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A LINGUAGEM FOTOGRÁFICA EM ARTHUR WISCHRAL: ENTRE O TRÁGICO E
O CÔMICO NA VIDA COTIDIANA DE CURITIBA (1913-1950)
Larissa Busnardo
(UFPR) Resumo
A imagem fotográfica, na passagem para o século XX, foi contestada em relação à tradição pictórica, sendo percebida ora como uma representação mecânica e documental da realidade, ora como uma nova linguagem artística. Nesse meio tempo, a sociedade industrial abria-se para a fotografia instantânea, produzida em grande escala. Em Curitiba, naquele contexto, Arthur Wischral foi reconhecido como fotógrafo da vida cotidiana da cidade, produzindo imagens jornalísticas para diversos periódicos e registros oficiais para o Estado. Mas apesar do caráter documental de sua produção fotográfica, é aparente, em muitos de seus registros, uma preocupação com a questão da linguagem, enquanto recurso narrativo da fotografia, elemento pouco abordado em estudos sobre este fotógrafo. Desta forma, Wischral por vezes se utilizava duma roupagem trágica, e por outras de uma faceta cômica, numa representação “teatralizada” de determinados temas, parecendo estar ciente do caráter irreal da fotografia. Deste modo, esta análise emprega os conceitos teóricos de Giorgio Agamben sobre o Gesto, Juramento e Perjúrio, assim como sua teoria sobre a Tragédia e a Comédia, e parte do método de Boris Kossoy, ao apontar a necessidade de se decifrar a realidade interior da fotografia. Tal investigação objetiva então identificar nas fotografias de Wischral elementos sutilmente representados com viés cômico ou trágico como uma questão de linguagem, problematizando de que forma Arthur Wischral se apropriava disso para produzir suas narrativas fotográficas. Palavras-Chave: Arthur Wischral; Comédia; Fotografia; Linguagem; Tragédia.
Introdução & justificativa
Na transição para o século XX, a cidade de Curitiba vivia um período de
modernização, ligado ao desenvolvimento da indústria ervateira, à intensificação do
processo imigratório e crescimento populacional, à urbanização e expansão
econômica, e também à ampliação dos meios de produção de imagens. Ressalta-se
que os primeiros profissionais do meio imagético a se estabelecerem na cidade, a
partir da década de 1880, contribuíram para a formação de um espaço de circulação
de imagens, pois não havia ainda na cidade uma tradição artística ou iconográfica: a
esparsa produção existente fora produzida apenas por artistas viajantes, sendo a
“imagerie local” pouco difundida, de acordo com Newton Carneiro (1950, p.7). Desta
forma, os processos gráficos utilizados pela imprensa na produção das revistas
ilustradas, as primeiras escolas de arte, exposições e os primeiros estúdios
fotográficos desenvolveram-se a partir do século XIX e contribuíram para definir
amplo espaço de consumo visual no século XX: Com a crescente ampliação das
técnicas de reprodução de imagens, estas “se transformaram em mercadoria
abundante e barata. Nunca antes existira ou circulara tamanha quantidade de
imagens, variando entre ilustrações, gravuras e fotografias” (KAMINSKI, 2012, p.19).
Inserido neste contexto de inovações e fervuras imagéticas, Arthur Wischral
(1894-1982) passou a interessar-se pela prática profissional da fotografia,
aperfeiçoando-se “com ensinos verbais de outros mestres”1. Desta forma, em 1909
ele foi aprendiz da Casa Fleury, estúdio pertencente ao fotógrafo alemão Germano
Fleury2. Porém, além de aprender os trejeitos próprios de um estúdio fotográfico,
Wischral aprimorou sua formação profissional durante estadia na Alemanha (1914 a
1918), momento em que passou a dedicar-se à foto instantânea, possivelmente
instigado por suas experiências na Primeira Guerra Mundial e na Guerra do
Contestado. Sobre sua carreira, Arthur Wischral3 mencionou que fora fotógrafo
jornalístico para a Prefeitura de Curitiba; jornais, como A República; e revistas
ilustradas, como A Bomba – sendo, portanto, responsável pelo registro de diversos
eventos históricos (como a construção da rede ferroviária).
O teor documental e jornalístico da obra de Wischral é o principal aspecto
estudado por autores que se debruçaram sobre o tema, como Marcelo Sutil e Maria
Baracho (BOLETIM, 2007) e, mais recentemente, Lucineia Gazola (2004), Éverly
Pegoraro (2014) e Luana Genaro (2015). Vale mencionar que, de acordo com Pedro
Vasquez (2012, p.103-118), desde a chegada da fotografia ao Brasil existira um
“fotojornalismo avant la lettre” – caracterizado sobretudo por registros desvinculados
da imprensa – mas a “fotografia jornalística” se desenvolveria durante o século XX,
juntamente com os processos litográficos até a década de 1950, com a afirmação do
repórter fotográfico e do fotojornalismo (da forma como os conhecemos atualmente).
Por outro lado, além do registro jornalístico, Wischral também produziu ampla
1 WISCHRAL, Arthur. Entrevista concedida a Olga Vollrath. Curitiba, 1977. Casa da Memória. FCC. 2 Germano Fleury veio de Stuttgart, Alemanha. Seu estúdio foi na Rua Mateus Leme entre 1901 e 1913, local em que fotografava e comercializava artigos fotográficos (BOLETIM, 2007, p.15). 3 WISCHRAL, Arthur. Op.cit.
coletânea de registros informais acerca do lazer familiar e de confraternizações de
grupos sociais aos quais ele pertencia. Justamente por conta do desenvolvimento da
fotografia instantânea, registros de lazer tornaram-se comuns no século XX,
principalmente por meio da fotografia amadora. Desta forma, as cenas corriqueiras
em família eram tema cada vez mais comum em registros fotográficos. Sobre o
gênero, Isolde Wischral4 aludiu à aparente indisposição de Arthur Wischral para o
registro de “pessoas”. Para ela, esta não era uma das preferências do fotógrafo, que
o fazia apenas em família, e, para não “perder a chapa”, preocupava-se com a
composição dos retratos, buscando uma forma inusitada de representá-los, muitas
vezes em tom humorístico. Então, aponta-se a manifesta preocupação de Wischral
em dirigir a cena fotográfica, característica que corrobora para evidenciar os
diferentes tratamentos dados por ele na elaboração das imagens e sua aparente
preocupação com uma construção linguística fotográfica.
Esta pesquisa parte, desta forma, das pontuações teórico-metodológicas da
historiografia da fotografia (principalmente Boris Kosoy, François Soulages e Heinz &
Bridget Henisch), assim como da abordagem filosófica proposta por Giorgio
Agamben sobre a linguagem. Propõe-se uma análise inicial sobre o caráter da
dramaticidade e o uso da linguagem fotográfica na produção de Wischral – por meio
de fotografias pertencentes ao Acervo Arthur Wischral, da Fundação Cultural de
Curitiba (BOLETIM, 2007) e da Coleção Júlia Wanderley, situada no Instituto
Histórico-Geográfico do Paraná – problematizando de que forma Arthur Wischral se
apropriava de tal recurso ao conceber, seja com viés cômico ou trágico, narrativas
visuais sobre a vida cotidiana de Curitiba no início do século XX.
Objetivos – Considerações sobre a teatralização e a linguagem fotográfica Durante a Belle Époque brasileira, a ilustração humorística foi uma categoria
que tomou importante espaço, sobretudo após avanços nas técnicas de impressão
de revistas ilustradas, contribuindo para forjar novos procedimentos, recursos e
estratégias de linguagem, de acordo com Elias Saliba (2002, p.302). Concomitante,
a melancolia do cotidiano moderno era expressa verbalmente pelas crônicas
4 WISCHRAL, Isolde. Entrevista. Curitiba, 1982. Casa da Memória. FCC.
urbanas dos jornais:
Para outro cronista contemporâneo, que assinava sob o pseudônimo de Paulo Hellenos, a resposta está dada: o preço a se pagar pelo progresso é a tristeza. Em uma “croniqueta” publicada em julho de 1903 no jornal Diário da Tarde, Paulo Hellenos se pergunta: “Como explicar a tristeza de Curitiba?”, e é esta indagação que move sua escrita [...]. [Em outro artigo], a vida curitibana é descrita como “quasi um castigo” e, nele, as intempéries naturais parecem ser o pretexto para se falar de um cenário urbano marcado pela melancolia e, novamente, pelo silêncio (GRUNER, 2010, p.60)
Neste ínterim, o imaginário coletivo era explorado pelos cartunistas brasileiros
para produzir humor em suas charges, nas quais criavam chistes críticos sobre o
cotidiano do início do século XX: Tratava-se de um momento de transição entre o fim
do Império e início da República, um período de ambivalências, pois a coexistência
difusa de pensamentos dele decorrente contribuía para uma espécie de crise de
identidade cultural, que implicava em uma peculiar combinação entre progresso e
tradição, público e privado, frenesi e placidez, entre passado e futuro (SALIBA, 2002,
p.302). Assim, entre os reveses da busca pela identidade da cidade moderna, esta
se transformava no “local de origem de um caos avassalador e a matriz de uma
nova vitalidade emancipadora” (SEVCENKO, 2009, p.18), efeito que seria expresso
pelo jogo associativo entre o realismo dramático e a representação cômica.
Apesar de, à primeira vista, parecer dicotômica, a associação entre a comédia
e a tragédia incide no cerne da dramaticidade: Propondo uma leitura de Dante
Alighieri, Giorgio Agamben (2014) empregou em sua análise a concepção
aristotélica sobre a Poética, sugerindo que tragédia e comédia trariam a mesma raiz.
Em adição, Agamben evidenciou que a possível distinção entre tais categorias seria
de caráter ético e conceituou a comédia como uma antitragédia. Assim, apesar de
haver uma distinção, sobre ambas incide o mesmo problema, que é o uso de papéis
morais (de máscaras) na representação de uma cena – o gesto. Em termos
imagéticos, trata-se do gesto do artista que ressignifica algo em forma de imagens,
que o atualiza a partir do ato poético.
Na linguagem fotográfica, a dramatização aparece mundialmente desde o
século XIX numa contestação poética, em contrapartida à ideia da fotografia “factual”
– a exemplo do pictorialismo. Sobre isto, François Soulages (2010, p.76) asseverou
que o caráter irreal da fotografia alude a uma encenação, ou seja, a uma construção,
seja consciente ou inconsciente, por meio de poses, de um cenário, ou da
manipulação posterior em laboratório. Desta forma, para Soulages, qualquer foto
pode vir a ser teatralizante. Então, a partir de tal pressuposto, a tragédia e a
comédia seriam importantes artifícios linguísticos na trama fotográfica, ou melhor, à
narrativa fotográfica.
a piada fotográfica assume muitas formas; ela pode, por exemplo, ser orientada para o exercício da arte em si, o esforço com o equipamento na câmara escura ou com clientes no estúdio [...]. Algumas vezes, a câmera cria uma piada ao capturar as incongruências não planejadas dum momento passageiro e congelá-los para riso futuro [...]. Noutras, o fotógrafo é um diretor muito mais consciente, deliberadamente construindo uma cena de adereços e gestos, e em seguida usando a câmera simplesmente para gravar a farsa. (HENISCH & HENISCH, 1998, p.138) 5
Ao exemplificar e analisar algumas tipologias de fotos cômicas, Heinz & Bridget
Henisch buscaram uma conceituação do “Humor fotográfico”, demonstrando-o como
um formato bastante complexo, inclusive porque muitas vezes tais fotos não são
visualmente humorísticas. Trazem, por exemplo, o pitoresco registro turístico de uma
aristocrata, bem vestida demais para caminhar no deserto, sendo acompanhada por
um camelo – imagem que originalmente tratava-se apenas de um registro familiar e
foi ressignificada pelo espectador do século XXI enquanto imagem cômica. Ou,
noutro exemplo, as jocosas fotos de pequenas encenações sobre acidentes,
trapaças, tolices e lisuras, comercializadas como cartões estereoscópicos ou
postais. Nesse caso, com as lentes “fiéis” da objetiva, provocava-se o riso com
encenações propositadamente enganosas, enquanto evidências de que tais cenas
teriam acontecido verdadeiramente (HENISCH & HENISCH, 1998, p.144).
5 Tradução livre de: “The photographic joke takes many forms; it can, for instance, be aimed at the practice of the art itself, the struggle with equipment in the darkroom or with clients in the studio, but it is true that this self-referential mode was left for the most part of the cartoonist’s pen. […] At times, the camera creates a joke by catching the unplanned incongruities of the passing moment and freezing them for future laughter […]. At others, the photographer is a far more conscious stage manager, deliberately building a scene from props and gestures, and then using the camera simply to record the farce.”
Figura 1 – “Sarah Bernhardt”, c.1870. Autoria desconhecida. (Foto original e detalhe) Fonte: HENISCH & HENISCH, 1998, p.166.
A fotografia da célebre atriz francesa Sarah Bernhardt (1844-1923) morta em
um caixão, de autoria desconhecida, foi produzida em 1870 – ou, melhor dizendo, no
auge de sua vitalidade. O chiste encenado por Bernhardt, simulando a sua própria
morte, é um exemplo da dialogia entre cômico e trágico da fotografia teatralizada na
transição entre os séculos XIX e XX. Pois a piada, como parece atualmente para
nós, era originalmente privada, partilhada apenas por fotógrafo e cliente conforme
dirigiam a cena dramática – e não havia essencialmente a intenção da excêntrica
imagem parecer cômica a seus contemporâneos, mas, pelo contrário, esta foi usada
na divulgação de sua habilidade dramática (HENISCH & HENISCH, 1998, p.166).
Assim, comédia e tragédia eram elementos que faziam parte do repertório
estético e estilístico de muitos fotógrafos na transição do século XIX para o século
XX – personagens que, de certa forma, problematizavam a linguagem fotográfica, a
imbuindo de novas acepções, para além do seu suposto caráter realista. E mesmo
no caso de imagens que não se propunham diretamente cômicas ou trágicas, como
na fotografia jornalística, a dramatização, ou a teatralização, continuaria fazendo
parte do ato fotográfico, seja pela intenção insinuada em seu registro ou pela
ressignificação deste através da manipulação posterior ou com a inserção de
legendas, por exemplo.
Retomando aqui o objeto de pesquisa deste artigo, propõe-se então uma leitura
inicial sobre a obra fotográfica de Arthur Wischral em suas possibilidades narrativas
e linguísticas. Assim, objetiva-se a investigação do caráter cômico e trágico de suas
fotos, a partir dos pressupostos aqui pontuados.
Resultados
Considerado por pesquisadores como um fotógrafo representativo do período
de modernização da cidade de Curitiba, Arthur Wischral foi responsável pelo registro
de diversos eventos históricos paranaenses. De acordo com Éverly Pegoraro, tal
produção fotográfica trouxe “inúmeras contribuições históricas e documentais [...],
sobretudo para consolidar a ideia do Paraná como um Estado promissor e em
desenvolvimento, concepção cara às elites políticas e sociais” (2014, p.11-12). Em
entrevista à revista “Panorama” em 1968, o fotógrafo relembrou alguns dos trabalhos
que considerava mais relevantes:
Eu fotografei o Cícero Marques, quando o primeiro avião levantou vôo em Curitiba; estive cobrindo o centenário da independência do Brasil, em 1922, no Rio de Janeiro; vi agitações estudantis [...]; enterros de personalidades famosas; acompanhei por aí diversos presidentes do Paraná [...]. Fotografei tanta coisa, meu filho, que eu ficaria um dia inteiro contando tudo para você. (WISCHRAL apud SERRANO,1968)6
É relevante aludir ao fato de que a condição de fotógrafo contratado pela
imprensa e pelo Estado permitia a Wischral testemunhar os mais diversos eventos –
o que até poderia parecer atraente a um jovem fotógrafo, entretanto também o
condicionava a ajustar-se aos desejos ideológicos de seus contratantes. Sobre a
foto de reportagem, François Soulages ressaltou que o fotógrafo de imprensa se
vale de elementos estéticos e ideológicos para construir determinadas narrativas
visuais que, embora ilusórias, se propõem verdadeiras.
Tal fotografia produz um engodo que faz sonhar e não pensar. Aqui o objeto-realidade a ser fotografado não pode ser dado pela simples razão de que ele não é buscado em sua própria verdade [...]. As fotos podem ser falsificadas ou montadas [...]. Às vezes, a encenação da realidade política e social é de tal forma interiorizada por seus atores [...] que as fotos não são mais do que fotos das aparências da comédia social. (SOULAGES, 2010, p.36)
Desta forma, para o autor, apesar de ser atribuído um caráter factual e
comprobatório à fotografia jornalística, ela apenas simula uma realidade. Trata-se,
como advertido por Soulages, de uma encenação, uma construção narrativa
dramática estruturada na exploração das possibilidades interpretativas e expressivas
da linguagem fotográfica, com a qual se registra uma versão de uma sociedade,
uma “comédia” social – termo que Soulages emprestara da dramaturgia clássica 6 SERRANO, H. Olha o passarinho!. Panorama, Curitiba, Nov. 1968, Ano XVIII, nº 195, p.14-18.
(assim como Agamben) comparando-a ao ato fotográfico.
Segundo Kossoy, caberia ao historiador “a tarefa de desmontagem de
construções ideológicas materializadas em testemunhos fotográficos”, para “decifrar
a realidade interior das representações fotográficas, seus significados ocultos, suas
tramas, realidades e ficções, as finalidades para as quais foram produzidas” (2009,
p.23). O testemunho fotográfico, mencionado por Kossoy, faz menção ao caráter de
juramento atrelado à imagem fotográfica, ou melhor, o apoio ou confirmação de uma
versão de uma realidade, segundo a percepção do indivíduo que idealiza a imagem.
Logo, trata-se de um contrato firmado entre o fotógrafo, seu contratante e aquilo que
é fotografado. Ao propor uma “Arqueologia do juramento”, Giorgio Agamben (2011,
p.14) observou que é na relação com a linguagem que o juramento se constitui, não
sendo definido por sua veridicidade, mas pela possibilidade do perjúrio, da mentira
que é inerente à linguagem. Assim, compreendendo que uma foto parte do
juramento de uma realidade, propõe-se que ela seja, igualmente, um perjúrio desta:
uma versão irreal, uma construção narrativa, um jogo de linguagens.
A proposição imagética de Arthur Wischral em relação aos registros
jornalísticos expressava uma versão melancólica do cotidiano da cidade. Neste
sentido, a série de cartões postais de Wischral referentes à Guerra do Contestado,
produzida em 1912, colabora para esta análise. A teatralização da guerra era, em si
mesma, portanto, uma espécie de espetáculo fetichizado do poder iminente da
República: o registro dos heróis do Contestado partindo no trem da estação,
acenando dramaticamente das janelas com seus lenços em direção à multidão,
poderia facilmente fazer parte de uma cena romântica de cinema.
Figura 2 – Arthur Wischral, “Embarque dos soldados para a Guerra do Contestado”, Curitiba, 1912. Figura 3 – Arthur Wischral, “Explosão do galpão da estação ferroviária”, Curitiba, 1913.
Fonte: Coleção Júlia Wanderley, Instituto Histórico Geográfico do Paraná.
Além destes postais, uma das principais experiências de Arthur Wischral,
enquanto fotógrafo jornalístico, foi o registro da explosão dos armazéns da estação
em 1913. Antes de qualquer observação, é preciso mencionar que o tratamento
dado pelos jornalistas em relação a este acontecimento, segundo Luana Genaro
(2015), beirava o sensacionalismo. De fato, o jornal “A República”7 publicou no dia
seguinte uma notícia excessivamente detalhada sobre o que restou das vítimas
depois do desastre. E, ao final, anunciaram a exposição de “8 aspectos da pavorosa
catastrophe”, feitos por Wischral. Tais fotografias seriam também publicadas na
revista ilustrada “A Bomba”. É interessante mencionar, aqui, que tal revista era
humorística, e propunha a publicação de piadas, charges, concursos e crônicas
literárias – ou seja, exatamente o oposto do teor das cruas fotos da explosão.
Há uma contradição entre o discurso da reportagem fotográfica sobre a explosão e o conteúdo humorístico constante nos textos e charges. As fotografias documentam a presença do poder público na cidade e confirmam a sua atuação de maneira positiva. Enquanto pelo humor, a revista critica e satiriza o poder público e os responsáveis pela segurança pública. (GENARO, 2015, p.80)
A contradição presente entre as charges e as fotos na publicação da revista “A
Bomba” provavelmente se deu porque, além de terem sido registradas para o jornal
“A República”, elas foram construídas com o objetivo de denotarem o caráter trágico
da cena, evidenciando todos os detalhes mais intensos, melancólicos e heroicos
daquele momento enquanto elementos centrais da narrativa – incluindo a força do
corpo de bombeiros, o sofrimento das vítimas e as ruínas da estação.
[A foto] é o resultado final de uma seleção de possibilidades de ver, optar e fixar certo aspecto da realidade primeira, cuja decisão cabe exclusivamente ao fotógrafo, quer esteja ele registrando o mundo para si mesmo, quer a serviço de seu contratante (KOSSOY, 2014, p.121)
Por outro lado, em momentos de lazer, nos quais Wischral não tinha nenhum
contratante a lhe impor determinada narrativa, o fotógrafo se utilizava do tom
humorístico para definir uma linguagem imagética que lhe parecesse correta para se
“gastar uma pose”. Apesar de não ser considerado um homem “bem humorado” ou
7 A República. Horrivel Catasthophe. 2 jul. 1913, p.1.
“engraçado”, segundo Isolde Wischral8, as suas imagens de lazer detinham uma
linguagem bastante próxima das caricaturas das revistas ilustradas, pelos efeitos
visuais e estéticos e também pelo uso de legendas humorísticas. Porém, se o humor
da época satirizava a sociedade republicana, Wischral satirizava o próprio processo
fotográfico. Ironicamente, porém, as suas contribuições para a revista humorística “A
Bomba” não seguiram tal proposição.
Figura 4 – Arthur Wischral, “Mulher não! Só Gilda!”. Curitiba, 1947. Fonte: Boletim Casa Romário Martins, 2007.
O primeiro exemplo destacado nesta análise sobre a comicidade nas fotos de
Wischral é o instantâneo de um grupo de homens na “chácara Walter Becker”, sobre
a qual lê-se a legenda “Mulher não! Só Gilda!!!”, que fora adicionada pelo próprio
fotógrafo. Neste caso, o humor que constitui a imagem salta aos olhos: não há
dúvidas de que se tratava de um momento de descontração – de fato, na fotografia
aparecem alguns estereótipos da diversão masculina: o carro, a bebida, e a menção
à “Gilda". Neste caso, pensando nos preceitos bergsonianos9 sobre o cômico,
percebe-se que a interferência da legenda jocosa e a ambiguidade proposta na
construção da imagem (inclusive nas espirituosas poses dos indivíduos que dela
participaram) contribuem para a construção do humor. Nos escapa, porém, a que se
referia o nome Gilda naquele contexto: seria o nome da bebida? Seria uma menção
à bela miss Paraná, Gilda Kopp?
Outra fotografia de caráter humorístico apresenta uma sequência de meninas,
organizadas por ordem de tamanho, e, no final da fileira, uma comportada cadelinha 8 WISCHRAL, Isolde. Entrevista. Curitiba, 1982. Casa da Memória. FCC. 9 BERGSON, Henri. O riso: ensaio sobre a significação do cômico. 2.ed. Rio de Janeiro: Guanabara, 1987.
posiciona-se na mesma direção delas, como se fosse uma integrante do grupo.
Nesta imagem, Wischral aliou a uma pose tradicional de estúdio o recurso da
personificação do animal, um efeito cômico usual na fotografia de estúdio, de acordo
com Heinz & Bridget Henisch (1998).
Figura 1 – Arthur Wischral, Irmãs em sequência, c.1940. Figura 2 – Arthur Wischral, Retrato de família, c.1940.
Fonte: Boletim Casa Romário Martins, 2007.
Além da fotografia das meninas, outra imagem que brinca com as regras
tradicionais da fotografia profissional de estúdio é o registro de uma família,
provavelmente reunida para uma festa, onde todos encontram-se de costas para a
objetiva. Nesta, é interessante observar como a simples inversão da posição dos
indivíduos fotografados causa estranhamento, inclusive mostrando um lado não
convencional daquelas pessoas (ou de seus penteados). Tais indivíduos em outras
circunstâncias provavelmente não teriam em seu álbum fotográfico um registro das
costas de seus familiares, pois esta não era (e não é) uma pose usual. Relacionada
ao caráter realista e memorialístico do registro fotográfico, a pose tradicional de
família tem a função de fazer ver ao observador as fisionomias. Esta imagem,
porém, não traz em si tal possibilidade, ou seja, sua função enquanto estância da
memória familiar foi usurpada pelo jogo da linguagem, e seu valor permanece na
indefinição melancólica de quem, afinal, seriam os participantes desta brincadeira.
Considerações finais Para construir fotografias do cotidiano, Arthur Wischral não se contentava com
os “protocolos” do registro documental. Ao contrário do que era produzido pelos
fotógrafos amadores (com suas Kodaks) e pelos fotojornalistas, o profissional sentia
necessidade de buscar outras formas de representação, outras narrativas e novos
estilos. Neste caso, com relação à teatralização da imagem fotográfica, infere-se que
Wischral tenha buscado as categorias da tragédia e do humor como uma forma
palatável, para si, de registrar tais imagens, incluindo e, ao mesmo tempo, negando
as insígnias simbólicas próprias da fotografia. Ou seja, ao negar os códigos
tradicionais do ato fotográfico, Arthur Wischral caminhou entre o trágico
fotojornalismo sensacionalista (e, de certa forma, romantizado) e o cômico
surrealismo fotográfico - não no sentido artístico de surrealismo, mas segundo a
proposição de Soulages e de Susan Sontag (2004, p.66), enquanto negação do
realismo e construção da narrativa e da linguística fotográfica.
A proposta deste artigo é uma provocação, que nem de longe esgota as
possibilidades da leitura sobre as inúmeras obras deste fotógrafo. É preciso,
portanto, buscar outras significações sobre a obra de Wischral, além da fotografia
documental. Permanecem, aqui, indagações importantes sobre as intencionalidades
de Wischral e sobre a circulação de tais imagens na cidade – como os curitibanos
percebiam as fotografias trágicas? Em que medida as fotografias cômicas eram
realmente engraçadas para os familiares dele?
Referências
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