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Universidade Federal do Rio de Janeiro Museu Nacional Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social Flávia Freire Dalmaso A MAGIA EM JACMEL UMA LEITURA CRÍTICA DA LITERATURA SOBRE O VODU HAITIANO À LUZ DE UMA EXPERIÊNCIA ETNOGRÁFICA Rio de Janeiro 2009

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Universidade Federal do Rio de Janeiro

Museu Nacional

Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social

Flávia Freire Dalmaso

A MAGIA EM JACMEL

UMA LEITURA CRÍTICA DA LITERATURA

SOBRE O VODU HAITIANO

À LUZ DE UMA EXPERIÊNCIA

ETNOGRÁFICA

Rio de Janeiro 2009

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A magia em Jacmel: uma leitura crítica da literatura sobre o Vodu haitiano à luz de uma experiência etnográfica

Flávia Freire Dalmaso

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social (PPGAS) do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Antropologia Social. Orientador: Prof. Dr. Federico Guillermo Neiburg

Rio de Janeiro Março / 2009

Dalmaso, Flávia F. A magia em Jacmel: uma leitura crítica da literatura sobre o Vodu haitiano

à luz de uma experiência etnográfica/ Flávia F. Dalmaso. Rio de Janeiro, 2009.

108 p. Dissertação (mestrado): UFRJ/ Museu Nacional/ Programa de Pós-

Graduação em Antropologia Social, 2009. Orientador: Federico Guillermo Neiburg 1-Magia. 2-Jacmel 3-Vodu. I. Neiburg, Federico Guillermo (Orient.). II.

Universidade Federal do Rio de Janeiro, Museu Nacional, Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social. III. Título.

A magia em Jacmel: uma leitura crítica da literatura sobre o Vodu haitiano à luz de uma experiência etnográfica

Flávia Freire Dalmaso

Dissertação de mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro – PPGAS/MN/ UFRJ como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Antropologia Social. Aprovada por: _______________________________________________________________ Prof. Dr. Federico Guillermo Neiburg – Presidente da Banca examinadora _______________________________________________________________ Prof. Dr. Carlos Fausto _______________________________________________________________ Prof. Dr. Omar Ribeiro Thomaz _______________________________________________________________ Prof.ª Drª Lygia Sigaud _______________________________________________________________ Prof.ª Dr.ª Diana Nogueira

Rio de Janeiro Março / 2009

Resumo

A MAGIA EM JACMEL

UMA LEITURA CRÍTICA DA LITERATURA SOBRE O VODU HAITIANO

À LUZ DE UMA EXPERIÊNCIA ETNOGRÁFICA

Flávia Freire Dalmaso

Orientador: Prof. Dr. Federico G. Neiburg

Resumo da dissertação submetida ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia

Social / Museu Nacional / Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte

dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Antropologia.

Esta dissertação tem como objetivo a construção de um diálogo critico com a literatura

acadêmica sobre o Vodu haitiano à luz da experiência etnográfica realizada na cidade de

Jacmel, no Haiti. Trata-se de contrastar o campo discursivo que organiza a literatura

com descrições etnográficas que revelam as formas pelas quais a magia, associada ou

não explicitamente ao vodu, aparecia na vida cotidiana das pessoas com as quais eu

convivi. A partir destas observações procuro evidenciar os distanciamentos e os

deslocamentos de sentido que surgem entre o Vodu, tal como tratado pela literatura

acadêmica e o vodu que encontrei em Jacmel.

Palavras-chave: Magia, vodu, Jacmel.

Abstract

A MAGIA EM JACMEL

UMA LEITURA CRÍTICA DA LITERATURA SOBRE O VODU HAITIANO

À LUZ DE UMA EXPERIÊNCIA ETNOGRÁFICA

Flávia Freire Dalmaso

Orientador: Prof. Dr. Federico G. Neiburg

Resumo da dissertação submetida ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia

Social / Museu Nacional / Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte

dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Antropologia.

The purpose of this dissertation is to construct a critical dialogue with the academic

literature concerning the Haitian Vodou, using the ethnographic experience conducted

in the city of Jacmel, Haiti. It is about contrasting the discursive field that organizes the

literature with ethnographic descriptions that reveal the forms by which the magic,

explicit associated or not with the vodou, appears in the everyday life of the people

whom I lived together. Starting from these observations I intent to evidence the

separations and the displacements of meaning that emerge between the Vodou, as it is

treated by the academic literature and the vodou that I met in Jacmel.

Key-words: Magic, vodou, Jacmel.

Agradecimentos

Gostaria de agradecer ao meu orientador, Federico Neiburg, pelo imenso carinho,

presença, dedicação, esforço e amizade ao longo de todo o processo que deu origem a

dissertação. Aos profs. Carlos Fausto e Omar Ribeiro Thomaz por terem aceitado

participar da banca examinadora.

A minha mãe, pelo apoio incondicional, ao meu pai por ter me estimulado e me

ajudado a ter coragem para embarcar nesta aventura e ao meu irmão pelas piadas nas

horas de tensão.

Não poderia deixar de lembrar a atenção e as sugestões valiosas da professora

Lygia Sigaud e do professor Fernando Rabossi, quando esta dissertação era apenas um

“relato de viagem” e também a professora Renata Menezes pelas contribuições a esta

dissertação. Agradeço aos funcionários do PPGAS, da secretaria e da biblioteca, em

especial a Carla. A Carmen e ao Fabiano da Xerox.

Aos amigos que compartilharam comigo de perto os desafios e as emoções da pesquisa

no Haiti: José Renato, Felipe, Pedro e Natacha. Aos haitianos que conheci e com os

quais fiz novas amizades: Kattelie, Filomene, Lionel, William, Madame Étude,

Rodrigues e Merlande.

A Luana, Sylvia, Léo, Orlando, André, Rafael, Márcia, Karla, Ana Izabel, Marta, Jana,

Lili, Simone, Ana, Brunner, Mário, Raquel, Rafinha, Jonas e Lígia, pessoas queridas

que me acompanharam com gestos de carinho e palavras atenciosas em diversos

momentos. Ao Ricardo, meu amor, pela paciência e compreensão.

Por fim, gostaria de agradecer ao CNPq pelos 12 meses de bolsa concedida.

Para Theo

Sumário

Mapa do Haiti ............................................................................................................... 10

Glossário ....................................................................................................................... 11

Introdução ..................................................................................................................... 12

Capítulo 1 – Imagens do Vodu na literatura acadêmica ............................................... 26

Capítulo 2 – A magia em Jacmel .................................................................................. 65

Considerações finais ................................................................................................... 103

Anexo ......................................................................................................................... 105

Referências Bibliográficas .......................................................................................... 106

10

Glossário

Blanc: branco, estrangeiro (gringo)

Boko: feiticeiro.

Bondie: Bom Deus

Clairin: rum branco

Maji: magia

Mambô: feminino de ugã.

Mistike: mágico ou místico

Peristilo: poste que fica localizado no centro dos ufós, em torno do qual se realizam as

cerimônias

Ugã: chefe de um ufó

Ufó: templo vodu. Lugar onde se realizam cerimônias e rituais.

Voduisante: pessoa que pertence ao vodu.

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Introdução

Apresentação

O objetivo desta dissertação é estabelecer um diálogo entre a literatura acadêmica sobre

o Vodu haitiano e alguns dados etnográficos, fruto de dois meses de pesquisa

desenvolvida em Jacmel, cidade localizada no litoral sul do Haiti. A dissertação consiste

em um esforço onde, por um lado, procuro apresentar um esboço do “campo discursivo”

que organiza as obras a serem analisadas e, por outro, as maneiras pelas quais a magia,

associada ou não explicitamente ao vodu, se fazia presente na vida cotidiana das pessoas

com as quais eu convivi em Jacmel.

Os autores e as obras escolhidas são representativos da literatura acadêmica

sobre Vodu na medida em que a partir deles podemos delimitar um conjunto de

enunciados que estrutura uma rede de sentidos de onde tem se tornado possível pensar o

Vodu. Dentre os trabalhos que serão examinados estão Life in Haitian Valley (1937) de

Melville J. Herskovits, e Le Vaudou Haïtien (1958) de Alfred Métraux, dois

pesquisadores, cujos livros se baseiam em etnografia feita no Haiti e que se

transformaram em referências para todos aqueles que escreveram posteriormente sobre

Vodu. Em seguida temos o livro Ainsi Parla l’Oncle (1928) de Jean Price-Mars, que

representa um esforço pioneiro no sentido de incluir o Vodu como objeto de estudo

dentro dos parâmetros científicos da época e, também, por associá-lo a “cultura

nacional” haitiana. Junto a ele temos o livro Dieu dans le Vaudou Haitïen (1975), de

Laënnec Hurbon, sociólogo, pesquisador do Centre National de la Recherche

Scientifique (CNRS), em Paris, e professor da Universidade Quisqueya de Porto

Príncipe. Hurbon publicou vários outros trabalhos a respeito do Vodu e é atualmente

uma autoridade reconhecida sobre o assunto. Por fim, chegamos aos livros de Karen

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McCarthy Brown, Mama Lola: A Vodou Priestess in Brooklyn (1991) e de Karen E.

Richman, Migration and Voudou (2005), duas autoras norte-americanas cujas obras

dizem respeito a temática da imigração de haitianos para os EUA. Ao longo de suas

pesquisas elas acompanharam a vida de migrantes onde concentraram a maior parte de

suas etnografias, embora tenham feito trabalho de campo também no Haiti1.

Os contrastes e os deslocamentos de sentido, às vezes mais claros, às vezes mais

sutis, encontrados entre as maneiras de tratar o Vodu por estas obras e as formas pela

qual ele aparecia na vida dos meus interlocutores no campo serviram como ponto de

partida para construir o objeto da dissertação. Assim, tanto a literatura acadêmica

quanto a pesquisa de campo foram essenciais para o desenvolvimento da pesquisa, que

somente se tornou possível neste encontro entre campo e literatura.

Tais contrastes mereceram, nesta dissertação, a adoção de uma convenção por

meio da qual distinguimos o Vodu com V, da literatura acadêmica, do vodu com v, que

corresponde a certas experiências sociais vividas cotidianamente pelos meus

interlocutores. Este vodu, com v, se apresentava como um universo de objetos, falas e

ações que faziam parte daquilo que as pessoas geralmente se reportavam utilizando os

termos maji2 ou mistike, distanciando-se, por vezes, das questões trazidas pelo conjunto

das obras discutidas aqui, conforme veremos posteriormente.

A literatura acadêmica e a etnografia: a construção do diálogo

Ao recorrer à literatura sobre Vodu uma das primeiras coisas que percebi foi que este

aparecia sempre caracterizado como uma “religião”, conformada por um corpo de

doutrinas e rituais, e que a magia (tradução do termo maji) com a qual os haitianos

1 Todos os anos que estão entre parênteses correspondem, aqui, a data de publicação dos livros. 2 Todas as palavras em creóle haitiano estão em itálico e seus significados podem ser encontrados no glossário na pág. 11 ou em notas explicativas quando se tratarem de palavras que não se repetem ou nomes de espíritos.

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lidam no dia a dia um assunto que surgia freqüentemente nas conversas com os meus

interlocutores, era apresentada como uma dimensão do Vodu..

Ocorre que em Jacmel, a magia não era apenas reconhecida como uma prática

daqueles que se identificavam e eram identificados como voduisantes. A magia,

traduzida em creóle pelos termos maji ou mistike3 também ultrapassava esta simples

categorização, na medida em que compreendia toda uma gama de objetos, ações ou

experiências onde o vodu podia não estar explicitamente em questão.

Por conta disso a dissertação está dividida em duas partes. Na primeira procuro

mostrar um conjunto de tópicos que organizam a literatura acadêmica sobre Vodu. Com

base no argumento de Foucault (1971), segundo o qual um conjunto de enunciados pode

ser agrupado na medida em que se referem a um único e mesmo objeto, tento mapear o

“campo discursivo” que tem como “referencial” o Vodu. Isso deixa evidente que a

minha intenção, (coerente com as possibilidades do tempo disponível para a elaboração

deste trabalho) não tenha sido fazer uma leitura exaustiva desta literatura.

Adicionando o fator de que um livro nunca se configura em uma obra isolada de

todas as outras, mas sim um ponto, em uma certa rede textual, as perguntas seriam:

Quais assuntos são trazidos à tona quando o objeto da narrativa é o Vodu? O que

significa, afinal, escrever sobre Vodu? Quais os discursos se tornaram possíveis para os

autores considerados? Neste sentido, veremos como escrever sobre Vodu é, ao mesmo

tempo, escrever sobre outras grandes discussões envolvidas com o Haiti e com a sua

história.

Sendo assim, a literatura acadêmica que será apresentada na primeira parte está

organizada em torno de um conjunto de enunciados a partir dos quais se torna possível

3 Os dois termos apareciam como sinônimos. No entanto, maji era mais freqüentemente utilizado que mistike, conforme veremos no capítulo dois. Ao longo da dissertação com o objetivo de evitar repetições excessivas utilizarei na maior parte das vezes apenas o termo maji.

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pensar e descrever o Vodu. O ”campo discursivo” que toma o Vodu como referência se

estrutura basicamente ao redor de cinco questões.4

Em primeiro lugar, o Vodu é pensado em termos de relações metonímicas e

metafóricas com Haiti.5 Estabelecendo um paralelo entre o argumento desenvolvido por

Neiburg e a maneira encontrada pelos autores que escrevem sobre Vodu para falar dele,

podemos dizer que, assim como em um determinado momento da história da Argentina

“explicar o peronismo foi sinônimo de explicar a Argentina” (Neiburg 1997: 14), o

Vodu é visto pelos autores como algo por meio do qual a nação haitiana pode ser

revelada.

Além desta relação propriamente metonímica, onde escrever sobre Vodu é

escrever sobre a nação haitiana, como se fosse possível explicar e entender a totalidade

(a nação) pela parte (o Vodu), o argumento de alguns autores aponta na direção de que

poderíamos encontrar no Vodu uma linguagem metafórica onde estariam expressos os

dilemas haitianos e as dificuldades sociais e econômicas enfrentadas pela população do

país. Estas dificuldades, como a miséria, a fome, uma sociedade dividida entre uma elite

minoritária e o resto do povo explorado dentre outras, apareceriam, assim por meio de

metáforas nos cantos, nas possessões, nos rituais,.etc.

A “natureza” da sociedade haitiana, pensada em termos das dicotomias entre

barbárie x civilização e elite x massa, se constitui em um segundo tópico a partir do qual

a literatura acadêmica sobre o Vodu se organiza. De uma maneira mais geral, a

constatação da existência destas dicotomias proporcionam discussões acerca das

4 Cabe ressaltar que além destes cinco tópicos que serão objeto de atenção no primeiro capítulo, as discussões que dizem respeito às relações entre Vodu e política se constituem em uma questão central na literatura sobre a histórianacional do Haiti. Freqüentemente associado por esta literatura ao próprio nascimento e construção da nação, por meio da cerimônia de Bois Caïman, o vodu tem aparecido na vida política do Haiti desde a independência ocorrida em 1804 até o governo de Jean-Bertrand Aristide, passando pela ditadura duvalierista. Algumas destas relações entre Vodu e política podem ser encontradas em Dubois (2003), Hoffman (1990) e Trouillot (1986 e 1997). Sobre a presença do vodu na história da Revolução Haitiana, lembro ainda o romance O Reino deste Mundo, de Alejo Carpentier.

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imagens e dos estereótipos ligados ao Vodu. Autores como Hurbon, por exemplo,

relatam como ao longo da história ele foi associado à barbárie, à selvageria e ao atraso,

em oposição àquilo que era considerado pelos estrangeiros e pela elite intelectual do

país como civilizado. Assim, o Vodu é basicamente entendido como uma religião das

massas haitianas que possuem uma mentalidade supersticiosa, em oposição ao

catolicismo associado à elite e a civilização.

Hurbon e Price-Mars são aqueles que apresentam formulações mais assertivas

sobre esta natureza dicotômica da sociedade haitiana. De certa forma, seus trabalhos são

uma resposta aos estereótipos ligados ao Vodu, na medida em que não apenas constatam

e apontam para a sua existência, mas também possuem argumentos que procuram

desfazer estas imagens negativas e prescrever algumas maneiras de agir frente aos

estigmas que pesam sobre o Vodu e, por conseguinte, sobre o Haiti e sobre os haitianos.

Em terceiro lugar, o Vodu é visto através de uma lente funcionalista, ou seja, ele

é considerado em termos das funções que desempenharia na vida dos haitianos.

Geralmente, estas funções são apontadas tendo em vista o contexto de analfabetismo,

miséria, fome, falta de médicos e hospitais, dentre outras coisas. Ou seja, é basicamente

a partir da constatação desta “ausência” de recursos que o Vodu começa a ser visto

como algo que pode suprir, pelo menos em parte, estas carências. No entanto, nem

sempre o que está em jogo nas reflexões sobre os papéis que teria o Vodu aparece

ligado a uma supressão de carências. Desta forma, ele pode ser visto como algo que

fortalece os laços de solidariedade de um grupo ou, também, que proporciona

divertimento e segurança frente a um mundo caótico.

Um quarto tópico que organiza o “campo discursivo” a respeito do Vodu, diz

respeito às sua identificação ou não com uma autêntica religião. Enquanto alguns

autores, como Hurbon e Price-Mars, parecem estar mais preocupados em apresentar

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características ou elementos que justifiquem que o Vodu seja tratado como religião,

outros já partem deste pressuposto, procurando adjetivos que o qualifiquem. Nesse

sentido, veremos como o adjetivo “popular” parece ser o mais utilizado para

acompanhar o substantivo religião quando se trata do Vodu. Por fim, em quinto e último

lugar escrever sobre Vodu parece obrigar a dizer alguma coisa a respeito da magia e da

feitiçaria. De maneira geral, elas são interpretadas pelos autores como práticas ligadas à

religião Vodu, ou seja como um dos elementos que fazem parte de sua composição. A

magia pode aparecer qualificada como branca (inofensiva) ou negra (exclusivamente

para o mal e, por vezes, chamada também feitiçaria). De qualquer forma, em todos os

autores ela aparece como uma das maneiras pelas quais os voduisantes explicam os

males e infortúnios que acontecem nas suas vidas.

Se o Vodu tal como foi descrito pela literatura acadêmica engloba a magia, na

minha experiência de campo não era assim. Neste caso, duas coisas pareciam ocorrer.

Primeiramente, o uso do termo maji estava referenciado ao vodu, tal como era vivido

cotidianamente pelas pessoas. Veremos que em algumas situações a prática da magia

não era associada, pelo menos explicitamente, às práticas vodu, chegando mesmo a ter

negadas as suas possíveis relações com ele. Tudo isso faz com que a maji tenha um

caráter fluido, o que torna difícil uma interpretação onde ela seja vista apenas como

mais um elemento do Vodu. Por conta de todas as possibilidades e dimensões que

revela, a maji surge como alguma coisa capaz de mudar a própria percepção do que seja

o vodu.

Desta forma, a segunda parte da dissertação é dedicada àquilo que encontrei em

Jacmel enquanto (pelo menos em boa parte do tempo) procurava pelo Vodu. Pretendo

mostrar, a partir de exemplos etnográficos, algumas ações, objetos ou situações aos

quais as pessoas com quem convivi se referiam utilizando os termos maji ou mistike, e

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suas relações com o universo do vodu. Como veremos, maji e mistike podem ser um

meio de agir que tem como objetivo provocar mudanças em um determinado contexto,

restabelecer alguma situação anterior ou, ainda, obter proteção e sorte.

Sua prática é capaz de ocasionar de maneira intencional males a outras pessoas

como, por exemplo, doenças ou acidentes. Além disso, veremos como estes dois termos

são também utilizados simplesmente como um qualificativo para certas experiências,

objetos e ações. Assim, a maji em Jacmel pode ser, ao mesmo tempo, uma ação, o meio

pelo qual se age, e uma qualidade que nos informa sobre certos objetos ou ações. Em

outras palavras, maji e mistike são termos que possuem um amplo campo semântico, na

medida em que podem, assim como a idéia de mana analisada por Mauss e Hurbert

(2003), ser ao mesmo tempo um substantivo, um adjetivo e um verbo.

De acordo com o que havia assinalado anteriormente, o objeto da dissertação

nasceu justamente do encontro entre a experiência etnográfica e a literatura. Neste

sentido, o trabalho de campo revelou as maneiras pelas quais o vodu se fazia presente

em Jacmel. A convivência com este universo tornou possível a percepção de outros

sentidos, nuanças e sutilezas que fizeram com que o vodu ganhasse novas cores e

dimensões em relação à maneira pela qual foi pensado pela literatura acadêmica que

será aqui analisada.

O trabalho de campo em Jacmel

a) A chegada em Porto Príncipe

Olhando pela janela do avião parecia inacreditável. Do alto, um país inteiro se

apresentava. Depois de quase um ano de expectativas e de uma noite mal dormida,

finalmente poderíamos ver e sentir aquele lugar. É claro que já estávamos

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experimentando um gostinho de Haiti dentro do próprio avião, lotado de haitianos que

conversavam sem parar e possivelmente retornavam de outros lugares do Caribe, ou

mesmo do próprio Panamá, onde pegamos a conexão que nos levaria até Porto Príncipe.

Ao desembarcarmos no aeroporto, eis que surgiu diante de nós o país em terra firme: a

funcionária que queria tirar tudo de dentro da minha mala, um trânsito caótico, o

barulho constante das buzinas, as ruas em obras, o exército da ONU, o Palácio do

Governo, enfim a vida ordinária das pessoas de um determinado lugar, no qual eu

ficaria pelos próximos dois meses.

Não estava sozinha nesta aventura. Éramos uma equipe6. Embora o tempo de

permanência no campo não tenha sido o mesmo para todos7, o trabalho de campo foi

preparado e encarado coletivamente. Ainda no Rio de Janeiro, já estávamos envolvidos

com o aprendizado do creóle haitiano, cujas aulas eram ministradas na ONG Viva Rio

pela pesquisadora Daniela Bercovitch. Além das aulas, participamos de reuniões e

seminários promovidos pelo Núcleo de Cultura e Economia (NUCEC) onde discutíamos

textos sobre o Haiti e planejávamos as estratégias do campo que nos aguardava. Neste

contexto, vale lembrar a presença da professora Lygia Sigaud e dos professores

Fernando Rabossi e Louis Herns Marcelin, que participaram conosco de algumas

discussões. Louis Marcelin dirigia na época o recém-fundado Institute Interuniversitaire

de Recherche et Developement (INURED) em Porto Príncipe, que representou um outro

espaço de inserção no universo intelectual haitiano, fundamental para o

desenvolvimento do nosso projeto. 6 Fazia parte de uma equipe composta por mais seis pessoas, além de mim. Entre elas estavam Felipe Evangelista e Pedro Silveira, colegas da minha turma no mestrado do Museu Nacional/UFRJ, José Renato Baptista que cursa o doutorado na mesma instituição, Federico Neiburg, meu orientador e autor do projeto de pesquisa “Mercados e Moedas em Porto Príncipe (Haiti): uma etnografia no/do espaço internacional”, que tornou a viagem financeiramente possível, Natacha Nicaise, pesquisadora filiada ao NUCEC assim como todos nós, e William Jean, aluno do curso de graduação em ciências sociais da Universidade do Estado de Porto Príncipe. 7 Eu, Pedro e Felipe chegamos juntos, em março. José Renato já estava no Haiti desde o início de fevereiro e iria ficar lá até janeiro do ano seguinte. Federico e Natacha haviam chegado dias antes e partiram no final de abril.

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Foi no INURED que, durante os primeiros cinco dias de viagem, eu, Felipe e

Pedro permanecemos hospedados. A casa que abriga o instituto é incrível. Muito bonita,

com um jardim cheio de flores, espaçosa e, sobretudo, agradável. Aliás, a existência de

construções como esta em ruas que, por sua vez, são tão precárias foi uma das primeiras

coisas que me surpreendeu naquele país. Outra foi o nosso segundo café da manhã em

terras caribenhas: tutu de feijão com salsicha, bem reforçado, para garantir um bom dia

de trabalho.

b) A partida para Jacmel

O trajeto Porto Príncipe – Jacmel pode ser feito por terra e por ar. Há em Jacmel, um

pequeno aeroporto (uma espécie de pista de pouso) onde aviões com capacidade para

poucos passageiros podem aterrissar e decolar. O percurso por terra é bem cansativo e

pode ser feito de ônibus, vans ou tap taps8, que vão e voltam entre as estações de Porto

Príncipe e Jacmel. Estas estações são, para os estrangeiros como nós, uma verdadeira

loucura, com muita gente indo para vários lugares do país. As pessoas te puxam,

tentando te convencer a entrar em um ônibus ou outro, enfim, uma grande confusão. O

ônibus é muito apertado e se torna ainda mais porque os assentos são retirados do lugar

e puxados para o meio da passagem, de forma que os quatro lugares (dois de um lado e

dois de outro) são transformados em seis.

8 Tap tap é o nome pelo qual são chamadas caminhonetes ou caminhões pequenos cuja parte traseira é composta de uma estrutura de metal, coberta com uma espécie de lona. Os Tap taps se constituem em um meio de transporte bem comum no Haiti. São bem coloridos, muitos deles pintados com imagens de Jesus ou de espíritos vodu.

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Foto 1 – William Jean, que fez parte de nossa equipe

Foto 2 – Tap tap

Foto 3 – Rua de Jacmel Foto 4 – Mercado de Jacmel

Esta distribuição de lugares torna o trânsito das pessoas pelo ônibus muito difícil

e o ideal é que todos permaneçam sentados do início ao fim da viagem. Muita gente vai

comendo e a combinação de ônibus apertado, estrada tortuosa, calor e comida, não

costuma dar muito certo, de maneira que é bem comum (e encarado com muita

naturalidade pelos haitianos) as pessoas se sentirem enjoadas e passarem mal no

decorrer do percurso. Entretanto, o caminho entre as duas cidades é lindo e segue o

recorte das montanhas que as separam, permitindo a visualização de vales extensos e

profundos.

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Jacmel é a capital do Departamento Sudeste. Localizada ao sul do país) é uma

cidade que foi fundada no ano de 1698 e tem uma população estimada em 40.000

pessoas.9 Reconhecida por muitos haitianos com os quais conversei pela sua

tranqüilidade e beleza em oposição à capital, Porto Príncipe, Jacmel também tem

reputação de cidade turística, principalmente por causa das belíssimas praias que

compõem o seu litoral. Nossa casa em Jacmel era muito bonita. Como éramos uma

equipe, durante o primeiro mês ficou bastante cheia, pois além de mim, do Zé, do Felipe

e do Pedro, ainda se hospedaram Natacha, Federico e William. William faz graduação

em ciências sociais na Universidade do Estado, localizada em Porto Príncipe. Como fala

sete idiomas, dentre eles o português, recebeu a missão de nos dar aulas de creóle todos

os dias. Foi ótima a oportunidade de termos aulas lá e também de poder sair às ruas com

a sua companhia.

O trabalho coletivo fez com que o ritmo das nossas atividades fosse bem intenso

e proveitoso para todos. Diariamente acordávamos cedo, tínhamos aula e depois

passávamos o dia inteiro fora, geralmente divididos em duplas ou trios. Já de noitinha

fazíamos reuniões para contar e discutir o que havíamos visto e feito durante o dia para,

a partir daí, planejar os próximos passos. Por questões de afinidade de interesses, quase

sempre minha dupla era o José Renato. No início, tive uma grande dificuldade em sair

sozinha, pois chamava muita atenção (não tanto por ser mulher, mas por ser uma mulher

branca, muito diferente não só das outras mulheres, mas também de todos os outros

haitianos), além de não conhecer a cidade, fato que me deixava muito tensa e insegura.

A partir do segundo mês, com a casa mais vazia10, os interesses de cada um mais bem

9 Dados referentes ao ano de 2003. Wikipédia. 10 William, Federico e Natacha partiram no final de abril, Zé passou a fazer sua pesquisa em Porto Príncipe e Pedro concentrou seu trabalho em Lavoute, uma pequena vila encravada nas montanhas, no interior rural de Jacmel, o que o fez ficar por lá também.

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definidos, e conhecendo um pouco melhor a cidade, isso mudou bastante e passei a

andar com mais tranqüilidade nas ruas de Jacmel.

Apesar de não ter feito um investimento sistemático na literatura sobre Vodu

antes de desembarcar no Haiti em março de 2008, foi com a cabeça no Vodu enquanto

uma “religião”, que pisei no país pela primeira vez. Dito de outro modo, o

conhecimento sobre Vodu que eu carregava era o mesmo que porta o senso comum e

que contém em si toda uma gama de estereótipos que circulam fora do Haiti: do Vodu

como religião exótica, relacionada à prática de magia negra, e à feitura de zumbis,

dentre outras coisas. O diálogo com a literatura que essa dissertação propõe, envolve na

verdade, também, um diálogo (nem sempre explicito, é claro) com esse senso comum.

Durante todo o período em que estive em Jacmel visitei vários ufós, conheci

alguns ugãs e mambôs e outras pessoas declaradamente praticantes do vodu ou do

catolicismo. Embora tenha me esforçado, não consegui assistir a nenhuma cerimônia,

que naquele momento era o que eu mais queria. Mesmo querendo estudar o Vodu e, por

causa disso, procurando freqüentar lugares e conhecer pessoas que sabia serem

voduisantes, acabei também chegando (aliás, de formas muito curiosas e interessantes

como dados para a pesquisa, que serão explicitadas posteriormente) em pessoas

identificadas como protestantes. Enfim, foi neste quadro que se desenrolou a pesquisa e

que pude perceber a porosidade do vodu por meio da presença da maji na vida das

pessoas com as quais convivi ao longo destes dois meses. Esta porosidade podia ser

vista no cotidiano daquelas pessoas, não apenas nas suas falas, mas também nas suas

ações, extrapolando inclusive a confissão religiosa explícita de cada um.

Em um determinado momento, sabendo que seria quase impossível assistir a

uma cerimônia, parei de procurar. Havia um ufó que sempre freqüentava e também uma

loja especializada em produtos que são utilizados nos rituais vodu cuja dona,

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simpaticamente, aceitava dispor de seu tempo em longos bate-papos. O Vodu com o

qual eu havia planejado trabalhar decididamente não foi o que eu encontrei em Jacmel.

Experimentei um estranho sentimento de perplexidade, fruto do encontro entre o que eu

pensava que ia ver e o que eu vi: era como se o vodu estivesse em todos os lugares e ao

mesmo tempo em lugar nenhum. As referências estavam lá, mas as cerimônias que

imaginava, não.

Sei que não passei muito tempo em Jacmel e que, se tivesse passado mais, as

chances de assistir a alguma destas cerimônias aumentaria. Entretanto, o que quero

deixar claro aqui é que, na minha fantasia deveria existir algo que fosse mais freqüente,

como ocorre como a umbanda e com o candomblé no Brasil. Não houve. Isso foi

negativo e positivo. Negativo porque, no lugar do sentimento de ansiedade em relação

às cerimônias e ao Vodu entrou uma sensação de desespero, do tipo: e agora, o que vou

fazer? Positivo porque graças a isso pude atentar para o que foi, enfim, a temática da

dissertação. Obviamente, o “clique”, o momento em me dei conta sobre o que ia

escrever aconteceu depois, somente quando retornei ao Brasil e tive que olhar o que

tinha finalmente, os meus próprios dados de campo. Cheguei, portanto, à conclusão de

que ia focar em um assunto que sempre surgia nos diálogos com meus interlocutores:

maji e mistike, dois termos que de acordo com o que vimos no tópico anterior possuem

um campo semântico extremamente complexo.

Estrutura da dissertação

Além desta introdução, a dissertação possui dois capítulos, conclusão e alguns anexos.

O primeiro capítulo consiste na análise do “campo discursivo” que organiza a literatura

acadêmica sobre Vodu. Trata-se de examinar as questões a partir das quais tornou-se

possível para os autores escolhidos falar sobre Vodu. Elas encontram-se estruturadas em

24

cinco tópicos: tratam das relações do Vodu com a nação, da natureza dicotômica da

sociedade haitiana, das funções atribuídas ao Vodu, da sua classificação como uma

religião e, finalmente, da magia e da feitiçaria. Cabe lembrar aqui que, conforme já

havia mencionado no início da introdução, não é meu objetivo fazer uma leitura

exaustiva da literatura sobre Vodu, de maneira que os autores e as suas obras são

utilizados apenas como uma forma de organizar o meu argumento, oferecendo a

“estrutura básica” do “campo discursivo” em questão.

Enquanto o primeiro capítulo se baseia na leitura de obras acadêmicas e chama

atenção para algumas questões que entram em cena quando o tema estudado é o Vodu, o

segundo tem como foco minha experiência de pesquisa em Jacmel. Desta forma, o

principal objetivo do segundo capítulo é mostrar em situações de interação ou nas falas

dos meus interlocutores os sentidos do vodu revelados a partir dos diversos usos e

significados que possuem os termos maji e mistike. Conforme pretendo demonstrar,

embora a magia seja uma das questões consideradas pela literatura acadêmica sobre

Vodu e por causa disso apareça no primeiro capítulo, há uma mudança de registro na

retomada deste tema como objeto de reflexões da segunda parte da dissertação.

Assim as observações etnográficas que descrevem os usos da maji surgem como

aquilo que ilumina o conjunto de questões por meio das quais o Vodu é pensado pela

literatura acadêmica, revelando os distanciamentos e deslocamentos de sentidos

existentes entre o Vodu e o vodu.

25

Capítulo 1 – Imagens do Vodu na literatura acadêmica

O objetivo deste capítulo é fazer uma leitura de alguns trabalhos (já mencionados na

introdução) relacionados ao Vodu mapeando o “campo discursivo” que organiza estas

obras. Mais especificamente, trata-se de compreender quais os debates e as questões que

se tornaram possíveis quando o Vodu foi objeto de atenção por parte da literatura

acadêmica. Neste sentido dois movimentos parecem ocorrer. Se, por um lado, temos

exemplos onde falar de Vodu significou a necessidade de tocar em outras questões que

eram vistas pelos autores como inerentes ao Haiti, por outro lado, falar do Haiti também

significou ter que dizer algo sobre o Vodu. Desta maneira, Vodu e nação parecem estar

em uma relação metonímica, onde não apenas falar sobre o Vodu é falar sobre a

sociedade haitiana, mas também onde o próprio Vodu se construiu como um objeto para

aqueles que têm o Haiti como centro de suas reflexões.

Cinco pontos serão apresentados. Eles formam uma rede de discussões onde se

inserem as observações dos autores relativas ao Vodu haitiano. O primeiro ponto

justamente explora a relação metonímica que parece existir entre Vodu e Haiti, tal como

mencionado acima, e também as metáforas onde o Vodu surge como um motivo no qual

se revelam conflitos e dilemas enfrentados pela população haitiana. O segundo ponto

está relacionado à ligação do Vodu com a “natureza” da sociedade haitiana. Esta

“natureza’ é vista, principalmente, em termos das dicotomias entre barbárie x

civilização, e massa x elite. O ponto número três mostra como o Vodu é visto através de

uma lente funcionalista, que procura dizer para que ele serve e quais funções

desempenharia na sociedade haitiana. O quarto ponto versa sobre os debates em torno

da classificação do Vodu como uma religião. Por fim, no quinto e último ponto entram

em cena as reflexões que os autores fizeram sobre magia e feitiçaria e suas relações com

26

o Vodu. É importante esclarecer que estes pontos são utilizados apenas como uma

maneira de organizar meus argumentos, de forma que apesar de todos os autores

compartilharem este campo discursivo, estas cinco questões-chave não aparecerão com

a mesma força em cada um deles.

Antes de entrar diretamente nos pontos e mostrar como apareceram nas obras

apresentarei um breve resumo de cada um destes trabalhos e do contexto no qual os seus

autores estavam inseridos, expondo seus principais objetivos e preocupações. Esta

alternativa surgiu como uma maneira de proporcionar ao leitor uma visão geral de cada

trabalho, fundamental para um entendimento posterior, quando eles serão

desmembrados em questões mais específicas. A exposição está organizada de acordo

com a ordem cronológica de publicação das obras, contrariamente ao que ocorre dentro

dos tópicos, onde a ordem seguida obedeceu à relevância que tem cada um dos temas

em cada trabalho e autor.

Os autores e suas obras

O livro Ainsi Parla l’Oncle de Jean Price-Mars foi publicado no Haiti, no ano de 1928.

Nesta época o país encontrava-se ocupado militarmente pelos EUA, numa operação que

teve início em 1915 e se estendeu por quase duas décadas até a retirada das tropas em

1934. Em certa medida, podemos dizer que a ocupação militar proporcionou e facilitou

a produção de uma série de obras sobre o Haiti feitas por estrangeiros (inclusive a de

Melville Herskovits, como veremos mais adiante), assim como estimulou a elaboração

de trabalhos de intelectuais haitianos, membros das elites, que passaram a refletir sobre

os dilemas de seu próprio país11. Dentre estes trabalhos temos como principais

11 Anteriormente ao lançamento do livro de Herskovits, foram escritos outros livros sobre vodu, onde seu exotismo era explorado ao extremo. Estes primeiros livros passaram a servir como base para a produção dos filmes norte-americanos sobre zumbis como, por exemplo, o filme “I Walked with a Zombie” de Jacques Tourneur, estreado em 1942.

27

referências além do próprio Ainsi Parla L’Oncle, a Revista Indigène, publicada em 1927

por Jacques Roumain, e a Revista Les Griots, organizada por Louis Diaquoi, Lorimer

Denis e François Duvalier, com publicações ao longo dos anos de 1938 e 1939.

Embora estes autores pudessem divergir ideologicamente no que diz respeito às

interpretações da história e da organização social do país, todos estavam preocupados

com questões que confluíam em um nacionalismo cultural de novo tipo, onde a

valorização da herança africana passou a ser um elemento chave na construção da

identidade nacional. Os “costumes populares” (dos quais o Vodu é assinalado como

representante) passaram a ser encarados como a solução para a dicotomia entre as elites

minoritárias e a grande maioria da população do país, representando a “verdadeira alma

nacional” (Charlier-Doucer, 2005). Esta proposição colocava em pauta uma nova

definição da cultura nacional diferente daquela que havia sido dominante desde o fim do

séc. XIX, onde as elites haitianas buscavam sua referência identitária na França.

As principais questões que estão em jogo nestes trabalhos se referem a debates

sobre história, cultura e nação. A agitação política, as reivindicações sociais juntamente

com a busca por uma identidade nacional haitiana culminam com a fundação, em 1941,

do Bureau d’Ethnologie de la Republique d’Haiti12. Nascido em um contexto de

perseguição ao Vodu, principalmente por causa da Campanha anti-supersticiosa lançada

entre os anos de 1940 e 1942 pela igreja católica, os integrantes do Bureau d’Ethnologie

tomam para si como objetivo mais imediato à proteção e defesa dos objetos, lugares e

praticantes do Vodu que diante desta situação corria o risco de se extinguir13. Além

disso pretendiam iniciar a realização de pesquisas de cunho científico sobre as práticas

Vodu. Ou seja, há, com a criação do Bureau d’Ethnologie, “um projeto científico

12 Faziam parte da composição inicial do Bureau: Jacques Roumain, Kurt Fisher, Edmond Mangonès e Louis Maximillien (Charlier-Doucet, 2005). 13 A Campanha Anti-supersticiosa foi lançada em 1940, pela igreja católica numa tentativa do que Hurbon chamou de déracinement do vodu. Além disso, havia os “juramentos de rejeição”, onde as pessoas eram obrigadas a renunciar publicamente as suas práticas vodu. (Hurbon, 1993:57).

28

sustentado por um objetivo ao mesmo tempo moral e pedagógico, a saber, tornar os

costumes populares conhecidos e fazer com que passem a ser respeitados pelas

oligarquias do país a partir do combate aos preconceitos de todo o tipo” (Charlier-

Doucer, 2005:111).

Tais preocupações eram um pouco as de Price-Mars, ao escrever Ainsi Parla

l’Oncle, alguns anos antes. Logo no prefácio do livro ele revela seu interesse em

apresentar o valor do “folclore haitiano”, mas ao mesmo tempo aponta para as

dificuldades do empreendimento tendo em vista o preconceito daqueles que pertenciam

à elite em relação a tudo que fosse “autêntico” do país. Na opinião do próprio Price-

Mars, seu livro representa um esforço de inclusão do “pensamento popular” (o folclore)

haitiano como objeto de estudo da “etnografia tradicional” (1928:I). 14 Trata-se de uma

obra onde as “crenças populares” são entendidas como aquilo que representa melhor

este “folclore” e onde o Vodu entra como a principal ou a mais importante destas

“crenças”. Todo o livro é marcado por argumentos que têm como finalidade uma

valorização da herança africana e conseqüentemente do Vodu enquanto a religião das

massas. Assim, o Vodu entra nas reflexões quase como uma constatação, ou seja ele

escolhe o Vodu como objeto de estudo na medida em que ele é, juntamente com o

creóle, aquilo que estaria ligado a “identidade nacional” do povo haitiano.

O livro, Life in a Haitian Valley, de Melville J. Herskovits compartilha com

Ainsi Parla l’Oncle o clima de idéias surgido no contexto da ocupação norte-americana.

Publicado nos EUA em 1937, pode ser pensado como aquele que inaugura os trabalhos

de cunho etnográfico no Haiti. Resultado de uma pesquisa de campo que durou cerca de

três meses, realizada em 1934, último ano da ocupação militar, Life in Haitian Valley

expressa uma etnografia baseada nos moldes da corrente culturalista norte-americana. 14 No obra de Price-Mars, a palavra folclore é utilizada para designar não apenas as crenças, mas também as tradições orais, os contos as canções, os costumes e tudo aquilo que seria próprio da sociedade haitiana.

29

Assim, “procurando refutar interpretações racistas, nas quais os haitianos eram vistos

como vivendo num estado de selvageria sem os benefícios da civilização branca,

Herskovits traz descrições de tradições seculares e religiosas complexas e estruturadas

buscando explicar seus significados de acordo com a lógica da cultura haitiana.”

(Walter Jackson, 1986:112,113).

Herskovits tem como foco de interesse a questão do “contato cultural” e da

“aculturação” de povos que conviviam por um longo período com outras culturas

diferentes da sua. Assim, em Life in Haitian Valley procura apresentar as contribuições

européias e africanas que participaram da formação do Haiti.15 Herskovits encontra no

Vodu elementos de origem africana, como por exemplo, a possessão espiritual, que

teriam sobrevivido a este “contato cultural” entre os escravos vindos da África e os

colonizadores europeus. Como já subentendido no próprio título do livro, o maior

objetivo de Herskovits é o de fazer um relato sobre a vida dos habitantes do Vale de

Mirabalais. O Vodu acaba entrando como aquilo que pertence à dimensão religiosa do

cotidiano daquela população de maneira que uma grande parte do livro é dedicada à

descrição de seus rituais, suas danças, seus serviços de adoração aos espíritos e seus

cultos para os mortos.

Conforme havia mencionado, a preservação de objetos, lugares e práticas Vodu

era um dos objetivos dos etnólogos que pertenciam ao Bureau d’Ethnologie. As

preocupações relativas à ameaça de desaparecimento do Vodu não foram, entretanto,

exclusivas deste grupo de pesquisadores. Em 1941, depois de uma viagem ao Haiti,

Alfred Métraux, etnógrafo francês nacionalizado norte-americano, se sensibiliza com a

destruição dos objetos utilizados no Vodu e lamenta a falta de uma pesquisa sistemática

15 Herskovits procura mostrar quais eram as características de cada tribo africana e dos grupos de franceses que elas teriam encontrado quando chegaram no continente americano. Neste sentido, o livro mostra uma preocupação em contar a história da formação da cultura haitiana que teria resultado justamente deste contato entre os europeus (a maioria franceses) e africanos.

30

sobre seus rituais. Métraux volta ao Haiti diversas vezes após este primeiro contato com

o país e sua presença em 1941 chegou mesmo a ser citada por Jacques Roumain como

algo que dava um novo impulso ao projeto de criação de um instituto de etnologia no

país.16

Sua estadia mais duradoura naquele país (cerca de 6 meses) ocorreu em 1948 e

foi financiada pela UNESCO, que pretendia implantar no Haiti, mais especificamente

em Marbial, um projeto de desenvolvimento que previa a construção de escolas,

cooperativas de produção, pequenas indústrias etc (Laurière 2005). Assim, a partir da

sua convivência com os habitantes de Marbial e também de Porto Príncipe, Métraux

escreve Le Vaudou Haïtien, que será visto aqui e que resta, ainda hoje, como uma das

principais referências nos estudos sobre o Vodu.

Le Vaudou Haïtien é resultado de trabalho de campo etnográfico realizado no

Vale de Marbial durante os anos de 1948 a 1950. Publicado na França, em 1958, é o

primeiro livro escrito por um etnógrafo que se dedica especificamente ao Vodu. O

principal objetivo de Métraux era produzir um relato sistemático que descrevesse a

riqueza dos rituais e cerimônias Vodu. Nesse sentido, todo o livro é recheado de relatos

minuciosos sobre rituais e cerimônias, além de contar com uma exposição organizada

em capítulos que procuram abarcar o Vodu na “totalidade”, desde a sua história e os

contextos econômicos e sociais até o mundo sobrenatural e dos espíritos.

Entre 1960 até o final da década de 1980, período que corresponde ao tempo de

duração da ditadura duvalierista17 temos uma época de relativa estagnação no que

concerne a publicação, no Haiti, de trabalhos sobre o Vodu. Laënnec Hurbon, sociólogo

16 Carta de enviada de Jacques Roumain à Paul Rivet, em 3 de novembro de 1941. Gradhiva 2005 p. 252. 17 A ditadura duvalierista corresponde ao período compreendido entre os anos de 1957 e 1986. Neste espaço de tempo, François Duvalier (Papa Doc), médico, etnólogo e ex-membro do Bureau d’Ethnologie, se tornou presidente do país no ano de 1957, posição que ocupou até 1971, ano de sua morte, quando foi substituído pelo seu filho Jean Claude Duvalier, também conhecido como Baby Doc, que permaneceu no poder até 1986 quando partiu em exílio para França.

31

haitiano radicado na França, chega a mencionar no “Prefácio à Nova Edição” (1987) de

Dieu dans le Vaudou Haïtien que enfrentou dificuldades para divulgar seu trabalho no

Haiti. Segundo o autor, este livro “já havia sido publicado em Paris há uma dúzia de

anos” e demorou a ser publicado no Haiti porque o “regime duvalierista” não favorecia

a circulação de textos que pudessem contestá-lo (Hurbon, 1987:7). Hurbon talvez seja

um dos autores que tenha mais livros publicados sobre o Haiti e sobre o Vodu.

Conforme já mencionado na introdução, atualmente ele é professor da Universidade de

Quisqueya de Porto Príncipe e pesquisador do Centre National de la Recherche

Scientifique (CNRS), em Paris.

Dieu dans le Vaudou Haitien se propõe refletir sobre a noção de Deus tal como é

concebida pelos praticantes do Vodu. A partir de uma tríplice abordagem teórica

(fenomenologia, estruturalismo e hermenêutica), Hurbon, assim como Métraux, e

diferentemente dos outros autores aqui apresentados, tem o Vodu como principal foco

de sua obra. No entanto, as pesquisas realizadas para o livro não são baseadas em

trabalho de campo etnográfico, como foram as de Métraux. A primeira parte do livro é

dedicada a uma descrição do que ele entende como sendo os contextos histórico,

econômico e social do Vodu. A segunda parte compreende uma análise da simbologia

do “sistema Vodu” por meio de uma abordagem estrutural. Na terceira e última parte ele

faz uso da hermenêutica com o objetivo de dar conta daquilo que transbordaria o

sistema Vodu que, neste caso, seria a própria noção de Deus.

Finalmente, temos os livros de duas autoras norte-americanas, ambas com

pesquisas etnográficas de longa duração realizadas principalmente com migrantes

haitianos vivendo nos EUA. São trabalhos cujo principal foco de análise está inserido na

temática da “diáspora haitiana”. O primeiro livro é de Karen McCarthy Brown e chama-

se Mama Lola: A Vodou Priestess in Brooklyn, publicado nos EUA em 1991. McCarthy

32

Brown é antropóloga e professora da Universidade de Drew, em New Jersey. Trata-se

de uma etnografia focada na vida de Alourdes, uma mambô que migrou para os EUA no

início da década de 1960, e que na época da pesquisa ganhava a vida no Brooklin, em

Nova York, com os conhecimentos que possuía por ser mambô.

Esta etnografia compreende experiências passadas e presentes de Mama Lola

(como Alourdes era conhecida), e as dificuldades enfrentadas por ela tanto no Haiti,

quanto nos EUA. Segundo o relato da autora, ela conheceu Mama Lola em 1978,

enquanto trabalhava para o Museu do Brooklyn fazendo um levantamento

etnográfico da comunidade imigrante haitiana em um projeto que incluía a produção

de material fotográfico de altares Vodu nas casas de ugãs e mambôs que viviam em

Nova York.

A maneira que McCarthy Brown escolheu para estruturar seu trabalho é

particularmente interessante. Ele se encontra organizado em capítulos que, de forma

intercalada, narram e refletem sobre as histórias de alguns personagens da família de

Mama Lola desde a época de seu bisavô e sobre os principais espíritos aos quais

“serve”. Além do trabalho desenvolvido pela autora em Nova York, o livro é resultado

de pesquisa realizada também no Haiti, para onde viajou algumas vezes, acompanhada

de Mama Lola, inclusive por conta de sua iniciação no Vodu. Estas viagens permitiram

que ela conhecesse certos lugares que fizeram parte da infância e da juventude de

Alourdes, assim como familiares e amigos que lá permaneceram, assim como

enriqueceram as descrições encontradas no livro.

Karen E. Richman, autora de Migration and Vodou, foi aluna de McCarthy

Brown. Atualmente é diretora do Center for Migration and Border Studies (CMBS)

pertencente ao Instituto de Estudos Latinos da Universidade de Notre Dame, nos

EUA. Migration and Vodou é resultado de um longo trabalho etnográfico

33

desenvolvido durante mais de duas décadas (entre 1981 e 2003) com migrantes

haitianos. Uma boa parte da pesquisa foi realizada em “fazendas de trabalho” situadas

na Flórida e no sul da Vírginia para onde eram enviados estes imigrantes que, na

maioria das vezes vinham de Ti Rivyè, uma seção rural pertencente ao distrito de

Léogane, no Haiti. Por conta de seu curso de doutorado, Richman morou por um ano e

meio em Ti Rivyè, onde combinou pesquisas do tipo qualitativo e quantitativo com a

população local e pôde conhecer os familiares e amigos de Little Caterpillar, seu

principal interlocutor nos EUA.

A autora utilizou como ponto de partida para as suas reflexões o conteúdo de

fitas cassetes que eram utilizadas como “cartas orais” trocadas entre os imigrantes e

seus familiares. Por meio destas gravações, os imigrantes podiam participar de

cerimônias e ouvir recados dos espíritos sem a necessidade de estarem fisicamente

presentes no Haiti. A Richman afirma que seu trabalho não é sobre Vodu. Seus

interlocutores não usam o termo que parece ser substituído pelas noções de Guiné e

Magia. Mas, mesmo não sendo sobre Vodu, as idéias comumente relacionadas ao termo

aparecem com freqüência no livro e, como ela própria escreveu, o Vodu “está implicado

nos destinos cruéis do povo de Ti Rivyè” (2005:21).

Richman faz um grande investimento na história da comunidade de Ti Rivyè,

por meio da qual procura mostrar as transformações sócio-econômicas ocorridas na

região durante o séc. XX e como elas influenciaram para o surgimento de uma “tradição

inventada”. De acordo com ela, ao mesmo tempo em que a população rural de Léogane

foi sendo incorporada como mão-de-obra barata no capitalismo transnacional, produtora

e exportadora de trabalho assalariado, ocorreram mudanças nos seus rituais de “serviço

aos espíritos”, devido à descoberta de uma autenticidade africana da Guiné nestes

rituais. Na visão dos camponeses, esta Guiné apareceria diferenciada da Magia

34

conforme veremos posteriormente. A hipótese de Richman é que Guiné e Magia

estariam em uma “relação dialética”, representando um símbolo, a maneira pela qual a

população de Ti Rivyè enxerga e é capaz de traduzir as transformações sócio-

econômicas ocorridas na região.

Antes de entrarmos diretamente nos tópicos que organizam a literatura, valem

algumas palavras acerca do estatuto das evidências nas quais se apóiam as

observações e reflexões feitas pelos autores que serão apresentados. Nesta direção

temos os livros de Hurbon e Price-Mars que não foram escritos baseados em

pesquisa de campo etnográfica, possuindo um caráter ensaístico nos quais há a

predominância de um tom prescritivo. Herskovits que conforme assinalei mais acima

inaugura os trabalhos de cunho etnográfico a serem realizados no Haiti é primoroso

em suas descrições ainda que a duração de seu campo tenha sido apenas de três

meses. No entanto seus dados e análise não podem ser comparados com a

profundidade daqueles trazidos por Métraux que morou no Haiti por seis meses e

escreveu exclusivamente sobre Vodu, o que fez com que seu livro adquirisse um

outro nível de detalhamento e complexidade em relação aos apontamentos e

observações trazidas do campo. No que diz respeito à condição das pesquisas de

McCarthy Brown e Richman, podemos dizer que elas foram feitas na maior parte do

tempo nos EUA o que as diferencia em relação às etnografias de Herskovits e

Métraux. Devo ressaltar ainda que, apesar de Richman ter morado no Haiti, sua

pesquisa tem um caráter fortemente militante e normativo o que, por vezes, traz

dificuldades ao leitor em enxergar os dados etnográficos em si, sem os significados

que a autora atribui a eles.

35

1 – Vodu e Haiti: metonímia e metáfora

“Mais do que qualquer outro único termo, é a palavra ‘vodu’ que vem a mente quando alguma menção é feita ao Haiti.” 18 (Herskovits, 1971:139)

No que diz respeito ao Vodu e ao Haiti outras duas coisas parecem acontecer.

Herskovits parece ter contribuído para a construção de uma delas quando escreveu o

trecho citado acima. De fato, parece haver uma relação metonímica entre o Haiti e o

Vodu, de forma que qualquer alusão ao primeiro nos faz imediatamente lembrar do

segundo. 19 Não foi diferente com os autores escolhidos para fazer parte desta

dissertação.

Mesmo aqueles cujo objeto de estudo imediato não era o Vodu (como o próprio

Herskovits, inclusive) acabaram por falar dele, ajudando, em certa medida na

construção desta relação, por exemplo, metonímica entre Haiti e Vodu. Price-Mars

estava especialmente preocupado com a questão da identidade nacional haitiana e por

isso foi buscar no “pensamento popular” elementos que fariam parte da “tradição”, ou

seja que seriam “típicos” do Haiti. Apesar dele fazer referências aos contos, provérbios

e canções, é aquilo que ele chama de “crenças populares”, ou seja o Vodu, que ocupa

grande parte do livro Ainsi Parla l’Oncle. A segunda coisa parece estar contida na

primeira. Trata-se do fato de que além do Vodu ter servido como metonímia para Haiti,

ele também serviu como metáfora, ou seja, uma temática que serve para falar do que

ocorre em termos sociais e culturais naquele país.

18 Todas as traduções são minhas. 19 Embora a cerimônia de Bois Caïman (citada na nota 4 da Introdução) não seja objeto de análise aqui poderíamos lembrar que, na medida em que ela própria constitui-se em uma narrativa fundacional da nação haitiana, pode ser entendida como mais uma evidência da relação metonímica que é construída entre o Vodu e o Haiti.

36

Este é o caso quando Richman faz a seguinte afirmação: “Os exemplares da

autêntica Guiné não personificam camponeses, mas sim as forças que os cercam: a elite

cosmopolita, as corporações agroindustriais transnacionais e o poder neo-colonial. Estas

forças tem autoridade para dominar, mas apenas isso. Elas não têm pwen, não tem a

vitalidade que têm aqueles que são dominados.” (Richman, 2005:182). O conceito de

pwen, por exemplo, que a autora defende ser complexo e significar “qualquer coisa que

captura a essência de uma situação também complexa” (Richman, 2005:15)20, é

utilizado como metáfora para falar dos trabalhadores imigrantes haitianos. Ou seja, para

Richman, “pwen são imitações simbólicas camponesas do poder de trabalho alienado, a

essência do capitalismo” (2005:218). O mesmo acontece com as categorias Guiné e

Magia. Segundo a autora a Guiné e a Magia estão em uma relação dialética que nos

informa sobre a história da comunidade de Ti Rivyè. Esta história é a história da

expropriação das terras que pertenciam a trabalhadores camponeses livres que foram

incorporados ao sistema capitalista de produção e se tornaram trabalhadores

assalariados e exportadores de mão-de-obra barata para os EUA.

A dialética entre a Guiné e a Magia é vista, portanto, como “uma reformulação

simbólica da história desta comunidade” (Richman, 2005:185), ou seja ela é a maneira

pela qual a população de Ti Rivyè conta a sua história. Da mesma forma, a

personalidade e os gostos dos espíritos associados pelos seus interlocutores à Guiné se

assemelhariam à personalidade e aos gostos da elite cosmopolita do Haiti, e também aos

estrangeiros que representaram as forças capitalistas ao longo do século XX. Ou seja,

em todo o seu livro, Richman parece enxergar por meio das práticas e categorias

20 Apenas para esclarecer o significado de pwen, faço aqui referência à primeira nota, do capítulo 4 do livro de Karen McCarthy Brown (1991:94) onde a autora sustenta que: “no contexto Vodu, a palavra pwen (point) se refere a um feitiço ou talismã. Um pwen pode consistir em palavras, gestos, objetos rituais ou ervas colocadas em um pequeno corte na pele de uma pessoa. Em todos os casos, o pwen representa a condensação e a apropriação de poderes espirituais.” Em Richman (2005) a palavra pwen não aparece definida no “contexto Vodu” nenhuma única vez.

37

associadas ao Vodu apenas a história de Ti Rivyè, com todas as transformações sociais

e econômicas, até as suas dificuldades e tensões vividas entre aqueles que saíram do

país e aqueles que permaneceram.

Hurbon também enxerga no Vodu a sociedade haitiana. De acordo com seus

argumentos, o Vodu “representa a expressão de uma relação de classes”, sendo a

“religião e a cultura por excelência das camadas populares” (Hurbon, 1987:87). O

universo dos loas é visto como “o lugar imaginário da projeção dos desejos da

sociedade haitiana”, onde os próprios espíritos “imitariam” a sociedade camponesa com

todos os seus conflitos e desejos. Esta propriedade imitativa da sociedade haitiana que

teriam os espíritos Vodu é o que torna possível conhecer o Haiti e os haitianos. De

maneira semelhante, o espírito feminino denominado Kouzinn aparece descrito em

McCarthy Brown (1991:157) como uma representação da “força notória e assertiva das

‘mulheres do mercado’ que apesar disso se submetem aos homens de suas casas.” Estas

mulheres, apesar de venderem nos mercados e conseguirem por causa disso, uma

relativa independência financeira, continuariam submissas aos homens nos seus lares,

da mesma maneira que ocorreria com Kouzinn. McCarthy Brown utiliza as

características dos espíritos, ou seja, o que cada um deles representa, como uma

alavanca para reflexões sobre a relação entre gêneros, sobre a população rural e a das

cidades, sobre os mercados e outros elementos que fariam parte da “cultura haitiana”.

Assim, por exemplo, o espírito Azaca é um camponês como o bisavô de Mama Lola,

sua principal interlocutora, mas também como um típico homem, trabalhador rural

haitiano.

Mas não é apenas por meio das características e personalidades de cada espírito

que podemos conhecer o Haiti. As letras dos cantos cerimoniais Vodu também

aparecem como mais um exemplo onde é possível “enxergar” a sociedade haitiana e

38

toda a “opressão social” vivida pelos camponeses. Reproduzo aqui uma destas letras,

conforme está escrita em Hurbon (1987:99): “Nós somos órfãos de mães / Nós somos

órfãos de pais / nossos parentes estão na Guiné, quem defenderá nossa causa!” De

acordo com o autor, “para as massas haitianas, o apelo aos espíritos da África é

inseparável da percepção da implacável opressão a que estão submetidas” (Hurbon,

1987:100). Ou seja, no trabalho de Hurbon o Vodu é um meio, uma maneira de entender

o que se passa na sociedade, principalmente no que diz respeito à relação entre duas

“classes sociais” e as conseqüências disso. Se por um lado, os cantos traduziriam um

sentimento de “opressão social” por parte dos voduisantes, por outro, o conteúdo das

demandas e os apelos que são feitos aos espíritos expressariam as preocupações

cotidianas da população rural como as doenças, os acidentes e a escassez de terras e

outros recursos. Assim, “o Vodu reflete estas preocupações. O que os fiéis demandam

aos deuses é menos um pedido de fortuna e felicidade que o de livrá-los dos males que

os assolam de todos os lados” (Métraux, A. 1958:51).

Conforme mencionado no início deste tópico, o Haiti parece manter uma relação

metonímica com o Vodu. Além disso, o Vodu também pode servir de metáfora para

falar da sociedade haitiana de uma maneira geral. Dentre os autores escolhidos aqui,

nem sempre o Vodu era o objeto da pesquisa, como é o caso de Price-Mars (que

buscava estudar o “folclore” haitiano), Herskovits (cujas preocupações estavam

dirigidas para a “cultura” haitiana) e Richman (cuja ênfase é na imigração). Poderíamos

afirmar que estes três autores apesar de não terem o Vodu como foco de suas análises,

acabaram encontrando nele uma maneira de falar sobre o Haiti, o que contribui para a

construção da relação metonímica entre os dois. Já McCarthy Brown que resolveu se

ocupar de uma imigrante haitiana que vivia nos EUA, acaba por falar do Vodu durante

todo o livro, mesmo que seja a partir da biografia de sua interlocutora. Em

39

contrapartida, Métraux e Hurbon escolheram o Vodu como objeto de suas pesquisas e

assim falaram do Haiti. Apesar de todos estes autores entenderem ou enxergarem o

Vodu como uma metáfora, uma maneira de informar sobre o que se passa ou se passou

em um meio social (neste caso não apenas em um lugar físico, o Haiti, mas também

com os haitianos, independente do lugar em que estão), Richman é a autora que parece

levar isso às últimas conseqüências, de forma que todas as coisas relacionadas ao Vodu

aparecem no seu trabalho apenas como símbolos que os haitianos dispõem para relatar e

denunciar fatos que ocorreram ou ocorrem nas suas vidas.

2 - O Vodu e a natureza dicotômica da sociedade haitiana: barbárie x

civilização e elite x massa

“A ideologia ocidental para fundar sua supremacia cultural e seu imperialismo econômico, considerava as culturas e religiões tradicionais como culturas primitivas ou que possuíam uma mentalidade pré-lógica em descontinuidade total com o homem moderno, dito civilizado” (Hurbon,1987:139).

A “natureza” da sociedade haitiana foi pensada em termos das dicotomias entre barbárie

e civilização e entre elite e massa. Este é um tópico extremamente recorrente quando se

trata do Vodu e as alusões a ele geralmente são realizadas a partir de referências feitas

pelos autores aos contextos histórico, econômico e social do Vodu, onde aparece a sua

história, como ele chegou no Haiti, como eram vistas as suas práticas, o que elas

representavam e quais as conseqüências disso. No que diz respeito a estas maneiras de

explorar e se referir a estas dicotomias parece haver dois registros. Um, meramente

descritivo, como é o caso de Métraux, McCarthy Brown e Richman e outro que além de

descritivo é também prescritivo, como é o caso de Price-Mars e Hurbon. Estes dois

autores haitianos, por estarem engajados politicamente, procuram determinar normas de

40

comportamento que deveriam ser seguidas pelos haitianos frente a esta natureza

dicotômica da sociedade.

Apesar de ser uma questão amplamente discutida, podemos afirmar que dentre

todos os autores aqui apresentados Hurbon é o que coloca estas duas dicotomias e sua

relação com o Vodu em termos mais explícitos. Sua entrada neste debate ocorre por

meio do recurso à história do Vodu no Haiti. Os argumentos de Hurbon caminham

numa tentativa de mostrar como ele foi associado à barbárie e assim, colocado em

oposição aquilo que era associado à civilização, como por exemplo a religião católica e

a língua francesa.21 Utilizando como apoio principalmente documentos da igreja

católica e artigos da legislação haitiana, ele mostra como o Vodu foi considerado pelo

colonialismo cristão como uma prática supersticiosa e um culto malévolo, associado à

selvageria e ao primitivismo até chegar a ser legalmente proibido.

Na interpretação do autor, o Vodu teria sofrido uma desvalorização frente ao

Cristianismo que, segundo ele contribuiu para o desenvolvimento de um complexo de

inferioridade na população rural haitiana, adepta do Vodu. O cristianismo ocidental teria

inculcado na mentalidade do povo haitiano que o Vodu era um culto de adoração ao

demônio, uma prática mágica e supersticiosa culpada pelo atraso do país na entrada no

mundo da civilização. A idéia de que o Vodu era visto pela elite haitiana e pelo

estrangeiro como aquilo que representava a África no Haiti está presente nas obras de

Price-Mars e de Hurbon. Neste caso, a presença da África era associada a tudo aquilo

que era encarado como bárbaro, selvagem e distante da civilização diretamente em

oposição ao cristianismo ocidental que representava a civilização e, no limite, um

avanço em direção à modernidade que não era possível de ser alcançada pelos países

onde estivessem presentes tais práticas demoníacas e supersticiosas.

21 Ver Hurbon (1988).

41

A possessão, uma das principais características do Vodu, segundo estes dois

autores, sendo considerada por certas correntes da medicina da época como um ato de

histeria, um desequilíbrio mental ou como uma espécie de devoção demoníaca, era um

dos elementos que teria sido utilizado pela elite e pelos estrangeiros para comprovar o

primitivismo dos haitianos e os colocar em oposição à civilização22. Em relação a este

ponto, Hurbon se apóia no argumento de Herskovits com o objetivo de refutar estas

interpretações que associavam-no à barbárie. De acordo com Herskovits, “dentro dos

padrões da religião haitiana, a possessão não é anormal, mas normal” (Herskovits,

1971:148). Nesta curta passagem podemos notar que Herskovits também estava

preocupado em dar uma resposta às idéias que circulavam na época, onde o Vodu

aparecia associado à barbárie. Aliás, é a isto que se refere McCarthy Brown quando

escreve que “o retrato negativo na imprensa, nas novelas e nos relatos de viagem se

iniciaram logo depois que os escravos haitianos conseguiram sua liberdade, em uma

época na qual a escravidão ainda era uma prática nos Estados Unidos e em outras

colônias européias” (McCarthy Brown, 1995:111). A recusa por parte da Europa e dos

EUA em reconhecer a independência do Haiti também é citada pela autora, na medida

em que era justamente a prática do Vodu o motivo alegado para esta não aceitação. De

acordo com ela, “o argumento mais freqüente era o de que a barbárie de sua religião

deixava claro que os haitianos eram incapazes de governar a si próprios.” (McCarthy

Brown, 1995:111).

Os rótulos negativos que o Vodu recebeu associados à barbárie e à selvageria e

trazidos à superfície por meio dos pares de oposições negro/branco, negro/mulato,

ciência/magia, e de correlações como Vodu = satã, Vodu = magia e feitiçaria conforme

demonstrado em Hurbon (1988:I), se prolongaram ao longo do tempo e tiveram

22 Importante lembrar aqui que, conforme será mostrado no quarto tópico, para Price-Mars o Vodu era de fato uma religião primitiva.

42

conseqüências que atingiram a todos os haitianos, mesmo aqueles que viviam ou ainda

vivem fora de seu país. Os estereótipos associados ao Vodu foram denunciados como

servindo a “propósitos racistas” (McCarthy Brown, 1991:111), e o próprio termo Vodu,

por conta de todos os sentidos negativos que carregaria consigo, foi traduzido como

uma construção hegemônica fundamental que representa o dominado como exótico e

outro” (Richman, K., 2005:21), sendo inclusive este o motivo apontado por Richman

para a não utilização da palavra Vodu em seu trabalho.

Nenhum dos autores concorda com estas dicotomias, apesar de todos

constatarem a sua existência. Sob o ponto de vista de Hurbon, toda a questão se resume

apenas à diferença entre as “sociedades” e não à suposição de uma hierarquia entre elas

onde uma seja bárbara (inferior) e outra civilizada (superior). No entanto, quando ele

sustenta que existe uma diferença “cultural” entre o Haiti e os países “ocidentais”, o faz

em termos de uma outra dicotomia, desta vez entre tradição e modernidade. O Vodu

seria, portanto, parte da “sociedade tradicional”. Por causa disso, “dentro do Vodu, por

exemplo, o mal é sempre compreendido como uma desordem de ordem natural e social

implicando uma causalidade por vezes material e espiritual.” Em contrapartida, em uma

sociedade moderna, a causa do mal não seria vista como tendo uma origem em alguma

coisa exterior, sendo o indivíduo o “único responsável por suas faltas e erros.” (Hurbon,

1987:192).

Nos livros de Price-Mars, Hurbon e Métraux, o Vodu é tomado explicitamente

como a religião “popular” ou ainda, como “própria” das massas camponesas

(Hurbon,1987). Ou seja, ele seria a prática religiosa por excelência desta população,

uma “identidade cultural” que, embora “alienada pelo cristianismo” deve ser

reencontrada por estas massas (Hurbon,1987:26). A elite, na medida em que estaria com

seus olhos voltados para fora do Haiti (neste caso, para a Europa), seria adepta do

43

catolicismo e não do Vodu, justamente por causa de todas as associações relacionadas

ao Vodu e anteriormente mencionadas. Para esta elite, “a verdadeira civilização é a

civilização ocidental e a verdadeira religião é a católica, como a verdadeira língua

(aquela falada por 2 a 5% da população haitiana e que é reconhecida como língua

oficial, mesmo sendo o creóle a única língua das massas), é a língua francesa”

(Hurbon,1987:28).

O fato da elite haitiana ter seus olhos voltados para fora do país também é

ressaltado por Price-Mars logo no prefácio do seu livro, onde ele reflete sobre o desafio

de escrever sobre o valor do folclore diante do público haitiano (neste caso aquele que

seria capaz de ler, ou seja a elite) que, segundo ele desprezaria tudo aquilo que fosse

autêntico do povo de maneira que “linguagem, hábitos, sentimentos, crenças se tornam

suspeitos, marcados pelo mau gosto aos olhos da elite, tomada pela nostalgia da pátria

perdida” (Price-Mars, 928:II). Assim, ser adepto ou não do Vodu, assim como falar

francês ou apenas creóle, seria uma maneira de informar sobre as relações de classe

existentes no país. Ou seja, a língua e a religião aparecem exatamente como aquilo que

diferenciaria a elite (civilizada) das massas (não civilizadas).

No entanto, o Vodu não foi tratado apenas como um elemento de diferenciação

entre massa e elite. Assim, embora todos pareçam concordar que o Vodu cujos adeptos

são aqueles que pertencem ao povo e não à elite, nem sempre esta separação é vista de

maneira radical, conforme demonstrado na seguinte passagem: “Mesmo no domínio (do

Vodu) que nos interessa aqui, o contraste (entre massa e elite) não é tão pronunciado

quanto nós poderíamos crer. A maioria das crianças da elite é confiada a domésticas

vindas das massas que despertam neles todos os temores da Guiné” (Métraux, 1958:49).

Ou seja, aqui o Vodu continua sendo uma “religião popular” mas que, ao mesmo tempo,

atinge a todas as camadas sociais. Neste sentido, diferentemente das idéias defendidas

44

por Hurbon, o Vodu poderia ser visto como aquilo onde estas duas classes sociais se

encontram, um ponto em comum que ultrapassaria na prática uma divisão cultural. Este

ponto de contato entre pessoas de “dois universos” distintos faria com que todos os

haitianos, independentemente de sua posição social, estivessem familiarizados com o

Vodu, ainda que por meio de histórias de “zumbis” ou pela aprendizagem de como se

proteger de “feiticeiros” (Métraux, 1958:49-50).

A diferença de personalidades e gostos que caracteriza cada espírito pertencente

ao panteão Vodu é uma outra maneira pela qual as diferenças entre massa e elite podem

ser constatadas. Ezili Dantò, por exemplo, foi descrita como um espírito feminino que

“não imita as mulheres socialmente empowered. Ela conta a história das mulheres

pobres”. Em contraste a ela, teríamos Ezili Freda, um outro espírito feminino que, por

sua vez, “imita os ideais de beleza (daquelas mulheres) que têm poder social e

prestígio” (McCarthy Brown, 1991: 255). Ou seja, considerando as características

atribuídas por McCarthy Brown a Ezili Dantò e Ezili Freda, temos, na opinião da

própria autora, a representação de dois tipos de mulheres haitianas, aquela que faria

parte do povo e a que pertenceria à elite. Assim, as iconografias e os relatos ouvidos

pela autora que dizem respeito a Ezili Freda são os de uma mulher branca, que é

considerada como sendo privilegiada por causa desta característica, além de possuir

uma segurança material e social. Ao contrário, Ezili Dantò seria vista como uma mulher

negra, pobre e que por não ter qualquer garantia material ou social deve trabalhar duro

para assegurá-las.

Conforme mencionado anteriormente, a natureza da sociedade haitiana foi

pensada em termos dicotômicos, onde as oposições entre barbárie x civilização e massa

x elite são, na maioria das vezes, encaradas como inerentes à nação, como se fizessem

parte da sua essência. Neste sentido, nem sempre encontramos nos autores vistos aqui

45

reflexões que busquem entender ou questionar os motivos que levaram a uma

constituição deste tipo. Como exceção temos Hurbon que busca mostrar, a partir da

história, como foram estabelecidas estas dicotomias, e também Métraux que vai um

pouco além da simples constatação da existência da dicotomia entre massa e elite ao

colocar em cheque a visão onde elite e massa sejam vistas como radicalmente separadas

uma da outra.

3 - O Vodu e suas funções

“O Vodu cumpre uma função social útil no estado atual da sociedade haitiana.” [...] “As cerimônias em honra aos loas-racine contribuem para reforçar a solidariedade do grupo familiar cujos membros devem prestar coletivamente suas obrigações aos espíritos ancestrais. Enfim, por causa de sua influência ougan e mambô, introduzem um elemento de coesão na frouxa estrutura do campesinato.” (Métraux, 1958:322).

Métraux é o autor que mais atribui “funções sociais” às práticas (danças, cerimônias,

rituais) relacionadas ao Vodu. Estas funções aparecem no seu trabalho diretamente

ligadas ao estado de miséria extrema em que se encontrava o país na época em que ele

fez a sua etnografia. De acordo com os seus argumentos, os seres humanos não

precisam apenas de casas, roupas ou comidas, mas também de segurança frente a um

futuro incerto. Esta segurança poderia ser encontrada justamente no Vodu e seria esta

uma das causas que faria as pessoas se ligarem a ele, “o homem precisa de segurança; é

precisamente porque ele é pobre e ameaçado constantemente pela penúria e pela doença

que o camponês é tão fortemente ligado ao Vodu” (Métraux, 1958:322). O Vodu

aparece assim como o lugar de esperança, como o lugar onde existe uma possibilidade

de melhora diante de uma situação caótica. Ao mesmo tempo, o Vodu cumpriria

também as funções de divertimento, na medida em que as pessoas cantam e dançam, por

46

exemplo, e também de fortalecedor dos laços de solidariedade entre os grupos

familiares que precisam se reunir para a realização das cerimônias e dos rituais.

A função de dar segurança também é mencionada por Hurbon. No seu trabalho,

todo o “simbolismo” pertencente ao sistema Vodu é interpretado como sendo aquilo que

permite que os voduisantes sejam inseridos em uma rede de significados onde os

conflitos sociais podem ser vencidos e a segurança, encontrada. Nas suas próprias

palavras, “o recurso ao mundo dos espíritos fornece uma linguagem reveladora,

organizadora daquilo que está desorganizado, ou seja, fornece uma linguagem do

mesmo tipo que a linguagem mítica sempre pronta a rearrumar qualquer evento

perturbador, a acabar com toda incerteza, a proteger contra toda insegurança. “O

voduisante não será jamais apanhado pelo imprevisto” (Hurbon, 1987:146). O Vodu

cumpriria, assim, a função de fornecer segurança aos indivíduos, tornando um mundo

caótico em um mundo organizado, onde a realidade pode, finalmente, ganhar algum

sentido. Entender o universo a partir da linguagem dos loas, ou seja do Vodu, seria

tornar coerentes e compreensíveis tudo aquilo que está desorganizado ou fora do lugar.

Perder esta linguagem significa, segundo Hurbon, perder a chance de reconhecer seu

lugar no mundo e toda a segurança garantida por ela.

Uma outra maneira de compreender o Vodu em termos funcionalistas é

relacioná-lo diretamente aos papéis desempenhados pelos espíritos. Assim, no trabalho

de McCarthy Brown os espíritos por se constituírem em “reflexos” da vida dos próprios

haitianos também foram vistos como tendo algumas funções a cumprir. Isso pode ser

exemplificado quando McCarthy Brown sustenta que o espírito Azaca, por ser um

“trabalhador camponês”, um “homem das montanhas”, é importante “para lembrar aos

devotos de suas raízes, de sua necessidade em relação à família (o grupo que inclui os

ancestrais e os espíritos) e de sua ligação com a terra” (McCarthy Brown, 1991:36).

47

Além disso, da mesma forma que Métraux, McCarthy Brown considera que as práticas

Vodu reforçam estes laços familiares na medida em que por meio das cerimônias e

outros rituais, como os de iniciação por exemplo, a família que geralmente se encontra

espalhada seja no próprio Haiti ou fora dele, pode se reunir.

4 - Vodu e Religião: das justificativas à constatação

“O Vodu é uma religião porque todos os seus adeptos crêem na existência de seres espirituais que vivem em alguma parte do universo em estreita intimidade com os humanos, os quais dominam as atividades.” “O Vodu é uma religião porque o culto devotado a seus deuses reclama um corpo sacerdotal hierarquizado, um conjunto de fiéis, de templos, de altares, de cerimônias e, enfim, toda uma tradição oral que, apesar de não ter chegado até nós sem alteração, foi o que garantiu a transmissão das partes essenciais deste culto.” (Price-Mars,1928:32)

No grupo de autores escolhidos nesta dissertação, as questões relativas à

problemática das relações entre Vodu e religião parecem obedecer a dois

movimentos. Se por um lado temos autores que procuram fornecer argumentos e

justificativas para que o Vodu seja definido como uma religião, por outro temos

aqueles que, já tomando esta classificação como um dado, não necessitam de

maiores explicações. No entanto, todos estes autores, ou seja tanto os que procuram

justificativas quanto os que já partem do pressuposto de que o Vodu é uma religião,

parecem estar especialmente preocupados com a qualidade desta religião. Dito de

outra maneira, um dos fatores que fica evidente no conjunto dos autores aqui

reunidos é a necessidade, senão de justificar sim de adjetivar a religião Vodu. Além

disso, veremos como o conceito de religião quando relacionado ao Vodu parece ser

construído de forma negativa, principalmente nas obras de Price-Mars e de Hurbon,

48

onde a única alternativa possível à não classificação do Vodu como uma religião é

classificá-lo como superstição e assim colocá-lo ao lado da barbárie e da não-

civilização.

Dos autores que serão citados aqui, Price-Mars é o primeiro a apresentar o Vodu

como uma religião e o que mais se preocupa em fornecer justificativas para que o Vodu

seja qualificado desta maneira. Interessado em transformar o “pensamento popular

haitiano” em objeto de estudos reconhecido nos moldes da “etnografia tradicional”,

Price-Mars defende que as “crenças” do povo seriam aquilo que melhor representaria o

“folclore” haitiano. Se apoiando em trabalhos anteriores ao dele23, que procuravam

definir o que poderia ser entendido como religião, Price-Mars chega à conclusão de que

o Vodu satisfaria as condições para que fosse assim denominado. Ou seja, o Vodu

contaria com a presença de seres espirituais invisíveis aos quais pessoas se tornam

devotas, assim como a presença de templos e cerimônias e a distribuição de papéis

específicos como o de sacerdote, por exemplo. Todas estas características foram vistas

pelo autor como fundamentais para que o Vodu fosse compreendido como uma

autêntica religião.

No entanto, na opinião do autor, apenas a presença destas características não

seria suficiente se o Vodu fosse uma prática imoral ou amoral. Este fator leva Price-

Mars a estabelecer uma breve discussão acerca da moralidade no Vodu, ou seja

sobre aquilo que poderia fornecer uma justificativa definitiva acerca da classificação

do Vodu como uma religião. Assim, a partir de uma perspectiva comparativa ele

chega à conclusão que a moralidade do Vodu não precisa ter como modelo aquela

que faz parte das religiões cristãs, e acaba buscando como referência a idéia de

moral que possuem as sociedades primitivas. De acordo com ele, a moral tal como 23 Para organizar seus argumentos e tentar entender o que seria uma religião, Price-Mars se apóia nas idéias desenvolvidas por Durkheim no livro Les formes élémentaires de la vie religieuse, por j. Bricourt em Où en est l`histoire des religions e aqueles contidos no livro La religion des primitifs, de Mrg. Leroy.

49

está presente nestas sociedades, se expressaria por meio de um código de

obrigações, de origem religiosa, que regulariam a vida pública e privada das pessoas.

Seu argumento caminha, assim, no sentido de uma comparação da moralidade do

Vodu com a moralidade das sociedades primitivas, julgando-a não em relação ao

cristianismo onde esta moral estaria num estágio mais elevado, mas sim por seu

valor intrínseco.

Portanto, é com a proposta de mudar o eixo de referência (da moral cristã para a

moral das sociedades primitivas) que Price-Mars vai sustentar que o Vodu é uma

religião, sobretudo porque possui uma moral que, embora não seja a moral cristã, tem

uma concepção de ordem social organizada por um conjunto de obrigações religiosas

que não são de forma alguma incoerentes ou sem sentido. No entanto, ele conclui que o

Vodu, ao contrário das religiões cristãs é uma religião “muito primitiva” da qual fazem

parte, a “crença” no poder de seres espirituais e a “crença” na magia e na feitiçaria. No

Haiti esta religião não estaria em seu estado puro, mas sim misturada à religião católica

e adaptada às condições de vida da população rural (1928:37).

A preocupação em definir o Vodu como uma religião não é, entretanto,

exclusividade de Price-Mars. Em Hurbon (1987), por exemplo, apesar do autor partir

inicialmente do pressuposto de que o Vodu é uma religião, sem apresentar

argumentos que justifiquem esta classificação como o faz Price-Mars, podemos

notar uma certa dose desta preocupação quando ele escreve que “o caráter das

cerimônias voduisantes24, e mesmo o culto dos mortos, já é suficiente para nos

convencer da presença permanente de atitudes propriamente religiosas nestas

práticas” (Hurbon, 1987:165). Este trecho revela também a necessidade de

convencer os leitores da idéia de que o Vodu é uma religião. Ou seja, tanto para

24 O autor usa o termo francês vaudouesque ou voduisante em creóle.

50

Hurbon, quanto para Price-Mars, sustentar o argumento de que o Vodu é uma

religião significa afirmar que não é incoerente, não é ilógico, não é bárbaro e, enfim,

não é não civilizado. Ainda que esta característica esteja de certa forma presente nos

outros trabalhos me parece que é nestes dois que ela aparece com mais força, como

se fosse crucial o enquadramento das práticas relacionadas ao Vodu em um sistema

religioso, na medida em que representa a possibilidade de tirar os voduisantes da

barbárie. Além disso, a qualificação do Vodu como uma religião possibilita a

aquisição de uma certa nobreza em seu estudo fazendo com que ele passe a ser

encarado como um objeto digno de atenção por parte dos próprios pesquisadores e

autores que escrevem sobre ele.

O Vodu como apresentado por Hurbon, é um “sistema religioso” bem

organizado, com um lugar bem definido para cada elemento. Sua principal preocupação

parece ser a de mostrar como este “sistema” possui um corpo hierarquizado, composto

basicamente de sacerdotes e de servidores dos espíritos. Há uma tentativa muito clara de

mostrar como o Vodu é uma religião formada por um “sistema lógico e coerente”, que

tem uma idéia de Deus e de “justiça divina” parecida com a idéia do catolicismo, com

papéis definidos, com elementos simbólicos próprios, com cerimônias organizadas de

acordo com determinadas épocas do ano, com rituais complexos de iniciação etc.

No que diz respeito ao reconhecimento do Vodu como uma religião, a primeira

nota do capítulo oito de Life in a Haitian Valley (Herskovits, 1971) é particularmente

interessante. Nela, Herskovits argumenta que “Se o Vodu é ou não uma religião, um

problema que os escritores haitianos (e.g., Price-Mars (I), 32 ff.) estão inclinados a

discutir demoradamente, não necessita ser considerado aqui desde que, para um

etnólogo, a resposta é tão obviamente afirmativa para necessitar uma discussão”

(Herskovits, 1971:336). Ou seja, enquanto nos trabalhos de Price-Mars e de Hurbon há

51

uma preocupação intensa em procurar elementos que justifiquem a classificação do

Vodu como uma religião, Herskovits já toma isso como um dado óbvio que não

necessita ser justificado. Mesmo assim, a questão de ser ou não o Vodu uma religião

está colocada com tanta força que, ainda que Herskovits argumente a favor da evidência

deste fato, ele sente a necessidade de colocar uma nota que não apenas faz referência a

tal discussão, mas também explica o motivo pelo qual ele não vai entrar nela.

A idéia de que a religião Vodu, seria resultado do “contato” e conseqüente

“adaptação” dos negros escravos às novas formas de vida impostas a eles pelos

colonizadores está presente praticamente em todos os trabalhos como, por exemplo, na

seguinte passagem: “Se o Vodu representa um modo de adaptação original dos negros

desde o seu desembarque na ilha do Haiti, é necessário vê-lo dentro de um movimento

geral de restauração de todo o sistema africano em função das novas condições

encontradas por estes negros no país” (Hurbon,1987:82). Além disso, não apenas o

Vodu é uma religião, mas sobretudo uma religião “desvalorizada” frente ao catolicismo,

idéia esta que aparece com muita força principalmente no trabalho de Hurbon. Mas o

Vodu é mais do que isso, sendo visto por Price-Mars e por Hurbon como uma

“linguagem”, ou seja um meio de se expressar aquilo que seria próprio da população

rural do Haiti, que estaria diretamente relacionada a sua identidade cultural.

Um fator interessante de ser ressaltado diz respeito aos adjetivos que

acompanham a religião Vodu nesses textos. É raro que a palavra religião, em referência

ao Vodu, não venha imediatamente qualificada, como se houvesse uma necessidade não

apenas de justificá-la como religião, mas também definir às suas caracteristicas. Dentre

os adjetivos que são mais utilizados, a palavra “popular” parece estar em primeiro lugar,

ainda que outros qualificativos sejam freqüentemente empregados. Conforme já descrito

52

acima, em Price-Mars, por exemplo, o Vodu, além de ser uma “religião popular”

também é “uma religião muito primitiva” (1928:37).

Podemos encontrar outros exemplos da adjetivação do Vodu em Métraux que,

ao contrário de Price-Mars e Hurbon, já parte do pressuposto de que o Vodu é uma

religião. O Vodu aparece aqui definido como sendo “essencialmente uma religião

popular” (1958:49), como “uma religião prática e utilitária que se preocupa mais com

questões terrenas do que aquelas do céu” (1958:81). Segundo ele, o Vodu se apresenta

sob duas formas, uma doméstica (tal como é praticado no meio rural haitiano) e outra

pública. O “Vodu público”, ou seja aquele que ocorre em templos e congregações na

cidade de Porto Príncipe, que é, segundo o próprio autor, o objeto de sua pesquisa, é

resultado da fusão de vários elementos e não se constitui em uma herança pura de

tradições africanas.

A idéia de que o Vodu não é uma religião pura e que mistura vários elementos

também aparece em outros autores. Praticamente em todos eles, o Vodu é uma religião

que mistura elementos africanos com elementos católicos. Hurbon utiliza o termo

“sincretismo” para expressar esta mistura. Herskovits utiliza o termo “influência”

(1971:274) quando se refere aos elementos católicos. Já em McCarthy Brown o Vodu

aparece como “a nova religião que emergiu do caos social e da agonia dos escravos

(trabalhadores) das plantations do Haiti do séc. XVIII, misturada a diversas religiões

africanas com o catolicismo colonial francês” (1991:3,4). Além disso, contaria com uma

particularidade em relação a outras religiões africanas do que ela chama do Novo

Mundo. Para a autora, o Haiti passou por um isolamento do resto do mundo depois de

sua independência, o que fez com que o Vodu ficasse mais próximo de suas origens

africanas.

53

O debate mais expressivo em relação à definição do Vodu enquanto uma religião

pode ser encontrado na obra de Price-Mars e de Hurbon, embora o primeiro seja o autor

que mais procura justificativas que fundamentem a idéia de que o Vodu é uma religião,

ainda que primitiva. Herskovits parece estar um pouco na fronteira. Neste sentido,

mesmo que tome como dado que o Vodu é uma religião, ainda precisa explicar, ainda

que em uma nota, o motivo para a sua posição. Nos outros autores esta idéia já é tomada

como um pressuposto, como um dado e não necessita mais de explicação. A

preocupação de Metraux e de McCarthy Brown, por exemplo, parece estar muito mais

voltada para as qualificações da religião Vodu (ainda que esta seja uma característica

compartilhada por todos os autores) ou como os adeptos desta religião vivem, do que

para uma problematização da questão de ser ou não uma religião em si. No entanto,

todos estes trabalhos, com exceção do de Métraux (que chama o Vodu de “superstição”

algumas vezes ao longo do seu livro e com isso parece se contradizer), parecem ter

como característica comum o fato de que a definição de religião ser construída

negativamente. Ou seja, os autores compram os termos que estigmatizam o Vodu para

negá-los e a partir daí poder enxergar o Vodu de forma positiva.

Assim, parecem existir apenas estas duas opções de interpretação do Vodu: ou

ele é uma religião porque não é superstição, ou é superstição e daí está aprisionado

dentro de estereótipos que o estigmatizam. A partir da constatação de que o Vodu é uma

religião, as referências que se tornam possíveis são aquelas que dizem respeito aos loas,

às cerimônias, à possessão, à hierarquia e aos rituais. São estes elementos que entram

em cena, que aparecem quando o debate é sobre a religião Vodu. Neste sentido, ao

contrário de Price-Mars e de Hurbon cuja discussão é de ordem mais ensaística,

Herskovits, Métraux, McCarthy Brown e Richman trazem descrições etnográficas mais

ricas e detalhadas de cerimônias, possessões e rituais.

54

5 - Vodu e magia e feitiçaria

“O termo maji (magic) é totalmente flexível. Ele é freqüentemente utilizado, por exemplo, por um in-group para caracterizar as práticas de um out-group. Pessoas de Porto Príncipe falam sobre a religião do Vale de Artibonite como maji...” “Às vezes, a palavra é usada de forma auto-descritiva como um termo próprio para os ritos Petwo em quase todas as suas práticas. O período entre o natal e o ano novo é conhecido como a estação da maji por toda parte no Haiti.” (McCarthy Brown, K., 1991:188)

Magia e/ou feitiçaria são palavras extremamente mencionadas pela literatura acadêmica

sobre Vodu. Nenhum dos autores aqui apresentados deixou estes termos de fora, o que

nos leva a pensar que falar de Vodu significa ter que falar de magia seja como feitiçaria

que, conforme veremos, também pode ser chamada de magia negra, seja como magia

branca ou ainda somente como magia, sem qualificativos. Algumas vezes ela aparece

como sinônimo de feitiçaria, em outras a feitiçaria aparece como sinônimo apenas da

magia negra. Portanto, só mencionarei a palavra feitiçaria quando ela for parte do

vocabulário utilizado pelo autor apresentado e a seguir explicarei o que o termo

significa na sua obra.

Conforme exemplificado na citação acima, o termo maji se caracteriza por uma

grande flexibilidade, mas aparece de maneira mais freqüente como um qualificativo

para as práticas de um outro, algum vizinho, alguém de fora, e assim por diante. Além

disso, maji pode ser utilizado como uma auto-referência quando os ritos qualificados

como petwo25 têm lugar nas cerimônias. McCarthy Brown é a única, dentre os autores,

aqui apresentados que faz uma reflexão, ainda que breve, um pouco mais concreta sobre

25 Sobre o Vodu haitiano, a literatura freqüentemente aponta para a existência de alguns tipos de ritos. Hurbon, por exemplo, sustenta que no Vodu podemos encontrar três grandes ritos, o Rada feito em honra aos espíritos chamados de loas da Guiné, considerados loas bons e originários de Dahomé; o Kongo que corresponde aqueles dirigidos aos loas de origem banto; e os Petro (em francês) por meio do qual se celebram os loas que vem da própria colônia de Santo Domingo. (1993:71). De uma maneira geral, os loas petwo são descritos como aqueles que são utilizados para fazer magia.

55

aquilo que os haitianos entendem quando o termo maji é empregado. No que diz

respeito aos trabalhos de Herskovits, Métraux e Richman que, assim como o de

McCarthy Brown, estão baseados em pesquisa etnográfica o conceito de magia ou é

alargado para dar conta daquilo que os autores, mas não os “nativos”, consideram como

magia (que é o caso de Herskovits e de Métraux), ou sofre tantas sobre-interpretações

que se torna difícil quais são os sentidos que os haitianos dão ao termo quando o usam,

como é o caso de Richman.

Apesar de todos os autores constatarem a existência da magia associada ao

Vodu, Price-Mars e Hurbon, cujos trabalhos não são etnográficos, parecem estar mais

preocupados em justificar e explicar esta presença e o funcionamento da magia na

religião Vodu, e por isso acabam entrando em debates também teóricos sobre os

conceitos de religião e magia. Price-Mars, por exemplo, mesmo depois de considerar a

dificuldade de uma delimitação de fronteiras entre os “domínios” da magia e da religião,

acaba diferenciando um “domínio” do outro pelo “tipo de crença” que lhes seriam

característicos. Segundo ele, as “crenças religiosas” possuiriam “a virtude de nos reunir

em comunidade, de tornar mais sensíveis os laços que ligam os indivíduos uns aos

outros.” Já as “crenças mágicas são obrigadas a se cercar de mistérios por aspirar pelo

medo à dominação das almas e não se difundem a não ser entre os raros iniciados. Elas

revelam por isso um caráter particularmente individualista. Neste sentido, notamos que

se existem comunidades religiosas, não existem comunidades mágicas” (Price-Mars, J.

1928:37).

“Sem dúvida, na civilização ocidental, a magia não vive mais que em um estado

de sobrevivências curiosas...” (Durkheim, E., apud. Price-Mars, 1928:36-37). Conforme

mencionado anteriormente, parte da atenção de Price-Mars e de Hurbon está voltada

para buscar justificativas para a presença da magia no Vodu, como se esta presença

56

ameaçasse o estatuto do Vodu como uma verdadeira religião. As saídas encontradas por

estes dois autores são, no entanto, muito diferentes. Price-Mars tinha uma postura

evolucionista diante desta questão e acreditava que com o avanço do “conhecimento”, a

“crença na magia” se tornaria cada vez mais restrita. Como a magia é vista pelo autor

como algo que poderia atrapalhar seu esforço em provar que o Vodu era uma religião,

ele passa a argumentar no sentido de que faria parte de outras religiões também. Sua

maior ou menor presença apenas nos informaria o quanto a religião já “avançou”,

caminhou em direção à modernidade. Ou seja, Price-Mars se coloca numa posição onde

admite que magia e religião são duas formas distintas de crença, mas como seu objetivo

é defender a classificação do Vodu enquanto religião, sua saída para justificar as

práticas mágicas dos voduisantes é afirmar que as religiões passam por um processo

evolutivo do qual a magia é constitutiva, principalmente nas etapas iniciais. Logo, o

Vodu como ainda conta com “crenças mágicas”, é uma “religião primitiva”, mas mesmo

assim uma religião.

Ao contrário de Price-Mars, Hurbon não vê razões para o estabelecimento de

uma distinção precisa entre magia e religião. A magia seria “como uma estrutura

permanente da humanidade. Ela não é um obstáculo ao espírito científico e nem ao

espírito religioso. Ela pode estar em todas as situações, religiosas, irreligiosas ou a-

religiosas” (Hurbon, L., 1987:159). Com base nos argumentos desenvolvidos por Lévi-

Strauss, sustenta que o procedimento mágico é apenas um modo de lidar com a

realidade diferente do modo científico, não estando nem em oposição e nem em uma

linearidade com ele. Dito de outra maneira, Hurbon ao mesmo tempo em que coloca a

magia ao lado da ciência e da religião e não em uma posição de anterioridade a uma ou

outra, sustenta que ela faz parte da humanidade e por causa disso pode estar presente em

diversos contextos. Seguindo a lógica de seus argumentos, não haveria qualquer

57

problema de sua presença no Vodu, ou seja, ela não representaria uma ameaça ao

estatuto de “sistema religioso” e nem o classificaria como primitivo.

Para Hurbon a magia, a feitiçaria e a religião seriam “aspectos” do sistema

Vodu. Assim como Price-Mars, também sustenta que a magia faz parte do Vodu, só

que, ao contrário dele esta característica não faz com que o Vodu seja primitivo. Em

Dieu dans le Vaudou Haïtien, a magia e a feitiçaria constituem um “modelo de

interpretação para os males” de que dispõem os “voduisantes” (Hurbon, 1987:158). Para

lidar com estes males existiriam três personagens denominados ugã, boko e feiticeiro

que segundo Hurbon “são criados por um consenso social, sempre ligados uns aos

outros, para evitar o imprevisível, graças aos poderes sobrenaturais dos quais eles

dispõem, ou melhor, dos quais ele se tornam depositários...” (Hurbon,1987:162). A

diferença residiria nos usos que cada um faz dos poderes que tem. O feiticeiro utilizaria

estes poderes apenas para fazer o mal, o ugã, ao contrário, apenas para o bem, e o boko

(ugã que “trabalha com as duas mãos”) seria aquele personagem que utilizaria seus

poderes para o bem ou para o mal.

Neste sentido, sua definição de feitiçaria fica muito clara: ela é um “aspecto” e

uma prática utilizada exclusivamente para o mal. Podemos encontrar uma definição do

que seriam os aspectos mágicos do sistema Vodu se observarmos a seguinte passagem:

“entre o ugã e o feiticeiro, existe o boko que ocupa uma posição mediana, aquela que

passeia livremente nas regiões do mal (feiticeiro) e do bem (ugã). Aqui aparece

particularmente imprecisa a distinção entre magia e religião” (Hurbon,1987:163). Se

somarmos a isso o fato dele, por vezes, empregar as palavras magia e feitiçaria

indistintamente e sustentar que os serviços do ugã “devem estar orientados para o bem,

quer dizer para fins apenas curativos e religiosos” (Hurbon,1987:165), podemos

58

imaginar que os aspectos mágicos correspondem ao mal e os aspectos religiosos, ao

bem, em uma relação de oposição dentro de um sistema religioso maior que é o Vodu26.

Algumas vezes, a palavra feitiçaria pode ser associada ao termo magia negra

(voltada para o mal) em oposição à magia branca (voltada para o bem). De acordo com

Métraux, a “magia negra”, sinônimo de feitiçaria, seria aquela voltada exclusivamente

para o mal. Dentre os elementos que são associados a ela no trabalho de Métraux estão,

por exemplo, os serviços feitos pelos feiticeiros de expedição dos mortos, onde um

morto é enviado para afligir uma determinada pessoa considerada inocente. A compra

de espíritos também é interpretada como sendo do domínio da “magia negra”, assim

como a feitura de zumbis. Já a magia branca é definida por Métraux como profilática.

Fariam parte dela principalmente os tratamentos rituais de cura contra a “feitiçaria”, as

formas de se proteger de feitiços por meio de talismãs e amuletos, assim como os

banhos de ervas que também possuem finalidades protetoras e curativas. Uma outra

forma de denominação que apareceu para estas duas espécies de magia foi o de

qualificá-las simplesmente como boa ou má, como o fez mais freqüentemente

Herskovits. A “magia boa” seria segundo Herskovits, “uma forma socialmente

desejável”, em contrapartida a “magia má” é classificada como agressiva, destrutiva e

com manifestações anti-sociais” (Herskovits,1971:241).

Conforme já foi dito, Herskovits e Métraux chamam a atenção para as diferenças

de emprego do termo magia como feito por eles, e aquele que é entendido pelos

haitianos. Na opinião de Métraux, por exemplo, “muitos haitianos, no seu desejo de

lavar o Vodu das imputações que ele freqüentemente carregou, opõem com vigor culto

dos loas e magia. Uma tal distinção não é válida a não ser se dermos à palavra ‘magia’ o

sentido restrito de magia negra ou de feitiçaria” (Métraux, 1958:236). De acordo com 26 Em um trecho do livro Dieu dans le Vaudou Haïtien, Hurbon utiliza a palavra feitiçaria como sinônimo de magia negra (p. 166), o que torna confuso saber exatamente o que ele está entendendo por magia sem o qualificativo “negra”.

59

este autor, os adeptos do Vodu adotariam um critério moral para a definição do que é

magia que na sua opinião não seria válido, a não ser se restringido aos sentidos atribuído

aos termos “magia negra” ou “feitiçaria” que seriam usados exclusivamente para o mal.

No sentido considerado por Métraux, a magia foi então vista como “toda manipulação

de forças ocultas, toda utilização de propriedades imanentes às coisas ou aos seres, toda

técnica pela qual o mundo sobrenatural se deixa dominar e utilizar para fins pessoais”

(Métraux,1958:236). Ou seja, Métraux alarga o significado do conceito de magia

conforme utilizado pelos haitianos, o que faz com que ele passe a englobar também

outras ações que não seriam voltadas para apenas o mal, mas também com fins

protetores e curativos. De acordo com ele, neste sentido, a magia faz parte da religião

Vodu, se misturando com ela, de maneira que torna impossível o estabelecimento de

uma fronteira precisa que separe uma da outra.

Já Herskovits ressalta que “o termo magia empregado por um haitiano não

significa a mesma coisa que o emprego da palavra ‘magic’ por um Europeu. Para o

estudante, o vasto corpo de práticas médico-mágicas haitianas, prescritas e

administradas por aqueles que conhecem como manipular o sobrenatural e por aqueles

cujos remédios são baseados principalmente no conhecimento herdado dos poderes

curativos de ervas e raízes, são todos agrupados sob a rubrica de magia”

(Herskovits,1971:223-224). Para o “nativo” existiria, no entanto, “uma diferença de

primeira ordem entre um tratamento para cura, e a magia empregada para a proteção

contra as injúrias ou para causá-las a um outro”. (Herskovits,1971:224). A principal

característica da magia, tal como sustenta Herskovits, seria o fato dela sempre operar

em circunstâncias específicas, independente de seus fins serem considerados bons ou

malévolos”. Além disso, Herskovits sustenta que a magia forma um sistema em si

60

própria, devendo ser vista como algo aparte do culto Vodu, mas não em oposição aos

serviços e a adoração aos loas.

A presença da magia também foi associada ao “ambiente”, ou “clima social” no

qual viveriam os haitianos. Conforme explicitado no argumento de Métraux,

“certamente, a herança cultural da África reencontrou um clima social propício, um

ambiente de miséria e ignorância que favorece a crença de espécies mágicas das mais

variadas” (Métraux, 1958:239). No entanto, exatamente como ocorre com a religião

Vodu, a magia Vodu também teria recebido contribuições não apenas da África, mas

também da Europa. Isso é inclusive lembrado por Métraux quando ele sustenta, em

continuidade com o que foi dito acima que “pela constância de falar da África,

esquecemos a França cuja contribuição para a magia e para a feitiçaria haitianas está

longe de ser negligenciável [...] O mundo da magia européia não é muito diferente

daquele da África” (Métraux,1958:239). Tudo isso nos remete para a questão da relação

entre o Vodu e a barbárie, pois o fato de lembrar da influência da magia européia não

impede que Métraux continue a pensar que a magia do Vodu seja uma característica de

pessoas “ignorantes”, como ele próprio chamou. Além do mais, “a magia proliferou no

Haiti um pouco à maneira das ervas daninhas, em uma clareira tropical” (Métraux,

1958:239) o que, obviamente, não aconteceu na Europa na medida em que esta jamais

aparece associada à miséria, à ignorância, à não-civilização e, no limite, à barbárie.

São as idéias de ignorância e de incapacidade de pensamento racional ou lógico

que parecem finalmente estar em jogo em alguns argumentos desenvolvidos por

Richman quando ela trata da feitiçaria. Reproduzo aqui um trecho exemplar: “A família

de Toro tinha que dar sentido para a perda de seu querido e zeloso migrante. Eles

encontraram a resposta na feitiçaria. Eles culparam um vizinho acessível ao invés de um

remoto sistema que transforma os camponeses haitianos em pwen para o capital

61

transnacional. A narrativa da feitiçaria providencia uma outra maneira para a Guiné se

destituir da sua responsabilidade por transformar migrantes em pwen.” (Richman,

2005:208). A leitura desta passagem nos leva a pensar que o migrante de Richman não

parece ter noção da exploração à qual ele está submetido, ou seja, parece ser incapaz de

chegar a uma conclusão deste tipo. Por conta disso, porque o “sistema capitalista” é

“remoto”, este migrante acaba colocando a culpa na feitiçaria e não no sistema, como

deveria ser.

Como Richman extrapola os limites de suas interpretações baseadas única e

exclusivamente em questões sociais, a palavra Magia sempre aparece relacionada à

Guiné, e esta relação é meramente uma forma camponesa de representação da

sociedade. Magia seria um símbolo para as relações de contrato destes camponeses com

estrangeiros, para uma vida regulada pelo dinheiro, além de representar um poder que é

ilegítimo, na medida em que não é herdado, mas sim procurado. Além disso, ela

sustenta que os imigrantes são os principais alvos de feitiçaria e também são

freqüentemente acusados de serem eles próprios feiticeiros, na medida em que a

acumulação de riquezas é vista como moralmente suspeita pelos haitianos. A morte de

seu principal interlocutor, por exemplo, foi vista por uma parte da família como causa

de um enfeitiçamento e, por outra parte, como resultado dele próprio ter feito um

feitiço, por meio da compra de um espírito (pwen).

Em relação aos trabalhos aqui analisados podemos afirmar que de uma maneira

geral, a magia e a feitiçaria são tratadas como partes ou “aspectos” do Vodu, como

recursos que os voduisantes possuiriam dentro deste universo para explicar os seus

males, para satisfazer seus desejos ou, ainda para se proteger. Price-Mars vê a magia

como algo que ameaça a classificação do Vodu como uma religião. Por conta disso ele

sente a necessidade de justificar a presença de “crenças mágicas” no Vodu. Sua saída é

62

afirmar que estas “crenças” seriam características de todas as religiões, mas sobretudo

daquelas mais “primitivas”, em estágios menos avançados em relação à modernidade. Já

Hurbon discorda da idéia da magia como um signo de primitividade e argumenta que o

Vodu é um “sistema religioso e cultural” que contém aspectos religiosos e mágicos e

que a magia sendo inerente à humanidade pode aparecer em diversos contextos, sejam

religiosos ou não.

Métraux, ao associar o “florescimento” da magia ao “clima de miséria e

ignorância” do Haiti, parece justamente concordar com Price-Mars quando este defende

que nas civilizações ocidentais a magia poderia ser vista apenas por meio de

“sobrevivências curiosas”. Ou seja, tanto em Price-Mars quanto em Métraux à magia

surge como uma característica de sociedades ainda não modernas.

Se levarmos em conta as descrições encontradas na literatura acadêmica

chegaremos à conclusão de que não é qualquer pessoa que está autorizada a fazer magia e

feitiçaria. Assim, uma característica comum a todos estes trabalhos é a presença de

agentes responsáveis por isso, os ugãs, bokos e feiticeiros. Além disso, a magia parece ser

sempre tratada como um elemento, um aspecto ou algo que faz parte do Vodu enquanto

um “sistema religioso”. No entanto, ela aparece sempre como uma forma de fazer o mal

ou se proteger da ação deste mal. Ou seja, o termo magia só é mencionado quando os

autores passam a descrever ou analisar as explicações que os voduisantes têm para os

males, as formas encontradas por eles para resolvê-los ou para causá-los a outras pessoas.

Conclusões

Este capítulo teve como objetivo oferecer uma leitura de algumas obras que falam do

Vodu haitiano. Procurei apresentar as principais questões que formam um campo ou

uma rede discursiva, a partir da qual tornam-se possíveis às abordagens relativas a este

63

tema. O capítulo organizou-se em cinco tópicos referentes a estas questões. Se

quisermos, podemos imaginar que eles encontram-se dispostos de uma maneira que vai

da sociedade para a cultura. Neste movimento são apresentadas as ligações construídas

entre o Vodu e o Haiti, a partir do estabelecimento de relações metonímicas e/ou

metafóricas entre os dois, as dicotomias (barbárie x civilização e massa x elite) que são

consideradas como sendo algo da “natureza” da sociedade haitiana, as interpretações do

Vodu em termos funcionalistas, até chegar às discussões acerca da religião e da magia.

Se até aqui nossa atenção estava voltada para o Vodu conforme foi tratado pela

literatura acadêmica, no capítulo seguinte haverá uma mudança de registro. Isso

significa que as próximas observações, baseadas no trabalho de campo, nos conduzirão

a reflexões acerca do vodu e da magia tal como se apresentavam no cotidiano das

pessoas com as quais eu convivi. Este vodu, com v minúsculo, constitui um universo de

referências que se revela nos diversos usos dos termos maji e mistike e se distancia dos

sentidos atribuídos ao Vodu tal como pensado por esta literatura. Ainda assim, posso

dizer que vivi em Jacmel alguns contextos de interação, nos quais os estereótipos

relacionados ao Vodu e sistematizados pelos autores discutidos no capítulo anterior

também apareciam, o que nos leva a pensar não apenas em distâncias, mas também em

aproximações da literatura com o campo e das interações das pessoas com os

estereotipos que a literatura traduz e elabora. Somando-se a isso, veremos situações

concretas onde fica claramente demonstrado que a magia que está em jogo no dia a dia

das pessoas não pode ser vista apenas como uma dimensão pertencente ao Vodu, mas

como algo que ultrapassa a associação religiosa (tal como pensada pela literatura)

atingindo a todas as esferas da vida social.

64

Capítulo 2 – A magia em Jacmel

Neste capítulo faço uma reflexão sobre os usos e significados atribuídos pelas pessoas

que conheci em Jacmel aos termos maji e mistike. Estes termos são empregados para se

referir a elementos, características ou ações reconhecidas explícita ou implicitamente

como pertencentes ao universo do vodu. Além disso, eles podem compreender

experiências com seres humanos ou não humanos, ou objetos considerados como sendo

“místicos” ou “mágicos” em casos que, dependendo do ponto de vista, podem não ser

encarados como tendo relação com o vodu. Estas duas palavras encontram-se

amplamente difundidas, fazendo parte do vocabulário e das práticas cotidianas das

pessoas de Jacmel.

Como ficará demonstrado a partir dos exemplos etnográficos, os termos maji e

mistike podem ser substantivo, adjetivo e verbo, assim como a idéia de mana, explorada

por Mauss e Hubert (2003). Cabe chamar a atenção para o fato de que apesar destes

vocábulos serem utilizados como sinônimos, nas minhas interações em Jacmel o termo

maji foi mais freqüentemente empregado que o termo mistike e por isso aparecerá com

mais freqüência aqui.27

Os objetos, pessoas e ações chamados assim eram aqueles considerados pelos

meus interlocutores como detentores de algum tipo de poder ou força, o que fazia com

que tivessem a capacidade de produzir mudanças no mundo. Em outras palavras, isso

quer dizer que a magia constituía-se em um meio pelo qual era possível causar

modificações e novos arranjos em situações pré-existentes, além de ser um principio de

explicação para determinados acontecimentos.

27 Algumas vezes utilizarei a palavra magia, tradução direta do termo maji, como uma forma de tornar a leitura mais simplificada. Nestes casos, a “magia” estará substituindo os dois termos.

65

Segundo Malinowski (1974:90-91), o poder da magia não está localizado no

mana das coisas, mas sim no próprio homem, por meio do segredo que passa de geração

em geração e dos rituais. Em Jacmel temos uma combinação do mana com a proposição

feita por Malinowski. Alguns objetos por serem considerados mágicos carregam em si

uma força (como é o caso dos amuletos, por exemplo) e não precisam da intervenção

humana para alcançar os resultados que se deseja. Por outro lado, temos situações

mágicas que combinam objetos e ações, sendo as duas coisas consideradas essenciais

para o sucesso da magia.

Vodu e vodu

Como vimos no primeiro capítulo, o Vodu foi compreendido pela literatura acadêmica

dentro de certos parâmetros ou enunciados que formam uma rede de sentidos de onde se

torna possível falar sobre ele. Nesta direção, o Vodu foi pensado a partir de reflexões

sobre o próprio Haiti (a partir da construção de uma relação metonímica e/ou metafórica

entre os dois), sobre a “natureza” dicotômica da sociedade haitiana, sobre suas funções

e, finalmente sobre as suas relações com a religião e com a magia. O termo Vodu com

V maiúsculo reuniria em si, todas estas idéias.

No entanto, os dados etnográficos que serão apresentados aqui permitem outras

formas de compreensão e abordagem, onde o que está em jogo é o vodu, com v

minúsculo, tal e como aparece no dia a dia da vida das pessoas com as quais interagi em

Jacmel. Se distanciando das relações estabelecidas pela literatura acadêmica por meio

de contrastes ou deslocamentos de sentidos, o vodu que se revela a partir da magia da

qual as pessoas falam e a qual se referem cotidianamente conta com um universo mais

amplo e diferente.

66

Com isso não estou querendo dizer que os meus interlocutores não refletiam

acerca de suas práticas e discursos ou que as pessoas nunca falassem do Vodu. Em

certas situações o vodu aparecia relacionado a algumas questões trazidas pela literatura

acadêmica. Posso citar o exemplo de Bayar28, um pastor batista que ao estabelecer uma

diferença entre o Vodu-religião e o Vodu-folclore parecia interagir exatamente com esse

Vodu com V maiúsculo. Isso abre, por sua vez, uma outra questão interessante, relativa

às percepções que no dia a dia as pessoas tem do Vodu com v maiúsculo, isto é, dos

estereótipos ligados ao Vodu e das imagens construídas sobre ele pela literatura, pela

mídia e, principalmente, levadas em consideração nas relações com os estrangeiros.

Conforme discutirei um pouco mais adiante isso ficava especialmente evidente em

alguns contextos de interação comigo, uma blanc (gringa), a qual os haitianos pensavam

procurar pelo Vodu.

O Vodu é a religião da maior parte da população haitiana. Mesmo quando os haitianos se convertem ao protestantismo é muito difícil largar os hábitos anteriores e abandonar as práticas do Vodu. Só que o Vodu é ruim, é uma religião que serve ao diabo e por isso o Haiti está nesta situação de miséria, de fome de falta de emprego. Já o Vodu que é folclore, que é arte, que atrai o turismo este não tem nenhum perigo pois faz parte da cultura haitiana.

Por meio desta fala podemos perceber que Bayar não apenas considerou o Vodu como

uma religião, como também emitiu seu ponto de vista sobre que tipo de religião ele é,

ligada à barbárie. Neste caso, emitiu um juízo de valor: o Vodu é “ruim” e “serve ao

diabo”, além disso é culpado pela “situação” em que se encontra o seu país. Neste ponto

podemos lembrar o artigo de Omar Ribeiro Thomaz (2005) acerca da percepção das

elites haitianas sobre a pobreza. Segundo o autor, apesar dos jovens pertencentes às

elites intelectuais sustentarem que o Vodu é uma religião que deve ser respeitada,

aqueles que são mais velhos vêem o Vodu como um “problema” e como causa do

“atraso” e da “pobreza” em que vive a maior parte da população haitiana. Em 28 Mais informações sobre quem é Bayar serão acrescentadas posteriormente.

67

contrapartida, o Vodu pode ser folclore e desta maneira foi considerado por Bayar como

bom e inofensivo. Além disso, quando afirma que o Vodu-folclore, “fazia parte” da

“cultura haitiana” estava, de certa forma, reconhecendo no Vodu também o próprio

Haiti, assim como o fizeram os autores apresentados no primeiro capítulo.

Como vimos há um “discurso dominante” que se produziu principalmente fora

do Haiti que associou o Vodu à barbárie e a selvageria. No entanto, os estigmas ligados

ao exotismo do Vodu, utilizados para denegrir a imagem do Haiti, também podem ser

resignificados pelos próprios haitianos, adquirindo um caráter positivo, se

transformados em cultura, por exemplo. Além disso, podem ser utilizados em situações

específicas de acordo com o caráter da interações que estão em jogo. Herzfeld se refere

a esta situação quando sustenta que “o ator se apropria dos estereótipos de um discurso

dominante, alargando-os para servir aos seus próprios interesses.” (1992:72). Esta

proposição parece ir ao ponto quando se trata das relações entre os estrangeiros que vão

ao Haiti e o vodu.

Sendo assim, a característica “exótica” do vodu pode ser fortemente explorada

por aquele que está nos informando, dado que a interação conosco, pesquisadores, é, na

verdade, uma interação com um estrangeiro (um blanc) ao qual são atribuídas estas

representações dominantes sobre o que seja o vodu. São situações em que a pessoa, já

sabendo que existe uma procura do Vodu por parte destes estrangeiros, por causa dos

estereótipos ligados ao exotismo, ao mistério, à magia negra etc, podem começar a fazer

questão de ressaltar mais ainda este rótulo. Em alguns momentos, tive a impressão de

que os ugãs que conheci tentavam me impressionar ou me fazer ficar com medo daquilo

que diziam, tendo em mente esta imagem estereotipada do Vodu que é projetada para

fora do Haiti. Isso ocorria principalmente quando eles afirmavam, por exemplo, que

eram o “diabo” ou então quando me perguntavam se eu tinha medo dele (do “diabo”).

68

Nestas situações não pude deixar de pensar naquilo que eu mesma representava,

como uma estrangeira que queria saber sobre vodu, num contexto em que talvez

importasse menos “decifrar os enunciados – ou aquilo que é dito – do que compreender

quem fala, e para quem.” (Favret-Saada, 1977:32). O trabalho desenvolvido por esta

autora sobre feitiçaria no Bocage é um exemplo de como os estereótipos negativos

ligados a um objeto de pesquisa podem dificultá-la ou trazer novos desafios. Assim

como o Vodu no Haiti, a feitiçaria no Bocage era vista pelo “discurso público” como

sinal de atraso. Em contrapartida, enquanto no Bocage ninguém queria falar sobre

feitiçaria por causa dos seus rótulos negativos, em Jacmel a situação foi bem diferente,

na medida em que as pessoas falavam abertamente sobre vodu e magia.

Se um estereótipo negativo pode, de certa maneira, “atrapalhar” (pelo menos

inicialmente, como no caso de Favret-Saada) uma pesquisa, devemos ressaltar que um

rótulo negativo que passa a ser valorizado como cultura também. Ou seja, a partir do

momento em que o vodu passa a ser folclore e cultura, passível de ser vendida, ou ainda

um atributo de identidade que distingue os estrangeiros e coloca a relação com eles no

registro específico dos estereótipos já mencionados acima (ligados ao mistério, ao

exotismo, à magia negra etc), os pesquisadores podem se ver frente a outros desafios.

Estes contextos os obrigam a reformular seus objetos e reconduzir a própria pesquisa de

maneira a aproveitar as circunstâncias por vezes inesperadas.

Ao discutir isso penso em outras situações que ocorreram quando estava em

Jacmel. Certo dia, por exemplo, eu e Felipe, um colega da nossa equipe de pesquisa, nos

deparamos com um destes desafios. Estávamos juntos, quando um amigo de Felipe nos

levou para conhecer um tio seu que “sabia de magia”. Durante a conversa, ele propôs

que a gente pagasse e em troca ele nos levaria até um lugar onde alguém “faria uma

magia”, uma espécie de demonstração. Ou seja, ia ser uma coisa preparada

69

exclusivamente para nós, em uma situação forjada, exatamente o contrário daquilo que

eu desejava.

Lembrando da fala de Bayar, onde o vodu é associado à arte, ao folclore e ao

turismo podemos, portanto, ver um vodu que, conforme mencionado acima é

considerado positivo e passa a ser valorizado como representativo da “cultura” haitiana

sendo transformado em mercadoria e objeto de atração para estrangeiros. Apenas como

um exemplo que torna evidente a existência deste vodu como “cultura” e como arte a

ser comercializada podemos citar o chamado “setor dos turistas”, localizado no antigo

Marché em Fer, em Porto Príncipe, reservado a venda de objetos vodu.29 Dentre os

objetos referentes a “arte vodu” temos, por exemplo, os “drapeaux vodu”.30 Neles, são

bordados com miçangas coloridas os chamados vèvès, desenhos feitos com símbolos

que representam os loas.

Foto 5 – Drapeau com o vèvè do loa Papa Gede (Imagem extraída de Hurbon, 1993)

Foto 6 – Drapeau com o vèvè do loa Erzulie Freda (Imagem extraída de Hurbon, 1993)

29 Devido a um incêndio ocorrido no Marché em Fer, em 2008, este setor não existe mais. 30 Em Pétion Ville, município colado em Porto Príncipe, capital do Haiti há uma galeria onde podem ser encontrados por preços, as vezes, altíssimos produtos classificados como “arte vodu” Ver site: http://www.galeriedartnader.com

70

No que diz respeito às relações estabelecidas pelos meus interlocutores entre vodu e

Haiti estava sempre em jogo também a idéia da cultura nacional. Assim como o futebol

ou o samba são, por exemplo, identificados com o Brasil, o Vodu podia ser reconhecido

como aquilo que caracterizava o próprio Haiti. Certo dia, enquanto conversava com

Merlande, uma conhecida de Laënnec Hurbon que se hospedou por um fim-de-semana

na nossa casa, ela falou:

No Haiti, todo mundo tem, no mínimo, uma pessoa na família que é mistike31. Além disso, mesmo que uma pessoa não faça mistike, ela conhece como se faz, porque isso faz parte da cultura haitiana.

Idéias assim parecem reproduzir os discursos sobre caráter nacional na medida em que

pressupõem uma homogeneidade cultural entre os haitianos como se o Haiti “pudesse

ser considerado um sujeito coletivo, com características análogas aos sujeitos empíricos

que o habitam.” (Neiburg, 2001).

Outras pessoas, em outros contextos falaram do Vodu o que nos permite

enxergar não apenas diferenças entre o Vodu e o vodu, mas também aproximações ou

deslocamentos de sentidos. No entanto, se o Vodu da literatura acadêmica congrega

todas as discussões já mencionadas, dialogando com estereótipos e estigmatizações,

quando os meus interlocutores falavam de Vodu geralmente estavam identificando-o ou

com a magia ou com a religião ou com a nação, assim como o fez Bayar. Ninguém

parecia estar preocupado com as suas funções ou se ele expressava ou não a natureza

dicotômica da sociedade haitiana. Ainda que tenha havido contextos de aproximação

entre aquilo que estava em jogo no Vodu da literatura e no vodu do cotidiano, devo

ressaltar que a partir daqui utilizarei o v maiúsculo apenas quando estiver me referindo à

literatura.

31 Dentre outras acepções, o termo mistike é utilizado para se referir àquelas pessoas que são do vodu e aqui era este o caso.

71

Maji e mistike: uma reflexão sobre os termos

Conforme havia assinalado no início do capítulo, maji e mistike podiam ser relacionadas

ao vodu pelas pessoas com as quais interagi no campo. Neste caso, o vodu ganhava o

estatuto de “religião” num contexto no qual era comparado a outras religiões, como, por

exemplo, quando era diferenciado das religiões protestantes por conta de suas práticas.

Desta maneira, quem é voduisante fé maji [faz magia] e quem é protestante não. Cabe

ressaltar aqui que esta não era a opinião apenas de protestantes querendo desqualificar o

outro, mas também de alguns dos próprios voduisantes que conheci. Entretanto, se as

palavras maji e mistike serviam para denominar a prática daqueles que eram adeptos do

vodu, ao mesmo tempo designava outras coisas. Conforme veremos, elas podiam ser

utilizada para resolver aquilo que é considerado como um problema, para proteção, para

alcançar sucesso, para evitar traições ou até mesmo para nomear um tipo especial de

experiência.

De qualquer forma, foi por meio dos usos e das falas relacionadas a estes dois

termos que o universo vodu apareceu para mim, em Jacmel. Os anjos, os santos, os

espíritos, as preces e a bíblia são considerados como seres ou coisas que são ou têm

maji ou mistike. Certa vez, por exemplo, ouvi que “bondie [Bom Deus] é o maior

mistike de todos os seres mistikes”. Além disso, expressões como fé mistike ou fé maji

são utilizadas em diversas ocasiões para qualificar uma determinada ação como sendo

“mágica” ou “mística”. Enquanto estava em Jacmel apenas Fritz, um amigo de Felipe

que morava perto da nossa casa, preocupou-se em diferenciar os termos maji e mistike.

Mistike é fazer coisas com espíritos ou então mover objetos sem encostar as mãos. É algo mais mental. O maçom trabalha no nível da mistike. Já a maji é uma coisa mais braçal, do tipo uma pessoa vai lá e faz com as mãos uma maji, embora também com espíritos. A mistike e a maji pertencem a um sistema que tem três partes: em primeiro lugar está o padre, em segundo está

72

o maçom e em terceiro está o ugã. O pastor não faz parte deste sistema, se ele fizer deixa de ser pastor. Ou então ele conhece e esconde.32

Na medida em que anjos, santos e espíritos são considerados seres mágicos ou

místicos, podemos afirmar que o envolvimento de seres não humanos é um dos fatores

cuja presença caracteriza uma ação “mágica”. No entanto, outras ações que não

envolvem estes seres também podem ser consideradas “mágicas”. Neste caso, quando

alguém, por exemplo, usa um amuleto dentro da bolsa como uma forma de proteção e

diz que isso é “fazer magia”, o que parece estar em jogo é uma propriedade inerente à

coisa utilizada. A coisa é por si própria dotada de uma capacidade de ação no mundo.

Assim, esta capacidade de agir no mundo seja por meio de seres “invisíveis” como são

caracterizados os espíritos, seja por meio de uma propriedade que tem certos objetos é

chamada de maji ou mistike.

Meu objetivo é buscar compreender os usos e significados atribuídos a estes

termos, tal como foram empregados em diversos momentos e por diferentes pessoas.

Neste sentido, a maji e a mistike, podem ser uma forma de explicação para determinados

acontecimentos, uma qualidade ou estado de algo ou alguém, ou simplesmente a

designação para um ato.

A Organization Tete Ansamble

Conforme já havia mencionado na introdução, quando cheguei ao Haiti pensava em

estudar a “religião” Vodu. Por conta disso, em um primeiro momento, grande parte dos

meus esforços se voltaram para a procura do que, na minha opinião, deveria compor tal 32 Em Métraux podemos encontrar uma referência sobre as possíveis influências da franco-maçonaria no vodu. Neste caso, ele se pergunta se a franco-maçonaria teria sua parte nos cerimoniais Vodu ao que responde: “Dizem. Chegam até mesmo a assegurar que alguns ugãs são filiados a lojas. Certamente, nos desenhos simbólicos das divindades, reconhecemos signos maçônicos. Haveria até mesmo loas maçons [...]. O que quer que seja, a influência maçônica foi fraca e sem nenhuma dúvida superficial.” (Métraux, 1958:140). Apesar desta conclusão de Métraux, a etnografia em Jacmel nos trouxe algumas evidências que nos levam a pensar o contrário. Em relação a outras sociedades secretas relacionadas ao vodu no Haiti, ver Métraux, (1958:259-266) e Hurbon (1988:175-186).

73

“religião”. Assim, busquei me aproximar de pessoas que achava que certamente tinham

uma ligação com o Vodu. Freqüentei ufós, conheci ugãs e mambôs, me aproximei de

uma loja onde eram vendidos objetos que eram, reconhecidamente pela população local,

destinados às práticas Vodu. Procurava por cerimônias e rituais, imaginava cantos,

danças e possessões.

Um certo dia, já no final da tarde, eu e José Renato, colega que fazia parte da

nossa equipe, resolvemos procurar por uma mambô que nos disseram morar perto do

cemitério. Não achamos a pessoa que havia nos indicado, mas sim outra que também

morava ali por perto. Entramos em sua casa, onde havia um altar Vodu, conversamos

um pouco, mas ela estava de saída e nos convidou para acompanhá-la. Estávamos

realmente muito cansados, tínhamos acabado de chegar de um ufó que ficava um pouco

distante, numa área rural de Jacmel. Apesar disso acabamos aceitando, pois estávamos

quase certos de que íamos a uma cerimônia em algum outro ufó. Eu estava muito feliz

para pensar que estava cansada. A alegria durou pouco, somente até descobrirmos que

sim, a mambô tinha nos levado até um ufó, mas ao contrário de uma cerimônia o que

estava acontecendo era uma reunião de uma ONG!

A OTAN como é mais comumente chamada a Organization Tete Ansamble

constitui uma espécie de rede de ajuda mútua. Suas reuniões ocorriam geralmente

durante os finais de semana, nos sábados ou domingos, sempre no final da tarde. Foi

para uma destas reuniões que eu e o José Renato fomos transportados naquele dia. O

presidente da OTAN é Rodrigues, um senhor de 65 anos de idade que trabalha no ramo

da construção civil, realizando obras em estradas e ruas de Jacmel.

74

Foto 7 – Da esquerda para a direita: membro da OTAN, eu, Rodrigues, José Renato e Lionel (filho de Rodrigues) no ufó em dia de reunião.

Rodrigues está no seu quarto casamento e tem 16 filhos, dos quais quatro ou cinco

moram com ele. Uma filha mora em Nova York, nos EUA, e os outros estão espalhados

pelo Haiti, morando em Porto Príncipe e Marbial. Rodrigues é ugã e seus pais também

eram ugã e mambô. Sua casa, localizada bem no centro de Jacmel, é no mesmo local

que o seu ufó. Ao conjunto casa + ufó, ele dá o nome de lakou.33.

Não é fácil (pelo menos para um estrangeiro, não familiarizado com os sinais do

vodu), enxergar da rua, o ufó de Rodrigues. A fachada da casa esconde por completo o

espaço central onde se localiza o peristilo. Ao entrarmos, passamos por um corredor

bem estreito e escuro onde havia duas portas. A primeira, logo à direita dava acesso ao

quarto de Rodrigues. Já a segunda, no final do corredor à esquerda era a entrada para

um outro quarto que continha em seu interior uma cama de solteiro, um altar vodu e

uma outra porta por onde podíamos chegar (assim como se seguíssemos o corredor até o

seu fim) a uma espécie de pátio coberto quadrangular com um peristilo no centro. O ufó

33 Lakou é a unidade familiar residencial básica do meio rural haitiano, ainda que existam lakous urbanos. Referências sobre lakou podem ser encontradas em Marcelin, Louis H., 1996 e também Bastien, Rémy, 1985.

75

contava ainda com alguns espaços dedicados aos loas que Rodrigues servia. Se

estivermos de costas para a estreita passagem que nos conduziu ao pátio e andarmos em

sentido anti-horário, passaremos por cinco entradas. A primeira, conforme já descrito,

nos conduz para o quarto onde se encontra o altar. A segunda nos leva a um pequeno

espaço que possui uma casinha bem pequenininha construída de cimento. Neste lugar

mora o espírito Danti. A terceira entrada nos leva a um quarto que tem uma grande cruz

preta ao centro e as paredes pintadas com caveiras e outros símbolos que na época não

fui capaz de identificar. Neste lugar estão o espírito Bawon Samidi e os espíritos dos

pais de Rodrigues. Através da quarta entrada temos acesso a um quintal com uma árvore

onde habita o espírito Bakoulou. A quinta e última entrada constitui-se, na verdade, em

uma larga passagem que liga o ufó com a rua. No entanto, dificilmente este acesso era

utilizado e na maioria das vezes, ele estava repleto de entulho. Este local era reservado a

Papa Legba, considerado pelos voduisantes como sendo o “guardião das entradas”. (ver

desenho do ufó no anexo, pág. 105).

As reuniões da OTAN sempre aconteciam no seu ufó. O desapontamento inicial

gerado pelo fato de não termos ido ao encontro de uma cerimônia Vodu logo foi

substituído por um sentimento de esperança. No final das contas, estar presente naquelas

reuniões era um ótimo pretexto para estar em contato com um ugã, com um ufó e, no

limite, com o Vodu que eu imaginava. Além disso, Rodrigues nos informou que sim,

haveria uma cerimônia. Ela estava marcada para o início do mês de maio, quando uma

pessoa da família dele deveria chegar dos EUA. Eu estava novamente no paraíso.

Neste mesmo dia conhecemos além de Rodrigues, Bayar, o vice-presidente da

OTAN, e a quem já fiz referência no início deste capítulo. Bayar tem 32 anos e é diretor

de uma escola batista. É pastor, solteiro, e possui três igrejas batistas, além de ser

presidente de uma ONG chamada Union des Chretiens Evangeliques pour la Promotion

76

de Vie Economique et Sociale des Demunis (UCEPROVESOD), cujo objetivo é ajudar

na reconstrução de casas destruídas por enchentes e furacões. O fato de Bayar ser

protestante e ainda mais pastor me deixou um pouco confusa. Como assim? Eu pensava

na intolerância religiosa que sabemos existir no Brasil entre protestantes e os adeptos às

religiões de origem africana.

Não estou afirmando que não exista intolerância religiosa no Haiti e nem que os

protestantes de lá sejam menos radicais em sua doutrina que os daqui, mesmo porque o

próprio Rodrigues definiu Bayar como um “pastor progressista.” Estou apenas relatando

uma surpresa diante de uma situação que era estranha para mim. Enquanto estava no

Haiti conheci pessoas que se diziam protestantes mas que praticavam maji ou estavam

bem próximas do universo vodu, conforme será discutido posteriormente.

Rodrigues e Bayar se tornaram duas pessoas com as quais eu mantive um

contato freqüente pelo tempo em que estive em Jacmel. Nossas relações acabaram se

estendendo para além dos encontros que aconteciam por causa das reuniões da OTAN.

Conheci a igreja de Bayar e a família de Rodrigues. Passei a ir mais vezes ao ufó de

Rodrigues e quase sempre ele estava disposto a conversar. O dia marcado para a

cerimônia se aproximava quando Rodrigues nos avisou que ela havia sido cancelada. A

pessoa que ia chegar tinha ficado doente e sem sua presença não seria realizada a tão

aguardada cerimônia. A próxima seria somente em novembro e eu já não estaria lá.

No entanto, nem tudo foi desapontamento. Afinal o vodu estava lá e as

referências a ele encontravam-se por todos os lados. No mercado de Jacmel, nas ruas,

nas músicas, nas conversas. Como seria estudar este vodu, aquele que não era

exatamente o que eu procurava, mas que foi o que se apresentou? Começou a me

chamar atenção às maneiras pelas quais as pessoas se reportavam ao vodu. Em Jacmel

era muito difícil encontrar alguém que se referisse àquilo que estava ligado ao universo

77

vodu utilizando esse termo. As palavras mais utilizadas eram maji e mistike. Mais

concretamente, não ouvi ninguém dizendo que “fazia vodu” ou que uma determinada

coisa era para “fazer vodu”, ou uma cerimônia vodu. Percebi que o termo era utilizado

para falar de religião. A religião seria o vodu. No entanto, o ufó, o lugar onde, dentre

outras coisas, podem acontecer cerimônias consideradas como vodu, é apontado como o

lugar onde se faz maji.

A maji e a mistike como princípio de explicação

a) O caso de Merlande e suas irmãs gêmeas

Irmãos gêmeos têm grande poder no Haiti. “Os gêmeos (marassa) vivos e

mortos são investidos de um poder sobrenatural que faz deles seres excepcionais.”

(Métraux, 1958:129). Além de poderosos, os gêmeos também são considerados “trés

mechantes”, conforme nos contou Merlande, uma mulher de mais ou menos 40 anos,

moradora de Porto Príncipe.

Como já mencionado, conhecemos Merlande por intermédio de Laënnec Hurbon

quando ela e uma prima estavam passeando em Jacmel e se hospedaram em nossa casa

durante um fim de semana. Merlande é católica, assim como sua mãe que atualmente

vive em Nova York, nos EUA. Seu pai, já falecido era pastor batista. Foi assim,

enquanto tomávamos café e conversávamos tranqüilamente sobre sua família que ela

nos contou que tinha duas irmãs marassa, ou seja, gêmeas. Falei que eu também tinha

primas gêmeas e, a partir daí, a conversa girou em torno dos significados de ter gêmeos

na família.

Merlande e sua prima consideram que irmãos gêmeos têm muito poder e são

muito maldosos, podendo causar problemas para os seus familiares, sobretudo se não

78

tem às suas vontades atendidas. Entretanto, este poder, do qual os gêmeos são

detentores, não é igual: “sempre tem um pior que o outro, que é mais forte.” Com suas

irmãs não era diferente, uma tinha um poder “mais forte” e, por isso, também parecia

ser mais mimada em relação aos seus desejos e manhas quando era uma criança.

Quando éramos crianças, uma das gêmeas (a pior) pediu um pedaço de bolo para nossa mãe, que vendia no mercado bolo, biscoito entre outras coisas. Ela não deu. Falou que ia dar somente depois da escola. Neste dia, nossa mãe não vendeu nada no mercado.

O fato da mãe não vender nada naquele dia foi atribuído à puissance [potência]

que a filha possuía pelo fato dela ser mistike. Neste caso, não houve qualquer ação

concreta por parte da filha, dirigida contra a mãe, ela não fez nada, a não ser ficar com

raiva. Ou seja, o que gerou a má sorte da mãe parece ter sido apenas o sentimento de

raiva da sua filha que, aborrecida por não ter um capricho atendido, acabou interferindo

nas vendas da mãe. Assim como as bruxas entre os azande, o que está em jogo aqui é

que a qualidade de ser mistike, como a de ser bruxa é intrínseca ao indivíduo. De acordo

com Evans-Pritchard, “um bruxo não pratica ritos, não profere encantações e não possui

drogas mágicas. Um ato de bruxaria é um ato psíquico.” (Evans-Pritchard, E.E.,

2005:33). Este parece ser exatamente o caso da irmã de Merlande, ela nasceu gêmea e,

por isso é mistike. Esta qualidade inerente fez com que seu ato fosse puramente

psíquico, bastando um sentimento para causar algo que foi considerado como má sorte.

Este caso é bem diferente do que se segue, quando as duas irmãs gêmeas, já

adultas, passaram pela seguinte situação: uma delas trabalhava em uma ONG

internacional que funcionava em Porto Príncipe até que ficou grávida e, aproximando-se

do momento de ter o bebê se juntou à mãe em Nova York, com o objetivo de ter o bebê

nos EUA. Nas palavras de Merlande:

Quando minha irmã estava lá começou a pensar que alguém havia feito mistike para ela, para tomar seu lugar no trabalho. Ela ligou para o Haiti e todo mundo, para não fazer mal ao bebê, falava para ela que era besteira,

79

para esquecer isso. Um dia ela (a irmã que estava em Nova York) teve um sonho com o pai. Neste sonho ele dizia que uma pessoa (que era exatamente a pessoa da qual ela estava desconfiada, uma colombiana) havia feito maji para tomar seu lugar no trabalho. Ela ligou de novo para o Haiti e desta vez falou com nossa irmã (gêmea dela) sobre o sonho. Nossa irmã falou para ela esquecer, mas isto foi apenas por causa do bebê, por receio de que algo de mal pudesse acontecer a ele. Depois que o bebê nasceu e ela retornou ao Haiti, a irmã gêmea que havia ficado fez mistike para a colombiana deixar o Haiti em sete dias, não para ela morrer, mas apenas para ela ir embora e esquecer que o Haiti existe.

A partir desta fala é possível perceber que a magia é algo que transcende as

próprias fronteiras do Haiti. Os trabalhos de Richman (2005) e McCarthy Brown (1995)

que, como vimos no primeiro capítulo, realizaram suas pesquisas com imigrantes

haitianos nos EUA, chamam a atenção justamente para este ponto. A convivência com

estes imigrantes permite a estas duas autoras perceber a importância que dos laços

familiares entre aqueles que deixam o Haiti e aqueles que ficam.

Nestes dois trabalhos, a força que dessas relações de parentesco são evidenciadas

por meio de obrigações relacionadas ao vodu e à magia. Richman, por exemplo, mostra

como estes imigrantes podem ser afligidos pelos loas que lhes causam doenças e

acidentes senão cumprirem com certas exigências espirituais. Assim, seus interlocutores

precisavam sempre estar mandando dinheiro para que, dentre outras coisas, os parentes

possam realizar os rituais necessários que servem como uma espécie de manutenção das

relações entre os imigrantes, a família e os espíritos.

Merlande nos mostrou como a maji foi feita. Pegou um prato que estava em

cima da mesa e disse que suas irmãs tinham ido até um rio. Depois começou a rodar o

prato e a repetir o que sua irmã teria falado: “você vai deixar o Haiti em sete dias.”

Além disso, pedia ao loa para “não assassinar a colombiana, apenas para deixar o

Haiti.”

O tipo de formulação mágica empregado aqui parece se diferenciar das que são

mencionadas nas análises feitas por Malinowski (1965). De acordo com este autor as

80

formulações mágicas possuem ao mesmo tempo um grau de estranheza e de

inteligibilidade. A linguagem mágica é estranha na medida em que se diferencia da

linguagem ordinária. Sendo assim, pode conter palavras desprovidas de sentido se

colocadas fora daquilo que ele chama de “discurso mágico”, referências mitológicas ou

então o emprego irregular de alguns termos. Apesar disso, uma formulação mágica pode

conter também palavras que tenham um significado na linguagem ordinária, o que

facilita ao pesquisador a tradução e compreensão.

No entanto, ao contrário do caráter duplo de estranheza e inteligibilidade

atribuído por Malinowisk ao discurso mágico, o que se passa aqui é uma verdadeira

ordem que deve ser entendida pelo loa que neste caso fala a mesma língua que a irmã de

Merlande, ou seja creóle haitiano. O espírito não deve assassinar a colombiana. Nada

temos na sentença pronunciada pela irmã de Merlande que nos faça pensar em palavras

obscuras, metafóricas ou distantes de seu sentido ordinário.

Se no primeiro caso o sentimento de raiva, ou seja um ato psíquico, seguindo a

interpretação de Evans-Pritchard, de uma das gêmeas foi suficiente para causar uma

realidade, no segundo foi preciso empregar o que Merlande denominou como sendo

uma contra-mistike, algo que pudesse desfazer a mistike que havia sido feita em

primeiro lugar pela colombiana. Neste caso, até mesmo os loas tiveram que entrar em

cena e o que estava em jogo era uma ação mágica, a qual não poderia ser anulada

apenas por um ato psíquico. Para que uma nova configuração fosse gerada era preciso

dar uma resposta do mesmo tipo e foi isso que aconteceu.

Ao contrário, da situação encontrada por Evans-Pritchard, na qual “a diferença

entre um feiticeiro e um bruxo é que o primeiro usa a técnica da magia e extrai seu

poder das drogas, enquanto o segundo age sem ritos ou encantações, utilizando poderes

psicofísicos hereditários para atingir seus objetivos” (2005:186), o que fica demonstrado

81

no segundo caso é que o termo mistike engloba pessoas que entre os azande poderiam

ser consideradas bruxas ou feiticeiras. Assim, enquanto entre os azande uma pessoa que

faz ritos e encantações seria chamada de feiticeira e não de bruxa, sendo a bruxaria

considerada um fenômeno hereditário, nos dois casos considerados aqui a palavra

mistike é utilizada seja para designar uma pessoa cujo ato foi apenas psíquico, seja para

nomear aquela que agiu por meio de rituais.

b) O Brasil na Copa do Mundo de 1998

Segundo Merlande, não são apenas os haitianos que fazem magia. Outras

pessoas, de outros países também, como foi inclusive o caso da colombiana relatado

anteriormente. Além disso, ela e sua prima relacionaram o poder político ou econômico,

por exemplo com o ato de fazer magia. Quando alguém é detentor de algum cargo

público importante, como os presidentes do Haiti ou de outros países, a prática da magia

torna-se indispensável, tanto para chegar a ter o poder quanto para manter afastadas as

pessoas invejosas. Neste ponto vemos um exemplo prático de uma associação cotidiana

da magia e do vodu com a política não apenas haitiana, mas sim de todos os países.

Os jogadores de futebol também podem fazem magia para ganhar uma partida,

por exemplo. Merlande e sua prima lembraram que o time brasileiro se reúne em um

círculo antes do começo dos jogos e a isso chamaram de maji. Como são figuras

públicas e famosas correm um maior risco de serem atingidos por magia.

Durante a Copa do Mundo de 1998, o Brasil disputava a final com a França. O time brasileiro era o favorito, ele tinha o melhor time e os melhores jogadores do mundo. Ele não poderia perder. Mas mesmo assim ele perdeu. Por que? Fizeram magia. No final da partida, um francês de origem senegalesa fé mistike para o time brasileiro. Ele deu a volta no campo com um galo na mão e os jogadores do Brasil, Ronaldo, Rivaldo, ficaram com cara de bobos, atordoados e nem viram a bola passar na frente deles. Por causa disso, a França acabou fazendo o gol da vitória.

82

Nos três casos apresentados aqui, a magia foi à causa atribuída para que alguma

coisa acontecesse. No entanto, os três são diferentes entre si. No primeiro, um

sentimento ruim por parte de uma pessoa que é considerada como sendo mistike causou

uma má sorte a uma pessoa “comum”. Em contrapartida, no segundo, não foi um ato

psíquico que ocasionou uma mudança no mundo objetivo, mas sim um verdadeiro

ritual, uma contra-magia, uma ação mágica para desfazer uma primeira ação também

“mágica”. Enquanto no primeiro o ato psíquico teve um efeito sobre o mundo objetivo

porque a pessoa tinha como qualidade intrínseca a ela o fato de ser mistike, no segundo,

além da pessoa ser mistike, a própria ação também foi. A referência ao vodu é muito

clara; há um ritual feito na beira de um rio e os loas são acionados.

Já no terceiro caso, não se trata nem de reparar uma situação por meios mágicos,

nem de um ato psíquico por parte de um mistike. O que temos é uma ação considerada

mágica cujo objetivo era produzir um efeito no mundo objetivo, que era visto como

improvável se a magia não tivesse atuado. Poderíamos dizer que esta “ação mágica” se

constitui em uma primeira ação, assim como aquela feita pela colombiana para que a

irmã de Merlande perdesse o emprego. Estas duas ações não foram e não poderiam ser

classificadas, por assim dizer, como uma “contra-magia”, na medida em que o propósito

desta é, antes de ocasionar uma mudança no mundo objetivo, reparar uma primeira ação

mágica.

Evans-Pritchard aponta que entre os azande, o principal objetivo da magia “é

combater outras forças místicas, muito mais do que produzir mudanças no mundo

objetivo que favoreçam o homem” (Evans-Pritchard, 2005:206). Tomando como base

os exemplos descritos acima podemos afirmar que os objetivos da magia com a qual me

deparei em Jacmel são, ao contrário dos propósitos da magia zande, produzir efeitos e

mudanças no mundo. Embora possamos ter o exemplo da contra-magia, onde o mais

83

importante é o restabelecimento de uma condição primeira, anterior àquela que se

produziu por efeito da magia. Neste sentido a maji surge como algo capaz de “desfazer

o feito e reparar o dano que havia causado.” (Malinowski, 1974:103). Ainda assim este

restabelecimento acaba provocando também uma mudança em uma determinada

configuração.

Como veremos, alguns outros exemplos etnográficos que serão descritos aqui se

encaixam mais ou menos neste padrão, no qual a magia é utilizada para explicar um

determinado acontecimento (geralmente ligados aos infortúnios) ou ainda para causar

uma transformação em uma situação pré-existente.

A maji como causa de infortúnios e sofrimento

Certo dia, enquanto conversava com Bayar sobre maji, ele falou:

Aqui no Haiti já existe o risco iminente de ser atingido por maji. Se uma pessoa não se protege ela certamente vai sofrer por causa da maji.

O termo maji pode ser empregado para explicar infortúnios. Neste sentido a

explicação é sempre feita por uma pessoa para atacar uma outra e, no limite, levá-la à

morte. Geralmente estes infortúnios estão relacionados principalmente às doenças, aos

acidentes e às questões de emprego ou de dinheiro. Enquanto os acidentes parecem

sempre ter uma causa estranha, nem todas as doenças são entendidas como sendo

resultado de maji.

Algumas delas, por exemplo, podem “vir de bondie” [Bom Deus], enquanto

outras podem ser hereditárias. A idéia de “vir de bondie”, geralmente é associada a

alguma coisa que é “natural”, ou seja algo que não parece “estranho”. “As doenças

vindas de bondie, apenas bondie pode curar, através de milagres.” Esta fala expressa por

Madame Étude, uma senhora que se dizia protestante, dona de uma loja próxima ao

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centro de Jacmel, que vendia objetos para serem utilizados em práticas de vodu, parece

ser senso comum entre as pessoas que conheci.

Foto 8 – Madame Étude na porta de sua loja

A AIDS, no entanto parece ser um exemplo de uma doença “vinda de bondie”, mas que

não é curada por ele. Nas palavras de Madame Étude:

A AIDS é uma doença que vem de bondie, mas como atinge pessoas que não tem um parceiro fixo é vista por ele (por bondie) com maus olhos. Como bondie condena este tipo de comportamento, ele não cura a AIDS.

Por meio desta fala, a AIDS assemelha-se, portanto, mais a um castigo divino

por causa de um comportamento considerado indevido por Deus, do que alguma doença

considerada “natural”. Já as doenças causadas por maji

bondie pode curar, mas como ele está distante dos homens é preciso fazer uma outra maji, que seja mais forte do que a primeira.

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Madame Étude nasceu e cresceu em Marigot, onde dava cursos de economia

doméstica para moças. Em 1986, deixou Marigot para morar em Porto Príncipe, onde

deu aulas de agricultura em uma escola e trabalhou em casa de família. Em 2000

retornou para Marigot onde abriu sua loja, até transferi-la para Jacmel em 2007.

Madame Étude nunca se casou e mora atualmente em um quarto que fica atrás de sua

loja com uma jovem que foi sua aluna em Marigot.

Foto 9 – Jovem que vive com Madame Étude em uma fotografia no interior da loja

Ramon, um ugã que conheci por intermédio de Rodrigues quando ele nos levou

(eu e Felipe) para conhecer um lugar chamado Carrefour Pingüim, também falou sobre

as doenças.

86

Foto 10 – Da esquerda para a direita: Rodrigues, Felipe e Ramon em seu ufó

Ramon foi à única pessoa que não utilizou o termo maji, mas sim fetiche. No entanto, ao

ser perguntado sobre o que significava fetiche, ele respondeu: fé maji.

As doenças provocadas por fetiche podem ser curadas, mas a cura para elas é alcançada da seguinte forma: é preciso encontrar um espírito mais forte do que aquele que causou a doença. A doença hereditária também tem cura, mas tem que perguntar qual é a cura, se é através de um espírito ou da medicina. As doenças que vêm de bondie dificilmente têm cura, a não ser por meio de um milagre.

Ramon nos chamou para conhecer seu ufó e sua casa que ficava no mesmo

lugar. Nós entramos e ficamos um tempo conversando primeiro dentro de sua casa e

depois em um dos quartos que compõem o ufó onde havia um caixão no meio. Dentre

todos os ufós que conheci em Jacmel, este foi o que me pareceu ter as maiores

dimensões. Nas paredes do lugar central, onde se localiza o peristilo tinham imagens

de Ezili Freda e outros espíritos que não identifiquei. Além disso, havia a palavra

Guiné escrita em letras bem grandes. Tanto Rodrigues quanto Ramon diziam não

poder falar sobre vodu. Os dois em momentos diferentes falaram que era segredo.

87

Com Rodrigues, que eu via freqüentemente, tentei falar algumas vezes, sem sucesso.

Com Ramon, foi a mesma coisa.

No entanto, neste dia quando os dois juntos começaram a falar que não podiam

dizer nada sobre vodu porque era segredo, surgiu no meio da conversa, uma informação

que colocava Rodrigues e Ramon em uma relação hierarquizada. O fato é que tanto

Ramon, quanto Rodrigues afirmavam que Ramon “tinha mais poder”, era um ugã “mais

forte” que Rodrigues porque “conhecia mais segredos.” De acordo com eles, o poder

que um ugã possui depende da quantidade de segredos que ele conhece, de maneira que,

quanto mais segredos, mais poder. Não podemos dissociar o lugar no qual Ramon foi

colocado por ele mesmo e por Rodrigues ao fato dele ser uma pessoa que já viajou por

vários países como Cuba, Jamaica e Suécia, e também a sua participação em uma

espécie de encontro de cultura popular com pessoas de diversos lugares do mundo. Este

encontro resultou em um livro com fotografias de vários objetos utilizados no vodu e

um pequeno texto explicativo embaixo.

Cabe ressaltar aqui que, senão podemos separar o status de Ramon destes

fatores, isso deve ser compreendido como uma via de mão dupla. Assim, poderíamos

atribuir a causa do seu status a estas coisas que ele já fez, como viajar, participar do

encontro ou até mesmo ganhar um certo reconhecimento internacional. No entanto, não

é desta maneira que ele e Rodrigues vêem. Para eles o que ocorre é justamente o

contrário, de forma que todos estes fatores só se “tornaram possíveis” porque Ramon

“conhece mais segredos” e conseqüentemente “tem mais poder.”

Neste dia, entramos numa área bem rural, com pequenas plantações, um

caminho de terra e alguns rios para atravessar. O objetivo do nosso passeio era

Rodrigues nos mostrar aonde ele pegava as ervas com as quais fazia remédios.

88

Foto 11 – Rodrigues e eu no dia do passeio Foto 12 – Rodrigues no dia do passeio

Ao longo do caminho Rodrigues apanhava várias destas ervas e ia explicando para que

tipos de males serviam. Em vários pontos da nossa caminhada tínhamos que parar para

conversar com os amigos que Rodrigues encontrava. Dentre estes amigos, os mais

significativos foram justamente Ramon e uma outra senhora cujo nome não me recordo,

mas que era parteira e que se juntou a Rodrigues para mostrar e explicar para que

serviam algumas “ervas”. Várias podiam ser utilizadas contra doenças, como por

exemplo dores de cabeça, febres, gases, verrugas, gripes etc. Além disso, algumas

também serviam para afastar maus espíritos tanto de adultos quanto de crianças.

Quando alguém fica doente por causa de uma maji significa que há um espírito

lhe fazendo mal e que seu destino, a não ser que tome as providências necessárias, é a

morte. Em relação às doenças, a solução, a cura, passa necessariamente pelas mãos de

um especialista, geralmente um ugã, uma mambô ou um pastor. No entanto, os

procedimentos de cura utilizados são diferentes. Teoricamente, os pastores não fazem

maji nem para causar doenças e nem para curá-las. Assim, os métodos de cura utilizados

pelos pastores e pelos ugãs e mambôs são essencialmente diferentes. Enquanto os

primeiros expulsam os espíritos que estão afligindo à pessoa, numa espécie de

“exorcismo” que não é considerado por eles próprios como magia, poderíamos dizer

que os segundos “dão o troco na mesma moeda”, ou seja solucionam o problema

89

acionando outros espíritos que possam combater os primeiros. A partir daí trava-se uma

espécie de guerra ou batalha entre estes especialistas e que se estende ao plano

espiritual onde o acerto de contas passa a depender da intensidade dos poderes dos

espíritos.

O exorcismo feito pelos pastores protestantes também pode ser feito pelos

padres católicos. Um dia, enquanto andávamos pelas ruas de Jacmel, Rodrigues parou

para conversar com um homem que, posteriormente, disse ser padre. Meio espantada eu

falei: “padre”? Ao que ele me respondeu: “sim padre, da igreja, sabe? É ele que cura

minha dor de cabeça quando é por causa de espíritos.” Como assim? Eu perguntei. Ele

fez um gesto imitando o que o padre fazia, onde colocou a própria mão na cabeça e

falou: “ele manda o espírito embora porque ele é padre.”

Estas ações que compreendem os exorcismos feitos por pastores e padres e o

envio de espíritos por parte dos ugãs e mambôs, parecem depender sempre da

intermediação destes especialistas para que possam surtir efeito. Assim, embora haja

uma diferença no método empregado, são eles as pessoas que reconhecidamente sabem

como lidar com isso, e que estão autorizados a resolver este tipo de problema. Estes

especialistas são responsáveis por acionar o universo dos espíritos ou dos loas, são eles

sobretudo que podem e que sabem como fazer isso, sejam eles protestantes, católicos ou

voduisantes.

Certo dia, em um dos cultos realizados na igreja de Bayar, ele apontou para

um dos jovens que estava sentado e explicou como o havia livrado de morrer por

causa da maji

Aquele rapaz veio me procurar, ele era ugã. Tinha um espírito atrás dele para matá-lo. Atrás não, do lado. Eu perguntei ao espírito de onde ele vinha e o que estava fazendo ali. Ele falou que estava ali para assassinar aquele jovem. Com certeza era maji, porque na casa do jovem tinham todas as coisas que alguém usa para fazer maji para o mal, tinham facas e garrafas.

90

Neste caso, um outro ugã, incomodado com a concorrência que o tal rapaz

representava, foi quem enviou o espírito para assassiná-lo. Perguntei a Bayar de que

forma este assassinato iria ocorrer, como o espírito que estava do lado do rapaz poderia

finalmente matá-lo. Bayar afirmou que quando um espírito é enviado para assassinar

uma pessoa, ficando do seu lado, esta pessoa pode “ficar doente até morrer” ou então

“sofrer um acidente”, como ser atropelada, por exemplo.

Um outro elemento que deve ser destacado da fala de Bayar é o fato dele

especificar que a maji com a qual o rapaz estava envolvido era “para o mal”. Eu já havia

conversado com outros protestantes em Jacmel e nenhum deles duvidava da existência

da maji, ou seja de que uma pessoa pudesse fazer o “mal” contra outra por meios

mágicos. Para estes protestantes, tudo aquilo que estivesse relacionado ao vodu era maji

e representava o “mal”. No entanto, Bayar diferenciava a maji feita para o “mal”, ao

qual ele relacionava com o vodu, de uma outra que ele denominou simplesmente de

maji e que para ele não tinha nada a ver com o vodu.

Conforme veremos mais adiante, outras pessoas, em outros momentos também

separaram o termo maji em dois, definindo-o conforme suas intenções fossem

qualificadas como sendo para o mal ou não. Para Bayar, os pastores protestantes, por

serem pessoas “preparadas” poderiam ter experiências que ele chamou de “mágicas”

como “ser montado por um espírito”.34 Para Bayar, as pessoas “preparadas” são os

pastores, os padres, os ugãs e mambôs. São estas pessoas que “aprendem” a lidar com

os espíritos e com a maji. Este aprendizado não é adquirido da mesma maneira por estes

personagens. Enquanto os pastores e padres “estudam”, obtendo seu conhecimento por

34 Aqui, apesar da expressão “ser montado por um espírito” utilizada por Bayar, seja a mesma que os voduisantes usam, ele fez questão de falar que isso não era vodu.

91

meio de uma “escola”, ugãs e mambôs aprendem por meio da tradição que é passada

para eles pelos seus ancestrais35.

Um pastor, ou qualquer pessoa que seja preparada pode ser montado por um espírito, e este espírito pode através da pessoa falar com as outras. Ao contrário dos anjos que só falam a língua dos anjos, os espíritos podem falar qualquer língua. Eu mesmo já tive uma experiência destas [...] ela é totalmente controlada. Você acende uma vela, faz uma prece, chama o espírito. Agora não se deve fazer isso com os anjos. Os anjos refletem sua imagem, enquanto os espíritos montam em você. Os anjos podem refletir qualquer imagem humana e se aproveitar desta imagem para terem uma forma. Os espíritos podem ter qualquer forma, os anjos não. Ter uma experiência deste tipo com os anjos é perigoso, ver um anjo também, pois o tempo da sua vida se reduz em cinco ou até mesmo dez anos.

A todas estas experiências Bayar deu o nome de maji. Esta maji não está voltada

para o mal e, portanto não pode ser usada como explicação para as doenças ou para os

acidentes. Tampouco ela está voltada para o bem, parecendo ser simplesmente um modo

de fazer as coisas, um nome para descrever experiências que apenas colocam em

contato seres humanos com anjos ou espíritos.

Conforme descrito acima, uma pessoa qualquer pode fazer maji para

“assassinar” uma outra. Para isso, no entanto, ela precisa de um intermediário, um

especialista, como estou chamando, aquele que tem o poder de acessar o universo dos

espíritos para isso. Quando a maji é para causar um mal a alguém, geralmente o

especialista é um ugã ou uma mambô. Aqui é importante que fique bem claro que todos

os ugãs que eu conheci falaram explicitamente que podiam fazer o “mal”. Ou seja, o ato

de fazer maji para o “mal” era precisamente associado ao vodu, tanto pelos voduisantes

quanto pelos protestantes.

35 Os ancestrais podem ser os pais, os avós ou os espíritos.

92

A maji que não é para o “mal” e a maji como “proteção”

A experiência mágica de Bayar é um exemplo em que a maji não aparece como uma

explicação para os infortúnios, mas apenas qualifica um tipo de prática, aquela de poder

entrar em contato com um universo não-humano. A maji também pode ser utilizada

apenas para garantir proteção. Étude e Merlande foram às pessoas que mais me

forneceram exemplos de como a maji poderia ser a forma de designar certas coisas e

também ser utilizada com outras finalidades que não o mal, como a proteção, por

exemplo.

A loja de Madame Étude estava cheia de objetos que eram para fazer maji.

Facões, garrafas decoradas, bonecos e cordas penduradas no teto, potes bem

pequenininhos contendo pós coloridos, imagens de santos, bastões, chocalhos e muitas

outras coisas ajudavam na composição do pequeno espaço físico que continha a loja.

Nem todos aqueles objetos eram para fazer maji para o “mal”. Alguns podiam ser

usados, por exemplo, como amuletos protetores. Eu mesma comprei umas sementinhas

que, se colocadas na bolsa ou em qualquer lugar próximo do corpo, embrulhadas em um

pequeno papel onde estava escrita uma prece, serviam para proteger contra a

perseguição de possíveis inimigos. As preces, aliás, eram consideradas por Madame

Étude como uma forma eficaz de “se tornar invisível diante dos olhos dos inimigos”. No

mercado de Jacmel e também na loja de Étude encontram-se a venda pequenos papéis

aonde de um lado vem impresso o nome de um santo e do outro uma prece que é sempre

igual.36

36 A prece impressa nestes papéis é a seguinte: « Le Jour du Brave est le Lundi et le Samedi, allez au cimetiere allumez une bougie et dites votre priere en la terminant dites croix sous touche au salut eternel de venir a moi qui suis expose aux naufrage de ne me succomber dans les attaques de mes ennemis qui cherchent a me perdre. Oh ! Troupeau fortune, elu du ciel, intervenez pour moi et faites les me laisser en paix et preservez-moi de tout danger. Grand Radegond qui est complimente par eux-meme, intervenez pour me defendre de tout danger de morte t conduisez-moi jusqu’a la paorte du ciel, au nom de Dieu Pere, Dieu, le Fils et Dieu le St. Espreit. Amen. Trois Pater et trois Ave ».

93

Segundo Madame Étude, todas estas preces são para fazer maji e para proteção.

Uma tarde mostrei algumas que tinha comprado no mercado para Madame Étude e

perguntei sobre o fato de todas terem o mesmo texto. Ela me explicou que cada uma era

destinada a um “santo” diferente e era isso que fazia a diferença.

Na hora de fazer a prece o nome do santo para a qual ela é destinada deve ser falado bem claramente. Você acende uma bougie37 e fala o nome dele. Depois faz a prece e, no final fala de novo. Quando terminar a prece ela deve ser queimada e transformada em cinzas. Você pega estas cinzas e ingere com algum líquido, pode ser água, suco ou café. Isso traz proteção porque a pessoa se torna invisível aos olhos daqueles que lhe querem fazer mal.

Da mesma maneira, os habitantes de Jacmel, já tem proteção garantida por Saint

Jacques, le majeur e Saint Felipe, padroeiros da cidade. De acordo com o que me

contou Madame Étude, estes dois “santos” podem, da mesma forma que as sementinhas

citadas acima, “tornar os moradores de Jacmel invisíveis aos olhos dos inimigos.” Além

disso, por conta da proteção garantida por estes dois santos, “quem não é de Jacmel e

tenta fazer algum mal para quem é de Jacmel, não volta vivo para casa.” Madame Étude

dizia que estas coisas eram maji, mas como serviam para proteção não eram para o

“mal”. Para ela, que freqüentava uma igreja protestante, os loas eram os “santos” da

igreja católica e os “santos” eram “diabos”, espécies de “anjos caídos” que teriam se

revoltado contra Deus.

Havia objetos, como alguns bonecos, que podiam ser utilizados em rituais para

descobrir os números da loteria, para “ir bem” nos negócios, ou então para evitar

traições amorosas. Geralmente, estes rituais consistiam em acender uma bougie, fazer

uma prece, pegar o boneco, jogar clairin em volta deles seguindo a ordem dos pontos

cardeais e seguir adiante conforme o objetivo da maji. Os bonecos destinados a manter a

37 Bougie é uma espécie de vela, do mesmo tamanho, cuja chama é bem forte, como se fosse uma pequena tocha. Em Porto Príncipe e em Jacmel podem ser encontradas nas cores preta, vermelha, laranja e branca.

94

fidelidade eram feitos de pano pela própria Madame Étude. Podiam ser do sexo

masculino ou feminino e nas cores preta, vermelha, branca ou verde. Estas cores

correspondiam, segundo Madame Étude, ao tipo de maji que seria feita: o preto para

maji noir, o vermelho para maji rouge e o branco para maji blanc. O verde não foi

definido. Merlande também fez alusão, embora muito brevemente, às cores da maji. Nas

paredes da casa que havíamos alugado em Jacmel estavam algumas fotografias do

proprietário e de sua família. Quando Merlande passou o fim de semana conosco notou

um destes retratos no qual ele estava vestido com roupas que o caracterizavam como

mestre de loja maçom. Neste caso ela mencionou que a maçonaria era maji branca.

Tanto a aquisição de amuletos protetores, quanto o ritual para fazer as preces,

descrito acima e todos os outros para ter sorte, amor ou dinheiro foram chamados de

maji por Madame Étude, e o ato de fazer quaisquer destas coisas era chamado de fé

maji. Uma característica importante a ser notada aqui é que este tipo de maji podia ser

feito por qualquer pessoa e não necessitava da ajuda de especialistas.

Um outro exemplo de maji que podia ser feita por qualquer um aparece no relato

de Lionel, um dos filhos de Rodrigues. Uma noite eu, Felipe e ele estávamos em casa

vendo um filme quando acabou a luz. Enquanto esperávamos, na expectativa que a luz

voltasse, começamos a conversar sobre a emigração de haitianos para outros países

quando ele começou a falar sobre os haitianos que tentam entrar ilegalmente nos EUA,

os boat-people.

As pessoas que viajam nestes barcos têm o costume de fé maji para se transformarem em comida e passarem tranqüilamente pela guarda costeira americana. Uma vez, uma mulher se transformou em um cacho de bananas e as outras pessoas se transformaram em outras comidas como, por exemplo, sacos de arroz ou de batatas. Um dos guardas arrancou uma banana do cacho e comeu. Depois quando as pessoas que estavam transformadas em comida, voltaram a ser pessoas, a mulher que tinha se transformado em um cacho de bananas estava com um dente faltando. Este dente era exatamente a banana que o guarda tinha comido. Outras vezes as pessoas fazem um

95

vento muito forte, tão forte que cria uma nuvem que faz com que a guarda costeira não consiga ver o barco na hora em que ele está passando.

Segundo Lionel, muitos haitianos tentavam entrar desta forma nos EUA, mas

depois de um acidente ocorrido por volta de 2006, onde um dos barcos afundou e muita

gente morreu, as tentativas diminuíram. A isso somava-se o fato do reforço por parte

dos EUA de sua guarda costeira, o que tornava ainda mais difícil e mais arriscado tal

empreendimento.

A maji e sua relação com protestantes e voduisantes

Certamente as pessoas com as quais eu convivi em Jacmel tinham percepções e

interpretações variadas daquilo que entendiam como sendo maji. Conheci alguns

protestantes que tinham uma posição aparentemente radical em relação aos seus

significados. Neste caso, a maji era entendida como uma prática atrelada ao vodu, na

medida em que quem é voduisante faz maji. Além disso, ela também representava

estritamente o mal, personificado na idéia de “demônio” ou “diabo”. Para Kattelie e

Filomene duas jovens com as quais fiz amizade e que eram batistas desde que tinham

nascido, o vodu era “coisa do diabo”. Elas duas, o irmão da Kattelie e outros

protestantes, como duas mulheres que conheci no mercado de Jacmel, afirmavam ainda

que bondie não gostava de maji e não gostava que “adorassem outra coisa senão a ele

próprio”.

96

Foto 13 – Da esquerda para a direita: Filomene e Kattelie

No sentido atribuído ao termo por Kattelie e Filomene, ele era um rótulo

negativo específico para os voduisantes. Apesar de sua posição radical, elas e outros

protestantes não duvidam da existência da magia e nem de sua capacidade de fazer o

“mal”. Situação semelhante a esta foi analisada por Peter Fry no artigo “O Espírito

Santo contra o feitiço e os espíritos revoltados”. Nele, o autor afirma que os protestantes

de Chimoio38 “não colocam em questão a realidade da feitiçaria; antes pelo contrário. O

que prometem é uma solução definitiva para seus efeitos...” (Fry, 2000:90) .

Em Jacmel, o significado de ser protestante estava relacionado à idéia de ser um

“bom cristão”, ou seja, “ter fé de verdade”, e era considerado o jeito mais eficaz de se

proteger da maji. De acordo com Madame Étude, muitos protestantes haitianos fazem

maji. “Eles não são bons cristãos”. Esta sentença possui um duplo significado. Em

primeiro lugar ela aponta para a existência de protestantes que, pelo menos em teoria,

não deveriam fazer maji (entendida no sentido radicalmente negativo dado ao termo),

mas fazem. Em segundo lugar, ela se referia a pessoas que poderiam ser a qualquer 38 Conforme as informações fornecidas pelo próprio autor, Chimoio é a capital da província central de Manica, em Moçambique, lugar onde ele realizou sua pesquisa.

97

momento alvo desta mesma maji. Ou seja, ser um “bom cristão” significa, sobretudo,

não ter qualquer contato com maji. Um “bom cristão” não faz maji e ao mesmo tempo

não pode ser atingido por ela. Cabe ressaltar que esta idéia não está presente apenas

entre protestantes, mas também entre católicos, voduisantes e até mesmo entre aqueles

que não são tão definidos em relação à religião que seguiam.

Madame Étude, assim como Bayar, se consideram “bons cristãos”. No

entanto, ela é uma protestante que pensa e age diferente de outros como Kattelie

e Filomene, por exemplo. Primeiro pelo seu próprio trabalho, afinal ter uma loja

que vende destinados a práticas consideradas mágicas seria impensável por

protestantes como Kattelie ou Filomene. Além disso, ela não só vendia estes

produtos, como muitos deles era ela também que fazia. Eu mesma estava certa de

que Madame Étude era voduisante até descobrir, quase na hora de voltar para o

Brasil, que ela era batista. Quando, posteriormente conversamos sobre o fato dela

ser protestante e ter aquela loja, ela respondeu algo do tipo “negócios são

negócios”, o que não quer dizer de forma alguma que ela duvide ou coloque em

questão a a eficácia da magia. Madame Étude contou que sua mãe era católica,

mas que ela tinha sido criada por uma tia batista que desde que ela era bem

pequena a levava para esta igreja. Uma de suas irmãs também era protestante, era

inclusive missionária e não morava permanentemente no Haiti por causa das

viagens realizadas por conta da missão da qual fazia parte.

Ainda com base nos relatos descritos anteriormente pudemos ver que Bayar é

um outro exemplo de protestante que pensa diferente daqueles protestantes mais

radicais como Kattelie e Filomene, chegando mesmo a admitir ter passado por uma

experiência “mística”, ainda que tenha feito questão de ressaltar que isso não tinha

nenhuma relação com o vodu. Assim, de acordo com ele o significado de maji nem

98

sempre está ligado ao mal e até mesmo dentro da religião Vodu podem ter ações

voltadas para o bem ou que simplesmente não causem o mal a ninguém.

Toda esta discussão aponta para a complexidade que caracteriza, na prática, as

relações entre o vodu e os diversos segmentos protestantes que existem no Haiti. Neste

sentido, o trabalho de alguns autores apresentados no primeiro capítulo podem trazer

pistas que nos informam sobre estas relações. Em Richman (2005), por exemplo, temos

uma situação na qual Little Caterpillar (seu principal interlocutor) que era voduisante se

converte ao protestantismo para depois retornar ao vodu. De acordo com a autora,

aqueles que se convertem “parecem meramente substituir um conjunto de poderes de

mediação por outro sem, contudo, alterar substancialmente a sua visão de mundo.”

(Richman, 2005:261).

No que diz respeito especificamente à questão da conversão ao protestantismo

apenas posso afirmar que em Jacmel existia a idéia de que esta opção servia para se

livrar de um “mal” ou para garantir proteção, na medida em que as igrejas protestantes

eram vistas por diversas pessoas como “mais fortes” ou “mais eficazes” que o vodu.

Esta idéia está presente em Métraux quando sustenta que o protestantismo é visto como

o “remédio radical”, aquele que é utilizado quando todos os outros recursos encontrados

no Vodu para a cura de um mal se esgotaram. Ainda de acordo com o autor, “o

protestantismo aparece como um asilo ou mais exatamente como um círculo mágico

onde se está protegido dos loas e demônios. A conversão, longe de ser fruto de uma

crise de consciência, não é mais que a expressão de um temor excessivo dos espíritos.”

(1958:312).39

De acordo com o que foi descrito anteriormente, para alguns protestantes

os termos maji e vodu possuem apenas um caráter negativo, sendo um rótulo

39 Aqui devemos considerar que o protestantismo da época em que Métraux esteve no Haiti certamente não é o mesmo e provavelmente não tinha a presença que tem atualmente no Haiti.

99

para tudo aquilo que representa o “mal” no Haiti. Neste sentido estes dois

termos poderiam ser pensados como uma categoria de acusação utilizada por

protestantes contra voduisantes. Realmente, ouvi poucas pessoas afirmarem que

eram voduisantes, a maioria delas falava que era católica. Ao mesmo tempo,

em um segundo plano, várias me falaram explicitamente que faziam maji,

inclusive aquelas que eram declaradamente protestantes como Bayar e Madame

Étude. No entanto, eles não identificavam o mal nas suas experiências ou ações

mágicas. Eles reconheciam e rotulavam negativamente a maji, como Kattelie e

Filomene, mas ao mesmo tempo faziam com que maji englobasse outras coisas

que não só o “mal” relacionado ao universo vodu.

Todos os ugãs que conheci afirmavam que poderiam trabalhar para o “mal”.

Rodrigues chegou mesmo a falar que ele próprio era o “diabo”. Uma vez quando ele me

explicava a quais espíritos servia e me mostrava os locais que eles habitavam em seu

ufó perguntou se eu tinha medo do diabo. Devolvi a pergunta e ouvi a resposta: “Como

eu vou ter medo do diabo se eu mesmo sou ele?” Neste momento, Rodrigues estava se

referindo aos espíritos que “montavam” ele, (Danti, Bawon Samedi e Bakoulou).

Segundo Rodrigues, os três eram muito “maus”, embora às vezes pudessem “fazer o

bem”.

Rodrigues não foi o único ugã que afirmou explicitamente que era o “diabo” e

que podia fazer o “mal”. Na verdade, os outros dois que conheci falaram exatamente a

mesma coisa. Ou seja, o rótulo negativo que relaciona a maji e o vodu com o “mal” é,

pelo menos em parte, aceito e assumido. Em contrapartida, nunca ouvi ninguém, além

dos ugãs, falar que já havia feito ou que seria capaz de fazer maji para o “mal”.

100

Conclusões

A magia se constitui em um objeto para o qual a antropologia tem desde os seus

primórdios voltado sua atenção. De acordo com o que foi descrito aqui, vimos como ela

está presente no cotidiano dos moradores de Jacmel, no Haiti, por meio dos termos maji

e mistike. Seja como um princípio de explicação para determinados acontecimentos,

seja para dar nome a certas ações ou objetos, sua maior característica parece ser a

fluidez por meio da qual escorrega e atinge a todas as brechas da vida social.

Neste capítulo procurei mostrar a partir de exemplos etnográficos, situações

concretas nas quais os termos maji e mistike foram utilizados pelas pessoas com as quais

convivi em Jacmel. A partir destes exemplos espero ter esclarecido que a magia de

Jacmel não pode ser definida por rígidos contornos podendo estar em vários lugares e

ser apropriada por diversas pessoas, em momentos e situações por vezes inesperados

para aqueles não familiarizados com este mundo social.

Se os exemplos trazidos aqui descrevem relatos e situações que falam de maji e

mistike é porque de acordo com o que vimos estes termos funcionam, sobretudo, como

uma linguagem comumente empregada para se referir a uma série de objetos, ações e

pessoas que são consideradas pelas pessoas de Jacmel como tendo ligação explícita ou

não com o universo vodu. Desta forma, o trabalho de campo permitiu enxergar um vodu

que em seus sentidos cotidianos não está necessariamente relacionado apenas a

cerimônias e rituais (como eu pensava) e nem enquadrado nas questões que organizam a

literatura acadêmica.

Por outro lado, vimos como algumas imagens relacionadas ao vodu pelo senso

comum e sistematizadas pela literatura também apareceram no campo, o que nos

possibilita alguns pontos de aproximação entre estas duas esferas. Nestes momentos as

pessoas acabavam jogando com os estigmas e estereótipos relacionados ao exotismo e

101

aos mistérios do vodu. Por sua vez isso envolvia a minha própria imagem diante dos

haitianos: eu era uma blanc, e só isso já trazia em si uma série de rótulos, como o de que

eu tinha dinheiro , por exemplo, e percepções por parte deles em relação aos

estrangeiros que vão ao seu país.40

40 Gostaria de esclarecer que ao mesmo tempo em que existiram situações em que era rotulada como uma estrangeira (com todos os sentidos e representações que os haitianos atribuem ao termo), em várias outras, estes rótulos puderam, pelo menos em parte (é claro eu nunca deixarei de ser uma blanc), ser desmantelados. Isso quer dizer que eu não fui a única que desfiz algumas imagens que tinha na cabeça sobre o vodu e sobre os haitianos. Certamente, os haitianos também mudaram aquilo que pensavam que eu representava como estrangeira, graças as situações em que nos aproximamos e pudemos, assim, conhecer melhor um ao outro.

102

Considerações finais

O objetivo deste trabalho foi a construção de um diálogo entre a literatura acadêmica

sobre o Vodu haitiano e minha experiência etnográfica. Como assinalei na introdução, o

encontro entre esses dois universos foi justamente o ponto de partida, aquilo que deu o

impulso inicial para pensar a dissertação. De acordo com o que relatei, quando parti

para Jacmel não havia feito nenhum investimento sistemático na leitura sobre Vodu e o

conhecimento que carregava comigo sobre o assunto era basicamente aquele que o

senso comum tem a respeito. Na volta do campo, carregava comigo um amontoado de

informações, imagens de pessoas, relatos e situações que caracterizavam um vodu

diferente daquele que eu achava que encontraria. Eu tinha várias referências que traziam

a tona toda à confusão e complexidade do mundo social.

Conforme apontei, os discursos feitos pela literatura acadêmica sobre Vodu

poderiam ser traduzidos em algumas questões-chave que organizam as obras. Sugeri

que estas questões formavam uma rede de sentidos de onde estabelecemos limites do

pensável e do impensável sobre o Vodu. Este conjunto de enunciados, apresentado no

primeiro capítulo, corresponde às discussões acerca das relações metonímicas e

metafóricas que são concebidas entre Vodu e Haiti, da “natureza” dicotômica da

sociedade haitiana, das funções que o Vodu cumpriria naquele país e finalmente da

definição do Vodu como uma religião e as suas ligações com a magia.

Posteriormente concentrei o foco nas descrições etnográficas fundamentadas no trabalho

de campo. Dessa forma foi revelado todo um universo de complexidades e nuanças associadas ao

vodu na vida cotidiana das pessoas com as quais interagi. Esse universo se mostrou mais rico e

mais largo do que aquele assinalado pela literatura, embora às vezes ele pudesse dialogar com o

103

senso comum a respeito do vodu sistematizado no campo discursivo que trata dele e que foi

analisado no capítulo primeiro.

A partir das descrições etnográficas procurei demonstrar os variados usos e

significados de maji e mistike, dois termos que eram cotidianamente empregados pelos

meus interlocutores. As observações relativas às falas e a outras situações de interação

tiveram como objetivo mostrar a amplitude de objetos, pessoas ou ações que podem ser

referidos por meio destas duas palavras, que se revelaram como uma linguagem

utilizada no dia a dia para falar explícita ou implicitamente de vodu. Desta maneira, o

uso dos termos maji e mistike sugere a existência de todo um universo vodu que não

necessariamente se restringe aos tópicos estabelecidos pela literatura acadêmica, se

mostrando mais amplo e mais poroso na vida social cotidiana.

A opção por uma grafia diferenciada para me referir ao Vodu, tal como foi visto

por esta literatura e ao vodu, que fazia parte do cotidiano das pessoas em Jacmel, surgiu

justamente como um modo de colocar em evidência os distanciamentos, os

deslocamentos de sentidos e os diversos matizes existentes entre um e outro e que

puderam ser trazidos à superfície a partir do trabalho de campo.

Outras nuanças e complexidades vêm à tona quando consideramos as

interpretações que as pessoas fazem de suas práticas relacionadas a magia e ao vodu.

Neste sentido, vimos situações, como no caso da experiência mística de Bayar, em que

uma ação certamente seria considerada como maji por todos aqueles que conheci, mas

que na opinião de alguns não estaria ligada ao vodu. Assim, ao mesmo tempo em que as

descrições etnográficas revelam um universo vodu, em certa medida elas também

permitem que a magia seja vista como algo que pode ser maior que este universo. Isso

permite que enxerguemos nela um mundo de possibilidades que talvez possam ir além

daquilo que é entendido como vodu.

104

Anexo

105

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