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A mascára da malandragem em A Relíquia, de Eça de Queirós: o que se diz, o que se pensa Indionara de Matos (UFFS) Saulo Gomes Thimóteo (UFFS) Resumo: O autor Eça de Queirós escreveu livros que criticavam a sociedade da época e apresenta em sua obra, A Relíquia, um discurso que satiriza a igreja e revela a hipocrisia que aparecem nas relações pessoais e espirituais. Observamos, então, as desventuras do protagonista Teodorico Raposo que entre as variáveis foi escolhida nesse estudo pela sua malandragem. Iniciando pela sua infância, quando afirma que, pela riqueza da tia, era necessário ser bom e agradá-la sempre, além de vários momentos em que seu comportamento não condiz com o que se passa em seus pensamentos. Um exemplo de sua dissimulação é, ao queixar-se a sua tia, a indignação que teve ao decote de uma senhora, mas na verdade o desfrutou, quando foi a ópera. Pretende-se identificar a construção dessa personagem, analisando, inclusive, o fato da obra ser narrada em primeira pessoa, fazendo com que se confessem os "desvios" da índole de Teodorico. Para desenvolver essa pesquisa foi realizada a leitura do livro e utilizados fragmentos e referências do autor, e para auxiliar na problematização da figura do pícaro e do malandro, textos como “Dialética da malandragem”, de António Candido, também “Malandragem Revisitada”, de Roberto Goto, funcionam como fundamentação. Verifica-se, assim, como é realizada a malandragem no personagem como críticas à religião e à sociedade da época. Palavras-chave: Malandragem; Comportamento; Personalidade; Teodorico Raposo. Resumen: El autor Eça de Queirós escribió libros que criticaban la sociedad de la época y presenta en su obra A Reliquia, un discurso que satiriza la iglesia y revela la hipocresía que aparecen en las relaciones personales y espirituales. Es posible observar las desventuras del protagonista Teodorico Raposo, que entre las variables fue elegido en ese estudio por ser malandrín, a principio en su infancia, cuando afirma que, por la riqueza de la tía, es necesario ser bueno y agradarla siempre, además de varios momentos en que su comportamiento no está de acuerdo con lo que pasa en sus pensamientos. Un ejemplo de su disimulación es cuando el personaje se queja a su tía la indignación que tuvo al escote de una señora, pero en realidad la disfrutó cuando fue a la ópera. En ese sentido, la intención de este trabajo es identificar la construcción de ese personaje, analizando, incluso, el hecho de que la obra sea narrada en primera persona, lo que hace con que se confieran los "desvíos" de la índole de Teodorico. Para el desarrollo de esta investigación fue realizada la lectura del libro, con una mirada cercana a fragmentos y referencias del autor. Además, con el intuito de auxiliar en la problematización de la figura del pícaro y del malandro, fueran utilizados textos como "Dialética da malandragem", de António Candido, también "Malandragem Revisada", de "Roberto Goto. Esas lecturas posibilitan la reflexión acerca de cómo se realiza el malandrín en ese personaje que hace críticas a la religión y a la sociedad de la época. Palabras-clave: Malandrín; Comportamiento; Personalidad; Teodorico Raposo. Eça de Queirós foi um dos maiores escritores portugueses realistas, autor de grandes obras, com reconhecida importância e reconhecimento internacional. Com suas obras,

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A mascára da malandragem em A Relíquia, de Eça de Queirós: o que se diz, o que se

pensa

Indionara de Matos (UFFS)

Saulo Gomes Thimóteo (UFFS)

Resumo: O autor Eça de Queirós escreveu livros que criticavam a sociedade da época e

apresenta em sua obra, A Relíquia, um discurso que satiriza a igreja e revela a hipocrisia que

aparecem nas relações pessoais e espirituais. Observamos, então, as desventuras do

protagonista Teodorico Raposo que entre as variáveis foi escolhida nesse estudo pela sua

malandragem. Iniciando pela sua infância, quando afirma que, pela riqueza da tia, era

necessário ser bom e agradá-la sempre, além de vários momentos em que seu comportamento

não condiz com o que se passa em seus pensamentos. Um exemplo de sua dissimulação é, ao

queixar-se a sua tia, a indignação que teve ao decote de uma senhora, mas na verdade o

desfrutou, quando foi a ópera. Pretende-se identificar a construção dessa personagem,

analisando, inclusive, o fato da obra ser narrada em primeira pessoa, fazendo com que se

confessem os "desvios" da índole de Teodorico. Para desenvolver essa pesquisa foi realizada a

leitura do livro e utilizados fragmentos e referências do autor, e para auxiliar na

problematização da figura do pícaro e do malandro, textos como “Dialética da malandragem”,

de António Candido, também “Malandragem Revisitada”, de Roberto Goto, funcionam como

fundamentação. Verifica-se, assim, como é realizada a malandragem no personagem como

críticas à religião e à sociedade da época.

Palavras-chave: Malandragem; Comportamento; Personalidade; Teodorico Raposo.

Resumen: El autor Eça de Queirós escribió libros que criticaban la sociedad de la época y

presenta en su obra A Reliquia, un discurso que satiriza la iglesia y revela la hipocresía que

aparecen en las relaciones personales y espirituales. Es posible observar las desventuras del

protagonista Teodorico Raposo, que entre las variables fue elegido en ese estudio por ser

malandrín, a principio en su infancia, cuando afirma que, por la riqueza de la tía, es necesario

ser bueno y agradarla siempre, además de varios momentos en que su comportamiento no está

de acuerdo con lo que pasa en sus pensamientos. Un ejemplo de su disimulación es cuando el

personaje se queja a su tía la indignación que tuvo al escote de una señora, pero en realidad la

disfrutó cuando fue a la ópera. En ese sentido, la intención de este trabajo es identificar la

construcción de ese personaje, analizando, incluso, el hecho de que la obra sea narrada en

primera persona, lo que hace con que se confieran los "desvíos" de la índole de Teodorico. Para

el desarrollo de esta investigación fue realizada la lectura del libro, con una mirada cercana a

fragmentos y referencias del autor. Además, con el intuito de auxiliar en la problematización

de la figura del pícaro y del malandro, fueran utilizados textos como "Dialética da

malandragem", de António Candido, también "Malandragem Revisada", de "Roberto Goto.

Esas lecturas posibilitan la reflexión acerca de cómo se realiza el malandrín en ese personaje

que hace críticas a la religión y a la sociedad de la época.

Palabras-clave: Malandrín; Comportamiento; Personalidad; Teodorico Raposo.

Eça de Queirós foi um dos maiores escritores portugueses realistas, autor de grandes

obras, com reconhecida importância e reconhecimento internacional. Com suas obras,

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realizava críticas à religião, ao clero e à sociedade da época. Também faz uso de monólogos

interiores, que promovem uma visualização, compreensão dos sentidos, sentimentos e

intenções do personagem e do autor e a utilização da sátira que expõe fatos que contrapõem a

realidade. As narrativas são descritas minuciosamente. Seus personagens retratam uma classe

social e as representam em distintas características e comportamentos, como em A Relíquia.

O romance A Relíquia proporciona uma visão moralizante da sociedade e do ser

humano, por meio da sátira feita nas características do personagem principal do livro. Obra

escrita em 1887, traz a crítica do autor à sociedade e ressalta os defeitos e a ganância do clero.

Também é rica em detalhes, os quais promovem o estilo realista, por descrever paisagens,

personagens.

Nesse artigo, foi utilizada a figura de personagem narrador da história, Teodorico

Raposo, e em especial seus pensamentos e ações para compreendermos, por meio da

identificação de comportamentos considerados “da malandragem”, as máscaras sociais que são

utilizadas e sua índole íntima. Wood esclarece que “Podemos saber muitas coisas sobre um

personagem pela maneira como ele fala, e com quem fala – como lida com o mundo” (WOOD,

2014, p.89) e sendo o principal personagem da obra, Vulgo Raposão quem narra toda sua vida

desde o namoro de seus pais e depois de sua peregrinação a Jerusalém, a identificação proposta

torna-se mais fidedigna.

Raposão, alcunha dada pelos seus companheiros da Universidade de Coimbra, por seu

comportamento e aparência, é quem guia através de sua vivência a identificação de

características da malandragem em sua personalidade. Teodorico explica os motivos que o

levaram a ganhar seu codinome, “[...] fartei a carne com saborosos amores no Terreiro da Erva;

vadiei ao lugar ganindo fados; usava moca; e como de barba me vinha, basta e negra, aceitei

com orgulho a alcunha de Raposão”. (QUEIRÓS, 1887, p.23). Sua postura na universidade de

boemia e vida noturna agregaram a sua pessoa não apenas sua alcunha, mas também o que se

procura identificar: a malandragem do personagem.

Malandragem é referente ao comportamento do indivíduo malandro. Malandro é como

o dicionário português Aurélio (1988) explica: “Individuo dado a abusar da confiança dos

outros, ou que não trabalha e vive de expedientes; velhaco, patife. Indivíduo preguiçoso,

madraço, [...]. Individuo esperto, vivo, astuto, matreiro. Que é malandro” (AURÉLIO, 1988,

p. 409). Enfim, todas essas aptidões se mostram necessárias para o indivíduo malandro possa

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se beneficiar das situações, viva em busca de prazeres e diversão, sem a necessidade de

trabalhar.

O ponto de partida, na obra, é estabelecido no período depois do falecimento dos pais

do protagonista, primeiro a mãe no parto e depois seu pai, quando já tinha sete anos. Então, vai

morar com sua tia e é nesse momento que se observa o comportamento e personalidade já

tendenciosa do personagem. Pois ele aprende que, pelo fato de sua tia ser extremamente rica,

deveria ser bom com ela, e sempre a responder com um sim. Como confirmado em um dos

primeiros diálogos entre os dois:

- Sim Titi.

Então o padre mais idoso e nédio chegou-me para os joelhos, recomendou-

me que fosse temente a Deus, quietinho em casa, sempre obediente à Titi...

- O Teodorico não tem ninguém senão Titi... É necessário dizer sempre que

sim à Titi...

Eu repeti, encolhido:

- Sim, Titi. (QUEIRÓS, 1887, p.19).

No dia em que a conheceu, sua primeira palavra para Titi foi um tremido e amedrontado

“Sim”, como explícito na narrativa de Queirós: “Assustado, com o beicinho já a tremer, ergui

os olhos para ela, murmurei: - ‘Sim, titi.’” (Idem p.18), percebe-se que o personagem agiu

procurando adaptar-se à nova realidade e já compreendendo sua condição naquele recinto.

Como explica Antônio Candido, no texto “Dialética da malandragem”, o “choque com a

realidade que leva à mentira, à dissimulação, ao roubo, e constitui a maior desculpa das

picardias” (CANDIDO, 1970, p.69). Com base nos estudos de Antônio Cândido, tem-se a

possibilidade de agregar as características do pícaro ás do malandro. Pode-se observar que tanto

o malandro, quanto o pícaro abominam o trabalho, procuram vida boa sem muito esforço físico,

e ambos usam da esperteza e agilidade para tal.

O pícaro também recebe inúmeras qualificações, como ser ardiloso e astuto, os dois

vivem em sociedade, mas não são ligados a ela ou produtivos para a mesma, eles não têm uma

ideologia, o que fazem e produzem é apenas pelos seus próprios interesses. Suas habilidades

são providas pelo contexto em que vivem, pelo seu ambiente social e suas necessidades. No

contexto de Raposo, os dois adjetivos juntos promovem uma descrição ainda melhor das

características do personagem. Teodorico vivia em uma casa grande, com pratarias e

funcionários, mas nada era seu, também frequentava alta sociedade apesar de não ter dinheiro

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próprio, era apenas a sua capacidade de adaptação e aprendizagem, inteligência e malandragem

que tornou sua presença duradoura nesse meio.

É inegável que os eventos que ocorreram em sua infância moldaram seu caráter e sua

flexível adaptação ao meio de convivência. Ele apropriou-se de ferramentas como a mentira e

dissimulação para continuar abrigando-se na casa de Dona Patrocínio, a Titi. Também procurou

fazer as vontades de sua tia seguindo sua doutrina, mesmo que apenas externamente.

Mas torna-se necessário conhecer um pouco mais D. Patrocínio para entender as

façanhas de Raposão, e seu relacionamento com sua tia Patrocínio, uma vez que se faz passar

por beato grande devoto a religião para obter sua fortuna em seu testamento. Titi é descrita por

Queirós como uma mulher solteirona extremamente beata, rica e contra relações entre homens

e mulheres.

Ela como dona da casa, responsável e consanguínea de Teodorico, impôs o modo como

ele deveria se comportar como narrado por ele, “A titi, severamente, mandou-me tirar o dedo

da boca, Depois disse-me que voltasse para a cozinha, para a Vicência, sempre a seguir pelo

corredor..., - ‘E quando passar pelo oratório, onde está a luz e a cortina verde, ajoelhe-se, faça

o seu sinalzinho da cruz....’” (QUEIRÓS, 1887, p.19). Todo seu crescimento foi acompanhado

e ajustado ao seu modo de viver e suas crenças, que era uma mulher severa e controladora.

Mulher com a vida inclinada totalmente a rezas, missas, adoração a Deus, a vida sem

pecados, completamente contra relacionamentos de homens e mulheres, bebidas e tudo que a

Bíblia e a igreja pregavam como pecado. Constrói-se, então, um personagem que não tolera

nada que ache não condizer com os mandamentos de Deus, tanto que deixa morrer sem ajuda

seus próprios familiares por “estarem em pecado”:

– Que se aguente.. É o que sucede a quem não tem temor de Deus e se mete

com bêbedas... Não tivesse comido tudo em relaxações... Cá pra mim, homem

perdido com saias, homem eu anda atrás de saias, acabou... Não tem o perdão

de Deus, nem tem o meu! Eu padeça, eu também Nosso Senhor Jesus Cristo

padeceu! (QUEIRÓS, 1887 p.26).

Afirmando, então, que estavam pagando por seus erros e por isso estavam ganhando o

que era merecido. Ela não oferece ajuda nem mesmo diante da enfermidade de seu parente, do

pedido de ajuda em um jornal e da imagem de crianças famintas na pobreza.

Dona Patrocínio tem como algumas características principais religiosidade extrema e

rotina de orações, que eram feitas em casa, que possuía uma espécie de santuário e idas a igreja

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fielmente, para confissão e missas. Seu comportamento era frio, cheio de julgamentos. Portanto

quem não portava os mesmos princípios, e comportamentos não era digno de estar em seu meio

de convivência, ela não conglomerava com ninguém que não estive no mesmo nível dela, ou

do qual considerava em conformidade com suas ideologias.

Dessa forma, Raposo necessitava comportar-se como Titi julgava ideal de seu sobrinho.

A relação então entre eles era de cordialidade, Teodorico tinha requintada educação, delicadeza

além de submissão e temor a sua tia. Não por um sentimento de apreço e respeito, mas sim pelo

conforto isso proporcionava. Ele se caracteriza como pícaro, pois, segundo Candido, “Pícaros

são amáveis e risonhos” (CANDIDO, 1970, p.69). Qualidades necessárias para agradar e ter

direito a conviver com Titi e seu círculo social.

Por meio de cartas que escrevia a ela, ele dizia apenas rezar e ter uma vida pacata. Como

se nota na passagem do texto onde descreve: “todos os quinze dias, porém, escrevia a Titi, na

minha boa letra uma carta humilde piedosa, onde lhe contava a severidade de meus estudos, o

recato de meus hábitos, as copiosas rezas e os rígidos jejuns [...]”. (QUEIRÓS, 1887, p.19).

Ao conhecer um pouco de Dona Patrocínio, consegue-se analisar a figura inicial de

Teodorico, um menino sem muita compreensão da vida, da perda dos pais, da sua relação com

tal mulher e eminente desamparo emocional, mas apenas quando relacionado ao primeiro

encontro dos parentes porque no decorrer de seu crescimento é averiguado sua perspicácia e

caráter matreiro. Constata-se dessa forma que a necessidade de sobreviver apenas desencadeou

sua real personalidade, estimulando seu caráter, Candido afirma: “Na origem, o pícaro é

ingênuo; a brutalidade da vida e que aos poucos o vai tornando esperto e sem escrúpulos, quase

como defesa” (CANDIDO, 1970, p.69). De modo que o confronto com a tia, desenvolveu no

menino habilidades de pícaro. Assim, pela esperteza e mascaramento, Teodorico passa a criar

estratégias dessa malandragem, como a dissimulação e a chantagem.

O percurso de crescimento do protagonista promoveu novos rumos a sua personalidade.

Com apenas nove anos, ele é mandado a um colégio interno, lugar que lhe permitiu um pouco

de liberdade, e pôde desenvolver suas primeiras paixões, brigas, começar a fumar e de certa

forma a aprender a atuar. Teodorico assume um personagem, um beato crente e religioso em

casa, e atua como tal utiliza-se de cenas planejadas e as desempenha com atos e discursos já

pré-elaborados, assume um tom de fala e expressões faciais que promovem maior veracidade

da cena. Sua destreza na arte de enganar é imensa, como quando para alcançar ainda mais o

dinheiro de Titi, foi até o oratório que tinha na casa ajoelhado e rezando, “Abati-me sobre o

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assoalho, aos soluços, desfalecido de paixão divina” (QUEIRÓS,1887, p.31). Respondendo a

sua tia que era por que estava arrependido de haver falado dela no teatro e deveria se confessar

e pedir perdão a Deus. Dessa forma ele rapidamente, consegue a atenção de sua tia e;

Desculpe, titi... Estava no teatro com o Dr. Margaride, estivemos ambos a

tomar chá, a conversar da titi... E vai de repente, ao voltar para casa, ali na

Rua Nova da palma, começo a pensar que havia de morrer, e na salvação da

minha alma, e em tudo que Nosso Senhor padeceu por nós, e dá-me uma

vontade de chorar... Enfim, a titi faz favor, deixa-me aqui um bocadinho só,

no oratório, para aliviar... Muda impressionada, ela acendeu reverentemente,

uma a uma, todas as velas do altar. [...] Depois em silencio desapareceu,

cerrando o reposteiro com recato. Eu ali fiquei sentado na almofada da titi,

coçando os joelhos, suspirando alto - e pensando na viscondessa de Souto

[...]. (QUEIRÓS, 1887, p.40).

Fazia de sua casa um teatro completo, com suas encenações e atuações. Teodorico

fingiu-se arrependido e precisar do perdão de Deus, utilizou de argumentos como “ salvação

da minha alma”, além de “Nosso Senhor padeceu” para enfatizar a aflição que representava.

Também faz questão de contar ao leitor a reação da Titi (“Muda impressionada”),

possivelmente com o tamanho da fé e temor de Teodorico. E ainda em confidencia retira sua

mascará, quando confessa que ficou a pensar em mulher, como se estivesse a contar um segredo

a um amigo fiel.

Nessa perspectiva, Saraiva afirma que “Através das circunstâncias em que se situa e de

certos traços linguísticos flagrantes, surgem bem conotadas as contradições inconscientes entre

seus juízos explícitos e os seus comportamentos ou intenções reais. (SARAIVA,2010, p.874).

Ou seja, nessas “circunstancias” da relação com sua Tia e nos “traços linguísticos” que existem

se consegue ter uma ideia da submissão e temor que sentia Teodorico em perder sua qualidade

de vida além da contrariedade de seus atos, quando mesmo distante da presença de Titi, em

suas noites em Coimbra de festas, bebidas e mulheres, ainda preocupava-se com os desejos de

Dona Patrocínio.

Para tais feitos, ele observou o comportamento dos indivíduos da sociedade, como a

presença dos dois eclesiásticos padre Casimiro e padre Pinheiro. Suas visitas frequentes à casa

de dona Patrocínio, suas bajulações e perceptíveis interesses a comodidade e dinheiro, são

identificados pelos olhos de um menino e depois do homem. De maneira que o influenciaram

profundamente e puderam servir de bases a formação de um Teodorico falso, interesseiro, e

engenhoso na arte de manipular.

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E também das pessoas com quem convivia. Como quando o personagem narra sobre

suas saídas do colégio para visitar sua tia. Vicência, uma das funcionárias da casa era

responsável por buscá-lo, e quando o fazia o comportamento do administrador do colégio

Isidoro Junior mudava.

Isidoro Júnior, antes de eu sair, examinava-me sempre os ouvidos e as unhas;

muitas vezes, mesmo na bacia dele, dava-me uma ensaboadela furiosa,

chamando-me baixo sebento. Depois trazia-me até à porta, fazia-me uma

carícia, tratava-me de seu querido amiguinho, e mandava pela Vicência os

seus respeitos à Sr. ª D. Patrocínio das Neves. (QUEIRÓS, 1887, p.21).

Isidoro sempre o tratava de forma fria e chamava-o de sebento muitas vezes, mas

mudava seu comportamento ao avista-la, o tratando como seu querido amiguinho, como dito

pelo próprio Teodorico na narrativa. Ele percebe a máscara utilizada por Isidoro e como ele se

adapta à situação e à pessoa com a qual fala, além de parecer já acostumado a tais mudanças

de comportamento. Isidoro era chamado de sebento por Teodorico porque conhecia a

verdadeira personalidade sem a máscara do proprietário do colégio.

A própria dona Patrocínio se caracteriza com uma máscara. Ela representa a

intransigência, a religião numa interpretação bruta e rígida. Fiel a seus princípios e firme em

seu posicionamento, e seus atos como devota. Titi compreende e tendência sua crença a sua

própria interpretação. “ [...] Não tem perdão de Deus, também não tem o meu! Que padeça,

que padeça, que também Nosso Senhor Jesus Cristo padeceu! ” (QUEIRÓS, 1887, p.26).

Outro aspecto importante a relatar é que Teodorico é um mulherengo e dava sinais disso

desde de muito jovem, ele especialmente notava e observava as mulheres por prazer e gozo. E

conseguindo identificar, nos olhos de sua tia, o prazer das mentiras que dizia aproveitava para

acrescentar fatos que ela achasse interessante e aprovaria seu comportamento como no exemplo

quando diz a ela:

Depois, tristemente, como um moralista magoado, queixei-me do nédio

decote de uma senhora imodesta, nua nos braços, nua no peito, mostrando

toda carne, esplêndida e irreligiosa, que é a desolação do justo e a angústia da

Igreja.

- Jesus, Senhor, que vexame! Acredite a Titi, estava com nojo!

A Titi gostou deste nojo. (Idem, p. 26).

O narrador enfatiza que Titi gostou do nojo, o fato relatado pelo sobrinho com a palavra

pontuada estrategicamente produziu um efeito em D. Patrocínio. Uma reação já esperada por

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Teodorico que sabe que ela gostaria disso, então fez questão de frisar isso em sua fala. Em

outro momento precisou ocultar seu encontro com elas, e encobrir o perfume de Adélia, sua

amante, em suas roupas ele trazia incensos e os queimava antes de entrar em casa e gerava

resultados todo vez que Titi afirmava quão era bom o cheirinho de igreja que ele trazia.

E sua ferramenta para tal é a dissimulação, e com a qual consegue muitos logros com

sua tia, já podia sair e voltar mais tarde que o habitual, graças à confiança que construiu por

meio de muita mentira, e ele cultivava mais e mais confiança da tia quando relata

minuciosamente detalhes dos lugares que visitava como a ópera e observações das pessoas no

local.

A formação acadêmica de Teodorico em Coimbra possibilitou um aprimoramento das

habilidades de pícaro que já estavam acentuadas em sua personalidade. Neste local passou por

dificuldades, por causa de seu tutor chamado Dr. Roxo, que logo pelo destino faleceu e deixou

assim, que Teodorico pudesse conhecer uma vida de bebedeira, liberdade e paixões,

demonstrado nas palavras de Teodorico:

Detestei logo o Dr. Roxo. Em sua casa sofri vida dura e claustral; e foi um

inefável gosto quando, no meu primeiro ano de Direito, o desagradável

eclesiástico morreu miseravelmente dum antraz. Passei então a divertida

hospedagem das Pimentas – e conheci logo, sem moderação, todas as

independências, e as fortes delícias da vida. (QUEIRÓS, 1887, p.23).

No trecho ainda é possível averiguar a verdadeira natureza de Raposão, sua índole em

forma mais pura. Ele expressa seu gosto e imenso prazer na morte de Dr. Roxo pela forma com

que descreve “ foi um Inefável gosto”, de maneira a acentuar o descaso que ele sentia pelo

tutor. E ainda compreende que “morreu miseravelmente” o falecimento do homem além de

estar a seu gosto ainda foi sem valor, desprezível.

Candido revela que o pícaro vive ao sabor da sorte. O malandro modela a sorte ao seu

sabor. Foi essa sorte que oportunizou a ele experimentar a liberdade. E provavelmente é um

dos grandes motivos que incentivaram os pensamentos de Raposão, durante o romance, a torcer

e esperar pela futura morte de sua tia. Tendo isso como um motivador a persistir na casa de sua

parente. Conhecemos completamente seu foco de interesse, mas não inteiramente seus

sentimentos. Wood esclarece que “[...] a narrativa pode dar, e muitas vezes dá, uma nação

vívida de um personagem sem dar uma noção vívida de um indivíduo. Não conhecemos esse

homem em particular, mas conhecemos seu comportamento particular nesse momento

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específico. ” (WOOD,2014, p.91). Esse conhecimento que se tem garante uma interpretação e

outra sobre o propósito do personagem.

De fato, Cândido esclarece o que sente um pícaro, “[...] ele não tem sentimentos, mas

apenas reflexos de ataque e defesa. Traindo os amigos, enganando os patrões, não tem linha de

conduta, não ama e, se vier a casar, casará por interesse, disposto inclusive às acomodações

mais toscas” (CANDIDO 1970, p.70). É exatamente o que se verifica no fim da história, com

um casamento arranjado pelo amigo, não conhecia a noiva, não a amava, mas ela o

proporcionaria abrigo e comodidade em momentos difíceis. Mas ainda que se desconhece os

sentimentos, identifica-se a motivação e o significativo que se torna a Teodorico obter a

liberdade, e assim ampliar seus contatos e conhecimento de mundo.

Ele tem necessidade de estar no meio de pessoas, sua máscara não poderia ser utilizada

sempre, momentos de descontração o renovavam. Por seus amigos frequentava festas e

desfrutava de damas de companhia, em uma delas foi o relógio que o lembrou que precisa

manter o teatro, as aparências, estará demasiado relaxado sem a máscara. “[...] – e os meus

lábios encontraram os seus no beijo mais sério, mais sentido, mais profundo que até aí abalara

o meu ser. Nesse doce instante, um relógio medonho[...]”, “Jesus! Era hora do chá em casa da

titi! ” (QUEIRÓS, 1887, p.28).

Mais uma mostra que seu perfil se encaixa perfeitamente ao de um pícaro, como

esclarece Cândido “[...]o pícaro anda por diversos lugares e entra em contato com vários grupos

e camadas[...]”, (CANDIDO, 1970, p.70). Teodorico convivia com pessoas de diversos lugares

e posições, ao mesmo tempo que está com os padres está com as damas de companhia, transita

entres os meios e utiliza da máscara, quando na presença dos eclesiásticos ou nobres, se

desfazendo dela na presença de Adélia e damas de companhia.

Outro ponto de interesse e quando com chantagem consegue tirar dinheiro de Jose

Justino, tabelião de sua tia, para dar a Adélia. Dinheiro que conseguiu, quando ao acaso

encontrou com o tabelião, “[...] quando avistei a escapar-se, todo encolhido, todo sorrateiro,

duma dessas vielas impuras onde Vênus mercenária arrasta os seus chinelos – o José Justino,

o nosso José Justino, o piedoso secretário da Confraria de S. José, o virtuosíssimo tabelião da

titi!”, (QUEIRÓS, 1887, p.42). Ao voltar de um encontro, reconhece o tabelião, em um lugar

ao qual se supunha, pela classe do S. José, não poder frequentar. Encontra-lo proporcionou a

Raposão a solução para seu problema ele precisa de dinheiro e quase momentaneamente na

figura do conhecido o financiamento surgiu.

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A chantagem aconteceu no outro dia, muito bem orquestrada, “Ao outro dia, cedo, corri

ao cartório do Justino, a São Paulo, contei-lhe a pranteada história dum condiscípulo meu,

tísico, miserável, arquejando sobre uma enxerga, numa fétida casa de hóspedes, ao pé do Largo

dos Caldas. ” (QUEIRÓS, 1887, p.42). Uma vez que Justino não tinha um bom Álibi como o

Teodorico para explicar sua presença em uma dessas vielas impuras, e que Teodorico vira

alegando necessitar auxilio para ao suposto condiscípulo, a solução foi pagar pelo silencio de

Raposão que recebeu o dinheiro sem pudores.

Averígua-se que ele se utilizou de outras pessoas para libertar-se de problemas,

conforme Candido aponta “[...]Pragmatismo dos pícaros, cuja malandragem visa quase sempre

ao proveito ou a um problema concreto, lesando frequentemente terceiros na sua solução”

(CANDIDO, p.71.) Sendo assim Teodorico, na busca de seus objetivos não tem nenhum

remorso em usar e chantagear o outro para seu benefício mesmo que mínimo.

A herança era seu objetivo então ele tinha uma motivação, um motivo para suas ações

e atitudes malandras. Mas quando falamos em malandragem, é necessário ao malandro

esconder seus reais objetivos e intenções, de modo que precisa enganar, envolver e mexer as

peças do jogo. O personagem Teodorico confronta-se várias vezes entre seus reais sentimentos

e vontades com a realidade de sua vida na casa de Titi, em uma reflexão do mesmo está claro

o quão difícil é prender-se para conseguir a herança.

Como se pode notar em: “[...] Ai de mim! Quanto tempo mais teria de rezar com a

odiosa velha o fastiento terço, de beijar o pé do senhor dos passos, sujo de tanta boca fidalga,

de palmilhar novenas, e de magoar os joelhos diante do corpo de um Deus, magro e cheio de

feridas? Oh vida entre todas amargurosa! [...]”. (QUEIRÓS, 1887, p.40). Está claro que o

personagem rezava, mas odiava fazê-lo, o vocabulário utilizado por ele deixa claro seus

sentimentos e aversões como no exemplo, “fastiento terço” o terço para ele era uma cessão

maçante, e quando necessita beijar o pé da estátua ele narra como“ sujo de tanta boca fidalga”

se nota a repugnância que tinha ao ter que fazê-lo. Ele pensa sobre o martírio que é realizar e

como gostaria de não o fazer, mas em pratica suas ações são outras.

Revelado, também em uma das vezes que procurou Titi para despedir-se, uma distinção

entre o que fez e o que desejaria fazer: “[...] estendeu-me, através da fenda, a sua mão

escarnada, lívida, cheirando a rapé. Apeteceu-me mordê-la; depus nela um beijo baboso[...] ”

(QUEIRÓS, 1887 p.56). Beijou, porque tinha além da motivação um propósito, a herança e um

desejo que ele confessa “[...] E passaria os dias numa fofa preguiça oriental, fumando o puro

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latakié, tocando viola francesa, [...]” (Idem, p.49). De forma que Teodorico opta por beijar ao

invés de morder aquela mão. Personificando, então, o fato de seus pensamentos serem

totalmente opostos a seus atos. Principalmente com Titi, a mulher que regulava sua vida e os

caminhos que deveria tomar.

O que se nota no romance é que Teodorico não se utilizava dessas façanhas apenas com

Tia. Quando conheceu um parente doente Xavier, o qual lhe pediu ajuda para comover o

coração de Dona Patrocínio para ajudá-lo, ele prometeu ao homem falar com ela, mas em seus

pensamentos, achava a ideia absurda: “Falar com Titi! Eu nem ousaria a contar a Titi, que

conhecia o Xavier, e que entrava nesse casebre impuro onde havia uma espanhola, emagrecida

no pecado. E para que eles não percebessem meu ignóbil terror da titi, não voltei à Rua da Fé.

” (QUEIRÓS, 1887, p.20). Ele assegurou, mas não quer dizer que o fará, não existe um real

compromisso para um pícaro e o temor que tinha de Titi o fez não voltar a ver Xavier, apenas

a ideia de a tia ficar sabendo, a imagem e mera possibilidade de desagradá-la, fez ele ignorar o

pedido mesmo compreendendo ser uma atitude contraria a sua vontade. Sua ação foi ordenada

pela sombra de sua tia

Ao introduzir-se mais fundo no romance destaca-se a malandragem sendo bem

apresentada na esperteza e engenhosidade do personagem, que conseguia escapar de situações

que o fariam ser expulso de casa, como quando acaba se atrasando para chegar em casa, por

estar com Adélia sua primeira amante.

Ele utilizando-se de muita lábia, convence com ajuda dos eclesiásticos, sua tia de que

seu atraso foi por estar em um convento, e encontrar-se com um condiscípulo que por sinal era

sobrinho de um importante Barão na cidade. Também é compreensível tal necessidade da

mentira na afirmação de Raposão, “Porque para a tia Patrocínio todas as ações humanas,

passadas por fora dos portais das igrejas, consistiam em andar atrás de calças ou andar atrás

de saias: - e ambos esses doces impulsos naturais lhe eram igualmente odiosos. ” (QUEIRÓS,

1887, p.33).

Toda o processo de sua chegada tarde em casa demonstra que Teodorico tem uma

concepção divergente de sua tia, ao mesmo tempo que é insultado e permanece quieto a

concordar, ele também a insulta em pensamento,

Puxei, com a mão a tremer, a minha chávena de chá: e, remexendo desfalecida

mente o fundo de açúcar, pensava em abandonar para sempre a casa daquela

velha medonha, que assim me ultrajava diante da Magistratura e da Igreja,

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sem consideração pela barba que me começava a nascer, forte, respeitável e

negra. (QUEIRÓS, 1887, p.29).

Sua mão está a tremer seu ato parece de temor, mas seu pensamento é de revolta, quer

se rebelar ao domínio da tia. Ele a chama de “velha medonha” mostrando seu desprezo e aponta

características próprias que fazem dele já um homem merecedor de respeito e não mais poder

levar essa espécie de repreenda, e ainda de alguém que ele mal consegue suportar.

Mas, aos domingos, o chá era servido nas pratas do comendador G. Godinho.

Eu via-as, maciças e resplandecentes, diante de mim: o grande bule,

terminando em bico de pato; o açucareiro cuja asa tinha a forma duma cobra

assanhada; e o paliteiro gentil, em figura de macho trotando sob os seus

alforjes. Tudo pertencia á titi. Que rica era a titi! Era necessário ser bom,

agradar sempre á titi!...

Por isso, mais tarde, quando ela penetrou no oratório para cumprir o terço, já

eu lá estava, de rojo, gemendo, martelando o peito, e suplicando ao Cristo de

ouro que me perdoasse ter ofendido a titi. (QUEIRÓS, 1887, p.29).

Os vários itens de prata, que faziam os olhos de Raposão brilhar o lembraram do motivo

que deviria continuar usando a máscara e suportar as humilhações, enquanto seu gesto era

apenas de mexer o açúcar na xícara em silêncio, seu raciocínio articulava e analisava sua

situação. No oratório a gemer e suplicar, produz uma imagem que demostra arrependimento,

mas ao mesmo tempo o narrador especifica na presença de quem está, do “Cristo de ouro”. Não

era á titi seu arrependimento e nem aos temores religiosos que pudesse ter, mas era puramente

ao ouro que poderia ser dele.

A manipulação que Teodorico tinha com relação a Titi ocorre com a utilização de

sutilezas e engenhosidades. Seus atos são pensados, analisados, sua mente não para de

raciocinar como vemos em uma afirmação:

Sim, decerto, eu ganhara a confiança da Titi com os meus modos pontuais,

sisudos, servis e beatos! Mas o que a levara a alargar assim, com generosidade,

as minhas horas de honesto recreio, fora (como, ela disse confidencialmente ao

Padre Casimiro) a certeza de que eu “me portava com religião e não andava

atrás de saias. (QUEIRÓS, 1887, p.27).

Pode se dizer que sua mente trabalhava muito mais, do que se pode imaginar para que

o corpo pudesse aproveitar do que agradava ao Raposão, sua malandragem, se motivava a cada

êxito e alcance de metas que ele propunha para se satisfazer. E de acordo como suas metas

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aumentavam, suas preocupações também, sua tia era cada vez mais incisiva ao dizer que não o

queria envolvido com mulheres e ele cada vez mais envolvido com elas estava.

Sua atuação logo depois da perda da herança não foge a seus hábitos malandros. Em

um descuido do personagem ele acaba jogando fora a relíquia que deveria entregar a tia e em

seu lugar entrega uma camisola de mulher, motivo suficiente ser escorraçado. Um pouco antes

de ser expulso de casa, ele ainda se utilizava de seu poder de atuação para demonstrar o santo

devoto que era a sua tia, mas não tem o efeito desejado.

Logo descoberto por um erro e ter que sair de casa, sem o dinheiro de Titi, apenas com

algumas relíquias da peregrinação que fez, sua única solução é vender as relíquias verdadeiras

e algumas falsas que produziria. É com sua lábia, que inicia as vendas, com histórias que

tocariam o coração de beatas e padres, explorando sua religiosidade, barganha melhores preços,

“ [...] V.S. ª imagina que a água do Jordão é como a água do Arsenal? Ora essa!...Três mil-réis

recusei eu a um padre de Santa Justa, está manhã, aí, ao pé dessa cama... Ele fez saltar o frasco

na palma gorda, considerou, calculou: - Dou quatro mil-réis. ” (QUEIRÓS, 1887, p.194). E

assim pode ainda aproveitar as coisas boas da vida por um período curto de tempo.

O fim miserável e a resignação fazem parte do vasto currículo de um malandro, e não

poderiam faltar na vida de Raposão. Ao descobrir que sua tia deixou tudo a igreja, ao Padre

Negrão (mais precisamente outro malandro, pois envolve-se com Adélia, antiga amante de

Raposão), evidencia-se tal comportamento. Candido afirma que “ O malandro espanhol termina

sempre, ou numa resignada mediocridade, aceita com abrigo depois de tanta agitação, ou mais

miserável que nunca” (CANDIDO, 1970, p.70). O que é exatamente o que acontece, Teodorico

acaba por aceitar resignar-se a perca da herança, mas nesse processo também acha um método

de sobreviver ainda enganando, explorando a fé alheia com uma máscara de religiosidade.

Por cortesia, rilhado o queijo, convidei aquele homem que graças a Deus tinha

religião, a entrar no meu quarto e admirar as fotografias de Jerusalém. Ele

aceitou, com alvoroço: mas, apenas transpôs a porta, correu sem etiqueta e

gulosamente ao meu leito – onde jaziam espalhadas algumas das relíquias que

eu desencaixotara essa manhã.

- O cavalheiro aprecia? – indaguei, desenrolando uma vista do monte Olivete,

e pensando em lhe ofertar um rosário. (QUEIRÓS, 1887, p.193).

Com a herança já não havia o que fazer, perdeu tudo não tem como mudar os fatos, mas

ainda tinhas algumas relíquias, sua decisão diante da situação confirma mais uma vez ser um

digno malandro. No final do livro acredita-se que Teodorico pode estar mudado, mas

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descobrimos que o malandro nele ainda existe, pois somente se arrepende de não mentir com

mais firmeza. Ele aceita seu destino quando casa por interesse e deixa de pensar na fortuna da

Tia como possibilidade, mas ainda com remorso. Percebemos que Teodorico mente, engana e

tenta manipular as pessoas em toda a história do livro, utiliza de vasto acervo de habilidades

que o auxiliam em busca de seus objetivos e os usa sem remorso ou empatia, ele ama e trabalha

apenas por ele e ninguém mais.

O personagem retrata o individualismo, Eça de Queirós demonstra ao leitor aspectos do

homem individual, como a rejeição de tradições e preceitos da sociedade, e proporciona com

seu estilo de escrita, verificar sua crítica e os sentimentos agregados do personagem. Pode-se

fazer uma ligação com o que Wood descreve ao esclarecer o estilo indireto livre;

[...] estilo indireto livre é que, no nosso exemplo, uma palavra como “idiota”

de certa forma pertence ao autor e ao personagem; não sabemos muito bem

quem “possui” a palavra. [...] estilo indireto livre, vemos coisas através dos

olhos e da linguagem do personagem, mas também através dos olhos e da

linguagem do autor. (WOOD, 2014, p.23).

E mesmo não sabendo exatamente a quem pertence a palavra ainda se torna claro não

apenas os sentimentos que o personagem está representando como a intenção do autor ao

utilizar determinados vocabulários, uma palavra como “detestável” ou “sebento” além de

muitas outras utilizadas no romance, resumem a sensação e a profundidade do personagem. E

em Teodorico elas auxiliam enxergar sua estrutura como um anti-herói que é tão dissimulado

ao ponto de fazer-nos torcer por ele, e querer que fique com a herança.

E como esse recurso do Autor, o personagem no ambiente de Jerusalém, mostra uma

possível redenção. Na metade do livro em uma espécie de epifania com sonho vivido e descrito

da via Crucies de Cristo, representa ele pode carregar a possibilidade de mudança, quando ele

caiu na própria malandragem querendo conservar a camisola da amante, mas troca os pacotes.

Alguma coisa mudou que o fez não conseguir mentir para a tia. Pode-se acompanhar o processo

de mudança e parece haver a possibilidade de Teodorico se redimir, mas já não se pode alterar

todo um comportamento de vida. Como observado em Saraiva que auxilia na compreensão do

raciocínio de Raposão:

Raposão conclui pela inutilidade da hipocrisia, de acordo com uma

consciência moral imanentista, expressa em termos kantianos, proudhonianos

ou anterianos; mas depois descobre as vantagens do descarado heroísmo de

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afirmar aquilo que nos convém, mesmo conta toda evidência (Raposão

poderia ter declarado que, afinal, a camisa era uma relíquia de Santa Maria

Madalena). (SARAIVA, 2010, p.873).

O Teodorico no fim tem uma breve compreensão da “inutilidade” de seus atos passados

e não mente para tia, aceitando assim seu fracasso, mas logo arrepende-se percebendo que se

houvesse mentido e afirmado com veemência que o que dera a Titi era mesmo uma relíquia

poderia ter salvo sua herança.

Dessa forma verifica-se que declarar que um malandro por querer apenas os prazeres

da vida de forma fácil, não tenha preocupações é mentir. Uma vez que ele deve manter suas

mentiras interligadas e vivas em sua memória, além de estar sempre vigilante com relação ao

seu objetivo e metas alcançadas. Essas mentiras são como um habito natural intrínseco no

malandro e ele precisa conseguir sustenta-la, para a vida.

Referências

CANDIDO, A. Dialética da Malandragem: Caracterização das Memórias de um sargento de

milícias. Revista do Instituto de estudos brasileiros, nº8. São Paulo, USP, 1970. p.67-89.

Disponível em:

<https://comunicacaoeesporte.files.wordpress.com/2012/12/ dialetica_malandragem.pdf>.

Acesso em: 15 de nov. 2017.

FERREIRA, A. B. H. Dicionário Aurélio Básico da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro:

Nova Fronteira S.A, 1º ed. 1988.

GOTO, R. Malandragem Revisitada: Uma leitura ideológica de “Dialética da Malandragem”.

São Paulo: Campinas, 1986.

Disponível em: <https://litsocunicamp.files.wordpress.com/2015/05/goto-malandragem-

revisitada.pdf>. Acesso em: 15 de nov. 2017.

QUEIRÓS, E. de. A Relíquia. São Paulo: Galex, ed. Clássicos da Literatura, 1887.

SARAIVA, A. J. História da Literatura Portuguesa. Portugal: Porto Editora, 17° ed. 2010,

p. 872 – 874.

WOOD, J. Como Funciona A Ficção. São Paulo: Cosac Naify Portátil, 2014.