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Série Investigação
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Imprensa da Universidade de Coimbra
Coimbra University Press
2016
As línguas e as cidades são irreverentes: nunca se deixa(ra)m reduzir às suas
materialidades. Cidades não equivalem a cidades e línguas não equivalem a
línguas. As línguas e as cidades são indisciplinadas mesmo perante qualquer
normativo que se lhes dirija porque o pensamento e a língua, por não serem
definitivos, alteram-se enquanto cada ser falante, no exercício da cidadania e em
qualquer época, desejar afirmar-se como uma pessoa livre e cada comunidade
linguística desejar proteger a sua identidade. É apenas em liberdade que o
saber e o progresso humanos, incondicionalmente assentes no exercício da
linguagem verbal, se realizam.
Languages and cities are irreverent: they never let / have never let themselves
be reduced to their materiality. Cities are not equivalent to cities and languages
are not equivalent to languages. Languages and cities are undisciplined even
in the face of any norm to which they are subjected, as thinking and language,
by not being definitive, changes with each speaker, in the course of the exercise
of their citizenship regardless of the age, wishes to affirm himself/herself as a
free person and each linguistic community wishes to protect its identity. It is only
through liberty that the knowledge and progress of humankind, unconditionally
based on the exercise of verbal language, are accomplished.
9789892
611143
JOÃO CORRÊA-CARDOSOMARIA DO CÉU FIALHO(Coordenadores)
João Corrêa-Cardoso Doutorado em Linguística Portuguesa pela Faculdade de
Letras da Universidade de Coimbra, é Professor Auxiliar de Linguística Portuguesa
nessa instituição. A 26 de Julho de 1999, no Instituto de Letras da UERJ, Rio de
Janeiro – Brasil, foi-lhe atribuída a Medalha de Mérito Lingüístico e Filológico Oskar
Nobiling e o respectivo Diploma pela Sociedade Brasileira de Língua e Literatura. Da
sua carreira docente salienta-se a leccionação em Seminários de Romanística das
Universidades alemãs de Hamburg, de Göttingen, de Kiel, de Leipzig, de Freiburg
e de Jena. Tem publicado diversos trabalhos, sobretudo na área da Sociolinguística
– nas vertentes rural, urbana e escolar –, e ainda na área da Dialectologia, de que
se poderão destacar os seguintes títulos: O Dialecto Misto de Deilão (1995), Estudo
de sociolinguística escolar em torno das atitudes das crianças de Maputo (I) (1998),
Sociolinguística rural. A freguesia de Almalaguês. (1999), Wo meine Heimat ist,
weiss ich nicht genau: aspectos da construção linguística da identidade em crianças
portuguesas residentes em duas cidades alemãs (2000), Sociolinguística urbana de
contacto. O português falado e escrito no Reino Unido (2004).
Maria do Céu Fialho Professora Catedrática na Faculdade de Letras da Universidade
de Coimbra. Os seus interesses de investigação centram-se nos Estudos Literários,
Línguas e Literaturas Clássicas e sua Receção. Neste âmbito publicou vários trabalhos,
dos quais se destacam: «Coimbra na obra de Vergílio Ferreira», Boletim de Estudos
Clássicos. Coimbra. 41 (2004) 63-70; “Mito, narrativa e memória” in Que fazer com
este património? Em memória de Victor Jabouille. Lisboa, 2004; Introd. e tradução
de “Rei Édipo, Traquínias, Electra, Édipo em Colono” in: M. H. Rocha Pereira, J. R.
Ferreira, M. C. Fialho, Sófocles. Tragédias, introd. trad., Coimbra Capital da Cultura,
2003; “Sob o olhar de Medeia de Fiama Hasse Pais Brandão” in Medea: versiones
de un mito desde Grecia hasta hoy. Granada, 2003:1. P. 1125-1135; “Cidadania
e celebração na Grécia Antiga” in Europa em mutação. Cidadania. Identidades.
Diversidade cultural, coord. M. M. Tavares Ribeiro. Coimbra, 2003, P. 13-30;
“Sófocles, Rei Édipo”, introd. trad., Madrid-Conímbriga, 2003.
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A LINGUAGEM NA PÓLISIMPRENSA DA UNIVERSIDADE DE COIMBRACOIMBRA UNIVERSITY PRESS
Versão integral disponível em digitalis.uc.pt
edição
Imprensa da Univers idade de CoimbraEmail: [email protected]
URL: http//www.uc.pt/imprensa_ucVendas online: http://livrariadaimprensa.uc.pt
coordenação editorial
Imprensa da Univers idade de Coimbra
conceção gráfica
António Barros
imagem da capa
Pormenor do óleo sobre tela intitulado La cité da autoria de Véronique Strick
infografia
PMP, Lda.
infografia da capa
Mickael Silva
execução gráfica
Simões e Linhares, Lda.
iSBn
978-989-26-1114-3
iSBn digital
978-989-26-1115-0
doi
https://doi.org/10.14195/978-989-26-1115-0
depóSito legal
417277/16
© novemBro 2016, imprenSa da univerSidade de coimBra
Versão integral disponível em digitalis.uc.pt
JOÃO CORRÊA-CARDOSOMARIA DO CÉU FIALHO(Coordenadores)
A LINGUAGEM NA PÓLISIMPRENSA DA UNIVERSIDADE DE COIMBRACOIMBRA UNIVERSITY PRESS
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S u m á r i o
Prólogo ....................................................................................................... 7
Consciência e Linguagem: Acerca da Crítica Linguística
do Sujeito na 1ª Metade do Séc. XX
Diogo Ferrer .............................................................................................. 11
Da Crítica Hermenêutica à Metafísica da Subjetividade: a Importância
de Gadamer e Ricoeur para Repensar a Linguagem da Pólis.
Maria Luísa Portocarrero ......................................................................... 55
Estudo do Contacto de Línguas em Ambiente Urbano
João Nuno Corrêa-Cardoso ....................................................................... 77
O Papel Diferenciado de Subsistemas de Memória de Longo Prazo
nos Processos de Aquisição e de Aprendizagem de uma L2:
O Modelo Declarativo/Procedimental e as suas Consequências
para o Ensino de Línguas Não Maternas
Cristina Martins .....................................................................................99
Expressão Oral em Português Língua Não Materna
Anabela Fernandes .............................................................................. 121
(Re)construir a Palavra do Outro: Tempos e Relações de Tempo
no Discurso Indireto
Ana Paula Loureiro ............................................................................. 145
As Mil Imagens de Uma Palavra
Sara Bahia ........................................................................................... 175
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6
Writing From Art
John Taggart ........................................................................................ 189
Music and Lyrics: Notes on Italian Songwriting
Cristina Babino .................................................................................... 203
Una Vera Fashion Consciousness. O Italiano da Moda
e o Empréstimo Linguístico: Breves Notas a Um Artigo
de Vanityfair.it
Alberto Sismondini ............................................................................... 227
Análises dos Media: Do Conteúdo ao Discurso
Isabel Ferin Cunha............................................................................... 239
A Linguagem do Mito e a sua Força de Interpelação:
Antígona Frente a los Jueces, de Andrés Pociña
Maria do Céu Fialho ............................................................................ 269
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p r ó l o g o
Os livros, tal como as cidades, são locais de memórias e de con-
vívio que nos estimulam sempre a pensar no futuro, próximo ou
longínquo, ao mesmo tempo que, através da leitura (como acontece
durante as deambulações entre os elementos urbanos) refletimos so-
bre a génese de cada passo que vamos dando sós ou acompanhados.
A ideia deste livro nasceu há já alguns anos, no momento em
que um pequeno grupo de investigadores, de diversas gerações e de
diferentes áreas de estudo, desejou pensar em conjunto o exercício
da linguagem verbal – e sobre outros comportamentos semióticos
que a acompanham –, no espaço da cidade. Ao longo dos encontros,
houve contributos que se silenciaram inesperadamente, mas também
se juntaram intervenções novas e, para não perdermos a oportu-
nidade de prosseguirmos com o continuum dialogal, agora com
leitores-viajantes, decidimos publicar o volume, bem heterogéneo,
constituído pelas reflexões que se foram entretanto acumulando.
As cidades, tal como os livros, são imensas. Existem as concre-
tas, há as desejadas e aquelas que se imaginam, aspiramos a muitas
utópicas para responder a debates difíceis sobre as fragilidades da
existência humana e exaltamos de admiração perante cidades an-
tiquíssimas só por causa da pujança magnética do simbolismo que
conseguiram preservar durante séculos.
A linguagem verbal é, não apenas antropologicamente, o traço
fundacional da nossa espécie que, por sua vez, confere à cidade,
uma vez que a explicita, o estatuto de criação humana. Ambas
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inscrevem-se no devir histórico e assumem-se claramente como am-
plos complexos sociais e culturais. A primeira é o locus de todas as
construções linguísticas sustentadas pelo pensamento, a segunda
é o espaço em que elas se organizam, resistem, marginalizam e se
transfiguram. A linguagem humana e a cidade encontram-se irre-
mediavelmente uma na outra.
Na transversalidade provocada, nos últimos oito anos, pelos tes-
temunhos publicados neste livro, manifestam então os autores dos
doze capítulos o interesse comum em escrutinar, de perto, o exercí-
cio linguístico como manifestação plurifacetada da, na e pela vida
citadina: Diogo Ferrer e Maria Luísa Portocarrero, na abordagem
filosófica; João Corrêa-Cardoso, na sociolinguística dos contactos
entre idiomas; Cristina Martins, na psicolinguística da aquisição e
da aprendizagem de línguas não maternas; Anabela Fernandes, na
reflexão científico-didática sobre a expressão oral em português,
também com o estatuto de língua não materna, em sala de aula;
Ana Paula Loureiro, na observação do discurso indirecto como
estratégia de apropriação da palavra de outrem. Encerra o volume
um conjunto de textos que estabelecem a relação cúmplice entre
a linguagem verbal e o conceito de imagem, de Sara Bahia; entre
a poesia e a pintura, de John Taggart; entre a cultura musical e a
palavra cantada, de Cristina Babino; entre a moda e o mecanismo
da adoção linguística, de Alberto Sismondini; entre as investigações
em comunicação e os impactos nos média, tendo como cenário a
imigração, de Isabel Ferin. Com Maria do Céu Fialho escutamos a
força da voz de Antígona, em palco urbano atual de peça de teatro
recentemente publicada.
Uma ideia comum que se glosa é a da inevitabilidade da influência
biunívoca entre as interacções semióticas e todos os ambientes por
onde o ser humano circula. As línguas e as cidades não pertencem
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a ninguém e, todavia, sem as massas falantes ou dialogais nem
umas nem outras existiriam. Também por este motivo, e porque
se inscrevem no tempo, nas línguas e nas cidades há mutações,
diferenças, misturas e sínteses com efeitos cumulativos, a cujos re-
flexos as gerações sucessivas podem dar maior ou menor atenção.
A propósito do facto de que nada do que sai da mente e das mãos
humanas ser definitivo, lembro-me do desabafo de um dos perso-
nagens de Greene:
«One’s file, you know, is never quite complete; a case is never
really closed, even after a century, when all the participants are
dead.»
Graham Greene (2011), The Third Man and other Stories.
Introduction by Richard Greene, London, Collector’s Library, p. 34
As línguas e as cidades são irreverentes: nunca se deixa(ra)m
reduzir às suas materialidades. Cidades não equivalem a cidades
e línguas não equivalem a línguas. As línguas e as cidades são
indisciplinadas mesmo perante qualquer normativo que se lhes di-
rija porque o pensamento e a língua, por não serem definitivos,
alteram-se enquanto cada ser falante, no exercício da cidadania e
em qualquer época, desejar afirmar-se como uma pessoa livre e
cada comunidade linguística desejar proteger a sua identidade. É
apenas em liberdade que o saber e o progresso humanos, incondi-
cionalmente assentes no exercício da linguagem verbal, se realizam.
É com um profundo reconhecimento pela sua generosidade in-
condicional que agradeço a Véronique Strick a autorização para
reproduzir na capa do livro a tela da sua autoria intitulada La cité.
Deixo uma palavra fraterna às minhas colegas Maria Carmen de
Frias e Gouveia e Aida Cristina da Cruz e Silva que, de modo abnega-
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do, me ajudaram a rever os textos que agora se publicam. Ao Victor
Garcia dou um forte abraço pelo profissionalismo com que tratou a
imagem do óleo sobre tela da artista plástica belga Véronique Strick.
João Corrêa-CardosoCentro de Estudos Clássicos e Humanísticos
Celga-Iltec
Departamento de Línguas, Literaturas e Culturas – FLUC
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c o n S c i ê n c i a e l i n g uag e m : a c e r c a da c r í t i c a l i n g u í S t i c a
d o S u j e i to n a 1 ª m e ta d e d o S é c . x x 1
Diogo Ferrer
Universidade de Coimbra
Resumo: Neste capítulo, o estudo de antecedentes, na filosofia transcendental
de Kant e no empirismo etimológico radical de Horne Tooke, orienta uma
panorâmica sobre alguns momentos fundamentais do pensamento filosófico
sobre a linguagem no Século XX. São objecto de um estudo comparativo
diferentes teorias do signifcado, nomeadamente, Husserl e a idealidade
das significações, Wittgenstein e a linguagem dos factos, o problema da
reflexividade, os fundamentos da hermenêutica filosófica e o pensamento
etimológico segundo Heidegger, além de referências a aspetos da teoria
pragmática do significado, entre outros pontos. A análise comparativa das
diferentes teorias permite compreender a situação teórica do sujeito e as
consequências da sua crítica ancorada na viragem linguística da filosofia
no Século XX.
Palavras chave: Filosofia da Linguagem; Crítica ao Sujeito; Husserl;
Heidegger; Wittgenstein; Horne Tooke; Teorias do Significado; Etimologia.
1 Este texto corresponde, com algumas alterações, a uma conferência proferida em 31 de Maio de 2007 na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, no Ciclo Interdisciplinar As ciências da linguagem e outras áreas do saber, promovido pelo Instituto de Língua e Literatura Portuguesas e pelo Centro de Estudos de Linguística Geral e Aplicada. Ao Prof. Doutor João Nuno Corrêa-Cardoso agradeço muito especialmente a oportunidade de apresentar estes tópicos filosóficos para um auditório oriundo de outras especialidades científicas, bem como o caloroso acolhimento concedido.
DOI: https://doi.org/10.14195/978-989-26-1115-0_1
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É, pois, sobre a especificidade da conceção hermenêutica de sub-
jetividade enraizada que vamos pensar. Devemos começar por dizer
que a Hermenêutica não rejeita a subjetividade como característica
do ser humano. Repensa-a no entanto a partir da sua condição cor-
pórea, enraizada e linguística. Mas para nos entendermos realmente,
uma vez que vamos falar de conceções diferentes de subjetividade,
precisamos de começar por recorrer a Descartes, filósofo que fundou
a existência do Cogito, que provou justamente a natureza pensante
deste, a sua condição imediata e não relacional, uma vez que o in-
tuito do filósofo era precisamente afastar toda a dúvida e fundar
uma racionalidade que conduzisse a certezas:
«Na metafísica de Descartes, o ente foi definido pela primeira
vez como a objetividade de uma representação e a verdade como
a certeza da representação. Ora, com a objetividade surge a
subjetividade, neste sentido segundo o qual o ser certo do objeto
é a contrapartida da posição de um sujeito. Assim temos ao mesmo
tempo a posição do sujeito e a proposição da representação»1.
Sabemos também que na base de uma tal conceção de subjeti-
vidade, a Modernidade pôde desenvolver uma ideia específica de
saber, de qualidade claramente operatória e não tanto ética e prática,
logo, aquela que, como nos diz Gadamer, «conferiu à ciência experi-
mental um novo estatuto e uma clara importância social e política»2.
Com ela, instalou-se no Ocidente o valor absoluto da racionalidade
calculadora e instrumental que Heidegger tão bem caracteriza na
sua conferência Sérénité3. Esta nova conceção de ciência, puramente
1 P. Ricoeur, « Heidegger et la question du sujet», in IDEM, Le conflit des inter-prétations. Essais d´herméneutique, Paris, Seuil, 1969, p. 226.
2 H-G. Gadamer, Über die Verborgenheit der Gesundheit. Aufsätze und Vorträge. Frankfurt, Suhrkamp, 1993, p. 17.
3 M. Heidegger, Gelassenheit, Gunther Neske, Pfullingen, 1959.
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representativa e dominadora, a da racionalidade pragmática e ope-
ratória, que veio a dar origem à tecnociência, deixou de lado como
não científica toda uma outra forma mais meditativa, simbólica e
hermenêutica de pensar e habitar o mundo. Perdeu-se assim defini-
tivamente, lembra-nos Gadamer, o que nos oferecia o conceito grego
de racionalidade: um saber integrador, uma forma mais geral do
conhecer que refletia, antes de mais, sobre o modo como o homem
habita o mundo, isto é, como se eleva acima do seu aqui e agora,
formulando «perguntas sobre a verdade e sobre o bem de um modo
que não exprima nem o benefício próprio nem o proveito público»4.
A grande tradição da filosofia prática e política da Antiguidade
– e o seu horizonte primordialmente ético e deliberativo, retomado
com alguma força mais tarde, pela problemática do humanismo e
finalmente pelo horizonte das chamadas ciências do espírito no
séc. XIX – acabou por desaparecer do horizonte da racionalidade
ocidental. Esta, puramente neutra e desinteressada, chegou mesmo a
transferir, não sem levantar inúmeros problemas, as suas qualidades
de razão operatória e produtiva para o âmbito da praxis moral do
humano. O maior de todos eles foi a substituição de toda a cultu-
ra, da indagação ou mesmo da educação do ser humano, por toda
uma nova cultura baseada na aprendizagem rápida e instrumental
de competências e de automatismos que permitissem a adaptação
a uma sociedade, cada vez mais burocratizada e administrada. A
ideia de método e o primado absoluto deste sobre as coisas foram
remetendo paulatinamente para o esquecimento todo o tipo de ra-
cionalidade mais deliberativa e dialógica, aquela que não tem tanto
a ver com capacidades que se podem exercitar, mas antes de mais
com a participação dos cidadãos na vida pública, com a facticidade
4 H.-G. Gadamer, Gesammmelte Werke. Hermeneutik 1. Wahrheit und Methode 1, Tubingen, Mohr, 1986, pp. 12-13.
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das crenças, das tradições, dos valores e decisões que permitem
fundar a coesão social e, com ela, uma racionalidade responsável.
Por outras palavras, a investigação científica dominante separou-
-se do ethos5, da capacidade de abertura e do enraizamento que
caracteriza o humano, enquanto ser dotado de perguntabilidade e
distância, isto é, da palavra que se diz ao outro e que por isso mesmo
permite sempre compartilhar algo de comum. Desenraizada do mun-
do da vida, no qual o homem continua a viver e a compreender-se,
apesar de tudo, a racionalidade operatória seguiu o seu caminho,
impondo o primado da técnica sobre a ação, destruindo crenças e
substituindo-as por um valor único: a eficácia. Acabou por converter-
-se hoje numa séria ameaça que se estende à vida social do homem,
isto é, num caminho que inaugura inúmeras transformações do agir
humano, reduzindo-o à figura do trabalho ou na linguagem de H.
Arendt, à condição do animal laborans.
Assim surge a desorientação ética dos nossos dias e toda uma
praxis manipulada ou mesmo disseminada por múltiplas especiali-
zações que, sabendo operar com eficácia, não sabem, muitas vezes,
o que fazer com os seus próprios resultados. É que, de facto, e
como o autor nos recorda: a condução da vida humana segundo o
modelo da racionalidade calculadora, primordialmente baseado em
automatismos e capacidades técnicas, esquece a interrogação sobre
os fins e conduz inevitavelmente a sérios conflitos, que clamam pela
necessidade de uma nova racionalidade.6 Veja-se, neste sentido, o
boom das éticas aplicadas dos dias de hoje e os problemas surgi-
dos desde a segunda metade do séc. XX pela aplicação puramente
técnica de teorias fragmentadas e especializadas ao âmbito sempre
concreto, afetivo e solidário do mundo vivido dos homens. Todos
estes problemas refletem a necessidade de uma outra racionalidade
5 Idem, Das Erbe Europas, Frankfurt, Suhrkamp, 1989, p.1006 Idem, ibidem, pp. 10-11.
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que respeite a autonomia e dignidade do ser humano e o sentido ver-
dadeiramente relacional da sua praxis. Com efeito o homem quando
manipulado é um homem alienado e insatisfeito, logo é necessário
repensá-lo, a si e à sua razão; o que nos obriga a atualizar a célebre
distinção kantiana entre pessoas e coisas, percebendo claramente
que o homem visa fins próprios que não se podem, de modo algum,
reduzir a um puro cálculo de meios. A lógica instrumental dos meios,
aquela que tem transformado radicalmente o agir e que acabou por
introduzir hoje a necessidade do questionamento ético, não pode
substituir-se a uma ponderação dos fins.
Isto quer dizer que a retomada do Cogito só é hoje possível por
meio de um movimento que parta da intencionalidade do mundo
vivido e se oriente para a difícil questão do sentido do estar no mun-
do7. Será ele puramente técnico ou visará, como queria Aristóteles,
o horizonte da felicidade?
Tal é o motivo da racionalidade hermenêutica: ela sabe que, depois
das críticas da filosofia da suspeita à falsa natureza imediata do Cogito
e depois da fenomenologia da passividade, há que meditar seriamente
o significado da inscrição linguística da subjetividade humana, no-
meadamente, a partir do que ficou esquecido pela Modernidade: o
mundo da vida com as suas alegrias e tragédias e, por isso, as suas
linguagens próprias. A retomada do eu sou passa hoje pela prova da
dúvida, logo, exige uma hermenêutica dos testemunhos, dos textos,
obras e ações deste único ente que se faz um si mesmo singular e
que não se reduz mais à transparência do Cogito. O sum é de facto,
uma realidade opaca por detrás do Cogito, excede-o e é este o grande
enigma deixado em aberto pelas hermenêuticas da suspeita: o que
é que eu sou afinal? Como posso perceber que sou sujeito? Tal é
a grande questão a que a hermenêutica apenas responde de forma
mediata por meio da compreensão das figuras e testemunhos tempo-
7 P. Ricoeur, Le conflit des interprétations, p. 229
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rais deste sum que deve agora dar testemunho das suas capacidades
para finalmente poder ser entendido. Este novo caminho exige um
longo desvio hermenêutico pela alteridade e pela relação, quer isto
dizer, pela dimensão semântica da nova compreensão de si e pela
dos testemunhos, sempre linguageiros da humanidade.
Tal é o eixo da reflexão hermenêutica: a subjetividade atesta-
-se para si e testemunha-se para os outros; acedemos-lhe então já
não pelo modelo da visão, mas pelo da relação, da solicitude e da
praxis. Isto é, sempre por meio da atividade e da linguagem deste
único ente que é capaz de ser sujeito: «A irrupção da linguagem é
a irrupção do ser-aí, pois a irrupção do ser-aí significa que o ser é
trazido à palavra na linguagem»8. Neste sentido, podemos dizer que
a hermenêutica filosófica, nomeadamente a de H.- G. Gadamer e de
P. Ricoeur, concretizam o programa fenomenológico da urgência de
um retorno às próprias coisas, reinterpretando, a partir da linguagem
e dos seus usos, a superstição naturalista do primado dos factos.
II - Qual então o significado específico das ideias de subjetividade
e racionalidade no horizonte da filosofia hermenêutica contem-
porânea? Vamos aqui falar de H.- G. Gadamer e de P. Ricoeur,
particularmente das suas críticas à moderna limitação da racionali-
dade filosófica à problemática do conhecimento e à manipulação do
mundo, reduzido a paisagem diante do olhar. Refiramo-nos pois, e
em primeiro lugar, ao que a hermenêutica rejeita: o modelo de sobe-
rania epistemológica e antropológica do sujeito (narcísico) moderno,
o famoso Cogito exaltado (nas palavras de Ricoeur) que, já de acordo
com o parágrafo 6 de Ser e tempo, partilha dos grandes pressupos-
tos da metafísica.9 Lembremos que, neste parágrafo, Heidegger
nos mostrava que a crítica ao sujeito-Cogito é uma parte integrante
8 Idem, ibidem, p. 231.9 Idem, ibidem, p. 225
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da destruição da história da ontologia10. Mas entendamo-nos bem
quanto a este assunto: a destruição hermenêutica do Cogito não
significava aqui uma total aniquilação do eu sou, apenas a ideia de
que este tinha de ser reinterpretado, uma vez que, com a questão
da finitude e do tempo, a tónica se deslocara de uma filosofia que
parte do Cogito, como verdade primeira, para uma filosofia que parte
da questão do ser como a questão esquecida no Cogito11.
É pois a grande tese que deu origem à modernidade que a
Hermenêutica recusa já desde Heidegger. Que tese é esta? A
identificação cartesiana de duas noções: a ideia de subjectum como
fundamento e a ideia de subjectum enquanto eu. Com Descartes,
de facto, o homem tornara-se o primeiro e real subjectum, o pri-
meiro e real fundamento12. O que significa que o sujeito, enquanto
eu mesmo, se transformara na Modernidade, no centro a partir do
qual tudo era entendido; o mundo convertia-se assim num quadro
disponível, numa pura representação do Cogito.
Claro que isto só era possível porque se omitia a realidade do
sum, por outras palavras, porque a certeza absoluta do Cogito dis-
pensava o filósofo de colocar a questão do sentido deste ente. Foi
no contexto da racionalidade científica que surgiu o Cogito, como
princípio da subjetividade moderna, o que quer dizer que esta per-
tence à época do mundo como representação e quadro. «O carácter
de representação do ente é o correlato da emergência do homem
como sujeito»13.
10 Idem, ibidem, p. 224: «La contestation du Cogito constitue une partie de la destruction de l´histoire de l´ontologie, telle qu´elle est poursuivie dans l´intro-duction de Zein und Zeit. Dans le fameux paragraphe consacré à Descartes (§ 6), nous lisons que l´assertion du Cogito sum procède ‘ d´une omission essentielle : celle d´une ontologie de l ´être- là ».
11 Idem, ibidem.12 Idem, ibidem, p. 226. 13 Idem, ibidem, p. 227.
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63
Recuperar então o sentido originário do eu sou, isto é, a capaci-
dade que tem o ente humano de se referir a si mesmo como sujeito,
exige que a hermenêutica comece por contestar radicalmente o
Cogito. Todos conhecemos a primeira frase de Ser e tempo: «a ques-
tão do ser caiu hoje no esquecimento». O que é importante nesta
afirmação é o facto de o problema do ser passar a surgir como uma
questão, a questão do homem, ou mais precisamente acontecer no
tratamento do conceito de questão, o qual faz referência a um si
mesmo, o interpelado na questão. O ente humano é capaz de ser
sujeito porque começa por ser interpelado pela questão do ser. O
Dasein, lembra-nos Heidegger, é um ente especial entre todos os
outros, porque é o único tocado pela questão do sentido e orientado
pelo questionado, isto é, pela coisa a respeito da qual a questão é
colocada14. Com esta questão descobre-se, ao mesmo tempo, uma
nova possibilidade da filosofia do ego, a filosofia do eu sou um ser
interpelado, na medida em que já não sou constituído por certezas
mas pela própria indagação. Sou um ser de possibilidades, isto
é, não pré-determinado que tem, entre outras, a possibilidade de
colocar a questão do ser/sentido. Que ser é este, afinal? Um ser
com outros, um ser finito – de outro modo não se questionava – e
já lançado numa situação hermenêutica de interação e partilha. É,
pois, necessário encarar a finitude e a corporeidade do eu penso
e perceber claramente o que a entretece: a dimensão praxística da
relação e a experiência de contraste entre o âmbito fáctico que me
constitui e o possível da nomeação.
Como perceber então esta dupla dimensão? Há que partir dos
signos e indícios, dos textos instituições e do conjunto de teste-
munhos (história e ficção) que atestam a ligação do eu ao outro,
do eu à sua circunstância e, simultaneamente, à dimensão da sua
incondicionalidade.
14 Idem, ibidem, p. 224.
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64
Por outras palavras, a crítica hermenêutica do Cogito e da ra-
cionalidade instrumental aposta na linguagem simbólica da pólis,
em sentido lato, dado que acredita na significação relacional do
eu sou, isto é, não rejeita totalmente a possibilidade do Cogito.
Quer, no entanto, desvinculá-lo de toda a ideia de fundamento e
re-interpretá-lo a partir da experiência marcante do séc. XX: a da
praxis, a da cidadania e da finitude. Ora, finitude significa estar já
lançado numa situação marcada por instituições, sendo a primeira
das quais a linguagem; significa partir de tradições e interpretações
do mundo, ser um ser relacional, uma praxis de vida, a praxis tem-
poral daquele que se faz questão, palavra, logo que não é já um ser
soberano e solitário, mas um núcleo de relações dialogais. É o eu sou
relacional, aquilo que a hermenêutica tem em mira: aquele que, nas
palavras de Gadamer, quando se descobre, percebe imediatamente
a sua inscrição no diálogo, a sua pertença a textos, tradições ou a
um efeito de sentido já sempre recebido e aceite como necessário
à vida prática. O novo sujeito é o homem da interação, já sempre
situado num horizonte plural do sentido, aquele que sempre chega
demasiado tarde para suspender todas as suas crenças e diálogos
já efetuados e começar tudo de novo, a partir de um grau zero de
pressupostos e efeitos históricos.
Com efeito, para a hermenêutica filosófica de Gadamer, e segui-
damente para a de Ricoeur, são as condições de possibilidade do
agir com outros que permitem perceber o verdadeiro sentido de
toda a subjetividade e que determinam ainda o sentido originário da
racionalidade. Sem a inscrição num mundo simbólico e axiológico
comum não há subjetividade. É o mundo da vida prática governado
por valores, crenças e ideários comuns que permite a construção da
identidade subjetiva e o enraizamento da racionalidade hermenêutica.
Esta sabe que o Cogito moderno representava um sujeito virtual sem
corpo nem espaço pois que o humano que é concreto concreto parte
sempre de pressupostos, resultado da sua pertença a um horizonte
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65
cultural e histórico particular e que estes mais não são do que o
sintoma de que o real se diz de múltiplos modos, traduzido por di-
ferentes situações, o que quer dizer que devo perceber que só com
a alteridade histórica e concreta do outro tu consigo fazer sentido.
A reabilitação do sentido positivo dos pressupostos de todo o
conhecer é assim o tema chave da crítica dialógica gadameriana à
racionalidade abstrata da modernidade iluminada 15 . Ela lembra-nos,
fundamentalmente, que não podemos construir a nossa identida-
de sem a linguagem do outro. A lente da subjetividade, diz-nos o
filósofo,
«é um espelho que deforma. A reflexão sobre si é apenas
uma centelha na corrente fechada da vida histórica. Por isso os
preconceitos de um indivíduo constituem a realidade histórica do
seu ser muito mais do que os seus juízos (….). Se quisermos fazer
justiça ao modo finito e histórico do homem, é preciso realizar
uma drástica reabilitação do conceito de prejuízo e reconhecer
que existem preconceitos legítimos»16.
Dada a nossa condição finita começamos, desde logo, por ser
herdeiros das ações, significações e avaliações dos outros que nos
precederam. No entanto, somos herdeiros ativos e nunca meros
repetidores : é a partir da nossa própria questão, de um horizonte
novo, concreto e particular, que recebemos o efeito do outro; de-
vemos, por isso, traduzi-lo sempre para a nossa própria linguagem
que, por sua vez, se enriquece por meio da maneira como é ques-
tionada pela tradição17.
15 Cf., neste sentido,. M. Luísa Portocarrero Silva, O Preconceito em H-G. Gadamer: Sentido de uma Reabilitação, FCT/ JNICT, 1995.
16 H.-G. Gadamer, Gesammmelte Werke. Hermeneutik 1. Wahrheit und Methode 1, p. 281.
17 Cf., neste sentido, H.- G. Gadamer, op. cit., pp. 311-312.
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66
Os preconceitos, sublinhados por Gadamer como condição do
exercício da racionalidade plural, cumprem pois uma dupla função :
lembram-nos por um lado a condição profundamente fáctica18 de
toda a racionalidade, logo apontam para algo que nos escapa, a nossa
passividade, e sublinham, por outro, a nossa condição profundamen-
te ética e dialógica: somos afinal seres plurais e entes cuja existência
resulta dos nossos atos com os outros. Daí a importância dos pre-
conceitos: eles são categorias práticas que nos revelam que a nossa
compreensão é um projeto provisório de sentido, uma mediação
frágil e provisória, logo capaz de se expor ao outro, à outra cultura
ou perspetiva. Esta questiona-me e faz-me finalmente reconhecer
que talvez eu não tenha toda a razão 19 . Gadamer defende assim
o valor simbólico e formativo do diálogo que nós somos e fala-nos
da posição chave da literatura20, enquanto medium da relação entre
línguas, culturas e diálogo. A própria educação, pela exposição ao
texto, é considerada como arte de crescimento interior pelo facto
de nos ensinar a poder não ter razão.
São pois as condições humanas da interação, da socialização, da
solidariedade e do serviço ao outro21, sem nunca esquecer a particu-
laridade própria, que constituem o verdadeiro motivo gadameriano
da crítica do primado exclusivo do método e da sua racionalidade
estritamente descritiva e operatória. Tal crítica promove um modelo
novo de racionalidade, a racionalidade deliberativa, ética e dialógica,
cujas grandes categorias são os preconceitos em sentido positivo,
18 Cf. J.GRONDIN, Le tournant herméneutique de la pensée contemporaine, Paris, Puf, 2003, p. 114.
19 H.-G. Gadamer, op. cit., pp. 345-346.20 Cf. ibidem, p. 165. 21 « Auslegung des gezetzlichen Willens, Auslegung der götlichen Verheissung
zu sein, das sind offenkundig nicht Herrschafts-, sondern Dienstformen». Idem, ibidem, p. 316.
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113
pelo menos numa fase inicial, à MLP declarativa/explícita. Assumindo
a relevância de perspetivar a questão nestes termos, e por razões
de clareza, adotaremos, doravante, neste trabalho, a expressão LNM
(língua não materna) para as situações de assimilação tardia de uma
língua, depois de adquirida uma primeira, LB para nos referirmos
a uma língua adquirida em situação de exposição bilingue precoce
(a LA e a LB) e tomaremos L2 como um termo-chapéu para fazer
referência genérica às duas situações descritas.
7. Implicações do modelo DP para o ensino de uma LNM
As premissas do paradigma DP terão um relevante impacto no
campo do ensino das LNMs e das próprias LBs. Na verdade, pres-
supor que as estruturas gramaticais de uma L2 (ou algumas delas,
pelo menos) já foram adquiridas ou serão ainda passíveis de serem
apreendidas, pelo aluno, por via procedimental/implícita, ou consi-
derar, ao invés, que é à via declarativa/explícita que o aprendente
recorre para as codificar, reter e posteriormente recuperar conduzirá
o docente de uma L2 a opções pedagógicas e didáticas não neces-
sariamente coincidentes.
Admitindo a validade da fundamentação apresentada até ao
momento para a distinção entre os processos de aquisição e de
aprendizagem de uma língua, o ensino formal de uma LB far-se-á
alicerçado em orientações gerais que, em princípio, não deverão
andar longe das que informam o ensino de uma L1. Assim será
porque, nestes casos, ambas as línguas, LA e LB, serão, para o
aluno em questão, maternas (pelo menos numa perspetiva psico-
linguística). Ressalve-se, contudo, e na medida em que o aluno em
relação ao qual a questão se coloca é bilingue, que os pressupostos
a presidir ao ensino formal que toma as suas línguas como objeto
de desenvolvimento académico decorrerão, de forma crucial, do
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114
perfil sociolinguístico do seu bilinguismo. Dito isto, um programa de
ensino orientado para discentes cujo bilinguismo é encarado como
uma mais-valia, porque fruto do contacto entre duas línguas social e
academicamente valorizadas, será substancialmente diverso daquele
que visa corresponder às necessidades de alunos cujo bilinguismo
resulte do contacto entre duas línguas de estatuto sociocultural mui-
to díspar. De igual modo, um programa de ensino desenhado para
alunos que ostentam uma proficiência relativamente equilibrada em
relação aos idiomas em contacto será distinto daquele que tem por
alvo crianças reveladoras de um domínio muito desigual em relação
a LA e a LB (especialmente quando se dá o caso, recorrente, de a
proficiência do aluno ser maior em relação à língua menos valorizada
pelo sistema escolar). Por fim, um programa de ensino talhado para
crianças bilingues provenientes de uma comunidade linguística que
é, ela própria, bilingue, assumirá uma configuração distinta daque-
le que visa a escolarização de crianças bilingues inseridas numa
comunidade predominantemente monolingue. Serão, pois, estas e
outras variáveis de natureza fundamentalmente sociopolítica e so-
ciolinguística que determinarão o tipo de ensino, quer de uma LB
(quando esta é, de resto, objeto de ensino formal, o que nem sempre
é o caso), quer de uma LA com a qual a LB entre em contacto. Seja,
contudo, qual for o perfil sociolinguístico do bilinguismo de um
aluno nestas circunstâncias, o pressuposto do paradigma DP é que
esse aluno terá adquirido estruturas da LA e da LB por via proce-
dimental/implícita e será, portanto, a partir delas que o professor
de língua (LA e/ou LB) deverá erguer o seu trabalho.
Já o mesmo não se dirá do aluno que não experimentou uma ex-
posição precoce a input bilingue que incluísse a presença da língua
veicular do ensino em geral ou a de uma outra ensinada na escola.
De acordo com os pressupostos que temos estado a discutir, a assimi-
lação de línguas nestas circunstâncias mobilizará a MLP declarativa/
explícita do aluno que, através dela, aprenderá, quer o léxico, quer a
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115
gramática desta que será, então, para si, uma LNM. Numa primeira
fase de aprendizagem, assume-se, de resto, que a MLP declarativa
é o recurso cognitivo mais relevante ao dispor do aprendente para
tal fim. Pressupô-lo representa, já se vê, uma forma de legitimação
de estratégias de ensino formal da LNM que passem pelo recurso
à explicitação das regras da gramática respetiva, ou, dito de outro
modo, pelo ensino de conteúdos de natureza metalinguística.
No âmbito dos trabalhos existentes sobre o ensino de LNMs, tem
sido, como se sabe, acesa a polémica em torno do papel que nele
deverá assumir o ensino explícito da gramática. Algumas aborda-
gens, frequentemente classificadas como «comunicacionais», têm, até,
conduzido a práticas pedagógicas que passam pela erradicação (ou
quase) do ensino explícito da gramática da LNM. Os pressupostos
deste tipo de posições são múltiplos, mas, no que concerne à pre-
sente discussão, importa salientar dois.
Consideremos, em primeiro lugar a premissa segundo a qual a
assimilação de uma LNM mais eficazmente se fará se centrada em
práticas comunicativas, ficando estas ancoradas, em boa parte, e pelo
menos nas fases iniciais de aprendizagem, em enunciados-fórmula
pré-fabricados (a partir dos quais, em fases posteriores, o aprendente
seria capaz de inferir as estruturas gramaticais relevantes da LNM).
Frequentemente se argumenta que este tipo de abordagem fomenta
a fluência de produção do aprendente, já que dispensa a constru-
ção lenta e laboriosa dos enunciados por parte do aluno com base
num conjunto (naturalmente limitado, de início) de regras explícitas
e de léxico entretanto retido. Contra-argumentando, no entanto,
poder-se-á sustentar que um ensino formal de LNMs essencialmente
assente na promoção de enunciados-fórmula reduz consideravelmente
a capacidade de o aprendente se adaptar a novas situações de uso
da LNM. Sem o fomento de uma abordagem analítica explícita dos
enunciados comummente proferidos em situações de interação verbal
e de comunicação típicas, o trabalho interpretativo a empreender
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116
pelo aprendente com base no reconhecimento de estruturas em uso
numa dada situação atípica, ou simplesmente nova (não prevista no
programa), ficará seriamente comprometido (para uma discussão
destas duas posições, cf. Ellis, 2005).
Em segundo lugar, esclareça-se que a promoção de um ensino
fundado sobre práticas comunicativas muitas vezes se faz com base
no pressuposto de que tal abordagem fomenta a assimilação implícita
das estruturas gramaticais da LNM. Ora, como atrás se viu, este é
um pressuposto que o paradigma DP rejeita, já que neste quadro
se assume que é com recurso à MLP declarativa ou explícita que o
aprendente de uma LNM assimila, quer o seu léxico, quer as respeti-
vas estruturas gramaticais. Podendo-se, até, aceitar o argumento de
que o recurso sistemático a enunciados-fórmula fomenta a fluência
de compreensão oral e até de produção do aprendente de uma LNM,
a verdade é que, de acordo com o modelo DP, tais enunciados são
processados pela sua memória declarativa (ou explícita) e não pela
memória procedimental (ou implícita).
Dito isto, restará, no entanto, formular uma pergunta, deveras
relevante para este ponto da discussão: as representações disponí-
veis em MLP declarativa poderão, por algum meio, converter-se em
representações procedimentais? Indagando de outro modo: que tipo
de relação subsiste entre a MLP declarativa e a MLP procedimental?
A abordagem desta problemática, com extrema relevância para o
ensino das LNMs, tem motivado duas posições básicas não coinci-
dentes e nem sequer facilmente conciliáveis entre si. Paradis (2004),
por exemplo, advoga que o conhecimento suportado pela memória
declarativa jamais se transformará em conhecimento procedimental.
Na melhor das hipóteses, a sua mobilização, pelo sujeito, de forma
reiterada e ao longo de um período considerável de tempo, condu-
zirá à sua progressiva automatização, o que, em termos práticos,
se traduzirá na redução concomitante do esforço envolvido nessa
mesma mobilização. Nestes casos, dir-se-á que a informação retida
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117
na MLP declarativa poderá, eventualmente, vir a assumir um formato
procedimentalizado, mas não, de acordo com Paradis, procedimental.
Esta não é, no entanto, uma posição unânime entre os promotores
do modelo DP. Ullman (2001b e 2004), por exemplo, não assumindo
uma posição inteiramente clara sobre este assunto, evoca, contudo,
um conjunto de dados, nomeadamente os apresentados por Perani
et al. (1998) sobre o cérebro bilingue, consistentes com a tese de
que não só o fator «idade de exposição a L2» será relevante para
explicar os padrões de ativação cerebral encontrados aquando do
processamento de enunciados de L2, como o será, e de modo mais
decisivo, o fator «nível de proficiência atingido» pelo falante de L2.
Na verdade, e como revelam Perani et al. (1998), os falantes fluentes
de uma LNM aprendida, portanto, tardiamente, ativam, numa tarefa
de processamento de uma narrativa na LNM que lhes é apresentada
auditivamente, mais áreas cerebrais envolvidas no «sistema proce-
dimental» do que os falantes não fluentes. Os padrões de ativação
cerebral dos falantes proficientes de uma LNM tendem, até, a reve-
lar mais afinidades com os dos falantes da L1 respetiva e menores
semelhanças com os dos falantes não fluentes5. Ora, dados como
estes poderão querer dizer que o diálogo entre a MLP declarativa e
a MLP procedimental passará, eventual e inclusivamente, pela pos-
sibilidade de «transferência» de representações ou de cópias/versões
adequadas destas entre um e outro sistema. Contudo, e ainda que tal
se venha a comprovar em investigações futuras, será necessário não
esquecer que essa putativa procedimentalização dos conhecimentos
apreendidos por via declarativa apenas ocorrerá por via do seu uso
reiterado e prolongado. Nas fases iniciais de aprendizagem de uma
LNM, argumentar-se-á, será fundamentalmente a MLP declarativa
5 Cf., no entanto, os resultados da meta-análise de Hull e Vaid (2007) que indi-ciam uma maior relevância do fator «idade de exposição a L2» do que do nível de proficiência atingido pelo falante de L2 para a explicação de padrões de lateralização das funções linguísticas no cérebro adulto.
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118
aquela que o aprendente mobiliza. Se assim é, fará todo o sentido
a adoção de estratégias de ensino através das quais se forneçam,
ao aluno, informações explícitas sobre o funcionamento da língua a
aprender, ao mesmo tempo que fará todo o sentido, com vista à sua
automatização/procedimentalização, a promoção de múltiplas oportu-
nidades de uso efetivo e reiterado das estruturas assim apreendidas
(i.e., o fomento de sessões de treino).
A adoção destas premissas básicas permite, em suma, a
compatibilização de práticas pedagógicas fundadas nos usos
comunicacionais com outras mais ancoradas na análise e explicitação
das estruturas. Dado, aliás, o estado de aceso debate em torno de
muitas das problemáticas abordadas neste trabalho, julgamos sensata
a subscrição, à semelhança do que propõe Ellis (2005), da posição
que, recentemente, e a outro propósito, O’Grady (2003) identificou
como sendo the radical middle. Procurámos demonstrar em que
medida o paradigma DP permitirá a adoção de uma tal posição
radicalmente intermédia. Procurámos igualmente defender que, com
base em tal modelo, fundado sobre dados neuro-anatómicos e neu-
rofuncionais, é possível sustentar que o processo de aquisição de
uma L2 (ou LB) é, desse ponto de vista, substancialmente diverso
do de aprendizagem de uma L2 (ou LNM).
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e x p r e S S ão o r a l e m p o r t u g u ê S
l í n g ua n ão m at e r n a
Anabela Fernandes
Universidade de Coimbra
Resumo: Nesta exposição tentarei assinalar a especificidade de intera-
ções verbais orais em Português como língua não materna, tendo ponto
de partida do texto a noção de comunicação e a interpretação abusiva
de que essa noção foi alvo no domínio do ensino de língua não materna,
levando à ideia de que a comunicação, e em particular a comunicação
oral, dispensa o conhecimento gramatical e relega a forma escrita para
um papel subalterno. No âmbito deste texto, assume-se antes um conceito
de comunicação mais amplo e uma relação de complementaridade entre a
oralidade e a escrita, uma vez que os aspetos que as separam decorrem de
diferenças no enquadramento espaciotemporal e nos objetivos comunicativos
que condicionam a forma e o conteúdo dos enunciados. Mais do que em
qualquer outro, no discurso oral, em que os falantes se encontram muito
frequentemente no mesmo contexto situacional, esse contexto desempenha
um papel crucial na construção do sentido. Devido a essa circunstância,
o discurso oral é caracterizado pela presença de marcas discursivas espe-
cíficas. Partindo da modalidade discursiva e atendendo ao contexto de
aprendizagem destes alunos, retiraram-se conclusões quanto a materiais
e metodologias de ensino adequadas ao desenvolvimento da competência
oral dos aprendentes neste contexto particular.
Palavras chave: Português língua não materna; comunicação oral; escrita;
marcas discursivas; materiais e metodologias de ensino.
DOI: https://doi.org/10.14195/978-989-26-1115-0_5
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122
Abstract: This chapter argues for a reconceptualisation of communication
that would enlarge second language learning and teaching approaches. We
claim that this results in a deeper awareness of the contextual and interac-
tion dimensions of language use and the broadening of the predominant
view of oral communication, especially concerning the status of grammar
and writing which have been neglected for a long time.
Keywords: Portuguese as second language; oral communication; writing;
discourse markers; teaching materials and methodology design.
Nesta exposição tentarei assinalar a especificidade das intera-
ções verbais orais, retomando algumas reflexões sobre a natureza
dinâmica do processo comunicativo e o seu carácter essencialmen-
te contextual, para daí retirar consequências no que concerne aos
métodos e aos instrumentos mais adequados ao desenvolvimento
da competência no Português como língua não materna (PLNM).
O ponto de partida do texto é a noção de comunicação e a inter-
pretação abusiva de que essa noção foi alvo no domínio do ensino
de língua não materna, levando à ideia de que a comunicação, e em
particular a comunicação oral, dispensa o conhecimento gramatical
e relega a forma escrita para um papel subalterno. No âmbito deste
texto, assume-se antes um conceito de comunicação mais amplo e
uma relação de complementaridade entre a oralidade e a escrita,
uma vez que os aspetos que as separam decorrem de diferenças no
enquadramento espaciotemporal e nos objetivos comunicativos que
condicionam a forma e o conteúdo dos enunciados. Mais do que em
qualquer outro, no discurso oral, em que os falantes se encontram
muito frequentemente no mesmo contexto situacional, esse contexto
desempenha um papel crucial na construção do sentido, como se
explicita na secção I. Devido a essa circunstância, o discurso oral é
caracterizado pela presença de marcas discursivas específicas, que
são referidas na secção II. Na secção III, reflete-se sobre a relevân-
cia atribuída à competência oral em língua não materna no âmbito
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169
o PtSit2 expressar a relação de localização em relação a PtF1, uma
vez que esta diverge da orientação relativamente a PtF2 (é “anterior”
e não “simultânea”).
Retomamos um dos exemplos:
Discurso original: Juro dizer a verdade. (“simultaneidade total”)
Ele jurou dizer a verdade. (“anterioridade” a PtF1)
DI: Ele disse que jurava dizer a verdade.
DI: *Ele disse que jurou dizer a verdade.
No terceiro caso previsto (a situação descrita tem uma duração
que inclui, também, o intervalo em que decorre o PtF1), configura-se
uma relação de simultaneidade parcial também com o PtF1 (PtSit2
(IMP) simul_part [PtF2 + PtF1]).
Esquema 9
Continuing applicability: PtF2 (PRET) e PtSit2 (IMP / PR)
Neste último cenário, a relação de simultaneidade funciona quer
para PtF2 quer para PtF1, pelo que, de acordo com o que vimos, o
PtSit2 pode apresentar-se sob a forma de Presente do Indicativo (PR):
PtSit2 simul_part [PtF2 (PRET) + PtF1] »» PtSit2 (IMP ou PR)
«Eu vivo em Baião.»
Ele vive em Baião.
DI: Ele disse que vive / vivia em Baião.
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170
3.2 PtF2 (PRET) e PtSit2 (MQP)
O MQP configura uma relação de anterioridade de PtSit2 relati-
vamente ao seu PtRef, que coincide com o PtF2: PtSit2 (MQP) ant
PtF2 (PRET).
Esquema 10
«Eu vivi em Baião.»
Ele viveu em Baião.
DI: Ele disse que tinha vivido em Baião.
Neste sentido, a relação com o PtF1 será também de anterioridade
(PtSit2 (MQP) ant PtF1).
Esquema 11
3.2.1 Continuing applicability: PtF2 (PRET) e PtSit2 (MQP / PRET)
Neste caso, e uma vez que a relação de anterioridade é sempre
extensível a PtF1 (“continuing applicability”), o PtSit2 pode apre-
sentar-se sob a forma de Pretérito Perfeito do Indicativo (PRET):
PtSit2 ant [PtF2 (PRET) + PtF1] »» PtSit2 (MQP ou PRET)
«Eu vivi em Baião.»
Ele viveu em Baião.
DI: Ele disse que viveu / tinha vivido em Baião.
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171
3.3 PtF2 (PRET) e PtSit2 (CONDI)
Numa das suas configurações temporais típicas,24 que aqui con-
sideraremos, o CONDI (também chamado, nesse sentido, “futuro do
passado”) representa os eventos enunciados num tempo posterior
ao PtF2: PtSit2 (CONDI) post PtF2 (PRET).
Esquema 12
Neste esquema, o tempo da situação descrita em PtSit2 não se
inscreve em nenhum momento específico (duração e distância) a
partir do seu PtRef (PtF2), podendo localizar-se ora no tempo que
medeia entre PtF2 e PtF1 (como podemos ver no esquema 13), ora
num tempo posterior a este último (cf. Esquema 14):
Esquema 13
«Passarei férias em Baião.»
Ele passou férias em Baião.
DI: Ele disse que passaria férias em Baião.
DI:* Ele disse que passou férias em Baião. (cf. Condição 7)
24 Este comportamento semântico-temporal está limitado a contextos em que o ponto de referência seja passado. Esta condição é enunciada em Mateus et alii (2003: 158), da seguinte forma: «Este tempo comporta-se como tal [do título da secção: «O Futuro do Passado/Condicional»] desde que o ponto de perspectiva temporal seja passado.».
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172
Esquema 14
3.3.1 Continuing applicability: PtF2 (PRET) e PtSit2 (FUT)
Neste último caso, verifica-se a condição enunciada por Comrie
(1986). É, assim, possível o PtSit2 assumir ora uma forma temporal
verbal anafórica (relativa), ora uma forma temporal verbal deítica
(absoluta).
PtSit2 post [PtF2 (PRET) + PtF1] »» PtSit2 (CONDI ou FUT)
«Passarei férias em Baião.»
Ele passará férias em Baião.
DI: Ele disse que passaria / passará férias em Baião.
Conclusão
Neste trabalho, propusemo-nos reequacionar globalmente a ques-
tão da (re)construção das relações de tempo(s) no discurso citado,
especificamente as relações entre a situação descrita no segmento de
discurso reproduzido e os dois atos enunciativos envolvidos (citador
e citado). Em particular, procurámos observar os esquemas tempo-
rais (verbais) disponíveis para o discurso citado em estilo indireto.
Tomámos por referência a regra de sequência de tempos enunciada
em Comrie (1986: 284-285).
Nesse sentido, começámos por identificar as condições temporais
(verbais) para a ocorrência do fenómeno discurso citado. Destacamos
as seguintes: (i) obrigatoriedade de expressão da relação temporal
(de orientação) entre a situação descrita no discurso reproduzido e
o ponto da fala do Enunciador original (Regra da estabilidade do
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173
ponto de referência); (ii) possibilidade de expressão (simultânea,
não exclusiva) da relação temporal (de orientação) entre a situação
descrita no discurso reproduzido e o ponto da fala do Enunciador
citador.
Observámos que esta última possibilidade está disponível no
discurso indireto, mas apenas para os casos em que a relação tem-
poral com o ponto da fala do Enunciador citador é a mesma que
a relação temporal relativamente ao ponto da fala do Enunciador
original (continuing applicability, Comrie, 1986). Nestes casos, o
Enunciador citador pode optar por manter na situação descrita no
discurso reproduzido o tempo verbal do discurso original.
Bibliografia citada
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a S m i l i m ag e n S d e u m a p a l av r a
Sara Bahia
Universidade de Lisboa
Resumo: Análise das relações entre as imagens e as palavras e consi-
deração da sua importância na construção do conhecimento e das suas
potencialidades criativas.
Palavras chave: imagem; palavra; psicologia; linguística; semiótica.
Abstract: Analysis of the relationships between images and words and of
their role in the knowledge production and assessment of their creative
potencialities.
Keywords: image; word; psychology; linguistics; semiotics.
Resumo
Em 1921, o publicitário Fred Barnard proferiu uma frase que viria
a tornar-se célebre: «uma imagem vale mil palavras» (v.g. Knowles,
2004). Porém, a banalização da imagem e da arte que se seguiu aca-
bou por conduzir à incapacidade de se reparar nas mil palavras de
uma imagem ou nas mil imagens de uma palavra. Na base da detur-
pação do sentido da frase de Barnard parece estar um investimento
académico cada vez maior na especialização e concomitantemente
DOI: https://doi.org/10.14195/978-989-26-1115-0_7
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176
menor na criatividade, uma dificuldade crescente em visualizar e uma
capacidade de abstração cada vez menos desenvolvida nos públicos
mais jovens. “Ver” as mil imagens de uma palavra ou as mil palavras
de uma imagem implica ser capaz de: (1) aprofundar o conhecimen-
to, isto é, ter consciência da complexidade da sua organização e a
complementaridade entre as suas diferentes expressões; (2) saber
observar, ver e reparar; (3) ser crítico, ou seja, desafiar o que se
sabe, inventar, colocar questões, valorizar diferentes perspetivas; e,
ainda, (4) ser prático, ou seja, aplicar o conhecimento.
«As palavras são coisas, e são uma pequena gota de tinta
caindo como orvalho num pensamento,
produzindo aquilo que faz milhares, talvez milhões, pensarem»
(Lord Byron)1
Em 1917, no romance-monólogo entre o orador e o filósofo, Raul
Brandão explicava que «Nenhum de nós sabe o que existe e o que
não existe. Vivemos de palavras. Vamos até à cova com palavras.
Submetem-nos, subjugam-nos. Pesam toneladas, têm a espessura de
montanhas. São as palavras que nos contêm, são as palavras que nos
conduzem». O Húmus de Raúl Brandão constitui um meme deixado
às gerações que se seguiram. Termo cunhado por Dawkins (1976),
um meme é uma herança cultural, ideia, língua, som, desenho, ca-
pacidade, valor estético ou ética e que se traduz por palavras e/ou
imagens. Infelizmente assistimos hoje a uma certa incapacidade de
incorporar alguns dos memes nas memórias individuais e coletivas,
pela dificuldade, relutância, ou mesmo impossibilidade, de reparar
1 Tradução livre do poema encontrado em John Bartlett [1992, Familiar quota-tions: A collection of passages, phrases, and proverbs raced to their sources in ancient and modern literature. (16th ed.). Boston, Little Brown].
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nas mil imagens de uma palavra ou nas mil palavras de uma imagem.
A frase de Fred Barnard «uma imagem vale mil palavras» parece já
não surtir o eco que teve antes da banalização da imagem (e da arte)
que se seguiu à sua divulgação. Ao longo do chamado século da
imagem, a proliferação da imagem nos contextos mais diversificados2
acabou por a banalizar e conduzir a uma menor apreciação e a um
menor impacto da imagem enquanto veículo rico de informação.
Subjacente à desfiguração do sentido da frase de Barnard parece
estar um maior investimento na especialização e menor na criativi-
dade; uma dificuldade crescente em visualizar e uma capacidade de
abstração cada vez menos desenvolvida nos públicos mais jovens.
Apesar de social e culturalmente valorizada, a especialização
centrada num determinado domínio do conhecimento acarreta con-
sequências nefastas em termos da interpretação de imagens e de
palavras, e, em última instância, da produção de novos conhecimen-
tos. A leitura de uma imagem exige flexibilidade na medida em que é
preciso visualizar diferentes perspetivas e conceitos, mesmo que não
pareçam ser relevantes. Por seu turno, a visualização de diferentes
perspetivas e conceitos exige flexibilidade cognitiva e criatividade
que implicam um conhecimento aprofundado de um determinado
domínio do conhecimento (Simonton, 1988). No entanto, como re-
ferem Sternberg & Lubart (1991) é necessário saber-se o suficiente
sobre um tema, mas não demasiado.3 Na realidade, se por um lado,
o conhecimento aprofundado permite «ancorar» a informação (v.g.
Ausubel, 1960), por outro a hiperespecialização provoca a rigidez
cognitiva e é limitativa, na medida em que os especialistas sabem
2 Por exemplo, podemos referir as reproduções de obras de pintura em cartões de Natal, em caixas de chocolate ou em perfumes.
3 Isaac Newton começou a trabalhar as descobertas que viriam a revolucionar o conhecimento (a lei da gravitação universal, o cálculo infinitesimal, a natureza da ótica). No ano da Peste Negra de 1666 as instituições públicas britânicas viram-se obrigadas a fechar as suas portas. Newton já tinha concluído os seus estudos em Cambridge, ou seja, já sabia o suficiente sobre tais assuntos, mas não em demasia.
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distinguir demasiado bem o relevante do irrelevante, e a flexibili-
dade e a criatividade envolvem a associação de diferentes domínios
do conhecimento (v.g. Sternberg / Lubart, 1991). Neste sentido, a
hiper-especialização não promove a criatividade (Martindale, 1999).
Por outro lado, a banalização da imagem parece ter levado as
pessoas a fruírem cada vez menos das múltiplas expressões artísti-
cas com suporte em palavras e/ou imagens. A par desta limitação,
a capacidade de abstração fundamental para retirar sentido de
palavras e/ou imagens também parece desenvolver-se cada vez
mais tardiamente. Se o acesso à abstração ocorria há meio século
atrás por volta dos quinze e dezasseis anos (v.g. Piaget e Inhelder,
1958), hoje este acesso parece ocorrer mais tardiamente (v.g. Bryant,
1985; Sutherland, 1992). Algumas investigações têm mesmo verificado
que muitos adultos não conseguem utilizar a abstração, tendendo
a utilizar uma estrutura concreta em muitas circunstâncias (v.g.
Cowan, 1978). No entanto, é a capacidade de abstração que permite
a assunção de múltiplas perspetivas e enquadramentos bem como a
construção de novos significados (v.g. Piaget, 1977).
2. Das imagens das palavras
A análise de palavras e de imagens parece ser cada vez menos
trabalhada e cada vez mais inacessível devido à banalização da
imagem, pelas barreiras à criatividade e pela falta de oportunidades
de abstração. A sua análise exige a utilização de estratégias (e de
capacidade e competências) mnésicas, linguísticas, de visualização
e de abstração bem desenvolvidas porque imagens e palavras estão
interligadas.
Segundo Paivio (1971), o registo da informação na memória é
realizado através de um código dual constituído por palavras e/ou
imagens. No entanto, para Kosslyn (1990), dois terços das imagens
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Andrés Pociña, o conhecido catedrático de Literatura Latina da
Universidade de Granada, surpreende-nos com uma poderosa Medeia
de matriz greco-galega que domina o espaço cénico – o lugar de
Camariñas, na Galiza, onde se refugia – com um monólogo em que se
cruzam, incandescentes e contidos, como no interior de um vulcão,
memórias e sentimentos. Os silêncios são os silêncios da própria
paixão, traduzida na linguagem cultural galega. O texto dramático
surge a partir de uma série de curtas narrativas escritas pelo autor
e publicadas em 1977, com o título Se de desmiticar falades3
Coube a Juli Leal a encenação da peça, que teve a estreia em 25
de Maio de 2005 em Valência4. Desde então, a peça foi representada
frequentes vezes, e com notável êxito, quer em Espanha quer em
outros países, foi traduzida para várias línguas e tem sido objecto
de estudos académicos.
Segue-se-lhe Atardecer en Mitilene, peça intimista, cujo círculo de
acção é o círculo de Safo e das suas discípulas no jardim da mestra,
em que, numa polifonia discreta, do espaço feminino, se cruzam
e confrontam paixões que despertam, que anseiam por correspon-
dência, paixões juvenis, em contraste com a maturidade passional
contida da mestra5. A peça foi estreada em Granada em 2010, re-
presentada continuamente, em espaços diversos, até ao presente. O
mesmo grupo teatral que a estreou – Grupo Afrodita, do I.E.S Bueno
Crespo, de Granada - deslocou-se em Junho de 2011 ao pátio do
Museu Nacional Machado de Castro, em Coimbra, onde representou
a peça, no âmbito do XIII Festival de Teatro de Tema Clássico6.
3 Como refere Martínez Martínez (2009) 75-76, estas narrativas foram submetidas a uma profunda remodelação e deram, assim, origem à peça-monólogo represen-tada em 2005.
4 Vide Martínez Martínez, op. cit.75; 83-84, trata-se de uma produção do Grup de Recerca i Acció Teatral de la Universidad de Valéncia. Medeia foi representada com o maior êxito pela actriz Begoña Sáchez.
5 Romero Mariscal (2012) 203-217.6 Brandão (2011) 842-843.
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Em Junho de 2015 Andrés Pociña supreende-nos de novo, ao edi-
tar, conjuntamente com as duas peças já conhecidas, representadas
e traduzidas, uma peça inédita: uma Antígona frente a los jueces.
O volume dá pelo título de Medea, Safo, Antígona (Tres piezas dra-
máticas), e foi publicado em Granada, Esdrújula Ediciones. O leitor
percebe, à partida, que está perante uma Antígona que, simultanea-
mente, difere e depende das interpretações e reescritas de Antígona
através dos tempos. Reconhece-se a rebeldia da protagonista, que
infringe a proibição de sepultura de Polinices e que, em nome de
um dever sagrado lhe presta honras fúnebres, bem como a prepo-
tência de Creonte, prestes a punir a jovem, sob a capa do aparelho
institucional. Da irredutibilidade destas duas figuras permanece o
eco para além do desfecho da peça.
No entanto, a peça abre post factum, diversamente da sofoclia-
na – a jovem já havia desobedecido, saído do palácio e prestado
as honras fúnebres que lhe foram possíveis a Polinices. O espaço
cénico-dramático é o de um tribunal que se prepara para a julgar,
presidido por Creonte e constituído, com respeito pelas quotas de gé-
nero, por dois juízes e duas juízas. A peça consiste nesse julgamento.
Sumamente importantes são as indicações cénicas do autor: a
liberdade de disposição em cena é total, o guarda-roupa também o
é, o ambiente é o da Hélade original, sem deixar de conter ecos de
tempos futuros. O Coro perde a sua identidade coral homogénea,
para passar a ser constituído por quatro elementos, singulares, de
perfil diversificado, dos quais três assistem ao julgamento (Pueblo
Uno, secretário do tribunal, Pueblo Dos, Pueblo Tres, Pueblo Cuatro,
com a particularidade de se tartar de uma mulher velha, franzina
e enérgica), podendo compreender um quinto elemento (Pueblo
Quinto), sentado entre o público – isto é, o tempo/lugar do jul-
gamento de Antígona amplifica-se e passa a compreender todo o
espaço do espectáculo, palco e bancadas do público. Dir-se-ia que
esta é uma táctica dramática antipódica do estranhamento brechtia-
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no, em função de uma mesma estratégia: desmontar a ficcionalidade
do representado, para nele envolver criticamente o público como
coisa sua, da sua história e do seu tempo, ainda que faça de conta
que o espaço/tempo é o de Tebas. Em boa verdade, o julgamento
de Antígona configura toda a leitura, interpretação, compreensão e
decorrente reescrita do mito de uma Antígona de todas as épocas.
A confirmá-lo estão as indicações cenográficas do autor, como a
inicial, de apresentação da protagonista (p. 98):
Antígona, mujer joven, como fue siempre
O julgamento inicia-se com a intervenção do secretário (Pueblo
Uno), para fazer o ponto da situação judicial: Antígona é acusada de
crime, confirma-se que abdica de defensor, assumindo ela mesma
a sua defesa. Do julgamento pode decorrer a absolvição, caso a ré
seja inocentada, ou a prisão perpétua, já que, por iniciativa do rei
defunto, Édipo, foi abolida a pena de morte – em reavaliação no
preciso momento em que decorre este processo. O espectador é,
assim, alertado para a diferença entre Édipo e Creonte, um tirano
que reabriu a discussão sobre a pena de morte, bem como para o
expectável enfrentamento retórico ético-político entre Antígona e
os juízes, que constituirá a acção da peça7.
O Juez Primero dita os autos judiciais. Antígona está parcialmente
com eles: reconhece ser a autora das proibidas honras fúnebres a
Polinices, seu irmão, mas refuta, reiteradamente, a culpa. Não re-
conhece culpa num gesto para o qual (p. 102):
…no hay ley, ni divina ni humana, que pueda castigarlo.
7 Quanto ao logos enquanto verdadeira acção de Antígona, tendente a ganhar peso nas reescritas mais modernas do mito, vide Honig (2013) 121-150.
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Formulada de outro modo, o leitor ou o público reconhece nestas
palavras a certeza da Antígona sofocliana acerca dos princípios uni-
versais pelos quais havia regido os seus actos (Soph. Ant. 454-455):
…as leis não escritas e inabaláveis dos deuses.
Porém, aqui não é o recesso longínquo dos deuses a sede de tais
princípios: a sua universalidade, a bem dizer, constitui uma utopia
– eles seriam universais se todos os homens e mulheres fossem fiéis
à dignidade e sentido de justiça e solidariedade que deveriam ser
próprios da sua natureza humana, se escutassem a voz do seu ínti-
mo e não construíssem barreiras à linguagem do coração, como se
depreende de posterior argumentação da jovem, que opõe ‘escrito’
a ‘inscrito’ (p. 113):
…hay cosas que no están escritas en la leyes ni contempladas
en las costumbres, pero se encuentran inscritas en el interior de
nuestros corazones
É graças à intervenção do Pueblo Cuatro, a velha, franzina e
enérgica, que Antígona logra concluir o seu primeiro discurso de
defesa, várias vezes interrompido com o interrogatório do Juez
Primero. Este elemento do povo mantém, de resto, esse seu papel
de protesto enérgico e desafrontado, mesmo confrontando Creonte
(e. g. p. 107):
Yo estoy aquí para lo que estoy. Sin voto, pero con voz, no se
olvide.
A mesma velha arrasta os outros elementos do povo, no final, a
reconhecer a razão da sua revolta, repetindo em coro – finalmente,
em Coro – estas suas palavras (p. 120):
Demasiadas veces el pueblo calla cuando debería hablar!
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A sua adesão a Antígona sugere que esta mulher representa uma
espécie de retrato antecipado de como seria Antígona, se tivesse
envelhecido: nunca conformada com a injustiça e a tirania.
A competência retórica de Antígona e a certeza das suas razões
leva-a a desmontar, sistematicamente, as acusações dos juízes, a
ponto de fazer com que Creonte deixe cair a sua máscara de austera
imparcialidade. E Antígona argumenta numa linguagem simples e
fluida, por contraste com a formalidade da linguagem do tribunal.
Ela refuta, sistematicamente, as acusações que partem do pressu-
posto das leis de Creonte. À luz dos princípios que invoca, inscritos
no seu coração, não reconhece culpa alguma. Não há dogmas nem
construções judiciais que prevaleçam como verdades, já que tudo
depende do ponto de vista, da roupagem argumentativo, do traquejo
político ou da límpida ligação à vida e vivência dos afectos e do
dever deles decorrente (pp. 101-102):
No estoy de acuerdo en el modo que tiene el juez de presen-
tar los hechos. Sabe muy bien, porque para eso tiene estudios,
y también mucha práctica política, que qualquier hecho puede
ser interpretado de modos muy distintos según la manera de
presentarlos. Por ejemplo, todas esas cosas que dijo, muy bien
meditadas por cierto, y que además y alas traía dispuestas por
escrito, yo puedo resumirlas en muchas menos palabras: yo en-
terré a Polinices porque era una persona, porque estaba muerto,
porque era mi hermano. Ahí está la verdad complete, y eso no
hay ley, ni divina ni humana, que pueda castigarlo.
Sem o tom provocatório de Antígona em Sófocles, que ousa cha-
mar louco ao rei (v. 470), a Antígona de Andrés Pociña, com toda
a naturalidade e num tom coloquial, desmonta as construções de
Creonte, a quem não deixa de chamar ‘tio’ (p. 104):
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No deforme las cosas, tío. Yo jugaba más con Polinices, por-
que teníamos edades parecidas, por eso pore so quería menos a
Eteocles.
Esta Antígona, na sua firmeza, é uma mulher de afectos, sem a
dureza da homónima sofocliana. Se, na peça de Sófocles, Antígona
proclama (v. 323) “nasci para amar, não para odiar”, não deixa
de se contradizer, já no prólogo, quando Ismena se distancia dos
seus planos, por receio, e tenta dissuadi-la de levar por diante o
seu arrojado intento (v. 93): “se continuares a falar assim, seras
objecto de ódio da minha parte”. Não é o que acontece na peça
de Andrés Pociña, em que Antígona defende Ismena (também esta,
como em Sófocles, se declara, a certa altura, falsamente conivente
com Antígona), reconhecendo, com alguma ternura, que sua irmã
mente por mero afecto (109):
Ismena miente. Miente ahora, por amor a mí, cuando me ve
en peligro de ser condenada. Siempre fue así, una niña buena,
pero sin energía, sin decision, siempre lenta cuando hay prisa.
O autor concebe, então, uma Antígona em que o princípio enun-
ciado pela de Sófocles corresponde ao carácter da figura, no seu todo
– não há ódio, mas o propósito de repor a justiça dos gestos, das
relações, da correcta compreensão dessas mesmas relações familiares
e da redenção dos mortos, cobertos pelo juízo de preconceito, que
carregam com a sua memória a leitura que deles é feita por Creonte
e por muitos séculos. Inspirado na relação e na referência fulcral
que a Antígona sofocliana demonstra e reitera energicamente para
com os seus mortos, de tal modo que o espectador percebe nela
uma vontade de a eles se juntar, uma referência maior à morte que
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ao mundo dos vivos e da pólis8, Andrés Pociña reelabora livremente
essa relação, demonstrando extrema originalidade.
Que estratégia utiliza o autor para reorganizar esta parte do mito?
Recorrendo a uma diferenciação do corpo de juízes, que permite
um tipo de defesa diversa à medida que a peça avança. O último
juíz a intervir é uma mulher: a Jueza Cuarta. O seu interrogatório
processa-se como uma verdadeira preocupação por averiguar as
razões de Antígona e o contexto que determina essas razões. E isto
abre espaço para que Antígona evoque a relação afectuosa entre
todos os irmãos, ainda que Etéocles fosse o mais distante, por ser
o mais velho, a relação afectuosa entre filhos e pais – Édipo, um
rei humanizado, segundo Antígona, o melhor rei que Tebas teve (p.
115), e Jocasta, uma mulher enérgica, cuja energia se vê herdada por
Antígona, e extremamente preocupada com a educação dos filhos e
das filhas. A diferenciação desta Jueza Cuarta em relação aos outros
juízes e a sua sintonia adivinhada com Antígona, que, de resto, vai
crescendo, encontra eco na velha que constitui o Pueblo Cuatro.
Temos, assim, uma convergência feminina que faz vingar a voz e a
força vital da mulher nesta peça, sobre tirania, arbitrariedade, hipo-
crisia. Nesse aspecto a peça evolui para se enquadrar em modernas
tendências da reescrita de Antígona como uma afirmação mais que
feminina – feminista9.
O que, aparentemente, constitui uma peça num só acto, respeita
o ritmo da peça sofocliana. Não há intervenções corais a separar
episódios, mas quatro momentos de silêncio que, a meu ver, des-
empenham esse papel. Precisamente, a intervenção da Jueza Cuarta
e o universo feminino e de afectos familiars revividos, que se abre
no diálogo entre Antígona e a juíza, provocam uma espécie de
8 Esta leitura, fundamentada e extremamente lúcida da Antígona de Sófocles é da autoria do teólogo Bultmann (1936) e determinou a compreensão da peça-
9 Rawlinson (2014) 101-123.
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insurreição entre o povo que, finalmente, proclama em uníssono
a necessidade de quebrar silêncios na tirania, seguindo o grito da
velha. Cai o silêncio, um silêncio longo, pesado, revelador, quebrado
por um discurso hipócrita de Creonte, que se não contém mais,
vendo o julgamento de Antígona tomar um perigoso rumo.
O rei propõe o que sabe ser impossível: que Antígona se dê como
culpada e assim será absolvida por Creonte – mas sem exéquias para
Polinices. A resposta final de Antígona destaca-se, pelo seu próprio
tom, e distancia-se para um plano do universal. Antígona já não
trata Creonte por ‘tio’, mas por ‘rei’, recuperando a eterna imagem
do confronto entre as duas figuras. De si mesma fala na terceira
pessoa, abrindo assim ao público, espectador do julgamento, um
grande plano temporal, que vai desde Atenas aos nossos dias e se
abre a futuras reescritas (p. 121):
Entonces no hay conciliación possible, rey Creonte. Antígona
actúa por deberes y por principios, tú por mantener una imagen
determinada. Antígona actúa como persona justa y como ciuda-
dana, tú solo como gobernante injusto y como tirano. Antígona
actua por amor a su hermano, tú por conserver el poder. Antígona
jamás pactará nada contigo, rey Creonte.
Estas são as palavras que permanecem a ecoar no desfecho da
peça: um julgamento em aberto, num impasse entre Antígona e
Creonte. Pociña recupera a imagem do conflito inultrapassável, que
remonta à leitura de Hegel e de Goethe, mas esse conflito é entre
pessoas e não entre princípios simétricos. A justiça e os afectos
permanecem do lado feminino; Creonte é o tirano. E o julgamento
permanence em aberto ao futuro: trata-se do todo dos ‘julgamentos’-
-releituras de Antígona, havidos e a haver – daí o futuro ‘pactará’ e
o distanciamento de Antígona em relação a si mesma, operado pela
utilização da terceira pessoa.
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Três vozes no feminino: a de Medeia, de Safo e de Antígona. As
duas primeiras estão marcadas pelo signo do intimismo e da riqueza
e tensão interior do coração feminino; a terceira abre-se ao espaço
público, unindo família, afectos, ao sentido de justiça e acção na
pólis. Constituem, assim, uma verdadeira trilogia de vozes no femi-
nino que se completa em si mesma.
A última voz, como se disse, é a de Antígona, que ecoa, temporal/
intemporal, e se oferece a quem recolha o seu mito para o recriar,
nele projectando tensões e interrogações que marcam a historicidade
de quem reescreve e quem julga. É esta a força do mito, que se cons-
titui em interpelação constante, do passado ao presente, do passado
ao futuro, nas diversas formas que a comunidade vai assumindo.
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João Corrêa-Cardoso Doutorado em Linguística Portuguesa pela Faculdade de
Letras da Universidade de Coimbra, é Professor Auxiliar de Linguística Portuguesa
nessa instituição. A 26 de Julho de 1999, no Instituto de Letras da UERJ, Rio de
Janeiro – Brasil, foi-lhe atribuída a Medalha de Mérito Lingüístico e Filológico Oskar
Nobiling e o respectivo Diploma pela Sociedade Brasileira de Língua e Literatura. Da
sua carreira docente salienta-se a leccionação em Seminários de Romanística das
Universidades alemãs de Hamburg, de Göttingen, de Kiel, de Leipzig, de Freiburg
e de Jena. Tem publicado diversos trabalhos, sobretudo na área da Sociolinguística
– nas vertentes rural, urbana e escolar –, e ainda na área da Dialectologia, de que
se poderão destacar os seguintes títulos: O Dialecto Misto de Deilão (1995), Estudo
de sociolinguística escolar em torno das atitudes das crianças de Maputo (I) (1998),
Sociolinguística rural. A freguesia de Almalaguês. (1999), Wo meine Heimat ist,
weiss ich nicht genau: aspectos da construção linguística da identidade em crianças
portuguesas residentes em duas cidades alemãs (2000), Sociolinguística urbana de
contacto. O português falado e escrito no Reino Unido (2004).
Maria do Céu Fialho Professora Catedrática na Faculdade de Letras da Universidade
de Coimbra. Os seus interesses de investigação centram-se nos Estudos Literários,
Línguas e Literaturas Clássicas e sua Receção. Neste âmbito publicou vários trabalhos,
dos quais se destacam: «Coimbra na obra de Vergílio Ferreira», Boletim de Estudos
Clássicos. Coimbra. 41 (2004) 63-70; “Mito, narrativa e memória” in Que fazer com
este património? Em memória de Victor Jabouille. Lisboa, 2004; Introd. e tradução
de “Rei Édipo, Traquínias, Electra, Édipo em Colono” in: M. H. Rocha Pereira, J. R.
Ferreira, M. C. Fialho, Sófocles. Tragédias, introd. trad., Coimbra Capital da Cultura,
2003; “Sob o olhar de Medeia de Fiama Hasse Pais Brandão” in Medea: versiones
de un mito desde Grecia hasta hoy. Granada, 2003:1. P. 1125-1135; “Cidadania
e celebração na Grécia Antiga” in Europa em mutação. Cidadania. Identidades.
Diversidade cultural, coord. M. M. Tavares Ribeiro. Coimbra, 2003, P. 13-30;
“Sófocles, Rei Édipo”, introd. trad., Madrid-Conímbriga, 2003.
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