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A MARCA DO PRECONCEITO EM CLARA DOS ANJOS, DE LIMA BARRETO ALMEIDA, Isis, FRAZÃO, Idemburgo Foz do Iguaçu PR: UNIOESTE, 8 a 11 de dezembro de 2015, ISSN 2316-266X, n.4 54 A MARCA DO PRECONCEITO EM CLARA DOS ANJOS, DE LIMA BARRETO ALMEIDA, Isis Maia Estudante do Programa de Pós-Graduação em Humanidades, Culturas e Artes [email protected] FRAZÃO, Idemburgo Pereira Professor do Programa de Pós-Graduação em Humanidades, Culturas e Artes [email protected] RESUMO Para este trabalho buscou-se no campo da literatura um espaço importante para a reflexão do preconceito como aspecto identitário a partir das contribuições da vida e obra do romancista Lima Barreto, que em muitos momentos se confunde. Mais especificamente, no enredo “Clara dos Anjos”, foi possível analisar os preconceitos: social, racial, de gênero, ao tratar de uma mulher mulata e suburbana, e de linguagem, ao analisar um escritor autêntico que escrevia suas obras com uma linguagem mais simples e acessível ao entendimento do povo e que sofreu com a discriminação não sendo aceito como membro da Academia Brasileira de Letras. Por tratar da problemática do preconceito em sua obra e por não ceder aos modelos estrangeiros da escrita, o romancista rompeu com a tradição do início do século XX e permitiu travar diálogos no intuito de combater os problemas sociais e culturais que percebia na cidade do Rio de Janeiro e que a elite preferia camuflar. Palavras-chave: Preconceito. Identidade. Clara dos Anjos. ABSTRACT For this work sought in the field of literature an important place of reflection about the prejudice as an aspect of identity from the contributions of life and work the novelist Lima Barreto, which in many instances is confused. More specifically, the "Clara dos Anjos" plot, we could analyze the prejudices: social, racial, gender, the case of a mulatto and suburban wife and language, when analyzing an authentic writer who wrote his works with simpler language and accessible to the understanding of the people and who suffered discrimination not being accepted as a member of the Brazilian Academy of Letters. By dealing with the prejudice of the problems in his work and not give in to foreign models of writing, the novelist broke with the tradition of the early twentieth century and allowed catch dialogues in order to combat the social and cultural problems that realized in the city of Rio de January and that the elite would rather camouflage. Key-words: Prejudices. Identities. Clara dos Anjos. 1. INTRODUÇÃO O presente trabalho intenta refletir sobre as figurações do preconceito como aspecto identitário em campos como o da literatura, da história e da linguagem, a partir da interpretação da obra Clara dos Anjos e da vida de Lima Barreto.

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A MARCA DO PRECONCEITO EM CLARA DOS ANJOS, DE LIMA BARRETO

ALMEIDA, Isis, FRAZÃO, Idemburgo

Foz do Iguaçu PR: UNIOESTE, 8 a 11 de dezembro

de 2015, ISSN 2316-266X, n.4

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A MARCA DO PRECONCEITO EM CLARA DOS ANJOS, DE LIMA

BARRETO

ALMEIDA, Isis Maia Estudante do Programa de Pós-Graduação em Humanidades, Culturas e Artes

[email protected]

FRAZÃO, Idemburgo Pereira

Professor do Programa de Pós-Graduação em Humanidades, Culturas e Artes

[email protected]

RESUMO

Para este trabalho buscou-se no campo da literatura um espaço importante para a reflexão do preconceito como aspecto identitário a partir das contribuições da vida e obra do romancista

Lima Barreto, que em muitos momentos se confunde. Mais especificamente, no enredo “Clara

dos Anjos”, foi possível analisar os preconceitos: social, racial, de gênero, ao tratar de uma mulher mulata e suburbana, e de linguagem, ao analisar um escritor autêntico que escrevia suas

obras com uma linguagem mais simples e acessível ao entendimento do povo e que sofreu com

a discriminação não sendo aceito como membro da Academia Brasileira de Letras. Por tratar da

problemática do preconceito em sua obra e por não ceder aos modelos estrangeiros da escrita, o romancista rompeu com a tradição do início do século XX e permitiu travar diálogos no intuito

de combater os problemas sociais e culturais que percebia na cidade do Rio de Janeiro e que a

elite preferia camuflar.

Palavras-chave: Preconceito. Identidade. Clara dos Anjos.

ABSTRACT

For this work sought in the field of literature an important place of reflection about the prejudice

as an aspect of identity from the contributions of life and work the novelist Lima Barreto, which

in many instances is confused. More specifically, the "Clara dos Anjos" plot, we could analyze the prejudices: social, racial, gender, the case of a mulatto and suburban wife and language,

when analyzing an authentic writer who wrote his works with simpler language and accessible

to the understanding of the people and who suffered discrimination not being accepted as a

member of the Brazilian Academy of Letters. By dealing with the prejudice of the problems in his work and not give in to foreign models of writing, the novelist broke with the tradition of the

early twentieth century and allowed catch dialogues in order to combat the social and cultural

problems that realized in the city of Rio de January and that the elite would rather camouflage.

Key-words: Prejudices. Identities. Clara dos Anjos.

1. INTRODUÇÃO

O presente trabalho intenta refletir sobre as figurações do preconceito como

aspecto identitário em campos como o da literatura, da história e da linguagem, a partir

da interpretação da obra Clara dos Anjos e da vida de Lima Barreto.

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A literatura pode ser considerada um campo especial, que serve como

importante espaço para se refletir sobre a forma como o preconceito (em suas várias

faces e manifestações) atinge de diversas maneiras, os cidadãos e se torna umas das

armas mais eficazes e perversas da exclusão social. Lima Barreto foi vítima de

preconceito por conta da sua cor, origem, classe social e inadaptação à linguagem

parnasiana, então em voga na virada do século XIX para o XX. Também a aproximação

da linguagem culta à popular em suas obras literárias, a frequente tematização dos

pobres, do subúrbio e das periferias, colaboraram bastante para que seus romances não

fossem bem aceitos.

Mesmo com todos os seus problemas e descontentamentos mais íntimos, o

escritor Lima Barreto conseguiu expressar suas aflições e a de seus contemporâneos, da

periferia de sua época, através de textos que foram, muitas vezes incompreendidos por

grande parte da elite literária brasileira. Barreto dedicou-se através de seus textos ao

combate às discriminações sociais e trouxe para a discussão problemas dos subúrbios

cariocas, a subalternidade da mulher e os conflitos vividos pela população esquecida

para o centro de suas narrativas. Ao expor tais problemas e conflitos no romance,

entende-se que a obra do escritor teve papel um primordial e precursor, pois a atenção

que Lima Barreto deu a assuntos camuflados da época e a linguagem simples e direta

que, conscientemente utilizava, fez com que a literatura brasileira se aproximasse do

povo que, com entendimento, poderia lutar por mudanças.

Este artigo apresenta questões referentes à biografia de Lima Barreto e analisa a

obra Clara dos Anjos dando ênfase à problemática do preconceito social, apontando

para a maneira como as diferenças sociais – relativas à pobreza -, de gênero, raciais e de

linguagem promovem a exclusão de enorme parte da população. Lima Barreto sofreu na

pele o preconceito social em sentido amplo - não apenas o racial - e lutou contra ele,

denunciando-o através do amor que tinha pela literatura.

A metodologia utilizada no trabalho tem uma abordagem qualitativa do tipo

bibliográfica e interpretativa através dos dados obtidos pela análise da obra “Clara dos

Anjos”.

1.1. Lima Barreto e sua literatura à deriva

Brasileiro, contista, romancista e cronista, Lima Barreto nasceu em 13 de maio

de 1881. Sua mãe, Amália Augusta, era professora. Seu pai, João Henriques de Lima

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Barreto, era tipógrafo. Durante a maior parte de sua vida o autor viveu na periferia da

então Capital Federal. As expectativas iniciais de ascensão social e, mais do que isso, de

reconhecimento, esvaíram-se ao longo de sua trajetória. Lima Barreto foi um dos

maiores críticos e um dos mais criticados escritores do período da República Velha no

Brasil. Nasceu na zona sul do Rio de Janeiro, em Botafogo, porém viveu no subúrbio de

Todos os Santos, na condição de negro e filho de pais pobres, algo que implicou uma

condição de vítima de preconceitos que perdurou ao longo de sua vida.

Perdeu a mãe ainda criança, o que trouxe muito sofrimento para ele ainda

menino. Acrescente-se a tudo isso, a loucura que o perseguia, vitimando seu pai e o

alcoolismo que o levou algumas vezes ao “hospital dos alienados”. Alguns dos

preconceitos com os quais conviveria, ao longo da vida, tiveram origem no colégio,

uma vez que, por intermédio de Visconde de Ouro Preto, seu padrinho, teve a

oportunidade de estudar em colégios de excelência naquele período. Contudo, embora a

educação fosse de qualidade, os momentos eram de desconforto, isso porque os outros

estudantes e professores apresentavam, em alguns casos, preconceitos por Lima Barreto

ser negro.

Já na velhice, seu pai enlouqueceu. Lima Barreto era quem sustentava todos os

seus irmãos. Sendo assim, o escritor, mesmo apaixonado por literatura e filosofia, foi

obrigado a abandonar a escola politécnica que frequentava para trabalhar e sustentar

seus irmãos, pois seu pai já não mais possuía condições de conduzir essa função. Neste

sentido, prestou concurso para o Ministério da Guerra, conquistando um cargo de

escriturário que garantiu o sustento de seus irmãos e sua aproximação com a atividade

de escrita. Contudo, Lima Barreto não se manteve mais do que três anos nessa função,

pois, em 1905, iniciou uma nova jornada como jornalista na mídia impressa intitulada

“Correio da Manhã”. Cabe ressaltar que, concomitante a essa nova função, também

iniciava sua prática de escritor de textos do gênero romanesco que eram divulgados nos

jornais. Em 1911, publicou seu primeiro livro com o título de Recordações do Escrivão

Isaías Caminha.

Clara dos Anjos do romancista Lima Barreto, assim como outras obras, implicou

no desmoronamento de extraordinárias barreiras de pensamento, pois apresentou como

temática o subúrbio carioca e questões acerca do preconceito social, racial e de gênero.

Tais temáticas, os traços e atributos dos personagens, a linguagem simples, distante da

linguagem rebuscada dos parnasianos, em voga em sua época, são características

apresentadas nos textos de Lima Barreto que o fazem alvo de críticas, uma vez que as

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mesmas não estariam de acordo com a prática textual literária e do pensamento daquela

época. Essas e outras questões, também implicaram na sua não aceitação do escritor

como membro da Academia Brasileira de Letras.

Essa recusa da ABL, posteriormente foi criticada por Zélia Nolasco de Freire

(FREIRE, 2005, p. 13) na apresentação do livro intitulado Lima Barreto: Imagem e

Linguagem na qual argumenta que “a hipocrisia dominante não poderia aceitar que em

hipótese alguma, que um mulato pobre, filho de escrava, se equiparasse aos medalhões e

tivesse o seu nome literariamente reconhecido”.

Essa crítica foi realizada pela não inserção de Lima Barreto ao lado dos literatos

de sua época, uma das justificativas era fundada no entendimento de que o escritor

incorria em erros, pois não utilizava rigidamente a norma culta da língua. Não obstante,

embora houvesse a existência de críticas, o estudioso da língua portuguesa, Antônio

Houaiss (1956) não entendia a escrita de Lima Barreto desta forma. Na percepção desse

importante filólogo, escrita no prefácio da obra Vida urbana: artigos e crônicas. Obras

de Lima Barreto, as críticas emergentes eram levianas, uma vez que ele considera Lima

Barreto um escritor consciente, senão o maior, dos escritores da fase crítica da evolução

social daquele período, afirmando ainda sua riqueza de comunicação e de expressão que

indubitavelmente qualquer orientação estilística pode compreender.

De acordo com Zélia Nolasco-Freire, a escrita de Lima Barreto

antecipa o retorno às origens, promovendo uma aproximação entre a

literatura e o povo. Isto é possível através do uso de uma linguagem

equivalente ao público leitor ao qual a obra literária é destinada. Pode-se afirmar que esta seja, talvez, a grande preocupação do escritor:

transformar a sociedade (2005, p. 120).

Como grande crítico do período, Lima Barreto escreveu seus textos para

demonstrar o que pensava sobre as coisas e o mundo, na tentativa de despertar a

sociedade para outras práticas e reflexões e por isso foi causador de grandes

insatisfações. Nesta perspectiva, o historiador brasileiro, jornalista e crítico literário,

Sérgio Buarque de Holanda costumava afirmar que os personagens e os enredos dos

contos, romances e crônicas do autor carioca muito tinham a ver com a própria

biografia. Buarque de Holanda argumenta que “a obra deste escritor é, em grande parte,

uma confissão mal escondida, confissão de amarguras íntimas, de ressentimentos, de

malogros pessoais, que nos seus melhores momentos ele soube transfigurar em arte”

(HOLANDA, 1956, p. 9).

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Mesmo com o trabalho que gostava de realizar, a vida de Lima Barreto também

estava rodeada pela depressão e pelo alcoolismo que o acompanhou até o final de seus

dias.

O escritor ao encontrar o desprezo e a exclusão devido o fato de ser

pobre, alcoólatra e ter passagens pelo hospício- mas, principalmente, por ser negro – poderia ter desistido da arte literária. Porém, era

exatamente esta a dor que o alimentava e fazia com que se tornasse

mais forte em frente às intempéries que teimavam em boicotar-lhe o sucesso (FREIRE, 2005, p.66).

Os primeiros modernistas, como Mário e Oswald de Andrade, viam em Lima

Barreto um precursor, em termos de narrativa, do modernismo que “engatinhava” no

início do século XX. Pela dificuldade de impor seu estilo e não figurar na lista dos

melhores ficcionistas, em sua época e, mesmo por tornar-se alcoólatra (ter sido

internado como louco) e sentir-se injustiçado por seus contemporâneos, pode ser

considerado, por esse viés, um escritor marginal. No artigo “A biografia e o biografado:

reflexões sobre Afonso Henriques de Lima Barreto”, Ferreira (2009, p. 4) argumenta

que: “A imagem que o indivíduo Afonso Henriques de Lima Barreto fazia de si era, em

muitos momentos, marcada por uma forte negatividade. Apesar de se reconhecer como

um escritor de talento via-se esmagado pelo preconceito”. O escritor não passou

despercebido, recebeu críticas positivas, mas, na maioria, negativas.

Lima Barreto faleceu em 1 de novembro de 1922, aos 41 anos, sofrendo um

colapso cardíaco. “Lima Barreto, por sinal, mesmo criticando enfaticamente as

falcatruas, os desmandos e o arrivismo, não desiste. Só para de lutar forçado pela

doença e pela morte” (FRAZÃO, 2000, p. 152).

Lima Barreto deixou em seu texto marcas que o imortalizariam. Sua criticada

maneira de escrever e seu estilo crítico e combativo tornaram-se, após o modernismo,

motivo de inúmeras pesquisas e estudos. “O escritor Lima Barreto antecipa a revolução

estética de 1922 através da linguagem, daí o fato de se reivindicar e demonstrar o

quanto moderno está presente na obra de Lima Barreto” (FREIRE, 2005, p. 102). Lima

Barreto criou novas possibilidades para a literatura e influenciou muitos escritores

brasileiros, principalmente os modernistas e continua influenciando gerações.

1.2. O cotidiano do subúrbio em Clara dos Anjos

Percebe-se em Clara dos Anjos, obra concluída em 1922 e publicada somente

em 1948, que Lima Barreto se apropria de forma peculiar da problemática social como

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marca principal de sua obra, havendo temas voltados diretamente para questões

relacionadas à exclusão social, racial e de gênero. Lima Barreto é um escritor cuja fala e

ideias originam-se no conhecimento dos problemas dos oprimidos, e humilhados.

Clara dos Anjos é um romance urbano, mais propriamente, suburbano. Como

afirma Antônio Cândido, em um romance,

O enredo existe através dos personagens; as personagens vivem do

enredo. Enredo e personagem exprimem, ligados, os intuitos do

romance, a visão da vida que decorre dele, os significados e valores que o animam” (CANDIDO, 1987. p. 534).

Lima Barreto consegue prender a atenção dos leitores pelo viés da crítica, da

ironia, através da criação de narrativas que mostram o pensamento preconceituoso da

sociedade brasileira. E o objeto de tal preconceito (social) é o subúrbio. Não apenas o

subúrbio em si, mas o que ele representa. Lima Barreto se apropria dos acontecimentos

e das peculiaridades dos subúrbios para criar um tipo de romance precursor. A

apresentação das mazelas funciona como forte elemento estratégico romanesco.

Aparentemente se trata de um romance urbano, por ter seu enredo instalado em um

espaço da cidade. É importante refletir sobre o fato de que como par antagônico de

cidade, costuma-se ter o meio rural. Mas no caso das narrativas limabarretianas nem se

tem um romance rural, nem urbano, pois, de acordo com os narradores e mesmo com o

cronista Lima Barreto, nega-se ao espaço físico ocupado pelos personagens de Lima

Barreto as benesses da cidade. Se não se deixa de estar na cidade, o subúrbio, entretanto

não vive sob a lógica urbana, propriamente dita. Assim, o romance limabarretiano é,

não um romance urbano, mas suburbano e Clara dos Anjos é um bom exemplo disso.

Para o autor o subúrbio era um espaço habitado pela população marginalizada e

ignorada. “...Lima Barreto nos mergulha nos subúrbios pobres e humildes do Rio de

Janeiro dos primeiros anos do século XX. O retrato do meio suburbano no romance

póstumo encaixa perfeitamente os personagens menores que circundam a heroína

patética...” (OAKLEY, 2011, p. 204/205).

As autoridades públicas do início do século XX eram conservadoras e

partilhavam das mesmas ideias da elite. Lima, através de seus textos literários e de uma

linguagem mais popular, denuncia as humilhações impostas à mulher mulata, pobre e

moradora do subúrbio. Escritor e também morador do subúrbio, Lima Barreto sofreu na

pele o descaso por ser suburbano e negro, devido a isso, pretendia, com suas obras,

aguçar no seu público leitor, uma reflexão e um comportamento contra estes valores

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preconceituosos. Assim como Lima Barreto, é importante citar, aqui, o escritor e

professor de literatura Joel Rufino dos Santos e a escritora Carolina Maria de Jesus que

são figuras importantes para a história brasileira por tratarem de questões que, para a

sociedade era pano de fundo, sendo postergadas por muito tempo. A crítica indiana

Gayatri Chakravorty Spivak, ao escrever sobre o subalterno, dando ênfase à questão da

mulher, mais especificamente, permite que se discuta que, de certa forma, a mulher e o

suburbano são subalternos. Lima Barreto, portanto, não lutou sozinho e tem sido cada

vez mais reconhecido e “vem entrando para o cânone literário brasileiro” (FRAZÃO,

2013, p. 550). Lima Barreto era um intelectual que trazia os seus inconformismos para a

literatura e, portanto, rompia com a tradição, buscando uma literatura militante e

diferenciada “que lhe permitisse travar diálogos no intuito de combater os problemas

sociais e culturais que percebia na cidade do Rio de Janeiro, espelho naquele momento

do país” (NORONHA, 2009, p.45).

Sérgio Buarque de Holanda, no prefácio da obra, edição de 1974, de Clara dos

Anjos, retrata o subúrbio como um lugar dos refugiados onde Lima Barreto viveu e

escolheu como cenário, um ambiente em que tinha o privilégio de conhecer bem e onde

os moradores compartilhavam dos mesmos problemas e se ajudavam.

O subúrbio, diz, é o refúgio dos infelizes. Os que perderam o emprego, as fortunas; os que faliram nos negócios, enfim, todos os

que perderam a sua situação normal vão se aninhar lá; e todos os dias,

bem cedo, lá descem à procura de amigos fiéis que os amparem, que lhes deem alguma coisa, para o sustento seu e dos filhos (HOLANDA,

1974, p.7).

A solidariedade suburbana, como se pode depreender do fragmento citado, é

um elemento que se distancia da individualidade própria dos espaços mais privilegiados

da cidade. Mas o vírus da cidade, como poderia afirmar o cronista Lima Barreto, infesta

também as periferias. A periferia imita o centro. Isso é comum. O comportamento da

família de Cassi Jones é um exemplo disso. Dona Salustiana e suas filhas Catarina e

Irene eram vaidosas e ambiciosas. A mãe de Cassi é um exemplo de uma participante da

sociedade brasileira do início do século XX que se esmerava em ser uma senhora

elegante da elite e se achava superior aos seus “vizinhos” do subúrbio e as irmãs de

Cassi tinham grande desprezo por ele, por conta de sua conduta moral e a falta de

modos educados e ignorância do rapaz.

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É possível perceber características semelhantes entre a vida de Lima Barreto e

sua obra. O escritor, em Clara dos Anjos, retrata com muitos detalhes o subúrbio

carioca onde precisou deslocar-se junto com sua família e viveu grande parte de sua

vida. Conheceu muito bem as ruas, as casas, os problemas e moradores do lugar.

O subúrbio propriamente dito é uma longa faixa de terra que se

alonga, desde o Rocha ou São Francisco Xavier, até Sapopemba,

tendo para eixo a linha férrea da Central. Para os lados não se

aprofunda muito, sobretudo quando encontra colinas e montanhas que tenham a sua expansão; mas, assim mesmo, o subúrbio continua

invadindo, com as suas azinhagas e trilhos, charnecas e morrotes... Há

casas, casinhas, casebres, barracões, choças, por toda a parte onde se passa fincar quatro estacas de pau e uni-las por paredes duvidosas

(BARRETO, 2005, p.68).

Lima andava pelas ruas do subúrbio com o seu olhar atento às transformações

com a criação dos bondes e trens. Diariamente, o escritor embarcava na estação do

Méier até a estação de Todos os Santos, para chegar ao seu destino, a Secretaria da

Guerra, seu local de trabalho, e ficava a observar os espaços geográficos do subúrbio.

Essa limitação geográfica é a primeira marca social em Lima Barreto.

Não tendo escrito senão sobre pessoas e coisas de uma parte de sua

cidade, pode retratá-las contra um fundo claro e preciso. Esse pequeno espaço físico, olhado por ele, mais parecia uma boca de poço, abertura

para uma funda trama de relações sociais (SANTOS, 2004, p.106).

Os espaços periféricos ganharam destaque em sua obra, dando ênfase ao

preconceito social, à exclusão dos pobres. Pode-se se dizer que, na obra de Lima

Barreto, a vida está constantemente a misturar-se com a arte. Joel Rufino destaca o

movimento dialético da vida e obra do autor.

O movimento real vida-obra nunca é mecânico, como acreditam os

biografistas – até mesmo aqueles que prezam o autor de Policarpo

Quaresma. É dialético: sofrimentos do escritor o aproximaram da corrente renovadora das ideias da sua época – que em literatura era

antiestetizante – o que lhe permitiu enxergar a dimensão social de

certos fenômenos, o que, pôr sua vez, o levou à criação literária de situações, personagens e ambientes típicos. O final deste processo foi

o escritor fazer-se personagem de si mesmo, se retratando quando

retratava a classe média pobre do primeiro subúrbio carioca. Essa auto

retratação foi encarada, frequentemente, como deficiência, intemperança, imaturidade etc., o que não se sustenta (SANTOS,

2004, p. 107).

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Lima Barreto também observava o cotidiano da população suburbana e criticava

os problemas que os moradores do subúrbio sofriam: “Por esse intrincado labirinto de

ruas e bibocas é que vive uma grande parte da população da cidade, a cuja existência o

governo fecha os olhos, embora lhe cobre atrozes impostos, empregados em obras

inúteis e suntuárias noutros pontos do Rio de Janeiro” (BARRETO, 2005, p. 69). Não

escapava aos olhos do escritor, a desigualdade entre o espaço do subúrbio e da cidade

do Rio de Janeiro, entre a elite e os pobres, o luxo e o lixo, os holofotes em direção ao

centro da cidade e a invisibilidade e exclusão daquela gente humilde do subúrbio.

O escritor ousa trazer para a ficção elementos comuns, do dia-a-dia.

Totalmente despido de qualquer subterfúgio, quer seja com a

linguagem rebuscada ou quanto à posição social. Trouxe para a obra:

pessoas, fatos e acontecimentos, que antes dignos de uma nota apenas nas páginas policiais, podendo resumir em uma única palavra: o

subúrbio (FREIRE, 2005, p.99).

Pode-se observar que os problemas do subúrbio apresentados no século XIX

continuam sendo bem parecidos com os atuais, e os suburbanos, como costumava dizer

o autor, continuam sendo alvo do descaso.

A rua em que estava situada a sua casa desenvolvia-se no plano e,

quando chovia, encharcava e ficava que nem um pântano; entretanto, era povoada e se fazia caminho obrigado das margens da Central para

a longínqua e habitada freguesia de Inhaúma. Carroções, carros,

autocaminhões que, quase diariamente, andam por aquelas bandas a suprir os retalhistas de gêneros que os atacadistas lhes fornecem,

percorriam-na do começo ao fim, indicando que tal via pública devia

merecer mais atenção da edilidade (BARRETO, 2005, p. 11).

1.3. Identidade subalterna: a mulher suburbana, mulata e pobre

Clara dos Anjos, a protagonista do romance, é uma jovem por volta de seus

dezessete anos, proveniente de uma família pobre e moradora do subúrbio que “era

tratada pelos pais com muito desvelo, recato e carinho, e, a não ser com a mãe ou pai, só

saía com Dona Margarida, uma viúva muito séria, que morava nas vizinhanças e

ensinava Clara bordados e costuras” (BARRETO, 2005, p. 18). Pode-se perceber que,

neste fragmento inicial, o narrador apresenta Clara para o leitor como uma menina frágil

e ingênua, dócil, prendada e obediente aos pais. O recato - tido por muitos como

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A MARCA DO PRECONCEITO EM CLARA DOS ANJOS, DE LIMA BARRETO

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Foz do Iguaçu PR: UNIOESTE, 8 a 11 de dezembro

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ultrapassado também é um elemento tradicional do suburbano que o diferenciava da

cidade no início do século XX.

Criada ao som das modinhas melancólicas e superprotegida pelos pais, Clara era

uma menina romântica que sonhava, timidamente, com o dia do seu casamento. A

idealização romântica faz da mulher uma sonhadora.

No início do século XX, a identidade ainda era sólida, vista apenas como

herança cultural; pertencente a um determinado grupo e exclusiva de uma determinada

pessoa. No cenário da obra Clara dos Anjos, destaca-se a identidade de uma família de

mulatos do subúrbio, constituída por pai, mãe e filha. Esta por sua vez tem uma

identidade individual (cada sujeito nasce com sua individualidade) e coletiva (apesar de

nascer com sua individualidade, faz parte de um grupo social, logo, recebe informações

que terminam por interferir em seu construto sociocultural), construída através do

contexto social da época, da própria percepção e experiências de Lima Barreto e da

linguagem do narrador.

As características, os sentimentos de Clara não foram apresentados pela

personagem, de fato, ganharam voz através do narrador que mostra a sua subalternidade

e a falta de criticidade da jovem, ao aceitar, passivamente - o contexto em que vivia.

Dessa forma, o narrador exerce um papel fundamental neste romance, pois através da

sua fala e de seu olhar crítico mostra seu ponto de vista sobre as aflições e desgostos da

sociedade, destacando as mazelas do subúrbio carioca e principalmente a condição de

Clara e sua família na sociedade do início do século XX.

A identidade de Clara se baseia, principalmente, na educação que recebeu da

mãe. Dona Engrácia era uma personagem passiva, não gostava de tomar decisões e de

sair de casa, e assim criou Clara, aos seus moldes. A mãe recebeu boas instruções ao

estudar com os filhos do senhor que a criava antes de casar, porém depois de casada

dedicou-se apenas aos filhos, marido e afazeres de casa.

A filha que era protegida ao extremo e tinha amizades restritas, tinha a mãe

como principal referência. Desta maneira, o narrador apresenta uma personagem que é

efeito de uma educação inapropriada, vítima de uma situação hostil, conforme à cor e

condição social, incapaz de enfrentar os problemas sozinhas e transcender a sua

realidade social.

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Clara era uma natureza amorfa, pastosa, que precisava mãos fortes que a modelassem e fixassem. Seus pais não seriam capazes disso. A mãe

não tinha caráter, no bom sentido, para o fazer; limitava-se a vigiá-la

caninamente; e o pai, devido aos seus afazeres, passava a maioria do

tempo longe dela. E ela vivia toda entregue a um sonho lânguido de modinhas e descantes, entoadas por sestrosos cantores, como o tal de

Cassi e outros exploradores da morbidez do violão (BARRETO, 2005,

p.90).

O narrador expressa neste trecho a subordinação das mulheres, neste caso,

considerando o contexto do romance, principalmente, as mulheres negras e pobres,

mostrando a dominação masculina, na qual o homem é o chefe da família e tem a

responsabilidade de ser o provedor da casa e que a mulher tem um papel social bem

definido de subimissão, portanto, de cuidar do marido, realizar os afazeres domésticos e

cuidar da educação dos filhos. Segundo Spivak:

No contexto do itinerário obliterado, o caminho da diferença sexual é

duplamente obliterado. A questão não é a da participação feminina na insurgência ou das regras básicas da divisão sexual do trabalho, pois,

em ambos os casos, há “evidência”. É mais uma questão de que,

apesar de ambos serem objetos da historiografia colonialista e sujeitos

da insurgência, a construção ideológica de gênero mantém a dominação masculina. Se, no contexto da produção colonial, o sujeito

subalterno não tem história e não pode falar, o sujeito subalterno

feminino está ainda mais profundamente na obscuridade (SPIVAK, 2010, p.85).

De acordo com a maneira que foi educada, Clara não demonstra perspectivas e

iniciativa de estudar, de ascender socialmente, pelo contrário, o narrador mostra a

fragilidade de uma jovem que vive sonhando a espera de um marido e deposita no

casamento o seu futuro e a sua felicidade. Como é possível perceber no trecho a seguir:

O mundo se lhe representava como povoado de suas dúvidas, de queixumes de viola, a suspirar amor. Na sua cabeça, não entrava que

nossa vida tem muito de sério, de responsabilidade, qualquer que seja

a nossa condição e o nosso sexo. [...] Não havia, em Clara, a representação, já não exata, mais aproximada, de sua individualidade

social; e concomitantemente, nenhum desejo de elevar-se, de reagir

contra essa representação (BARRETO, 2005, p. 90).

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Clara era ingênua e apagada, segundo a descrição do narrador, e por conta

também da idade não tinha a capacidade intelectual de refletir sobre a vida, de

comparar, de criticar, pois a falta de contato com o “mundo real” influenciou

significativamente na construção da sua personalidade e identidade individual legítima e

muito teve a ver com o destino da jovem, ao final, seduzida e enganada. Mesmo com as

melhores intenções, Clara não é instruída a perceber de maneira crítica a sua real

situação sendo facilmente manipulada.

A filha do carteiro, sem ser leviana, era, entretanto, de um poder reduzido de pensar, que não lhe permitia meditar um instante sobre o

destino, observar os fatos e tirar ilações e conclusões. A idade, o sexo

e a falsa educação que recebera, tinham muita culpa nisso tudo; mas a sua falta de individualidade não corrigia a sua obliquada visão da vida

(BARRETO, 2005, p. 90).

Devido sociedade preconceituosa do início do século XX`, é possível analisar

porque Dona Engrácia queria proteger a filha da situação de subalternidade que rodeava

as mulheres suburbanas, negras e pobres. A mãe e, consequentemente a filha, são

influenciadas pelo meio, pelo cenário de dominação e descriminação na qual o romance

foi produzido, mas não se trata de um determinismo cientificista, aos moldes

naturalistas, e, sim, de uma questão de poder hegemônico – no caso, do masculino.

Dona Engrácia pensa encontrar na excessiva proteção um caminho para defender a filha

das humilhações, mas fracassa ao descobrir que a Clara havia sido enganada. Neste

momento, ao final do romance, Clara desperta para a realidade e para os estigmas

“absorvidos” por uma mulher negra e pobre, impostas pela sociedade burguesa. “Fora

preciso ser ofendida irremediavelmente nos seus melindres de solteira, ouvir os

desaforos da mãe do seu algoz, para se convencer de que ela não era uma moça como as

outras; era muito menos no conceito de todos” (BARRETO, 2005, p. 132).

Clara tinha uma visão distorcida de sua própria identidade, pois alheia aos

acontecimentos da vida não percebia o preconceito que a rodeava por não se enquadrar

nos padrões da época. Não sabia, portanto, que a sociedade fazia distinção entre

brancas, negras e mulatas.

A discriminação é determinada pela não aceitação das diferenças, seja estas de

ordem sócio-cultural, racial, religiosa, linguística e política. É com base nessas

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diferenças que o ser humano não assimila e respeita a diversidade e exclui o outro, ao

passo que, este outro não participa do seu grupo próximo ou, ainda, não tem com ele

algum vínculo identitário.

No artigo “Mesmices e novidades: Identidade, diversidades”, José Almino de

Alencar salienta que “Poder-se-ia afirmar sem risco que identidade implica, obviamente,

em alteridade, na diversidade. É na interação com o outro que a identidade se constitui e

as marcas advindas desse contato determinam o seu formato e o seu escopo” (2005,

p.11). Entretanto, pode-se dizer que a personagem Clara possui uma identidade frágil,

pois a jovem teve pouco contato com o mundo e com outras culturas, ao passo que, era

protegida pelos pais e a falta compreensão do mundo externo terminou por prejudicá-la

ao longo da sua vida.

Neste romance, o narrador apresenta as duas faces de Clara dos Anjos, no

primeiro momento, a jovem por receber uma educação dentro dos padrões burgueses

não percebeu sua diferença sociocultural e étnica dentro da sociedade, tornando-a ainda

mais vulnerável. Somente a partir de sua desilusão amorosa com Cassi Jones, um

homem branco, é que a mesma se encontra com sua real identidade e pertencimento

cultural, após sentir-se enganada.

2. FUNDAMENTAÇÂO TEÓRICA

Esta pesquisa está fundamentada nos estudos sobre o preconceito, identidade e

linguagem e tem como base teórica autores de áreas como a Literatura e a História. São

eles: BARRETO (2005); FREIRE (2005); HOLANDA (1956); HOUAISS (1956);

SPIVAK (2010); SANTOS (2004); CÂNDIDO (1987) e OAKLEY (2011).

3. CONCLUSÕES

Lima Barreto foi um escritor à frente de seu tempo, que sofreu muitos

preconceitos ao longo de sua vida pessoal, devido à sua condição social, racial e

profissional por provocar a elite com as temáticas realistas e a linguagem utilizada em

sua obra. O grande escritor Lima Barreto com seu modo crítico de escrever deu voz a

atores sociais excluídos e suas angústias com o propósito de buscar relações de

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igualdade e de ética para uma sociedade com muitos preconceitos, que exclui e

desprestigia o outro.

Lima Barreto se diferencia e se destaca através da sua ironia e crítica por mostrar

o pensamento preconceituoso da sociedade brasileira do final do século XIX e início do

século XX e por mostrar questões até então camufladas em uma linguagem mais

próxima dos moradores da periferia.

A tentativa de aprofundamento da reflexão sobre alguns tipos de preconceitos,

realizados ao longo deste artigo serviram como base para o melhor entendimento do

romance Clara dos Anjos, e, por extensão, da trajetória biográfica de Lima. A

personagem Clara representa as mulheres que, por serem negras, pobres e moradoras do

subúrbio, pertencentes à periferia, são tratadas como inferiores e subalternas pelo

próprio narrador. A personagem possuía uma identidade frágil e não tinha conhecimento

de sua situação perante a sociedade da época. A questão da subalternidade da mulher

ainda é mais complexa, como diz Spivak, por conta da sociedade machista do século

XX, porém, Lima através da personagem, mostrava, também, a condição do negro, em

geral.

O escritor se sentia inferior por não ser reconhecido no campo literário por conta

da sua condição de pobre, negro e morador do subúrbio e por enfrentar a elite com sua

literatura militante e sua linguagem simples e irônica, denunciando os problemas do

subúrbio e de seus moradores e a segregação social que vivia aquela população. Sua

maneira de escrever só foi aceita depois de sua morte.

REFERÊNCIAS

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Regina Goulart Almeida; Marcos Pereira Feitosa; André Pereira. Belo Horizonte:

Editora da UFMG.