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  • 7/29/2019 a-luz-e-o-cego

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    A LUZ E O CEGO - EVGEN BAVCAR

    Quero sublimar a relao entre o verbo e a imagem para iniciar uma reflexomais particularizada. De incio, preciso constatar que no se pode separar essaparceria que eles formam, uma vez que a imagem condiciona o texto e vice-versa.

    Ou por outra, logo que ns no dispomos mais de imagens, o verbo quem nosfornece novas possibilidades.

    Para tanto, basta evocar os textos bblicos em que se apoiaram, por exemplo,os pintores, para conceber a imagem fsica de uma personagem ou de um evento.

    A importncia do texto nos parece particularmente importante no caso do Moissde Michelangelo. Os cornos de sua cabea vm de um certo erro de traduo notexto que serviu de suporte figura. Que Michelangelo jamais viu Moiss, evidente: foi o espao do verbo que lhe forneceu a imagem mental em seguidatrabalhada na pedra. Podem ser encontrados casos semelhantes envolvendooutras imagens da Histria da Arte a que se referem a Bblia: figuras de Jesus, daVirgem Maria, ou esculturas representando J, David. Desta perspectiva, o artista

    sobretudo o mediador entre as trevas do verbo, do fundo de sua cegueira, e aevidncia concreta da imagem, tal como realizada na Arte atravs de um ou deoutro suporte material.

    O verbo , ento, cego: ele nos fala do lugar em que surge uma gneseprimeira da imagem. desse modo que, se queremos ir s origens das imagensvisuais, ns chegamos forosamente ao espao do invisvel, este do verbo, e noite que precede o dia das figuras conhecveis. Podemos assim parafrasear SoJoo, dizendo: no princpio era o verbo, o qual se torna imagem, a carne dovisvel, o visvel em carne e osso, o substrato cognitivo do olhar.

    As longas polmicas em torno da iconofilia e do iconoclasmo so muitoreveladoras desta relao entre o verbo e a imagem. E a dialtica entre esses dois

    termos persiste incansvel: ope ao visvel o invisvel, imagem a palavra ereciprocamente.

    No podemos conceber uma arqueologia da luz sem considerar a escurido, esem elucidar o fato de que a imagem no apenas alguma coisa da ordem dovisual, mas pressupe, igualmente, a imagem de obscuridade ou das trevas.

    este espao das trevas que ns encontramos na primeira manh do mundo,pois Deus povoou estes lugares antes de se dar conta de que a luz era boa, comonos diz o texto do Gneses. Os anjos revoltados e, desse modo, cados,regressam s trevas e se tornam em conseqncia os lucferes, isto , osportadores da luz; sats so exilados nas origens, pois eles no quiseramcompreender a bondade da luz. Paradoxalmente, essa danao transforma-se noretorno s primeiras fontes da clareira do mundo, seu bero, situado no obscurodas origens.

    As trevas condicionam a instaurao da luz, so sua pr-imagem lgica eindispensvel na ordem das coisas visveis. A obscuridade permanece um estadolatente, a saber, a luz em potncia de devir e de ser.

    O quadrado negro de Malevitch ilustra perfeitamente bem esse processo decriao. Este quadrado simboliza a consumao de materiais at um ponto em

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    que o retorno s trevas se impe, e da a necessidade de um esquecimentoesttico que permitir a superao deste estgio. Voltar para trs do quadradonegro ou ir alm dele significa sobretudo recusar a positividade dos modelosrepetitivos e se compromissar com o negativo.

    A significao do quadrado negro de Malevitch est talvez expressa na frase de

    Kafka: o que positivo est dado, ento preciso descobrir o negativo. Destemodo, o negativo nos fornecido j pela obscuridade do momento vivido, isto ,pela experincia do existir no cotidiano, experincia tampouco alcanada, nem naclareira da memria que leva ao passado, nem naquela outra que cria uma luz deantecipao sobre o futuro.

    Com a superfcie negra, o objeto pictural antecipa a possibilidade de umasuperao esttica, cnscia de que somente um tnue vislumbre messinico lhe conferido at o ponto de uma frgil fora de redeno, como diria Benjamin. Osalvamento do sujeito criador permanece possvel enquanto ele pode se colocarem face do obscuro, fazendo das trevas o seu objeto, o seu complemento, e noum inimigo a ser excludo do processo de criao. Notemos que as reflexes de

    Adorno sobre a relao sujeito-objeto podem nos dar alguns meios lgicos paracompreender isto. Consideramos a tentativa de Malevitch, sobretudo como adefesa da subjetividade contra a objetificao exagerada na arte, que vai at aperda do sujeito criador. O quadrado negro , assim, um ltimo grito contra omundo em que tudo se torna intercambivel, mesmo o estatuto do sujeito. Dito deoutra maneira, aquela figura d ainda a esperana de um olhar para alm do banalem que tudo se nivela.

    O quadrado negro se torna o contedo sedimentado de uma forma pictural quepermaneceu fiel lgica dos materiais disponveis ao pintor. preciso ir, agora,para trs do quadrado negro, concebendo as trevas no somente como superfcie,mas sobretudo como um volume, como um espao existencial em que podem

    ainda aparecer algumas estrelas redentoras brilhando por sobre o novo. Ir atrsdesta cortina significa ao mesmo tempo aceitar uma outra Eurdice no Hades daexistncia; em termos diferentes, uma outra Eurdice, que anda nossa frente eno atrs, como rezava o mito. Nele, enxerg-la era perd-la de vista parasempre. Se somos obrigados a imagin-la andando atrs, somos ainda osescravos de uma memria fsica constrangida fatalidade da perda do objeto e,assim, morte do sujeito.

    Deve-se ainda crer na cegueira do verbo sendo ele representado pelo silnciodos passos de Eurdice atrs de ns e acreditar de olhos fechados na suaimagem. Atravs desse expediente, ns podemos escapar tentao fatdica quenos ameaa, da queda do mito do qual ns nos cramos liberados. Desta maneira,

    podemos superar a angstia diante da obscuridade do momento vivido, para, emseguida, ir ter com os outros espaos do possvel. A imagem que temos diante dens uma forma de pr-imagem, expresso de um frgil vislumbre de utopia, aqual suscita em ns a sada das trevas, lugar que nos legou a memria fsica, deuma beleza completa.

    Certamente, nada somos alm de intrpretes das obras do passado, pois sualuz pertenceu somente ao criador, logo, quele que dela tinha o saber absoluto.Devemos diferenciar a memria fsica da memria psquica, a qual se aproxima

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    mais da obra enquanto evento. Interpretando este evento, ns no possumosseno o seu conhecimento relativo.

    O carter repetitivo das obras no entra em nenhum caso na lgica da luz comocontedo sedimentado na criao. no corao das trevas que pode surgir oastro salvador e, conseqentemente, dar sentido a uma nova luz por trs das

    trevas. Se esta fora da salvao nos lampeja frgil, como quer Benjamin, ela ,segundo ele, prpria de cada gerao. Por essa razo se devem abandonar asiluminaes positivas concebidas como a continuidade no diferenciada doseventos artsticos.

    Graas inveno da cmara obscura, podemos compreender melhor ofenmeno da imagem antecipada pela negatividade, na obscuridade. Esta ltima,ao menos em aparncia, se torna controlvel pelo olhar do homem para se podercriar a imagem como reflexo do mundo exterior. Mas, na realidade, no se trata doreflexo, mesmo quando a fotografia colorida. , antes, apenas uma forma deexpresso visual do real inatingvel. ver uma iluso do identificar-se entre aobjetividade material e o seu sujeito.

    Com a fotografia enquanto imagem, tem incio a perda da aura segundo aperspectiva de Benjamin. Uma foto a imagem de alguma coisa j morta epermite apenas uma vaga iluso a respeito da identificao do aqui e agora. Noentanto, a cmara obscura nos permite compreender a obscuridade como tbuarasa, como esquecimento esttico por excelncia, em relao s imagens que nspodemos criar. Com a cmara obscura, o homem encontra um equivalentetecnolgico para a experincia deste esquecimento. Assim, seria possvel encararmais radicalmente esta questo na pintura, onde esta oposio claro/escuro searticula de maneira mais orgnica e natural.

    A cmara obscura um mtodo efmero do apagar da luz para que esta possamelhor se fazer valer. Na minha prpria experincia, o aparelho fotogrfico no

    mais do que um acessrio tcnico com o qual eu tento exprimir minha situaoexistencial.A fotografia me assegura tambm uma nova possibilidade de interpretao do

    mito grego de Eros e Psiqu, sobretudo sua obscuridade original, antes daseparao provocada pelo olhar incrdulo de Psiqu. J neste mito, a viso fsicafunciona como expresso da distncia, no sentido de uma privao do objeto dedesejo.

    O olhar fsico que quer ver no aquele olhar da verdade, pois a presena deum objeto s pode ser confirmada pelo toque fsico. Por essa razo, o tatopermanece o nico rgo da verdade. Poder-se-ia defini-lo como um olharchegado, ou encostado, aquele que no provoca ainda a separao inelutvel

    entre o sujeito e o objeto do conhecimento. No nos resta seno examinar estaseparao, a fim de que o pensamento permanea o nico princpio verificador deuma possvel verdade. O toque tctil continua sendo o sentido da verdade, dadoque ele no pode negar a materialidade das coisas. Ele no pode confundir aimagem com o seu substrato material.

    Em outras palavras, a proximidade tctil o mais seguro sinal de umaexistncia real. A liberao da imagem fsica da sua representao interior abretodas as possibilidades de imagens-clichs que, como tais, podem se justificar por

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    elas mesmas. A abundncia dessas imagens no mundo moderno forma umapercepo abstrata das coisas que freqentemente no existem mais por elasmesmas, mas somente atravs das imagens. Hoje, por exemplo, a realidade domundo torna-se mais televisiva, mais distante do que jamais.

    Quanto mais ns iluminamos a superfcie de nossa realidade cotidiana, mais

    ns obscurecemos os beros possveis de uma outra luz. E igualmente verdadeque quanto mais se desenvolve o mundo visual, mais extenso tambm fica omundo invisvel. Mas, uma vez que a abundncia da imagem-clich desprovidade qualquer substrato subjetivo, ela destri no nosso cotidiano a presena real dascoisas, e sua representao de nossa interioridade. Ns no percebemos seno ailuminao, sem poder ver a luz que ligada estreitamente nossa possibilidadecognitiva, isto , ao nosso esprito. Este ltimo s pode conceber em ns o claro-escuro e, pela analogia, compreender os fenmenos exteriores sem que o peso datecnologia da imagem ofenda as nossas percepes.

    No se percebe nada se no se pode formular uma linguagem, e enxerga-se saquilo que se sabe. Os limites da nossa viso so assim semelhantes queles da

    lngua. A imagem-clich a expresso visual do empobrecimento da imagem; eisto at mesmo na forma contempornea da sua economia. assim que se podecompreender o banal visual e a ausncia de imagem, que vo para alm destarepetio do dj vu, sob os auspcios da ideologia da novidade.

    Devemos tambm nos dar conta de que a proliferao de imagens causaprejuzo narrao. O rdio, por exemplo, no tem nunca o mesmo impacto que ateleviso. No entanto, estas duas mdias modernas esto submetidas mesmaeconomia de linguagem. O real que ns percebemos pela televiso torna-se,deste modo, uma superfcie autnoma carregando nela o esquecimento de seusubstrato, assim como o apagamento do sujeito ainda capaz de umarepresentao interior. Para pensar ainda as imagens, importa encontrar a marca

    do sujeito para no se chegar ao simulacro como a nica realidade plausvel.Uma nova arqueologia da luz nos permitiria encontrar o olhar interior, devido oposio entre memria psquica e memria fsica at mesmo tecnolgica mastambm encontrar a marca do sujeito, para instaurar as imagens que capaz deassimilar. De fato no se enxerga nada se no se est em condies de criar umarepresentao interior relativa s coisas que se percebem, deixando de arruin-la,neste mesmo ato, por uma iluminao consumidora. Essas obras podero existirpara ns atravs de aberturas por vezes frgeis de uma memria que se defendeou que se resiste s vises preconcebidas. Desta sorte, as imagens da televisopodem elas tambm resistir ao fato de nada serem alm de clichs. Mas elas nodevem nos distanciar das coisas para nos dar a iluso de uma falsa proximidade.

    Essas imagens televisivas no devem sequer existir suprimindo outrasexistncias, mais materiais e mais concretas.No meu trabalho de fotgrafo, compondo a luz num espao obscuro concebido

    como volume, sou consciente da separao do mundo do verbo daquele daimagem que eu quero reconciliar, ficando fiel ao iconfilo exterior que eu era, e aoiconfilo interior em que me transformei.

    Posso dizer que nunca peguei nada em fotografia. Pegar em foto umaconstatao vlida para os outros, que me vem como fotgrafo. Na realidade, eu

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    tentei sobretudo fazer valer uma imagem mental convertendo-se em pelcula. Istoque eu fotografo, os outros no podem faz-lo, e reciprocamente.

    Situando-me no ponto zero da fotografia, eu devo refletir novamente sobre umasignificao apropriada da cmara obscura, da qual eu tenho a experinciamaterial em absoluto. Se as minhas imagens existem para mim atravs da

    descrio dos outros, isto no me impede em nada a possibilidade de viv-las pelaatividade mental. Elas existem mais para mim quanto mais elas possam secomunicar tambm com os outros.

    Talvez Filostrato tenha visto a galeria de Npoles; todavia, pelo seu texto,podemos imagin-la. As pessoas que olham diretamente as minhas fotos me doa possibilidade de me assegurar da realidade materializada dos meus atosmentais. Por essa razo, eu me considero um artista conceitual sempre obrigado apr-imaginar a imagem sobre a pelcula. O aparelho fotogrfico no pode pensarpor mim.

    Evgen Bavcar do utor em Fil os of ia da Esttic a pela Un ivers idade de Paris,

    f i lsofo, fo tgrafo e terico da Arte. Este texto foi ex trado do livro O po ntozero d a fotog raf ia de Evgen Bavcar, pub l icado pela Very Special Arts d oBrasi l (tel. 21 2279-8116) e originalmente publicado no livroArtepens amento , editado pela Editora Companh ia das Letras, em 1994.