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"A máquina do mundo" entre o símbolo e a alegoria “Nature, enchanteresse sans pitié, rivale toujours victorieuse, laisse-moi! Cesse de tenter mes désirs et mon orgueil!” Charles Baudelaire, “Le confiteor de l’artiste”, cm Le spleen de Paris O primeiro contato com “A máquina do mundo”, poe- ma de Carlos Drummond de Andrade, convida a uma lei- tura metafísica. Desde o título, universal na sua abrangên- cia, até às figuras do eu e do mundo , que nele se dão em contraponto, passando pelo tom grave de adágio filosófi- co que longamente o sustenta. Se o crítico é versado nas correntes fenomenológicas, a tentação será retomar o exemplo de Heidegger que, len- do Hoelderlin, interpreta os seus poemas “O retorno” e “Lembrança” como cifras de uma relação entre o Ser-aqui ( Dasein ) e o seu horizonte ontológico, transpessoal.1 O pró- prio Drummond talvez nos encorajasse a trilhar esse cami- nho ao situar “A máquina do mundo” entre as “Tentativas 1 Em Martin Heidegger, Approche de Hoelderlin, Paris, Galli- mard, 1962.

A Máquina Do Mundo- Entre o Símbolo e a Alegoria

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Charles Baudelaire

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  • "A mquina do mundo" entre o smbolo e a alegoria

    N ature , enchanteresse sans piti, rivale toujours victorieuse, laisse-moi!Cesse de tenter mes dsirs et m on orgueil!

    Charles Baudelaire, Le confiteor de lartiste, cm Le spleen de Paris

    O primeiro contato com A mquina do mundo, poema de Carlos D rum m ond de Andrade, convida a uma leitura metafsica. Desde o ttulo, universal na sua abrangncia, at s figuras do eu e do mundo, que nele se do em contraponto, passando pelo tom grave de adgio filosfico que longamente o sustenta.

    Se o crtico versado nas correntes fenomenolgicas, a tentao ser retomar o exemplo de Heidegger que, lendo Hoelderlin, interpreta os seus poemas O retorno e Lembrana como cifras de uma relao entre o Ser-aqui (Dasein) e o seu horizonte ontolgico, transpessoal.1 O prprio Drummond talvez nos encorajasse a trilhar esse caminho ao situar A mquina do m undo entre as Tentativas

    1 E m M artin Heidegger, Approche de Hoelderlin, Paris, Gallim ard, 1962.

  • Cu, inferno

    de explicao e de interpretao do estar-no-mundo, como figura na sua Antologia potica.1

    Essa abordagem, porm , correria o risco de colher um tanto precocemente as essncias a-histricas latentes no discurso potico (o Ser, o Tem po), sem pr cm relevo os m o dos peculiares de formar, que a mensagem foi encontrando para dizer, passo a passo, o seu sentido.

    N o caso de A mquina do m undo, um a entrada imediatam ente metafsica poderia descurar a marcao de um processo vital para com preender o todo: o poem a desdobra-se francamente em um a linha narrativa.

    Em outras palavras: o tema do desencontro entre o sujeito e o Universo no tratado liricamente, sob as espcies de um a linguagem sinttica, centrada to-s na apario e na nomeao das suas figuras. Ao contrrio, o que temos um a cadeia de situaes existenciais. Uma seqncia no tem po e no espao, que necessrio pontuar e palmilhar.

    Algum, um cam inhante, narra em prim eira pessoa. Vagueava por um a estrada de M inas quando se deparou com um a estranha cena, que ele reconhece imediatamente com o a m quina do m u n d o . A manifestao se faz por imagens e palavras, mas sem voz. N o h dilogo. O U niverso, abarcando Natureza e Histria, abre-se ao viajor e oferece-lhe o segredo do seu enigma, ou trora procurado vmente. Ele, porm , retrai-se, hesita em responder, en quan to um outro ente interior o dom ina e o compele a recusar-se quele dom tardio. O eu baixa enfim os olhos como quem j desistiu de penetrar o sentido das coisas. Cai

    : Rio de Janeiro, Jos Olympio, 1962.

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    a noite, a m quina do m u ndo se recom pe e se fecha. O cam inh an te segue pela m esm a estrada, vo ltando situao inicial.

    O simples resumo da matria narrada leva a perceber que a riqueza dos seus significados no se atinge de chofre, de um a vez por todas, pois a mensagem do poema constri-se no tempo. Discernem-se passos, eventos, gestos bem marcados, em bora discretos, porque solenes, calados.

    Em vez de partes a anlise apreende ondas, cujas vertentes se tocam e se unem no m ovim ento semntico geral. A metfora tanto mais verdadeira quando se nota que um a das passagens de um m om ento ao outro ocorre den tro do mesmo terceto e at do mesmo perodo.

    Transcrevo o texto, assinalando com barras duplas os pontos de viragem em que a narrativa inflecte de maneira sensvel. E lem brando um a sentena incisiva de M aritain: o alvo de toda partio distinguir para unir.

    A MQUINA DO MUNDO

    E como eu palmilhasse vagamente uma estrada de Minas, pedregosa, e no fecho da tarde um sino roucose misturasse ao som de meus sapatos que era pausado e seco; e aves pairassem no cu de chumbo, e suas formas pretaslentamente se fossem diluindo na escurido maior, vinda dos montes e de meu prprio ser desenganado,

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    a mquina do mundo se entreabriu para quem de a romper j se esquivava e s de o ter pensado se carpia. //Abriu-se majestosa e circunspecta, sem emitir um som que fosse impuro nem um claro maior que o tolervelpelas pupilas gastas na inspeo contnua e dolorosa do deserto, e pela mente exausta de mentartoda uma realidade que transcende a prpria imagem sua debuxada no rosto do mistrio, nos abismos.Abriu-se em calma pura, e convidando quantos sentidos e intuies restavam a quem de os ter usado os j perderae nem desejaria recobr-los, se em vo e para sempre repetimos os mesmos sem roteiro tristes priplos,convidando-os a todos, em coorte, a se aplicarem sobre o pasto indito da natureza mtica das coisas,assim me disse, embora voz alguma ou sopro ou eco ou simples percusso atestasse que algum, sobre a montanha,a outro algum, noturno c miservel, em colquio se estava dirigindo: //O que procuraste em ti ou fora de

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    teu ser restrito e nunca se mostrou, mesmo afetando dar-se ou se rendendo, e a cada instante mais se retraindo,olha, repara, ausculta: essa riqueza sobrante a toda prola, essa cincia sublime e formidvel, mas hermtica,essa total explicao da vida,esse nexo primeiro e singular,que nem concebes mais, pois to esquivose revelou ante a pesquisa ardente em que te consumiste... v, contempla, abre teu peito para agasalh-lo. //As mais soberbas pontes e edifcios, o que nas oficinas se elabora, o que pensado foi e logo atingedistncia superior ao pensamento,os recursos da terra dominados,e as paixes e os impulsos e os tormentose tudo que define o ser terrestre ou se prolonga at nos animais e chega s plantas para se embeberno sono rancoroso dos minrios, d volta ao mundo c torna a se engolfar na estranha ordem geomtrica de tudo,e o absurdo original e seus enigmas, suas verdades altas mais que todos monumentos erguidos verdade;

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    e as memrias dos deuses, e o solene senrimento de morte, que floresce no caule da existncia mais gloriosa,tudo se apresentou nesse relance e me chamou para seu reino augusto, afinal submetido vista humana. //Mas, como eu relutasse em respondera tal apelo assim maravilhoso,pois a f se abrandara, e mesmo o anseio,a esperana mais mnima esse anelo de ver desvanecida a treva espessa que entre os raios do sol inda se filtra;como defuntas crenas convocadas presto e fremente no se produzissem a de novo tingir a neutra faceque vou pelos caminhos demonstrando, e como se outro ser, no mais aquele habitante de mim h tantos anos,passasse a comandar minha vontade que, j de si volvel, se cerrava semelhante a essas flores reticentesem si mesmas abertas e fechadas; como se um dom tardio j no fora apetecvel, antes despiciendo,baixei os olhos, incurioso, lasso, desdenhando colher a coisa oferta que se abria gratuita a meu engenho. //

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    A creva mais estrita j pousara sobre a estrada de Minas, pedregosa, e a mquina do mundo, repelida,se foi miudamente recompondo, enquanto eu, avaliando o que perdera, seguia vagaroso, de mos pensas.

    Em um a prim eira tentativa de aproximao podem - se dar subttulos aos seis m om entos: (a) o encontro no meio do caminho; (b) a abertura da mquina do mundo e o anncio da sua fala ; (c) o discurso do mundo; (d) a epifania do Universo; (e) a recusa do eu; (f) o fechamento do mundo e a volta do eu condio de caminhante.

    NeI mezzo dei cammin...

    Q u an d o o poem a se abre, j com eou a viagem do narrador pela estrada de M inas e do m undo. O hom em se acha no m eio da travessia, e a sua fala tam bm : E com o eu palmilhasse vagam ente....

    O prim eiro signo um a conjuno coordenativa (), baliza de um percurso que continua no tem po e no espao.

    C o m o dir o poeta que algo est cm curso, sem princpio, nem rota, nem term o fixo (um andar vagamente), e que algo aconteceu 110 interior desse fluxo temporal? C h a mo a ateno para o uso de certas estruturas gramaticais neste perodo nico e entranado, que enfeixa os quatro primeiros tercetos. A construo clssica, em tenso equilbrio. Vrias oraes subordinadas, presas entre si, com o verbo no m odo subjuntivo (como eupalmilhasse\ e [como]

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    um sino rouco se misturasse\ e [como] aves pairassem; e [como] suas formas pretas se fossem diluindo), precedem a orao capital, de que dependem: a mquina do mundo se entreabriu.

    O m odo verbal escolhido, com a sintaxe latina, sugere um a atmosfera grave: o poem a lida com o destino. Q u an to ao contraste dos tempos, denota um a oposio de relevo semntico: de um lado, a travessia um contnuo, no finito, que o passado im perfeito transpe fielmente (palmilhasse, fossem diluindo...); de outro, rom pe o evento, a inesperada epifania do m undo , o que e um fato isolado, irreversvel, enunciado pontualm ente pelo passado perfeito: entreabriu.

    A diferena entre o processo e o acontecim ento, entre o devir e a apario, conhece desdobram entos ao longo do texto. Nesta altura da anlise, interessa apanhar os proced im entos de linguagem que configuram um certo clima existencial, um pathos que afeta o narrador antes da abertura da m quina do m undo.

    Nos versos iniciais, a forma significantc (a forma viva, chave da esttica de De Sanctis) produz um a sntese de imagem e estado anmico. O discurso entra em pleno regime das correspondncias que tornam possvel a formao de um a estrutura simblica. Entre o viajor e a Natureza constituem -se analogias em torno de qualidades que passam a ser com uns: a lentido e o negrume.

    LEN TIDO. O narrador percorria a estrada palmo a palm o, sem pressa nem rum o fixo: vagamente. E o som dos sapatos m etonm ia dos seus passos era pausado. Do lado da Natureza: as aves pairavam , isto , voavam com o que paradas, adejavam apenas sem sair do mesmo stio, e as suas formas se diluam lentamente. U m compasso de lus-

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    co-fusco dem orado sustem o andam ento interior deste primeiro tempo.

    NEGRUME. Para dar o tom paisagem, as expresses so vrias: o fecho da tarde, o sino rouco, o cu de chumbo, as fornias pretas dos pssaros, a escurido maior, vinda dos montes, e tam bm (e aqui a fuso sinttica, alm de simblica) vinda do meu prprio ser desenganado.

    N o meio do poema, voltar a correspondncia tonal: quem conta a apario da m quina do m undo se sabe um ser no turno.

    O ambiente ressoa na alma e a ensombra. Ressoa: vivem ambos o mesmo tem po lento. E o ocaso com um a ambos.

    S existe processo simblico quando as imagens se enrazam em um solo de afinidades. Symbolon juno dos diferentes, costura, amplexo. O que o eu narrativo descobre, nesta primeira passagem, a inerncia ao seu m undo prprio, enquanto universo familiar. Da, a nica notao geogrfica precisa, a estrada de M inas pedregosa, que abre e fecha o poema, e que todo leitor de D ru m m ond reconhece com o figura conatural, duram ente lapidada no curso da sua biografia potica:

    Alguns anos vivi em Itabira.Principalmente nasci em Itabira.Por isso sou triste, orgulhoso: de ferro.Noventa por cento de ferro nas caladas.Oitenta por cento de ferro nas almas.E esse alheamento do que na vida porosidade

    [e comunicao.(Confidncia do itabirano,

    em Sentimento do mundo)

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    Ita-bira: rvore de pedra; madeira de fibras ferrosas, impenetrveis.

    A esse contexto singular e diferenciado, que entretm com o eu relaes de coextensividade; a esse espao vivido, que lhe serve de metfora para conotar os seus modos de ser; a essa durao da experincia quotid iana e concreta, ope- se a m quina do m undo:

    a mquina do mundo se entreabriu para quem de a romper j se esquivava e s de o ter pensado se carpia.

    O corte entre um a situao e outra visvel, em bora o fio sinttico m antenha bem un ido todo o discurso. Em pleno loctis de convvio sobrevem a imagem de um ser estranho, que, apesar de pretender figura da totalidade, alheio ao sujeito a quem se apresenta, repentino.

    A partir dessa epifania, que logo se mostrar em gloriosa procisso, o narrador vai refluindo para o passado e lem brando o quan to se em penhara, inutilm ente, na com preenso desse m esm o m u n d o .

    N o repertrio da poesia brasileira raro que a luta fus- tica pelo conhecim ento em si m esm o venha assinalada de forma to dram tica, com o se fra um em bate de vida e m orte. O s verbos, em geral sbrios no mais discreto dos estilistas, confessam aqui violncias insuspeitadas: romper a m quina do m undo; e carpir-se pelo fato de o ter desejado outrora. Carpir-se\ a palavra forte, quer dizer lam entar-se", chorar de arrependim ento; e, se a lermos no seu registro arcaizante, que, de resto, afina com a dico do poema, vale arrancar os cabelos de dor, com o o fazem as carpideiras no velar do m orto. Mais adiante, o poeta recorda

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    r as defuntas crenas em um a realidade que seja inteligvel para o hom em .

    H , pois, um a histria por trs desta oferta prim eira vista gratuita e misteriosa; e um a histria de esquivanas e de malogros reiterados.

    Da abertura ao convite

    O sermo sublimis convm a este relance de figurao csmica, cujo m odelo alto na tradio de nossa lngua se encontra no canto X de Os lusadas, o m om ento em que a deusaTtis descortina a Vasco da G am a a viso do Universo:

    Aqui um globo vem no ar, que o lume Clarssimo por ele penetrava,De modo que o seu centro est evidente,Como a sua superfcie claramente

    (X, 77)Uniforme, perfeito, em si sustido,Qual, enfim, o Arqutipo que o criou

    (X, 79)Vs aqui a grande mquina do Mundo,Etrea e elemental, que fabricada Assim foi do Saber, alto e profundo,Que sem princpio e meta limitado.

    (X, 80) o que diz o epteto majestosa, atribudo m qui

    na. U m predicado novo, d rum m ondiano , se acresce ao da sua imponncia: ela tam bm circunspecta; espia, aten-

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    ta, em todas as direes, e, com o a Esfinge, reclusa na sua essncia ptrea, capaz de olhar e, m uda, significar. Nada resta da transparncia lum inosa do cosmos renascentista.

    A cena que, em Cames, se afigura objeto de maravilha e devoo, pois fabricada/ assim foi do Saber, alto e profundo, decai, no poeta m oderno, a m u ndo desencantado, sem deuses nem m itos (s a m em ria destes), mas nem por isso menos enigmtico e temvel. Ele j o dissera na Elegia 1938", quando a hum anidade parecia ter entrado no tnel sem fim do nazismo:

    Amas a noite pelo poder de aniquilamento que encerra/ e sabes que, dormindo, os problemas te dispensam de morrer./ Mas o terrvel despertar prova a existncia da Grande Mquina/ e te repe, pequenino, em face de indecifrveis palmeiras."Ento, a mquina era a figura metonmica da sociedade. Agora, a prpria relao do eu com o m undo exterior

    que vem enfrentada de m odo imediato e em um discurso de tenso mxima. Sobe ao prim eiro plano da conscincia a busca de um sentido que o sujeito em preendeu, e que forma a pr-histria da sua narrativa. As pupilas gastas e a mente exausta de mentar (o pleonasmo diz da intensidade do processo) so o remate de um a angstia cognitiva que se debateu em vo contra o m uro de pedra da realidade.

    O horizonte de pensam ento tangencia a kantiana coisa em si, o num eno, incognoscvel, alm daqueles fenmenos que so, no poema, as imagens do m undo apenas esboadas no rosto do mistrio. O u no abismo (abyssos: sem fundo).

    O af de conhecer veio a consum ir no s os olhos e o intelecto, mas a alma toda, cuja condio de existir o

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    sofrimento. E percorre-se o trajeto que vai de K ant a Scho- penhauer, da filosofia crtica intuio da dor universal:

    Nem existir mais que um exerccio de pesquisar de vida um vago indcio, a provar a ns mesmos que, vivendo, estamos para doer, estamos doendo"

    (Relgio do Rosrio, em Claro enigma).

    Uma antecipao do ncleo temtico de A m quina do m u ndo encontra-se no texto em prosa O enigma, de Novos poemas, cuja situao inicial lhe simtrica:

    As pedras caminhavam pela estrada. Eis que uma forma escura lhes barra o caminho.At as pedras, aqui antropom orfizadas, conjuram -se

    em um esforo de com preender a Coisa, mas esta inter- ceptante. Barra o cam inho e medita, obscura.

    Entretanto , por um ato de absoluta gratuidade, que reafirma o arbtrio on ipo ten te do outro em vez de resgat- lo, a m quina do m undo chama os sentidos e as intui- es do viajante a se aplicarem sobre o pasto indito da natureza mtica das coisas.

    O convidado j rodara nos mesm os sem roteiro tristes priplos, expresso densa do crculo vicioso, aparentem ente sem sadas, eterno retorno do m esm o onde se move o esprito indagador at exausto. Nessa altura, a mquina fala, mas sin tom aticam ente sem voz. A sua convocao muda, no passa pelas rotas da intersubjetividade: um dilogo de impossveis, pois nem a Coisa emite som algum, nem ao convidado, no tu rno e miservel, dado responder.

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    O n o tu rno reintroduz a simbologia da abertura.Q u a n to ao estado miservel do hom em perante a

    imago mundi, volta em textos de filosofias diversas.Msero o nauta cristo representado na epopia de

    Cames, a que no falta um veio de Idade M dia outonal:Faz-te mcrc, varo, a Sapincia Suprema de, coos olhos corporais,Veres o que no pode a v cincia Dos errados e mseros mortais

    (X, 76)Msero o Islands que, no dilogo de Leopardi, foge

    sem cessar de um a Natureza inclem ente de fogo e neve. Msero, sarcasticamente msero, o sujeito do delrio nas Memrias pstumas de Brs Cubas, que, arrastado pelos cabelos at origem dos sculos, ouve de Pandora a declarao do seu nada.

    Em D rum m ond , a percepo do intervalo entre a m quina do m u nd o e o seu espectador to aguda que s o silncio pode signific-la. O silncio de am bos marca a entrada da alegoria no poema.

    0 mundo alegorizado

    E, no entanto , h o discurso. Um s perodo cerrado em si mesmo. Pelo seu teor pode-se reconstituir o que teria sido o objeto da pesquisa ardente em que se consumira o viajor. Tudo quan to ele, ser restrito, desejou com preender em tentativas frustradas, rende-se agora na mais inslita das ofertas. O dom , enquan to gratuito e porque

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    gratuito, permanece exterior vontade fustica: o enigm a para o qual aponta a alegoria da m quina do m undo.

    A descrio, ampla, desdobra-se por sete tercetos encadeados. N o se trata de um a figurao orgnica do Universo, mas de um a sucesso de atributos que se perfilam em sua mxima generalidade.

    A seriao jun ta abstrato com abstrato. O processo de enum erar cumulativo, e tudo vai subm etendo estrutura gigantesca da Coisa que, afinal, sumariada sob a expresso lapidar de

    estranha ordem geomtrica de tudo.A anlise dos termos que nom eiam os elementos do

    vasto sistema pe a nu a carncia dos seus liames com o vivido do narrador. N o h nesse discurso muita exigncia para o detalhe, precisamente o que observou Benjamin ao descrever os modos estilsticos da alegoria. O s aspectos particulares nos quais a vida universal se prism atiza so recalcados, reduzidos, enfim supressos em favor de um a designao genrica (designatio: significao de cima para baixo), que tudo abraa e nada estreita em suas malhas excessivamente largas.

    Torneios definidores tom am o lugar de imagens capazes de acordar lem branas no espectador. O sangue dos trabalhos e dos dias, que corre nas veias da HistcSria d a n do-lhes cor e calor, dessora-se em frases vagas como:

    o que nas oficinas se elabora,ou

    o que pensado foi e logo atinge distncia superior ao pensamento.

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    O que seria peculiar existncia dos hom ens, o que no sc totaliza nunca em razo da variedade inesgotvel dos seus perfis, subsum ido no mais alto grau de abstrao (essa total explicao da vida, esse nexo primeiro e singular), ou achatado at o nvel das plantas e dos animais: tudo que define o ser terrestre.

    Prevalecem formas gramaticais neutras, genricas: o que, tudo que.

    Uma s metfora revolve as razes familiares do poeta e m uda o registro alegrico em smbolo animista:

    o sono rancoroso dos minrios.Por essa nica fenda, entreaberta cm um timo, pos

    svel divisar as Minas, Itabira e suas pedras, o subsolo de orgulho, a dor da memria. Mas o conjunto , uniform e em seu matiz de cinza, afasta qualquer conotao intimista. A nfase dada ao tema do absurdo original e seus enigmas,/ suas verdades altas mais que todos/ m onum entos erguidos verdade.

    Q u an d o o discurso passa da linguagem cognitiva (ex- p li cao, nexo, enigma, verdades, verdade) a um a referncia vida, esta neutralizada em suas clulas, pois o que floresce no caule da existncia o solene sentim ento de m orte. Q u e reino este, qualificado com o augusto pela sua majestade, mas que, exposto em procisso de apoteose, d sinais da p rpria agonia? A ordem que tem po r fundam ento um a simetria implacvel , no por acaso, tida por estranha.

    Walter Benjamin, em penhado em resgatar a potencialidade dialtica de toda alegoria, entreviu nos seus mecanismos de reifleao vestgios de opresses milenares:

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    A personalizao alegrica dissimulou sempre o fato de que a sua misso no era personalizar algo prprio da coisa, mas, ao contrrio, dar s coisas uma forma mais imponente, armando-a como pessoa.3O poeta sabe disso, por suas prprias vias, quando topa

    no meio da estrada com a Coisa, e a converte em alegoria: obscura e renitente at mesmo no ato de oferecer aos m ortais os seus tesouros. A natureza inteira personificada, no para ser interiorizada, mas para ser desalmada.4

    A recusa

    O m und o sob a forma de em blem a o teatro da alte- ridade, e aqui assiste razo a Lukcs quando, na esteira de Goethe, trava alegoria e transcendncia no mesmo processo intelectual.5

    N a histria interna da obra potica de Carlos D rum - m ond de Andrade, a conscincia sempre reclamou, em face do m undo, os seus direitos. Da, a fora de negatividade que irrom pe em versos com o estes, que nem o embalo da cantiga alcana disfarar:

    Que diz a boca do mundo?

    3 Walter Benjamin, Origem do drama barroco alemo, apttdGeorg Lukcs, Esttica, Barcelona, Grijalbo, 1967, vol. 4, p. 462.

    4 Frase de Cysarz, estudioso da lrica barroca; Benjamin a transcreve na obra mencionada.

    ^Georg Lukcs, Alegoria y smbolo, in Esttica, pp. 423-74.

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    Meu bem, o mundo fechado, se no for antes vazio.O mundo talvez: e s.Talvez nem seja talvez.O mundo no vale a pena.

    (Cantiga de enganar, em Claro enigma) um m odo de resistir, este, todo seu, oblquo e per

    tinaz. E que conhece um veemente contraponto, manifesto por tantos outros poemas, no desejo incansvel de amar, sempre reiterado apesar, ou por causa, da m orte que pu lsa e espreita na carne de todos os hom ens. A m or e m orte rondam um ao outro , sem cessar.

    Em A m quina do m undo", o gesto da recusa que se risca em primeiro plano. N o se trata mais de um e, que sela a con tinu idade de um a viagem (E com o eu palm ilhasse vagam ente...); a hora traz o m om ento adverso do mas: Mas, com o eu relutasse....

    O n im o reticente. O passo para trs desencadeia um a ao interior a ten tam ente seguida e escavada nos sete tercetos que com pem essa unidade de significao. O esquem a sinttico o mesmo que opera na abertura: oraes modalizadas no subjuntivo m odo incerto e dbio e amarradas entre si enquanto preparam o desfecho expresso na orao principal. N o comeo, a figura regente era a da m quina do m undo que se entreabriu; no final, o ato de retrao do eu, oposto ao m undo , que baixa os olhos, com o se os fechasse para no poder ver.

    Nessa contraposio, macerada em vrias passagens do discurso, est a chave semntica do poema.

    N o unvoca, porm , a interpretao deste baixar os

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    olhos, incurioso, lasso,/ desdenhando colher a coisa oferta. O gesto pode ser entendido com o a fixao de um m odo de ser prprio do viajor, ou ento significar a ltim a etapa de um desafio de que o poem a divisou as lutas e as derrotas nel mezzo dei cammin.

    A primeira leitura, de cadncias ontolgicas, detm-se na negatividade, tom ada cm si mesma, e que parece m o delar por dentro o ato da desistncia. Fastio, aborrecimento, taedium vitae ou, lem brando o belo term o cunhado pela teologia medieval, acdia (do grego, via latim, acedia). Q ue vale: ausncia de cuidado, tibieza para com as coisas mais sublimes, preguia do corao, torpor espiritual que im pede de encetar o bem ou procurar a verdade, conform e a notao precisa de Santo Toms.6 Da esfera tico-religiosa em que nasceu, e que sobrevive ainda na filosofia de Kier- kegaard, para quem a melancolia pecado capital, o conceito passou, com variantes de linguagem, para os pessimistas radicais, Leopardi e Schopenhauer, e existencialistas como Heidegger e Sartre. Em todos, o enfaro diante do m u ndo um a experincia fundadora, pois revela ao hom em o ser com o gratuidade ou pura indiferena. O s adjetivos incurioso e lasso, que o cam inhante atribui a si prprio, e a orao desdenhando colher a coisa oferta, poderiam contar-se entre as manifestaes dessa tendncia do esprito hum ano.

    Mas h um a segunda leitura que me parece dialetizar a anterior, pois tenta com preender o processo que leva ao estado de acdia. Esta no um dado, um a expresso in-

    6 Em Summa Theologica, 11, II, q. 35, a. 1.

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    variante do carter do eu narrador, mas procede de um a histria de em penho sobre o real, um a paixo da m ente,

    u r / y y crenas , esperana > anelo e an- seio testem unham com toda evidncia. A recusa torna-se inteligvel luz desse passado de experincia e desencanto.

    A indeciso do viajor em aceitar o dom tardio do m u n do e um indcio de que o seu no final veio sendo curtido no tempo. A descrio da vontade irresoluta, oscilante, apia- se no smile das flores reticentes em si mesmas abertas e fechadas, imagem de um a alma dividida entre escolhas difceis, tanto que provocam a apario inesperada desse fantasmtico alter ego: e com o se outro ser, no mais aquele/ habitante de m im h tantos anos,/ passasse a com andar m inha vontade.

    H , portanto , um itinerarium mentis que malogrou, um m ovim ento de procura, ardor, frustrao, insistncia, enleio, enfim rejeio; o que d m udana de desejo em recusa um significado de desengano viril, e no apenas um tom de fastio.

    A caminho, de novo

    Desdenhada a viso da Grande M quina, o cam inhante regressa ao seu m undo , estrada de Minas pedregosa. A noite j se fechou de todo, e percebida com o a treva mais estrita.

    Torna-se possvel, com o retorno ao contexto familiar, dizer a correspondncia entre o sujeito e o universo, m atriz de antigas e novas metforas:

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  • "A mquina do mundo" entre o s mbolo e a a legor ia

    noite. Sinto que noite no porque a sombra descesse (bem me importa a face negra), mas porque dentro de mim, no fundo de mim, o grito se calou, fez-se desnimo.Sinto que ns somos noite, que palpitamos no escuro e em noite nos dissolvemos.Sinto que noite no vento, noite nas guas, na pedra.

    (Passagem da noite, em A rosa do povo)Alegoria e smbolo, duas formas de conhecim ento e de

    expresso; e, ao mesmo tem po, dois modos de tratar o signo potico: cifra da transcendncia (a locuo de Jas- pers), a alegoria; pesquisa da imanncia do eu no outro, e do ou tro no eu, o smbolo.

    Q uan d o prevalece o regime alegrico, a Natureza e a Histria com pem antes um theatrum m undido que um a total izao que envolva o sujeito em carne e osso e o afete na sua particularidade biogrfica. Isto posto, nada impede que a alegoria force o leitor (ou o espectador) a perceber- se como um ser aleatrio e vulnervel, lanado em um m undo que lhe estranho.

    Em A m q u ina do m u n d o , o processo alegrico ocupa quase todo o espao da significao, reservando s suas franjas a possibilidade do convvio especular do narrador com a paisagem. Tal com o est d ito na arte potica de D ru m m o n d , o m u nd o no se reflete na alma, nem a palavra sono rim a com a incorrespondcnte palavra o u

  • Cu, inferno

    ton o . A opo por um tratam ento musical de raros acordes talvez explique a paradoxal harm onia de A m quina do m u n d o , escrita segundo o m odelo da terza rima dan- tesca, mas... sem rima, j que os seus decasslabos so rigorosam ente brancos.

    Dante, no C an to XXII do Paraso, tendo subido ao oitavo cu o das estrelas fixas, sob o signo de Gmeos, presso airultim a salute recebe de Beatriz o convite para contem plar o m undo inteiro a seus ps, com olhos claros e agudos:

    Col viso ritornai per tutte quante le sette spcre, e vidi questo globo tal, chio sorrisi dei suo vil sembiante.

    (Paraso, XXII, 133-35)A pequenez do nosso m undo, visto do firmamento, faz

    sorrir ironicam ente o poeta, que sempre o juiz soberbo:Laiuola che ci fa tanto feroci

    (...)

    tutta rrfapparve da colli alie foci.8(Paraso, XXII, 151 e 153)

    Mas no poeta nosso contem porneo j no vigoram as robustas certezas que forravam a alma do Exilado e lhe per-

    T raduo literal: C om o rosto me voltei para todas quantas/ sete esferas, e vi este globo/ tal, que eu sorri da sua vil aparncia.

    8 T raduo literal: O canteiro que nos faz to ferozes/ [...]/ to do me apareceu das colinas s fozes.

    120Material com direitos

  • " A mquina do mundo" entre o s mbolo e a a legor ia

    mitiam afrontar o m undo com juzos dc valor to sobranceiros: Terra, canteiro mesquinho que faz dos homens feras! A realidade tornou-se infinitamente mais complexa, e a sua decifrao, na era da cincia, infinitam ente mais rdua. E a voz da poesia, quando ousa falar do cosmos, traz no seu canto cho o acento da perplexidade:

    enquanto eu, avaliando o que perdera, seguia vagaroso, de mos pensas.

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