadas aos gestos.

    A palavra em Beckett pode alcanar muitas vezes amusicalidade de um alexandrino raciniano, como o notouJean-Louis Barrault, num dos seus Cahiers, citando taisfalas de Winnie, simtricas, e que transcrevemos em fran-

    cs para a conservao do som do original:

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    Fut-il un temps, Willy, o je pouvais sduire?Fut-il jamais un temps o je pouvais sduire?*

    (p. 42)

    Para Barrault, que confessa que vai talvez surpreen-der, sem querer os leitores, o autor moderno que maislembra Racine jstamente Beckett. E as falas cita-das, dignas de um Racine, no destoriam dizemos nos

    nos lbios da desiludida Roxane, diante do jovem Ba-jazet.

    A litotes, que consiste em exprimir o mximo, dizen-do o mmimo, e que nos clssicos do sculo XVII est

    ilustrada em verso freqentemente citado pela sua espe-cial expressividade paralela sonoridade o famosoalexandrino de Corneille, em O Cid:

    Chimne, qui let dit?Rodrigue, qui let cru?**,

    verso em que explode toda a dor dos dois apaixonados

    diante da inesperada morte que os spara a litotestambm est prsente em Beckett, e com igual sonoridade.Lana mao o autor de efeitos, de procedimentos sutis:interrupes, silncio procura dos termos, inflexes davoz, fazendo modular a fala, por exemplo, do palhaoVladimir, para bem expressar sua desesperana, a sensa-o da inutilidade de sua vida, ou da vida:- -

    Maintenant... (joyeux) te revoil... (neutre) nousrevoil... (triste) me revoil*** (p. 82).

    Os grupos de palavras caem, sonoramente, em cadn-cia trs sflabas quatro sabas quatro silabas

    * Houve um tempo, Willy, em que eu podia seduzir?Houve alguma vez um tempo em que eu podia seduzir?

    ** Chimena, quem o teria dito?Rodrigo, quem o teria crido?

    *** Agora... ( cdegre) e is-te . . . (neutro) eis-nos... (triste) eis-me.

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    quatro silabas , como que exprimindo a inexorabilidadede uma existncia sem saida, graas ainda a uma espciede gradao ou progresso: tu nos eu, e passa-

    gem do tom alegre para o triste, atravs do neu-tro. Mas o eu o voc, o nos, abrangendo todaa humanidade, numa imagem pessimista. Sobriedade daexpresso; mas notvel poder de sugestao, principalmente

    por essa economia verbal, em que ressalta, ao lado dasimetria, a repetio (com a simples mudana do pronome) dos sons, e estes precedidos pelas nasais do decepcio-

    nante e encurralador maintenant:te revoilnous revoilme revoil.

    As personagens-palhaos de Esperando Godot tm,como nota Lavielle (En Attendant Godot, p. 84), o

    ouvido fino e se a poesia reminiscncia, so verdadeirospoetas, que dizem perfeitos alexandrinos na derriso,como:

    On ne descend pas deux fois dans le mme pus* (p. 84).

    Beckett o poeta que sabe trabalhar com os sons,as modulaes da voz, tirando partido das repetioes a

    fim de exprimir o mximo, numa aparncia de empregomfnimo de recursos. E esta no sria a arte raciniana,ainda que beckettianamente tratada? Vejamos outroexemplo de Esperando Godot:

    Dis, je suis content. Je suis content. Moi aussi.

    * No se desce duas vezes no mesmo pus.

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    Moi aussi. Nous sommes contents. Nous sommes contents. Quest-ce quon fait, maintenant, quon est content?*

    (p. 84).

    Essas falas curtas, repetidas, em que predominam asnasais, caindo sobre o contentamento e negando-o aomesmo tempo, sobretudo na pergunta final, mais longa,so um exemplo a mais da arte potica beckettiana.

    Falas liricas, musicais, ritmadas, como as que conti-

    nuamos a citar em francs, j que perderiam com a tra-duo:

    Cest pour ne pas penser. Nous avons des excuses. Cest pour ne pas entendre. Nous avons nos raisons. Toutes les voix mortes.

    a fait un bruit dailes. De feuilles. De sable. De feuilles** (p. 87).

    * Diga, eu estou contente. Eu estou contente. Eu tambm. Eu tambm. Nos estamos contentes.

    Nos estamos contentes. Que que a gente faz, agora, -que se esta contente?

    ** para no pensar. Temos nossas desculpas. para no ouvir. Temos nossas razes. Todas as vozes mortas. Isto faz ruido de asas. De folhas. De areia.

    De folhas.

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    Tais falas e por que no versos? evocamOutono Enfermo (Automne malade) de Apollinaire, cujosversos finais dizem:

    Les feuillesQuon fouleUn trainQui rouleLa vieScoule*,

    Embora sejam bissilabos e os de Beckett comecem

    com seis e caiam para duas silabas, queda muito su-gestiva , palpvel o parentesco. , no entanto, Racine que tambm novamente evocado por EmileLavielle, pois o encanto desta msica evidentementesua perfeita adaptao s vozes, e quai arte seno a deRacine foi outrora capaz desta adaptao? (En attendant Godot, p. 84).

    Sonoridade, cadncia, ricas de sugestes, caracteri-zam muitas passagens beckettianas, como a deste trechode Esperando Godot que alcana uma dignidade trgica,merecendo transcrio:

    Pozzo Il sapaise. (Regard circulaire.') Dailleurs,tout sapaise, je le sens. Une grande paix descend.Ecoutez. (Il lve la main.) Pan dort."u

    Vladimir arrtant) La nuit ne viendra-t-elle jamais? ( Tous les trois regardent le ciel)** (p. 49).

    * As folhasQue pisamosUm trem Que rodaA vidaSe escoa.

    ** Pozzo Ele se apazigua. (Olkar circult). Alias, tudo se apazigua, eu sinto. Uma grande paz desce. Escutem. (Levanta a mo.) Pan dorme.

    Vladimir (detendo-se) A noite no vira jamais? (Todos os trsol ham o cu .)

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    A fala de Pozzo, com as pausas cortando as frases efazendo salientar a paz, e com o emprego das nasais, apre-senta sugestiva melodia. Poderia assim ser distribuida, emversos, esta fala potica e musical:

    Il sapaiseD ailleursTout sapaiseJe le sensUne grande paix descendEcoutezPan dort,

    em que se nota como que uma gradao, que culminacom o expressivo Pan dort.

    No nos parece gratuita esta tentativa de valorizar apoesia beckettiana, de apontar-lhe o ritmo, a sonoridade,a musicalidade, uma vez que, como j sabemos, o drama-

    turgo deu provas, durante a encenao de suas peas, degrande preocupao quanto dico, ao tom, ao ritmo daentonao; enfim, quanto parte sonora.

    Linguagem da msica: Se a msica, como j vimos,representa o papel de personagem em certas peas radio-fnicas, j em outras obras, se bem que no tenha tal im-portncia, no deixa de ser significativa; nao gratuita,

    pois exerce uma funo, estando estreitamente ligada aotema. o que acontece com a cano cantada por Vladimir, no comeo do Ato II de Esperando Godot, esta

    pea da estagnao, da circularidade, evidenciadas emdiferentes mveis. o eterno retorno de aes, de rpli-cas, em freqentes repeties, traduzivel tambm na cano que canta a morte de um co ao roubar uma lingia

    na copa, tendo sido enterrado pelos outros ces ao p

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    de uma cruz em que se lia sua histria. E assim, incan-savelmente, se rpt at ao infinito:

    Um co veio copaE pegou uma lingia.Ento a golpes de conchaO cozinheiro o ps em migalhas.

    Os outros caes vendo issoDepressa depressa o sepultaramAo p de uma cruz de madeira brancaEm que o transeunte podia 1er:

    Um cao veio copa.

    Esta circular canozinha que Edith Kern identificoucomo uma triste baladazinha de origem germnica (Cita-da por Pierre Mlse, Beckett, p. 31) reproduz a incans-vel, a interminvel espera dos dois amigos: a espera deGodot. E, como esta balada da circularidade, surge em

    A ltima Gravaouma canozinha que de inicio inter-rompida pela tosse do velho protagonista, absorto naaudio de suas velhas gravaes, e que ao ser comple-tada quase no final da pea, se rvla estreitamente entro-sada com o seu tema. Trata-se de uma buclica bluette\como a qualifica Ludovic Janvier (Pour Samuel Beckett,p. 255), que prpara o silncio e a imobilidade finais do

    velho protagonista, que ouve fitas antigamente gravadas,revivendo ou tentando infrutuosamente captar o passado.O quarteto de versos octossilabos, como em outras peas(embora com distinta mtrica), esclarece a obra, com suamensagem de morte:

    A sombra desce das montanhas,

    O azul do cu se apagar,O ruido para {Acesso de tosse.

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    marcam o desmvel entre o como ela v a situaao e ocomo a vem os espectadores. Beckett o mestre daderriso da cegueira do homem diante do que o espera a morte, antecedida por tantos outros maies.

    Voz inarticulada: Dentro do cenrio sonoro be-ckettiano para usarmos a expresso de Pierre Lartho-mas, no estudo intitulado Le langage dramatique (p. 109)

    a voz inarticulada ocupa um lugar privilegiado. Res-mungos, exclamaes, gritos, gemidos, fazem parte dalinguagem, exprimindo e comunicando sentimentos huma-

    nos, em apoio s palavras, ou mesmo isolados. Croak,a velha personagem de Palavras e Msica, se faz prsentecom suas interjeies, gemidos e suspiros, enquanto Palavras fala do amor, fazendo-o sofrer com a recordao. Eesta mesma pea se encerra com um profundo suspiro dePalavras, enquanto Croak se afasta arrastando as chine-las. o predommio da linguagem sonora, pois se trata,

    como j foi dito, de pea radiofnica.Embora as diferentes peas, em distintos graus, apre-sentem esse tipo de linguagem sonora, digno de meno o intermdio Sopro (Souffle), em que apenas seouvem gritos, vagidos, ruidos de inspirao e expiraao,sopros, mesmo sem a presena do emissor a criaturahumana. Trata-se de uma- linguagem regulada, cronome-

    trad, matematicamente, como que a exprimir a frieza, ahostilidade, em relao ao homem, ainda que este noseja visivel sob seu aspecto normal. Vem-se detritos es-parsos; e estes no so apenas elementos do cenrio visualque fazem fundo s personagens. So, estes detritos, os

    protagonistas; e os ruidos, sua voz, suas palavras, e nomero cenrio sonoro, constituindo tal emprego uma das

    grandes originalidades do autor.

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    Ao depauperamento visual progressivo das personagens dos palhaos de Esperando Godot s personagens--tronco ou jarro de Oh os Belos Dias e Comdia, at osresiduos de Sopro corresponde o depauperamento dalinguagem sonora, verbal, a ponto de se fazerem ouvirapenas gritos, vagidos e ruidos de inspirao e expirao,

    pois a isso se rsum a existncia humana, segundo aiso beckettiana. a constataao do autor. E o titulode um dos seus romances Como (Comment c'est) explicita sua posio diante da vida, do universo.

    Ruidos: Beckett, na sua expresso dramtica do homem no universo, utiliza ainda um ltimo tipo de linguagem sonora: os ruidos, quer nas peas de teatro, quernas peas radiofnicas. Entre as primeiras, necessriofazer meno a Oh os Belos Dias,obra em que o elementosonoro nao humano to importante que chega a provo-car a ao, isto , as palavras e gestos da protagonista.Ao levantar da cortina, deparamo-nos com Winnie ador-

    mecida; mas um ruido, estridente, se faz ouvir: um toquede campainha, forte, de cinco segundos de durao; eum novo toque, de trs segundos, e est como que de-satada a mola da ao. A personagem comea a falar,falar, fa la r. . . E isto se rpt no Ato II, embora comum nico toque de campainha, e j no final, como queencerrando a pea. Mas. se ao comear, o toque agudo

    determinava uma srie de movimentos com os braos,paralelos s abundantes palavras, j depois ele nao pro-voca seno a abertura dos olhos de Winnie. No final,no mais palavras; no mais gestos. Apenas um olhar,um sorriso ao marido. Tal como o apito do A to SemPalavras I ou o aguilho do Ato Sem Palavras II, acampainha o estimulo s palavras e aos movimentos de

    50 Winnie at que sua situ ao enterrada num monticulo

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    de areia at ciritura no Ato I e at o pescoo, no se-guinte o permite. Estimulo auditivo no agradvel,mas agudo, estridente, e que bem desperta a protagonista

    para um mundo hostil, representado, como veremos, pelorido cenrio com sua luz ofuscadora e o calor escal-dante: mundo em que ela vitima de atroz solido, umavez que Willie apenas visivel e audxvel. o sinal dealerta quanto irremediabilidade de sua situao, pormais que ela procure dissimular sua tomada de conscin-cia de: ausncia ou silncio da divindade; impotnciadiante da natureza, e da inexorvel passagem do tempo;incomunicabilidade e solido a que esta condenada, pormais que obedea aos ritos sociais; progressiva desinte-grao do espirito paralela do fis ic o .. . Claro esta queum suave e melodioso despertar ao som de romnticosviolinos no conviria mensagem beckettiana, feita delucidez e sangue frio quanto ao que espera o homem des-

    provido de uma crena num compensador alm.J nas peas radiofnicas, como Todos os que Caem

    (AU that faiis, escrita para a BBC, em ingls, foi depoistraduzida para o francs, por Robert Pinget, sob a direodo prprio Beckett: Toux ceux qui tombent) e Cinzas(tambm escrita para a BBC, em ingls, e igualmentetraduzida para o francs pelos mesmos autores: Embers,ou Cendres), o elemento sonoro sumamente expressivo,criando uma atmosfera, indicando uma tonalidade e che-gando a suprir a ausncia do cenrio visual.

    Composta a primeira em 1956, apos Esperando Godote ao mesmo tempo em que compunha Fim de Jogo, atraiua curiosidade dos criticos e seus inumeros comentrios.Por que um dramaturgo to visual como Beckett suaspormenorizadas e abundantes indicaes cnicas o com-provam aderia ao radio? E o que parece que se

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    Beckett, no romance, havia apagado as prprias perso-nagens em face das palavras carregadas de significao,

    j no radio, sem o apoio do suporte visual, as palavras

    sozinhas podiam ao mesmo tempo significar e evocar,permitindo-lhe dar livre curso imaginao e reflexo.Sem a interferncia do elemento visual, podia o ouvinte,a partir das vozes annimas e dos ruidos ou das vozesinarticuladas, dar corpo ao que ouvia; e ele, Beckett,

    podia, sem intervenes do visual, exprimir-se com maiorliberdade. O teatro, no entanto, no sria abandonado.

    Nesta pea radiofnica, a nica que se situa numlocal determinado o campo irlands; a estao coma chegada do trem numerosas so as indicaes queevocam o ambiente, ampliando o espao cnico. Desdeo inicio, ouvem-se ruidos: Ruidos do campo. Carneiro,

    pssaro, vaca, gaio, separadamente, depois junos. Silncio. . . Riudo de passos que se arrastam. . . Uma fracamsica: A Moa e a Morte. Os passos enfraquecem ese detm. E, ao longo da pea, so passos que se arrastam, aumentando ou diminuindo seu volume, segundo seaproximam ou se afastam; animais que se fazem ouvir;o estalar de golpes; o apito do trem na estao; ruidosde movimento do carro que se pem em marcha, dacharrette que se detm, etc. Criando o ambiente em quese passa a ao, suprem a imagem visual, e duas partes,

    bastante mtidas, so visiveis atravs da"linguagem sonora:a ida para a estao e o retorno. A primeira, uma sriede cenas rpidas, vivas, pitorescas; a segunda, lenta, me-nos animada, com suas anlises psicolgicas, e que levaao perturbador desenlace. Nesta pea da decomposio,em que tudo se desfaz e desaparece, at mesmo a paisageme as palavras, sublinha Beckett a impotncia humana,

    52 projeo da impotncia ou da insensibilidade divina, o

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    mas, notvel ainda seu emprego em outras peas, vindoindicado por travesses, quando no por rubricas, medianteos termos pausa, um tempo, um tempo longo, um longo

    silncio, ou simplesmente silncio.Esperando Godot se abre com um silncio, e comele se fecha, sendo que este mudo final como queenfatizado e ampliado pela imobilidade das personagens,em discordncia com as ltimas falas que se referiam necessidade da partida. E os silncios freqentes, isolando

    palavras e frases como isoladas e desamparadas esto

    as personagens podem bem sugerir o que o final res-salta o Silncio. No h resposta para a busca desentido para a existncia: o silncio branco a expres-so do Nada, pela suspenso do rudo.

    Se bem que Beckett tenha salientado a importnciada voz humana em sua obra, de igual modo sublinhou a

    presena do silncio. E este silncio a grande respira-o de Esperando Godot seu fundo mudo e principalapoio. Silncio de varivel durao, desde o mais breveat o mais longo, cortado por um suspiro ou um gemido,e servindo de fundo mudo aos gestos e jogos de cenadas personagens-palhaos, que simbolizam a humanidade.Restringindo-nos apenas s indicaes de Silncio (semo computo, portanto, de pausa, repouso, ou mesmo dasrubricas que nos mostram as personagens que refletem,

    e a reflexo sinnimo de silncio e imobilidade), temos:45 vezes no Ato I61 vezes no Ato II,

    o que pressupe um maior desalento, uma bem maisaguda desesperana quanto posslvel chegada de Godot,com a conseqente falta de sentido da existncia.

    Tanto o comeo como o final de Fim de Jogo esto

    54 tambm marcados por sugestivos silncios, o mesmo acon-

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    tecendo com Diga Joe (Dis, Joe), Cascando ou Oh osBelos Dias. Beckett o dramaturgo que sabe manipulara ausncia de vozes e sons, a fim de bem carregar sua

    obra de sentido. Longe de significar ausncia de sentido,carrega o silncio uma forte dose de sugestes, cujoslimites no so fceis nem possiveis de serem determi-nados neste rpido estudo. Polissmico o silncio, comono comeo de Fim de Jogo, ao falar Hamm de maneiraentrecortada (que aparece aqui indicado por travesses):

    A (bocejo) a mim (um tempo). Representar.Primeiramente, parece que se apresenta como ator; lana,no entanto, uma espcie de grito de pedido de socorro,ao mesmo tempo que, com o bocejo, interrupo da

    palavra exprime o cansao e a conseguinte vontadede dormir e repousar, ou ainda talvez o tdio da suaconstante atuao como ator o homem em face da

    vida. (Emmanuel Jacquart, Le Thtre de Drision,p. 238).

    A pea Oh os Belos Dias , porm, talvez o melhorexemplo da alternncia de palavras e silncios. Winnie,ao mesmo tempo que fala e faz pequenos gestos com osobjetos que encontra e retira da sua bolsa-sacola (Ato I)ou ,apenas fala. (Ato II), alterna suas palavras com silncios. Limitando-nos apenas s rubricas Um tempo e Umtempo longo, com a omissao portanto de outras indica-es como os travesses que indicam ausncia desom, temos:

    A to : (Da p. 11 a 65): 287 vezes um tempo14 vezes um tempo longo

    Ato 11: (Da p. 67 a 89): 286 vezes um tempo17 vezes um tempo longo

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    E, se considerarmos apenas as pausas indicadas pelostravesses, a partir do inicio do monlogo da protagonista, p. 12, encontram os. em trs paginas e meia cerca de

    120 pausas. Transcrevamos apenas algumas linhas de suafala que , como em muitas outras peas do autor, elxptica:

    Pobre Willie (ela examina o tubo de pasta dentifrcia, fim de sorriso) nao por muito tempo (procura a tampa) enfim (apanha a tampa) nada a fazer (reexamina atampa) pequena infelicidade (pe de lado o tubo) ainda uma ( vira-se em direao boisa) sem remdio

    (remexe na boisa) nenhum remdio (tira um espelhinho,volta de f rente) Ah sim {inspeciona os dentes no espelho) pobre caro Willie (apalpa com o polegar os incisivos supe-riores, voz indistinta) bom! (levanta o lbio superior afim de inspecionar as gengivas, do mesmo jeito) bom Deus!( . . . )

    Se bem verdade que o silncio no pode existirsozinho (nas pantomimas os gestos das personagens fa-lam associados a todos os demais elementos visuais queconstituem o cenrio, em sentido amplo) e aparece entreas palavras, no h duvida que um momento da linguagem , faz parte da linguagem. Se por um lado fazressaltar a palavra, amplia-lhe o valor a hiprbole

    , por outro lado confr ao texto uma certa impene-trabilidade, tornando dificil sua total decifrao, sobre-

    tudo por vir associado a uma linguagem verbal freqente-mente eliptica e a toda uma linguagem de acentuadariqueza semntica pelo que apresenta de sugestes.

    56

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    2. LINGUAGEM VISUAL

    Visual o teatro beckettiano. Antecipando as falas,

    j l esto as personagens no palco, falando aos espec-tadores atravs de sua simples presena imvel ouno e que se apresentam com a indumentria muitasvezes na linha do palhao, ou com um aspecto bizarro

    jpor suas anomalias fisicas. Mas elas se encontram emmeio a um cenrio, que tambm fala.

    Linguagem do cenrio: Universo inspito, hostil,

    lugubre, vazio, angustiante, o habitat do homembeckettiano criatura miservel e sofredora. Paratraduzir, visualmente, tal habitat, recorre Beckett aocenrio nu, despojado, pobre, e isso desde EsperandoGodot. Nesta pea, vemos uma estrada desoladora,em que apenas surge uma rvore sem folhas e uma

    pedra dura e fria, a conotao obrigatria

    na quai esta sentado Estragon, tentando em vo desem-baraar-se do sapato que o incomoda posio incon-fortvel do homem num mundo igualmente inconfortvel. a linguagem visual, muda, antecipando a sonora.

    Tal cenrio, com todo o seu despojamento, aindaapresenta uma rvore, que, no Ato II, surge com aigu-mas folhas, indicando a passagem do tempo, se bem que

    sem grandes transformaes para Estragon e Vladimir,

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    sempre espera de Godot. rvore simbolica que temlevado ao pensamento de que se trata da rvore da Vidaeterna, uma vez que Vladimir que a viu negra e esque-

    ltica (Ato I), ao rev-la, comenta: S6 a rvore vive(p. 132). Sefia talvez o simbolo do renascer, da pereni-dade da vida, do eterno recomear de um dia de incer-teza e de sofrimentos, mas dia que conduzir novamenteao crepsculo e renovao da claridade lunar que en-volve os protagonistas no final de cada ato. rvore quetem sido associada ao carvalho Yggdrasil das lendas fin-

    landesas ou ainda quela em que Judas se enforcou, vistoque, vrias vezes na pea, aparece ligada idia damorte, do suicidio, no faltando sequer a conotao coma Cruz. Qualquer que seja porm a identificao, trata-sede um elemento arquetfpico que leva a considerar a peaum mito. Mitica, esta rvore passivel de muitas inter-pretaoes, podendo-se inclusive associ-la rvore dossonhos que, em Virgflio, marca a entrada nos Infernos:as aimas que esperam, desejosas de transpor o Aque-ronte, rio infernal, so comparadas a folhas mortas; e,Estragon e Vladimir ouvem vozes mortas, isto , ruidode folhas, como lemos numa passagem da pea, j citadapor sua melodia (p. 87).

    A estrada no campo, lugar concreto e bastante banal,no sria um lugar metafsico, que no o Paraiso nemo Inferno, mas ao mesmo tempo Antepurgatorio e Limbo?

    pergunta-se um estudioso (Emile Lavielle, em En attendant Godot, p. 28). E, realmente, os protagonistas igno-ram o local em que se encontram, no podem descrev-lo,e no vem seno a rvore (p. 122). Impe-se ento uma

    pergunta: ns te Antepurgatorio e Limbo, Pozzo que tortura Lucky, arrastando-o nas suas andanas, sria Caim?

    o que o texto sugere quando Pozzo responde ao cha~

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    mado por este nome (p. 1-18); e, se ele Caim, trata-se diz um autor das andanas errantes s quais estacondenado o rprobo. Alias, no fcil negar a marca

    religiosa no conjunto da obra beckettiana, por mais queo autor tenha se defendido de ter sentimentos religiosos.As aluses aos dois Testamentos, as imagens bblicas, ascitaes e os simbolos, explicitas ou no, revelam o autorcuja infncia se alimentou com a leitura da Biblia, levan-do comentaristas a verem nessa pea uma moderna mo-ralidade com temas cristos.

    O deserto indefinido para deixarmos de lado asinterpretaes acima , mas deserto, inconfortvel e desa-nimador, o cenrio preferido por Beckett, que o utilizano apenas em sua primeira obra-prima, mas tambm emOh os Belos Dias (ainda mais inspito, pela forte luze o calor sufocante que no do trgua sempre otimistaWinnie) e nas pantomimas: Ato Sem Palavras I e II.

    Se em Esperando Godot ainda havia uma estradaconduzindo a alguma parte e uma rvore, embora nocopada, j em Oh os Belos Dias, o desrtico cenrio sefaz mais spero e imprprio vida. uma extensode relva queimada e ai se v um montfculo em que estenterrada at a cintura Winnie, a protagonista (Ato I).A tela de fundo, segundo as indicaes do autor, reprsenta a fuga e o encontro ao longe de um cu sem nuvens

    e de uma planicie nua, para bem marcar o carter volun-tariamente artificial de uma paisagem morta, estranha,iluminada por uma luz crua, ofuscante. Nada a protgcontra esta natureza hostil, salvo a frgil sombrinha derrisoria proteo e que, num dado momento, se incen-deia de maneira misteriosa. bem verdade que reaparecerno Ato II, ao lado da bolsa-sacola de cujo interior retirava

    Winnie seus pequenos objetos pente, lima, escova de

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    dentes, frasco de remdio, etc. que lhe propiciavammeios de preencher seu vazio, sua solido; mas esta agoraenterrada at o pescoo e no pode servir-se de nenhum

    objeto nem mesmo do liberador revolver pousado junto daboisa e da ombrinha.Cenrio como acessrios expressivos evocam o uni-

    verso e a existncia humana, precria, jamais feliz. Se naspeas citadas era o inospito deserto o habitat dos protagonistas, j em outras o encarcerador cenrio que sufocaas personagens. No mais rvore nem cu aberto, Estoos seres beckettianos entre quatro paredes, tal o huisclos sartriano, se bem que tampouco Winnie pudesse esca-

    par da priso em que se encontrava em pleno ar livre, omesmo se dando com a personagem de A to Sem Palavras

    L Esta ltima, projetada num deserto, em meio a umaluz ofuscante, ainda que disponha da capacidade de mo-ver-se, de andar, tenta em vo sair desse universo paraonde foi lanada a contragosto; so-lhe subtraidas todas

    as possibilidades de melhor vida ou de morte. Quanto spersonagens do A to Sem Palavras H se encontram e vivemnuma plataforma estreita e vivamente iluminada mundo no confortvel.

    Esse universo-priso se rpt atravs do cenrio fe-chado de Fim de Jogo, com seu interior sem mveis, ilu-minado por uma luz cimenta, , sem vida, comunicando-se

    com o exterior por duas pequenas janelas, altas, cujascortinas esto fechadas, mas que quando so abertas porClov, a pedido de Hamm, imobilizado em sua cadeira derodas, mostram ao primeiro que, tanto do lado da terra,como do mar, tudo est mortibus (p. 46). Lanterna, gaivo-tas, sol, tudo desapareceu. E dentro, acabaram~se os calmantes de Hamm possibilidade de evaso da realidade,

    uma realidade que exala odor de cadver e o quadro

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    dependurado parede est mostrando seu reverso comoque a negar a Clov, que no cego, a liberdade do sonho,to liberador quanto o calmante do outro, cego alm de

    paralltico.Enclausurador tambm o cenrio de A ltima Gra-vao,em que se v o velho Krapp recolhido em sua tocaimersa nas trevas, a no ser na parte em que se encontraa mesa e nos arredores imediatos banhados por uma luzcrua. Os objetos que manipula gravador, fitas grava-das representam a vida que se foi, com seus sonhos efrustraes. Cenrio, pois, significando o homem preso ao

    passado, irreversibilidade do tempo, inexorvel marchada vida; passado que, quando foi prsente, tampouco osatisfez. . .

    E o despojamento se acentua, o espao cnico se reduzem Comdia (Comdie) e em Vaivm (Va et vient), comsuas trs personagens idnticas, se bem que em jarras na

    primeira pea. Todas porm encurraladas, sem horizon tes:

    a condio humana, segundo a ptica beckettiana.Impreciso, estranheza, caracterizam o cenrio em que

    a luz representa um importante papel: crepuscular emEsperando Godot; cinzenta em Fim de Jogo; abrasadoraem Oh os Belos Dias; ofuscante em Ato Sem Palavras I;viva em Ato Sem Palavras //; crua, em contraste com aobsuridade circundante em ltima Gravao; alterna-

    damente reveladora e aniquiladora em Comdia. o cenrio emoldurando personagens, mas falando tanto'quanto elas; a luz iluminando cenrios e personagens, efalando com eles. a linguagem visual habilmente uti-lizada por Beckett para traduzir sua viso do mundo.

    Impossivel omitir comentrios sobre o cenrio deFilme, filme mudo que, ao contrario das obras acima men-

    cionadas, apresenta uma variedade de locais: uma rua,

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    uma escada e um quarto, muito embora todos se associera para a criao da mesma atmosfera de clausura aoredor da personagem, cuja unica preocupao evadir-se,esconder-se, fechar-se aos outros e cmera que a per-segue, e que consegue focaliz-la, de frente, no final. Arua, num bairro de pequenas fbricas, pouco animado,com operrios que se dirigem sem pressa para o trabalho,e em que aparece a personagem O beirando precipitada-mente o muro, chocando-se contra um casai, at que seesgueira pela porta aberta de um imovel, este primeirocenrio fixado durante oito minutos. O segundo, o da

    escada, focalizado a partir do vestibulo, servindo defundo ascenso da personagem (com duraao de cincominutos), que alcana afinal o seu quarto, em que sedesenrola a maior parte da ao (durante cerca de dezes-sete minutos), aps ter-se chocado contra uma velha, nosegundo patamar. Este pequeno quarto, com um mfni-mo de moveis entre os quais uma cadeira de balano,

    que representar um importante papel, f avorecendo o sonodo protagonista e com uma unica janela, que ele fe-char com a cortina, bem o tipico cenrio beckettiano:um autntico huis clos. Os animais que ai se encontram co, gato, papagaio na gaiola, peixe vermelho no aqu-rio , bem como certos objetos espelho e gravura deDeus, cujos olhos o fixam severamente, so ansiosa-

    mente eliminados pela personagem para preservar-se deser visto. E destruidas so as fotos, em numro de sete,que representam a evoluo de um mesmo homem: um

    beb com a me; um menino de quatro anos, ajoelhadopara a prece; um colegial de quinze anos, sorridente; umuniversitrio, de vinte anos, sorridente, recebendo o diplo-ma; um rapaz, de vinte e um anos, sorridente, abraando

    a noiva; o mesmo, aos vinte e cinco anos, uniformizado,

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    sorridente, com a filha nos braos; a ltima, aos trintaanos, mas envelhecido, sozinho, e a expresso feroz>enquanto esconde o olho esquerdo (p. 134).

    Ampliou-se o cenrio; aumentou o numro de per

    sonagens secundrias; proliferaram os acessorios; mas nodiminui a solidao do protagonista. Ao contrrio elaacentuada por essa riqueza que contrasta com a po-

    breza de outras obras.Cenrio, acessorios, falam tanto quanto a perso

    nagem, de maneira muda, da solido do homem nummundo adverso, enclausurante. E curioso o fato de

    Beckett recorrer a essa experincia cinematogrfica muda,em 1965, em pleno apogeu das mais elaboradas tcnicasdo cinma falado, abdicando da palavra sonora e de todasonoplastia para concentrar-se somente no elemento Visual. Apenas se ouve o chut, esta interjeio quivalentea Silncio e que parte da mulher, na rua, dirigindo-se aoseu acompanhante que, aps o choque com o desajeitado

    O, vai protestar. Pantomima, pois, reforada pelo cenrio e acessorios, a servio da expresso do isolamento dohomem, num mundo em que lhe foram tiradas a infn-cia, a juventude, a familia, enfim a vida. Expresso ainda,como veremos, do encurralamento do homem pela prpriaconscincia.

    sE o mesmo cenrio fechado s6 que agora' unico,

    pois a pfea se passa no quarto da personagem se rpt em Diga Joe, escrita para a televiso da BBC, nomesmo ano em que foi composto Filme. Cenrio encar-cerador, como auto-encarcerado se encontra o protagonista; cenrio em que se acentua a ao de Joe para iso-lar-se, atravs da pantomima initial, fechando porta, ja-nela, armrio, para poder entregar-se ao universo angus-tiado da autoconfrontao.

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    A arte beckettiana poderia ser denominada a artedo encarceramento, expresso por ele usada ao dfinira obra de Bram Van Velde (Bram Van Velde, p. 7).

    Presena das personagens: Referiamo-nos, h pouco,

    s personagens que, no palco, em meio a um cenrio emsi significativo, falam aos espectadores atravs de suasimples presena a indumentria, o aspecto enfim. Eisso verificvel, em diferentes graus, com diferentes ma-tizes, mediante uma incurso pela obra beckettiana. Indumentria, maquilagem, mimica, anomalias, associadas linguagem verbal, exprimem a viso do homem no uni-

    verso. o homem no sob seu aspecto corrente, normal,mas estranho, inusitado, muitas vezes na linha caricaturai,procedendo Beckett parodia da existncia humana ecompondo trgicas farsas, em que coexistem o trgico eo cmico.

    Seja em Esperando Godot, seja em Fim de Jogo, ouainda nas pantomimas (Ato Sem Palavras I $ Ato Sem

    Palavras //), se bem que nem sempre apaream indica-es cnicas relativas indumentria, os encenadores emgrai acompanham a linha de A ltima Gravaao; e oque ressalta, desde o levantar da cortina, a silhueta da

    personagem como palhao, com suas roupas mal adapta-das ao corpo, exageradas, no s6 quanto ao tamanho, mastambm quanto aos acessorios. So os saptos, ou melhor,

    botinas enormes; o chapu de coco no condizente como resto. da indumentria, e que confr personagem operfil burlesco do palhao. Alis, as rubricas beckettia-nas que dizem respeito maquilagem insistem nesteaspecto circense das suas personagens.

    A pea Fim de Jogo, apresentao das personagens,j esboa a figura burlesca de Clov, que tem a cutis

    64 muito vermelha, o mesmo se dando com Hamm, ao

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    deixar cair o leno que recobre seu rosto, em que contrasta a vermelhido com os culos pretos. Quanto a

    Nagg e Nell, cujas cabeas emergem das latas de lixo,

    apresentam o rosto muito branco. Rostos muito ver-melhos,. rostos muito brancos; a mascara que, associadaa outros elementos, d-nos uma viso bastante estranha.Quanto maquilagem de Krapp, de A ltima Gravao,no tampouco banal, apresentando matizes pitorescos.

    No se limita Beckett a indicar o tom branco ou verme-Iho na totalidade do rosto, mas descreve-o com o rosto

    branco. Nariz violceo. Cabelos cinzentos em desordem.Mal barbeado, alm de que seus olhos devem estar sem-pre semicerrados num esforo de viso, pois muitomope- (mas sem culos) e a cabea deve inclinar-se noesforo para melhor ouvir, pois duro de ouvido. Esterosto branco, com nariz violceo e cabelos cinzentos,como os demais rostos totalmente brancos ou totalmente

    vermelhos, o tipo da mscara imovel, sem crispaes, maneira do teatro oriental. Mscara que, com os gestos,as gags, vai falar ao espectador, visualmente, antes mesmoque as personagens articulem palavras ou emitam gru-nhidos.

    Uma incurso pelo teatro beckettiano nos mostra suapreocupao com o aspecto visual das personagens, subli-

    nhando-lhes a estranheza facial ou total. Assim, apare-cem as cabeas do homem (H 1) e das duas mulheres( M 1 e M 2) que constituem o clssico tringulo amoroso modernamente tratado, em Comdia. So cabeasque saem de trs jarras idnticas, guisa de corpo, e que

    permanecem rigorosamente de frente e imoveis todo otempo, impassveis, sendo sem idade, como oblitra-

    das, e apenas mais diferenadas que as jarras. Confun-dindo-se com as jarras das quais emergem, devem estes

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    rostos impassiveis pois so como de barro ter tambm a cor dessa massa. E tal indicaao bem ressalta aperda de seu aspecto humano.

    Mesmo quando as personagens tm uma figura maishumana com tronco e membros engenha-se Beckett para fornecer indicaes cnicas aos encenadores (eaos leitores que mentalmente as visualizam), de maneiraa torn-las estranhas na sua semelhana de mascara im-passivel. o que se d tambm, por exemplo, em Vaivmcom as trs mulheres, cujos nomes pitorescamente suge-

    rem sua semelhana Vi, Ru e Flo e que se asso-ciam no menos pitorescamente, no imutvel aspecto fi-sico; so intercambiveis. Ficando seus rostos sombradas grandes abas dos chapus, so elas to semelhantesquanto possivel, apenas diferenadas pela cor da roupa,uma vez que ela idntica quanto ao modelo. Mas,enquanto os rostos ficam na penumbra, semivislveis, diz

    Beckett que as mos, em contraste, sero to visiveisquanto possivel, graas maquilagem. Que quereriasignificar o autor com esta semelhana das silhuetas edos rostos semi-ocultos, ao lado da gritante visibilidadedas mos? Sria talvez a no correspondncia entre oexterior e o interior, sendo o verdadeiro eu traduzido pelasaes, expressas pelas , mos, embora estejam imoveis?

    Ou sria a impossibilidade de ao? o que parecemsignificar.J a protagonista de uma de suas obras-primas

    Oh os Belos Dias apresenta-se com o rosto normal,sem a maquilagem exagerada de atriz circense. Esta nor~malidade, inusitada, , no entanto, imediata e concomi-tantemente destruida pelo fato de, como sabemos, no

    ter pernas, estando semi-sepulta em um monticulo deareia.

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    Normalidade logo desfeita, como no ltimo caso, ouantes, anormalidade, seja pela nota burlesca da pinturafacial que associada indumentria, seja pela sua total

    estranheza, ou ainda pela perda gradativa do aspectohumano at seu desaparecimento o que caracterizao exterior das personagens beckettianas. E, como j dis-semos, numa das ltimas peas curtas o intermdioSopro o protagonista so os vagos detritos, disper-sos confusamente pelo palco e que habitualmente fa-riam parte do cenrio como elemento ambientador; nada

    tm de humano.Na sua apresentao visual das personagens, proce-deu Beckett a um empobrecimento, a um despojamentogradativo, que tambm verificvel em outros mveis, jus-tificando a sua escrita como escrita da penria, pois assim que ele mesmo a qualifica (citado por Grard Du-rozoi, Beckett, p. 141). Escrita da penria, que para-doxalmente rica por seu alto valor de sugesto, uma vezque o leitor ou espectador no apenas l ou v, masdecifra a obra, uma obra aberta com sua indubitvel po-lissemia.

    Que o homem no mundo seno um pobre boneco,um desolador palhao? Ser em paulatina decomposio?Fadado morte desde o dia do nascimento? ..a cmico--trgica viso do homem no universo, provocando ambi

    valente reao do pblico diante de sua derrisria imagem.Se em Esperando Godot no nos apresenta o rosto ou aindumentria de suas personagens ( parte o chapu decoco), no-los sugere no entanto atravs das rubricas refe-rentes aos seus gestos e gags. Com seus gestos mecnicos,suas figuras mal-equilibradas, executando nmeros decirco ou de music-hall como veremos oportunamente

    s poderiam ser maquiladas e vestidas como palhaos,

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    mormente porque as falas (obedecendo muitas vezes stcnicas cmicas do circo) se associam aos gestos paracompletar-lhes o perfil.

    E freqehte a indicao da idade das personagensbeirando a cinqentena ou ultrapassando-a. Winnie, Joe,Krapp para so citarmos algumas j viveram, o quelhes d bem como aos espectadores a possibilidadede procederem ao balano de sua vida, fazendo com queressaltem frustraes, inutilidade dos esforos, o vazio,enfim. Homem-palhao que, tal um burlesco novo Sisifo,

    continua com seus pequenos gestos a arremedar derriso-riamente os esforos da mftica personagem que empurrao rochedo. Mas se Sisifo realizava seu penoso labor nosInfernos labor que constitui para Camus a grandezadesafiadora do homem diante da inutilidade dos seus esforos, visto que o rochedo no permanece no alto damontanha, mas rola sem cessar para o sop , j o

    homem, na viso beckettiana, esta condenado a suportara vida na terra, preenchendo seu vazio com pequenosgestos inuteis, com pobres e incansveis palavras, paradar-se, como diz uma das personagens de EsperandoGodot, a impresso de que existe (p. 97).

    Miserveis palhaos ou pobres mendigos, segundo alguns criticos , sem identidade, pois na realidade

    os nomes no os identificam; sem situao, e despojadosde tudo, inclusive da integridade de seu corpo, Estragone Vladimir apenas esperam e, enquanto esperam, se entre-gam a pequenos agissements um agir sem finalidade, ano ser o de preencher o vazio esmagador. J as personagens de Fim de Jogo} cujos nomes tm se prestado acuriosas interpretaes Hamm, paralitico e cego; Clov,

    cambaleante e incapaz at mesmo de sentar-se tm68 acentuada degradao fisica, mas que ainda saude em

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    relao aos pais do primeiro: Nagg e Nell, seres-troncosenterrados em latas de lixo, tal o grau de sua avanadadecadncia. Quanto a Krapp nome bastante sugestivo

    da decomposiao de que vltima um alcoolatra meiosurdo, oscilante, sujeito a continuas tosses, e incapaz inclusive de reconhecer termos por ele empregados no pas-sado, como o atestam as fitas que ele ento gravou e agoraouve, como que num desejo de reencontrar o passado ede reencontrar-se. E Winnie, por mais que se refira aosbelos dias, consome o resto de sua existncia, passando

    de mulher-tronco esta na cinqentena a mulher--rosto, antes de deslizar definitivamente para o Nada imagem plstico-potica do fim crepuscular. Por sua vez,as personagens-jarra de Comdia, que j nem nome tm,existem apenas pelas palavras que pronunciam noespontneas, mas extorquidas pelo projetor que as foca-liza, uma aps outra. Personagens que em Sopro estoreduzidas a meros detritos. Perderam tudo o que aindaas fazia homens: existncia social, aparen