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UNIVERSIDADE ANHEMBI MORUMBI DEBORA SERRETIELLO DE ARRUDA CAMARGO A MÁSCARA DIGITAL O Trabalho do Ator Virtualizado no Cinema Contemporâneo SÃO PAULO 2013

a máscara digital

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UNIVERSIDADE ANHEMBI MORUMBI

DEBORA SERRETIELLO DE ARRUDA CAMARGO

A MÁSCARA DIGITAL O Trabalho do Ator Virtualizado no Cinema Contemporâneo

SÃO PAULO 2013

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DEBORA SERRETIELLO DE ARRUDA CAMARGO

A MÁSCARA DIGITAL O Trabalho do Ator Virtualizado no Cinema Contemporâneo

Dissertação de Mestrado apresentado à Banca Examinadora, como exigência parcial para a obtenção do título de Mestre do Programa de Mestrado em Comunicação, área de concentração em Comunicação Contemporânea da Universidade Anhembi Morumbi, sob a orientação do Prof. Dr.

Gelson Santana.

SÃO PAULO 2013

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FICHA CATALOGRÁFICA

C176m Camargo, Debora Serretiello de Arruda

A máscara digital: o trabalho do ator virtualizado no

cinema contemporâneo. – 2013.

201f.: il.; 30 cm.

Orientador: Prof. Dr. Gelson Santana.

Dissertação (Mestrado em Comunicação) -

Universidade Anhembi Morumbi, São Paulo, 2013.

Bibliografia: f.197-200.

1. Cinema. 2. Teatro. 3. Máscara Digital. 4. MoCap.

I. Título.

CDD 791.43

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DEBORA SERRETIELLO DE ARRUDA CAMARGO

A MÁSCARA DIGITAL O Trabalho do Ator Virtualizado no Cinema Contemporâneo

Dissertação de Mestrado apresentado à Banca Examinadora, como exigência parcial para a obtenção do título de Mestre do Programa de Mestrado em Comunicação, área de concentração em Comunicação Contemporânea da Universidade Anhembi Morumbi, sob a orientação do Prof. Dr.

Gelson Santana.

Aprovado em 03/10/2013

Prof. Dr. Gelson Santana

Prof. Dra. Priscila Ferreira Perazzo

Prof. Dr. Vicente Gosciola

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Ao meu amado companheiro, Eduardo Fleury por sempre me ajudar a construir.

Á minha filha que muito me ajudou na pesquisa.

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AGRADECIMENTOS

Aos meus pais e mães pela prontidão e pelo carinho: Durval e Marly, Elisabeth e Régis;

À minha querida irmã, Roberta,

pelo carinho e apoio incondicional.

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AGRADECIMENTOS

À Universidade Anhembi Morumbi.

Ao meu Orientador, por sua clareza e disponibilidade, Gelson Santana.

Ao Coordenador do Curso Superior de Teatro, Acácio Ribeiro Vallim.

Ao Coordenador do Curso de Mestrado em Comunicação, Rogério Ferraraz.

A todos os professores do Mestrado em Comunicação: Bernadette Lyra, Maria Ignês

Carlos Magno, Vicente Gosciola, Laura Loguercio Cánepa, Luiz Vadico, Renato Luiz

Pucci Junior, Sheila Schvarzman.

À banca examinadora, por sua valiosa contribuição, que permitiu a continuidade da

pesquisa.

Ao Prof.º Claudio Yutaka, pela entrevista concedida, compartilhando seus estudos.

À amiga Patricia Dinely que dividiu seus conhecimentos de atriz.

Aos diretores, atores e atrizes que generosamente doam suas criações para o

mundo do cinema.

Ao Teatro de Máscaras, minha grande paixão.

A Deus, pela oportunidade.

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RESUMO

O objetivo desta pesquisa é refletir sobre a condição do ator de cinema

contemporâneo diante de um novo artefato de construção de representação na

imagem, o Motion Capture (MoCap) ou a Performance Capture. Esta forma de

produção de representação exige do ator técnicas apuradas na medida que

transforma o resultado final em algo híbrido entre a realidade presencial e a

animação. E é justamente essa transformação que parece por em cheque o

símbolo maior da arte cênica clássica: a máscara. Diante desta constatação, este

estudo procura pensar as mudanças que a máscara teatral sofreu desde sua

origem no teatro grego passando por seu ressurgimento no Renascimento, com a

Commedia dell’arte, até desembocar, no início do século XX, na progressiva

adaptação ao cinema. Desse modo, este trabalho descreve o percurso das

composições de máscara ao longo do século XX para desembocar no paradigma

do ator do século XXI com o cinema digital e suas várias estratégias de

fragmentação em camadas da atuação. Por fim, esta pesquisa compara a forma

expressiva e concreta que a máscara exige do ator clássico com a atual máscara

digital que emerge com o advento de uma teatralidade virtual. E, afinal, constatar

que a captura digital de interpretação é por certo a atual fronteira da máscara

teatral.

Palavras-chave: Ator, Máscara, Máscara Digital, Motion Capture (MoCap), Cinema Contemporâneo, Teatralidade.

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ABSTRACT

The objective of this research is to reflect on the condition of contemporary film

actor facing a new artifact construction to represent the image, Motion Capture

(MoCap) or Performance Capture. This form of production requires the

representation techniques actor cleared the extent that the final result turns into

something hybrid between reality and face animation. And it is precisely this

transformation that seems to hold in check the greatest symbol of classical

performing art: the mask. Given this finding, this study tries to think the

changes that theatrical mask has undergone since its origin in the Greek theater

through its revival in the Renaissance with the Commedia dell'arte, until ending in

the early twentieth century , the gradual adaptation to film . Thus, this paper

describes the route of the compositions of masks throughout the twentieth century

and flows into the paradigm of the actor of the XXI century with digital cinema and

its various strategies fragmentation layered performance. Finally, this research

compares the expressive form and concrete requires that the mask of the classic

actor with the current digital mask that emerges with the advent of virtual

theatricality. And finally, note that the digital capture of interpretation is

certainly the current frontier of theatrical mask.

Keywords: Actor, Mask, Digital Mask, Motion Capture (MoCap), Contemporary

Cinema , Theatricality .

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO..................................................................................................13

1. A MÁSCARA E A PERFORMANCE TEATRO/CINEMA

1.1 Origens e Tradições................................................................................19

1.2 A Corporeidade da Máscara...................................................................33

1.3 Retomada da Teatralidade nos Séculos XIX e XX.................................38

1.4 Teatralidade Cinema/Teatro...................................................................49

1.5 Interações com a Tecnologia..................................................................65

2. MÁSCARAS NO CINEMA..................................................................... .....76

2.1 Comicidade........................................................................... ......83

2.2 Cinema Sonoro...................................................................... ......87

2.2.1 A Máscara do Efeito Compositivo para o Efeito Narrativo................111

2.3.1 Antecedentes da Captura de Movimento (MoCap)............................132

3. A MÁSCARA DO ATOR DIGITALIZADA.... .............................................141

3.1 A Máscara em Camadas......................................................................142

3.2 MoCap – A Desmaterialização da Máscara.........................................149

3.3 Exemplo de Transição do Efeito Compositivo para o Efeito Narrativo.158

3.4 Virtual Real...........................................................................................172

3.5 Ator Virtual............................................................................................176

3.6 Autoria Personagem Compositivo Personagem Narrativo...................183

3.7 Preparação Intensa..............................................................................189

Conclusão.............................................................................................................193

Bibliografia............................................................................................................197

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11

Lista de Figuras

1. Foto de Máscaras de Tragédia Grega que ficaram expostas no MASP/ 2012.............................21

2. Cena do filme A Viagem do capitão Tornado de Ettore Scola.......................................26 3. Desenhos de Máscaras de Arlecchino do grupo Moitará..............................................31 4. Gravura do grupo de teatro Moitará baseadas em animais e humanos........................34 5. Ettienne Decroux, Sport. (1948) Photograph by Etienne Bertrand Weill.......................41 6. Foto divulgação da peça Júlia, de Christiane Jatahy. (2004)........................................56 7. Foto de divulgação do filme Segredos e Mentiras (1996).............................................60 8. Atriz Franka Potente do filme Corra Lola Corra (1998).................................................62 9. A Viagem a Lua (Le voyage dans la Lune, 1902)……………………………...…….…...78 10. A atriz Musidora (Jeanne Roques) no filme Os vampiros (1915)............................. ....79 11. A atriz Stacia Napierkowska dançando no filme Os vampiros........................... ..........79 12. O ator Friedrich Feher O Gabinete do Dr. Caligari (1920).............................................80 13. O ator Max Schreck em Nosferatu: Uma Sinfonia de Horror (1922)............................ 81 14. A atriz Brigitte Helm no filme Metrópolis, direção: Fritz Lang, 1927............................. 82 15. A atriz Brigitte Helm no filme Metrópolis, se transforma em robô................................. 82 16. O ator Lon Chaney em O fantasma da Ópera (1925)...................................................83 17. No telefone está o ator Ford Steling Os Gangsters, 1913............................................84 18. Buster Keaton é Sherlock Jr (1924)………………………………………….……….…….84 19. Ator e comediante Harold Lloyd em Safety Last (1923)…………………...………….….85 20. Charlie Chaplin em O Garoto (1921).............................................................................86 21. Stan Laurell e Oliver Hardy ...........................................................................................87 22. O ator Al Jolson em O cantor de Jazz (1927)................................................................88 23. Boris Karloff em Frankenstein, direção: James Whale, 1931…………………..........….89 24. Bert Lahr, Ray Bolger, Judy garland e Jack haley em Mágico de Oz (1939)................89 25. Greta Garbo ..................................................................................................................90 26. Marilyn Monroe..............................................................................................................90 27. Cary Grant ……………………………………………………………………………........….91 28. Clark Gable…………………………………………………………………………….......….91 29. Lamberto Maggiorani e o menino Enzo Staiola Ladrão de bicicletas (1948).................92 30. O ator James Dean em Juventude Transviada (1955)..................................................93 31. O ator Jacques Tatit em Meu Tio (1958)......................................................................94 32. A atriz Fiona Florence em Roma de Felini.....................................................................95 33. As atrizes Bibbi Andersson e Liv Ullmann em Persona.................................................95 34. Cenas de Persona (1966)..............................................................................................95 35. A atriz Anna Karina em Viver a Vida (1962)..................................................................96 36. O ator Marlon Brando em O Poderoso Chefão..............................................................97 37. O ator Marlon Brando em Uma Rua Chamada Pecado................................................97 38. O ator Marlon Brando em Apocalipse............................................................................97 39. O ator Jerry Lewis em O Professor Aloprado...............................................................98 40. O ator Keir Dullea em 2001 Uma Odisséia no espaço..................................................98 41. Cena de 2001 Uma Odisséia no espaço.......................................................................98 42. O ator Yul Brunner.........................................................................................................99 43. O ator Peter Fonda........................................................................................................99

44. Cena de Tron (1982)..........................................................................................100

45. O ator Bob Hoskins e Jessica Rabbit..........................................................................100 46. O ator Christopher Lloyd..............................................................................................100 47. Cena de O segredo do Abismo (1989)........................................................................101 48. Cena de O Exterminador do Futuro 2..........................................................................102 49. A atriz Merryl Streep em A Morte Lhe Cai Bem...........................................................103 50. O ator Jim Carrey em O Maskara................................................................................104 51. Cartaz de divulgação de Matrix...................................................................................105 52. O ator Tom hanks e a captação de interpretação.......................................................106 53. O ator Andy Serkis e a captação de interpretação......................................................108

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12

54. MoCap e os atores de Piratas do caribe: O Baú da Morte .........................................109

55. A atriz Zoe Saldana e a personagem em MoCap...............................................110

56. O ator/diretor George Méliès.......................................................................................113 57. O ator Charles Ogle.....................................................................................................114 58. A atriz Musidora...........................................................................................................115 59. Os atores Werner Krauss, Conrad Veidt, Lil Dagover.................................................116 60. O ator Max Schreck em Nosferatu...............................................................................117 61. O ator Lon Chaney em London After Midnight, 1927…………………………………....118 62. O ator Lon Chaney em O corcunda de Notre Dame, 1923..........................................118 63. O maquiador Jack Pierce e o ator Boris Karloff...........................................................119 64. O animador Willis H. O‟Brien.......................................................................................119 65. O ator Groucho Marx...................................................................................................120 66. Os irmãos Marx............................................................................................................120 67. Os atores Jean Marais (a fera) e Josette Day (a bela)................................................121 68. Cena de O Dia Em Que a Terra Parou........................................................................122 69. O ator Ben Chapman...................................................................................................122 70. O maquiador Stuart Freeborn com os bailarinos.........................................................123 71. Malcolm McDowell em Laranja Mecânica....................................................................124 72. Jack Nicholson em O Iluminado..................................................................................124 73. A cantora Lírica Maria Callas.......................................................................................125 74. A atriz Falconetti em Paixão de Joana D‟Arc .................... ........................................126 75. A atriz Florence Delay em Joana D´Arc.......................................................................126 76. O maquiador Stuart Freeborn…………………………………………………………… 126 77. O maquiador Stuart Freeborn…………………………………………………………… 126 78. O maquiador Stuart Freeborn e o ator Christopher Reeve…………………………... 126 79. O ator O ator Kevin Baker............................................................................................127 80. O ator O ator Kevin Baker............................................................................................127 81. O ator Heath Ledger em O cavaleiro das trevas....................................................... 128 82. O ator Lawrence Olivier...............................................................................................129 83. O ator Ralph Fiennes em Harry potter........................................................................129 84. O personagem de MoCap Gollum...............................................................................130 85. O ator Andy Serkis.......................................................................................................130 86. Atores com roupas de MoCap.....................................................................................131 87. O galpão onde foi gravado Avatar...............................................................................131 88. A atriz Zoe Saldanha e sua máscara Neytiri................................................................132 89. Seqüência de movimentos de Muybridge....................................................................134 90. Traje com marcações de captura de Marey................................................................135 91. Atores fazem exercícios de Biomecânica do Russo Meierhold...................................136 92. Atores como modelo de movimento............................................................................137 93. Gene Kelly e o rato Jerry.............................................................................................138 94. Cena de Jasão e o Velocino de Ouro..........................................................................139 95. Cartaz de Star Wars.....................................................................................................139 96. Cena de A canção Sul.................................................................................................146 97. O ator Bob Hoskins e Roger rabbit..............................................................................147 98. James Cameron e os Monitores em Avatar................................................................148 99. Molde de confecção da máscara de látex...................................................................161 100. Cartazes do Planeta dos Macacos de 1968 a 2001..............................................168 101. Montagem da máscara do ator Paul Giamatti.......................................................170 102. Os atores Tim Roth e Michael Duncan..................................................................171 103. Andy Serkis e sua roupa de MoCap......................................................................174 104. As Camadas virtuais que montam a máscara digital.............................................175 105. Painel de comparação da filmagem e Mocap........................................................177 106. O ator Andy Serkis em captura de movimento........................................ .............182 107. O ator John Hurt e a máscara de John Merrick.....................................................185 108. O mímico Dan Richter como macaco....................................................................189

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13

Introdução

O presente estudo é fruto de uma constatação, o antes estável campo de

atuação do ator no cinema (e em outras mídias) vem se tornando gradativamente

instável na atualidade. Esse espanto inicial compôs a finalidade da pesquisa que

foi desenvolvida na medida em que procurou refletir como os atores estão

dialogando com os caminhos que surgiram graças às novas tecnologias. E, assim,

procurou também investigar de que maneira vem sendo aplicada a tradicional

técnica de máscaras diante do desafio da expansão do espaço de interpretação

com a emergência da experiência virtual.

O tema nasceu à luz da minha vivência pessoal com o trabalho de

interpretação com máscaras. Uma vez que meu trabalho de atriz, preparadora de

atores, e professora trouxe o contato com atores, estudantes de teatro, cinema e

RTV através de oficinas e pesquisas das técnicas de preparação para atores. Por

esse motivo tenho notado muitas mudanças devido às recentes experiências de

interpretação com tecnologias. Essas mudanças geraram inquietações e foram

responsáveis pela investigação desses novos paradigmas que os atores tem

enfrentado nos últimos tempos.

A abordagem tem como ponto de partida as características da máscara no

teatro e depois no cinema e de que maneira essas duas artes realizaram suas

trocas efetivas. O objetivo é mapear algumas relações que a evolução da máscara

teatral possa ter com o cinema e suas tecnologias e pesquisar de que modo

ocorreram influências de uma sobre a outra. Objetivamente, os textos que aqui

desenvolvem essa ideia partem de esforços para conceituar preocupações

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recentes acerca da interpretação mediada pela captação de Interpretação, o

chamado Motion Capture (MoCap).

O ponto inicial deste estudo são as questões relativas à construção

tradicional da máscara pelos atores e a sua conceituação. Não há uma

preocupação em refazer ou reconstituir todos os períodos em que a máscara foi

utilizada no teatro e muito menos como era feita a chamada comédia de máscaras

ou Commedia dell’Arte nos moldes do século XVI, até porque nem temos condição

de saber exatamente como era a genialidade dos atores da época, já que o

fenômeno teatral é etéreo. O interesse da pesquisa pelo jogo da Commedia e pela

técnica de interpretação com máscaras expressivas aparece quando se percebe

uma relação entre a trajetória das técnicas de construção de personagens ao

longo da história que permite ao ator contemporâneo se adequar ao uso da

tecnologia adaptando seu trabalho ou recriando-o em parceria com esses

recursos.

A pesquisa inicia-se com a busca do sentido da máscara teatral,

símbolo maior da arte cênica, criada como objeto expressivo a partir da origem do

teatro Grego. A seguir, o trabalho olha mais de perto a técnica da Commedia

dell´arte, relacionando-a ao trabalho expressivo do ator. O próximo passo é notar

que maneira essa máscara representa o mundo no campo simbólico.

O segundo momento da dissertação gira em torno da transição da

máscara de composição concreta das personagens e da transformação dessas

composições tanto para a imagem cinematográfica quanto para a imagem virtual

digitalizada. Sendo assim, procura-se esboçar o percurso da máscara

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15

cinematográfica, e a maneira como foi utilizada ao longo do século XX, além de

mostrar sua transição para o campo icônico.

Já faz parte do senso comum dizer que o cinema sempre teve uma

relação, embora ambígua, com o teatro. Mas apesar da teatralidade manter-se

uma forma “não ambígua” nesta relação entre o cinema e o teatro, relação essa

que foi se depurando ao longo do século XX, não podemos deixar de perguntar

como ela se apresenta hoje? O que vem a ser a teatralidade na

contemporaneidade e como ela se configura na representação simbólica do ator e

do público? Não podemos deixar de observar que a teatralidade é um conceito

que não está diretamente ligada só ao teatro e posteriormente ao cinema. Por isso

podemos ampliar nossa indagação e perguntar como ela está presente na nova

sociedade globalizada?

Devo observar que esse mapeamento teve como foco a intenção de

entender o uso da máscara expressiva hoje no cinema diante da intensa

fragmentação da imagem. Bem como compreender a nova apropriação dessas

técnicas de interpretação pelo cinema e pela tecnologia digital expandindo assim

os recursos usados pelo ator.

Sabemos que a teatralidade é inerente ao homem. Bem como a vontade de

representar as coisas do mundo, dando a elas outra dimensão no tempo e no

espaço, sempre fez parte da necessidade humana de se tornar visível. Por isso, o

princípio e o fim da teatralidade sempre foi transformar o homem e o mundo em

outra coisa que aparentasse ser o espelho dele mesmo. Diante da afirmação de

Aristóteles, na Poética, de que “desde a infância os homens têm, inscrita em sua

natureza, ao mesmo tempo uma tendência a representar – e o homem se

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16

diferencia dos outros animais, porque está particularmente inclinado a representar

e recorre à representação em seus primeiros passos de aprendizagem – e uma

tendência a encontrar prazer nas representações”1, percebe-se que a teatralidade

está presente nas mais diferentes manifestações de interação simbólica que

pressupõem ator e público e que evolui num conjunto significativo.

No entanto, a teatralidade tem se modificado nos últimos tempos. Na vida

prática do fazer teatral, podemos notar seu deslocamento: o teatro vem se

afastando da teatralidade ao “negar” a representação; enquanto o cinema vem se

distanciando da inscrição de realidade que a imagem trazia como princípio motor

ao “priorizar” a representação. Desse modo, estamos diante de um confronto e, ao

mesmo tempo, diante do resultado de um certo “isolamento” da teatralidade nas

novas mídias. Esse movimento que ao mesmo tempo desintegra e integra as

representações acaba por modificar nossa relação com a noção de presença,

identificação e ilusão.

A ponto que, num terceiro momento desta dissertação, diante das

transformações em curso, descrevemos situações nas quais o ator

contemporâneo e sua técnica se vê mergulhado nas realidades que compõe o

paradigma das novas tecnologias da imagem que emergem e que permitem

pensar em algo como “máscara digital”. O que vem a ser a máscara digital? De

que maneira ela modifica a construção dramática a ponto de misturar a realidade

da representação com o efeito virtual da composição?

No rastro das perguntas levantadas acima, podemos dizer que o objetivo

deste estudo é entender qual a relação que o Teatro e o Cinema estabeleceram

1 Ch 4, 48b4, tradução de Roselyne Dupont-Roc e Jean Lallot.

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17

(ou estabelecem) com a teatralidade levando em conta as intensas mudanças

ocorridas no último século no ato de representar, o que acaba por modificar a

relação do ator com suas máscaras. E ainda, qual relação existe entre a

tradicional máscara teatral e a máscara digital na medida em que hoje milhões de

pessoas assistem a filmes nos quais o espaço entre realidade e representação,

vista aqui do ponto de vista de uma construção dramática, aumenta cada vez

mais.

Nosso objetivo é fazer uma reflexão sobre o que vem sendo desenvolvido

em produções cinematográficas que utilizam a tecnologia Motion Capture (MoCap)

moldando o que vamos denominar como máscaras virtuais. Consequentemente,

esses novos formas de molde nos leva a perguntar se a captação de interpretação

é atuação? O que nos leva também a estabelecer uma relação entre a máscara

(feita por composição) e a máscara virtual (feita por captação) – significando aqui

a tecnologia digital usada para registrar a expressão (facial, corporal) dos atores

no cinema.

O estudo pretende observar o trabalho expressivo e concreto que a

máscara exigiu do ator de cinema no início do século XX e, ao mesmo tempo,

fazer um paralelo com o ator do início do século XXI. A máscara como artesanato

base do ator transforma-se em digital a partir dos processos de desmaterialização

que as atuais tecnologias de Captura de Interpretação ou MoCap ou, ainda,

performance capture modelam. E como esta tecnologia exige todo o trabalho

performático do ator (corpo/voz), mas transforma o resultado em algo híbrido entre

a realidade e a animação. O trabalho do ator hoje se transmuta em máscara

digital criando uma espécie de corpo virtual; então, uma primeira indagação a

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fazer seria quais as consequências desta nova imagem? Uma segunda indagação

pensa o que acontece com o corpo do ator e da sua performance diante da

fragmentação da imagem? Uma terceira indagação reflete sobre o modo como o

ator utiliza a metodologia da criação da máscara na construção do MoCap?

No Brasil não tem ainda muito material escrito especificamente sobre atuação

e captura de interpretação (MoCap), o que pode conferir a esta pesquisa um

caráter inédito. No entanto, a bibliografia que trata das questões técnicas de

computação gráfica e animação é abundante, além das informações tecnológicas

que nos põe a par dos mais recentes artefatos surgidos. Constatamos que não há

bibliografia, nem textos ou discussões sobre a parte expressiva da interpretação

virtual, muito menos dos processos de fragmentação da imagem do ator. Por isso,

em um primeiro momento, esta foi a maior dificuldade enfrentada para embasar a

pesquisa. Isto nos levou a utilizar como referência sites de tecnologia, entrevistas

com atores, com os criadores dos filmes e mais uns poucos artigos que trataram

do assunto; essa pequena literatura tornou-se a bússola que norteou nossa

investigação.

Muito do que se segue é somente o início de um diálogo que não tem

respostas definitivas para dar na medida que é quase impossível oferecer uma

história abrangente do percurso do ator (e nem é esse nosso objetivo). Muito do

fizemos foi sublinhar algumas mudanças que a máscara veio sofrendo no cinema

ao longo do século XX até resultar, mais recentemente, no paradigma das

tecnologias de captura. Afinal, o que observamos é que na atualidade a máscara

emerge para o ator cada vez mais moldada no caráter virtual da imagem.

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19

CAPÍTULO 1

A MÁSCARA E A PERFORMANCE TEATRO/CINEMA

1.1 Origens e Tradições

Os conceitos aplicados neste estudo estão todos relacionados à ideia da

máscara como símbolo de representação. A máscara que tem origem na história

humana acontece junto a outro fenômeno que é o do transvestimento. Ela tem sua

origem em rituais muito antigos que são sempre representados por uma figura

humana transvestida de animal ou por alguma figura mítica. Nas pinturas

rupestres, “um dos mais antigos testemunhos do uso da máscara data do período

terciário, e na pintura mostra um caçador transvestido e disfarçado de cabra” (FO,

1998, p. 30). O uso do objeto máscara está sempre relacionado a um ato mágico

e místico representando as divindades e ao mesmo tempo também a outro mais

prático e direto que é o de aproximar o homem da sua caça ou da sobrevivência

através do disfarce. O transvestimento aparece quando o homem tem de se fazer

passar pela figura representada pela máscara (um animal, um elemento da

natureza) e consequentemente essa transformação obriga ao exagero de

movimentos para poder imitar o outro. A partir desse princípio, a máscara também

origina os rituais carnavalescos, nos quais por alguns dias o homem pode ser

quem ou o que ele quiser.

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20

Observamos que em todos esses casos, a máscara criada sempre

dependia da expressividade corporal de quem a usava para tornar o objeto um

representante verdadeiro de qualquer cerimônia. O “zoomorfismo exasperado, a

ação de transformar-se em animal exige evidentemente uma certa habilidade”(FO,

1998, p. 32). e é sobre essa habilidade e sua evolução para a teatralidade que a

presente dissertação se baseia para desenvolver o caminho da representação dos

atores e suas construções de personagens a partir das técnicas de máscaras

teatrais até as máscaras digitais do cinema.

As máscaras primevas eram utilizadas em rituais que quase sempre

estavam ligados a comer o deus (ou entidade), devorando simbolicamente e

bebendo o sangue simbolizado pelo vinho. Em geral essas máscaras misturavam

fisionomias animais (pelos, dentes, garras) a humanas, resultando em

cruzamentos paradoxais. A máscara podia cobrir o rosto todo, mas quando a parte

de baixo do queixo da máscara era móvel permitia que quem a usasse pudesse

mover a boca ou falar.

Na Grécia antiga, inicialmente, a máscara esteve presente nas

representações ritualísticas pagãs que, de forma coletiva, realizavam cerimônias

em que dançarinos e cantores se confundiam entre ser público e cerimônia. Em

determinado momento começa a separação entre um corpo coletivo chamado

coro2 e um protagonista, a partir daí se forma o diálogo e nasce o teatro.

Nos teatros grego e romano a máscara está presente em todas as

representações para criar uma outra face mais expressiva e grotesca, exagerada

2 Do grego Khoros e do latim Chorus, grupo de dançarinos e cantores, festa religiosa. Em: PAVIS,

1999, p. 73.

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21

e não realista. O seu formato tem inúmeras funções, tais como a de ampliar o

tamanho dos atores que podem ser vistos por toda a plateia, aumentando a figura

cênica (pois seus figurinos/coturnos eram exagerados) e também tem a função de

ampliar o som, tornando a fala dos textos interpretados mais audíveis. Há um

recurso na boca da máscara, que em conjunção à arquitetura do teatro de arena,

aumenta a acústica do som, tornando-o capaz de ser ouvido por toda a plateia.

Como nos diz Dario Fo: “a voz é projetada e amplificada devido à forma de funil da

boca escancarada” (1998, p. 44).

fig. 1 Máscaras de tragédia Grega3

3 Disponível em: <http://cyrodelnero.fashionbubbles.com/tag/grecia/>

Page 22: a máscara digital

22

As máscaras eram um signo teatral importante na configuração visual da

personagem e permitiam que o mesmo ator interpretasse mais de um papel, o que

era essencial, pois havia poucos atores em cena. Além disso, nesse período só

homens podiam participar dos espetáculos. Afora a máscara, a composição da

vestimenta também trazia signos que em conjunto contribuíam para a

caracterização de idade, sexo, classe social da personagem.

As máscaras gregas representavam tipos de personagens fixos: o velho, os

servos e escravos, o soldado, os jovens. Nas tragédias, as máscaras auxiliavam

na configuração da classe social, da idade e do estado emocional das

personagens, mas não tinham só esse aspecto prático. O público grego se

relacionava com a vivência teatral como participante de uma experiência estética

em que havia a imitação4 e não, uma transposição do real. Por isso a máscara era

um recurso essencial para criar a ilusão através do jogo, da ficção, estilizando as

formas e traduzindo-as como signos.

O ator compunha a personagem integrando a forma grotesca da máscara, a

sua habilidade vocal (fala recitativa e canto) e os gestos compositivos. Esse

conjunto expressivo fazia com que o público “se esquecesse” das máscaras e se

envolvesse totalmente para aderir ao pacto ficcional proposto pela performance

cênica. Por isso a máscara surgiu como uma tradução da realidade que

transforma o espaço e o tempo.

4 Para Aristóteles, “a Arte imita a natureza. Assim, em lugar de associar a imitação ao falso e

enganoso, a imitação da natureza por parte da Arte não é um retratar, realizar uma simples cópia do real, mas um fazer como, produzir à maneira de (imitar um processo). Imitação como produção.” Em: LEMOS, 2009.

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23

No teatro romano a máscara também vai ser utilizada e teremos os mesmo

tipos fixos com mais ênfase ao cômico e ao circense. Os tipos grosseiros são mais

comuns e há maior utilização de acrobacias e danças popularescas. Como nos diz

Barni, “em Roma, quando um ator não interpretava bem o papel que lhe era

atribuído, era obrigado a tirar a máscara para expor o próprio rosto aos insultos do

público” (2003).

Do século XII até o início do Teatro Renascentista não há uso do objeto

máscara. Historicamente o uso da máscara na linha do tempo sempre teve

períodos de alternância. Ora aparece intensamente e alcança reconhecimento

popular, ora desaparece e dá lugar à representação sem máscaras. Mas em todas

as épocas em que o objeto aparece seu resgate está ligado à arte do ator como

elemento central da representação.

O retorno da máscara se dá na inicialmente na chamada Commedia all

Improviso, de Maschere, Commedia a Soggetto, Commedia di Zanni, que só foi

chamada Commedia dell’Arte a partir do século XVIII. Segundo Roberto Tessari :

A “certidão de nascimento” desse teatro é muito humilde. É um contrato estipulado entre oito pessoas diante do escrivão. Os oito em 1545, Pádua, declaram o seguinte: “Nós nos pomos de acordo para circular de lugar em lugar, de cidade em cidade, de país em país, encenando comédias”. Listam depois todos os códigos fundamentais para sua pequena sociedade. (TESSARI et BORNHEIM, 2004, p. 78)

A Commedia dell’Arte foi o início do Teatro Moderno. A partir do

momento em que se criou a primeira companhia registrada em cartório (1545 em

Pádua, Itália) começa a surgir o teatro como mercadoria cultural: artistas que

andam de cidade em cidade comercializando espetáculos e sobrevivendo desse

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24

trabalho. Era estabelecida, assim, uma organização nova com atores

especializados e que treinavam para o seu ofício, por isso o nome dell’ arte.

Esse é um momento muito importante para o desenvolvimento do teatro,

que gera uma necessidade de aprimoramento artístico: o ator cria um interesse

que conquista o público, que quer ver sempre algo surpreendente e isso gera um

ciclo de mercado de trabalho. Esse “mercado” vai apostar no ator como peça

central da Commedia dell’Arte, já que, até então, o teatro da Corte era baseado na

dramaturgia e no cenário, como nos esclarece, mais uma vez, Roberto Tessari :

O teatro de Ludovico Ariosto, por mais genial que fosse, era um teatro em que não tinha o peso e a energia representativa dos atores. De fato, quem o encenava eram valorosos amadores. As técnicas de atuação que possuíam eram técnicas de oratória, relativas à dicção do texto, e não técnicas de movimento do corpo no espaço.5 Os atores de Arte apostam, ao contrário, todas as suas cartas na energia do ator, posto no centro da manifestação. Na Comédia de Corte, o ator não é protagonista do evento cênico. Os dois grandes protagonistas são o texto e a cenografia. Na assim chamada Commedia dell´arte – por motivos óbvios, pelo tipo de público a quem se dirige, que deve ser cultivado – o que deve constituir a linguagem do teatro é um conjunto de signos energéticos, claros, fortes capazes de causar impacto sobre o imaginário dos espectadores com o máximo de força. Estamos falando aqui da invenção da profissão do ator. Da passagem do ator à posição de verdadeiro epicentro do sistema da cena” (2004, p. 81).

A Commedia dell’arte foi o gênero de teatro popular mais famoso do

Ocidente. Originalmente nascida na Itália, se espalhou pela Europa. Foi o primeiro

teatro que rompeu fronteiras e fez tournées internacionais devido ao enorme

5 Grifo meu.

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25

sucesso alcançado na época. E alcançou notoriedade quando os franceses

passaram a reverenciar as companhias italianas de teatro.

Esse teatro se caracterizava por uma dramaturgia criada pelos atores.

Sem texto definido, tudo era feito seguindo um roteiro guia que se transformava a

cada apresentação. Os personagens masculinos eram criados a partir de tipos

fixos e com o uso de máscaras. Não se sabe ao certo porque a máscara foi

introduzida nas apresentações das companhias de teatro italianas. Além de serem

originárias do teatro grego e da comédia latina especula-se a possibilidade de as

máscaras terem ressurgido por acidente para ajudar na leitura da ação em cena.

Como as companhias faziam sua apresentação no final da tarde, o lusco fusco

não realçava as expressões dos atores, então, as máscaras podem ter sido uma

solução prática para aumentar a figura dos personagens e melhorar a

comunicação com a plateia. E como nos diz Dario Fo, “os elementos mais

importantes, aliás fundamentais, comuns à atividade de todos os tipos de cômicos

são a improvisação e o incidente” (FO, 1998, p. 117) E no caso da Commedia, as

casualidades deram o caminho para a formação de um dos períodos mais férteis

do teatro.

No filme A viagem do Capitão Tornado6, o diretor Ettore Scola também

sugere que a máscara poderia ter surgido para ocultar a identidade de atores que,

por pertencerem a famílias nobres, não queriam ser reconhecidos. Em uma

sequência em que o personagem Barão de Sigognac (Vicent Perez) tem que

entrar em cena substituindo um ator enfermo, a máscara do Capitão é colocada

6A Viagem do Capitão Tornado. Diretor: Ettore Scola, 1990. O roteiro é baseado no romance de

Théophile Gautier, Il Viaggio di Capitan Fracassa.

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26

para tampar o seu rosto e, como ele não enxerga nada, o incidente torna a cena

cômica.

Fig. 02 O Barão de Sigognac entra com a máscara do Capitão substituindo um ator.

Nesse filme, Scola presta uma homenagem cinematográfica ao teatro

narrando metaforicamente a viagem de uma trupe de atores que atravessa a Itália

em direção à França, caminho de fato percorrido historicamente pelos

comediantes. Para mostrar que os atores acabavam sendo confundidos com seus

personagens, o roteiro não deixa claro onde começa o ator e onde termina a

máscara. As estórias se misturam como, aliás, era comum: atores que

representavam bem determinadas máscaras são eternizados por meio da

incorporação dos nomes de seus personagens aos seus próprios. Exemplo disso

são os atores Tristanno Martinelli, chamado de Tristanno Arlecchino; Francesco

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27

Andreini, Francesco Capitano; Isabella Andreini, que criou a primeira enamorada

da Commedia, personagem que foi eternizada com esse mesmo nome, Isabela e

foi também a responsável pela introdução da figura da “primeira atriz” (BARNI,

2003, p. 36).

A Commedia dell’Arte era caracterizada por ser um teatro feito nas ruas;

os temas dos comediantes eram os mais distintos imagináveis, sendo os

preferidos as histórias de amor, folhetins de amor impossível, mas havia também

as batalhas, as histórias fantásticas, a política, enfim, era deveras diverso o

repertório das narrativas. Eles se inspiravam também em mitologia, lendas, fatos

históricos, tradições populares, que muitas vezes eram transmitidas oralmente.

Faziam paródias de clássicos da literatura, de tragédia grega, ou de algum

acontecimento histórico. Não havia compromisso com a realidade, por isso o

universo fantástico, com figuras mitológicas, morte e renascimento de

personagens, ou, por exemplo, um personagem que viaja para lua (Arlequim na

lua) era bastante comum.

Os atores guiavam-se por um roteiro, que em geral não era escrito, mas

transmitido oralmente. É claro que com o passar do tempo e o treino que os atores

criavam com seus personagens e as situações, esstas cenas “improvisadas” (que

eram testadas e bem recebidas pelo público) foram-se tornando um repertório

para os espetáculos. Tais cenas eram chamadas de Lazzi7, geralmente utilizadas

quando os atores queriam manter o público atento (ou seja, sempre).

7 Do italiano, Lazzi, brincadeiras, jogos de cena, bouffons. Elemento mímico ou improvisado pelo

ator que serve para caracterizar comicamente a personagem. Comportamentos burlescos e clownescos, contorções, caretas intermináveis, jogos de cena são seus ingredientes básicos. Em: PAVIS,1999, p. 226.

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28

As máscaras inicialmente representavam arquétipos coletivos, os

velhos, os servos, os enamorados, os soldados como no caso das máscaras

gregas e romanas. Mas com a especialização dos atores elas foram se

individualizando surgindo assim os mesmo tipos das classes sociais, só que

diferenciados. Surgiram os Arlecchinos, Pantalones e Dottores que ganharam

fama e resistem até nossos dias. Esses tipos populares são ainda encontrados no

carnaval, no circo ou nas novelas como Arlequim, Colombina, Polichinelo,

Pantaleão.

Originalmente os servos eram chamados todos de Zanni que derivam do

nome Giovanni (camponeses que vinham trabalhar em Veneza) e são da

categoria dos empregados. Os tipos mais cômicos e populares da Commedia

dell’Arte eram esses. Dividiam-se em duas categorias de servos: o primeiro Zanni,

esperto, que com suas intrigas movimentava para frente as ações; e o segundo

Zanni, rude e simplório, que com suas atrapalhadas brincadeiras interrompia as

ações e desencadeava a comicidade. Os Zannis invariavelmente tinham fome e

usavam uma roupa rústica feita de saco de farinha branca. Quando o ator Tristano

Martinelli começou a fazer um Zanni logo sua performance foi originando o

primeiro Arlecchino. Encarnava uma mistura de esperteza com ingenuidade,

estando sempre no centro das intrigas. Usava inicialmente uma roupa branca e

um cinturão, onde carregava um bastonete de madeira, o batóquio, espada que

com seus dois fios de madeira causa efeito cômico por fazer barulho ao bater no

outro. Como ele é um pobre coitado, sempre roto e rasgado, supõe-se que com o

tempo essa roupa tenha ganhado remendos coloridos e dispersos, de onde

provém a estilização de sua roupa, que ficou cheia de losangos coloridos.

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29

Sua máscara é baseada nos traços do gato, macaco e porco. É a

máscara mais rápida e acrobática da Commedia dell’Arte. A maioria das máscaras

nesse período é de cor preta e feita de couro natural. Observe este relato do

artista plástico Erhard Stiefel:

Na commedia dell'arte, a visão do personagem era

traduzida, sobretudo, através do figurino, mais do que pelo rosto. Os olhos eram muito pouco visíveis através da máscara. As máscaras do Arlequim eram todas pretas. Alguns dizem que isso era porque ele era um servidor vindo da África. Eu me questionei durante muito tempo a respeito dessa cor, pois ela não é cênica. Fabriquei máscaras de Arlequins vermelhas e também marrons e pretas. Em sua origem, as máscaras do Polichinelo e Pantalone também eram pretas. Seria uma maneira de apagar o rosto? Acredito que as máscaras da commedia não eram muito "trabalhadas". Imagino que elas eram feitas por sapateiros ou pelos atores, e não por artistas ou artesãos, como é a tradição nos países da Ásia. Na época, me parece que as pessoas que fabricavam as máscaras não podiam dedicar todo o seu tempo a isso.8

Inicialmente, de fato, os próprios atores fabricavam suas máscaras e a

movimentação corporal era o aspecto mais importante que, somado ao jogo

cênico improvisado, foi sendo afinada com a prática. Isso criou entre os atores a

sua “especialização” e o domínio da máscara e da sua própria personagem. Cada

ator era responsável pelos gestos, os ritmos, os tons que com simplicidade

contribuíam para que em qualquer idioma desconhecido a comunicação

acontecesse, pois havia uma aquisição infinita de noções de linguagem e

comunicação.

8 Entrevista realizada por Béatrice Picon-Vallin no Théâtre du Soleil, em 29 de fevereiro de 2004,

em Revista Sala Preta, 2012.

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30

Observamos até agora que vários aspectos contribuíram para que os

comediantes criassem estratégia de mercado causando interesse cada vez maior

por onde passavam. Cada ator desenvolveu sua própria máscara que

representava arquétipos (o patrão, o empregado, os enamorados, o doutor) e que

eram fáceis de serem identificados, criaram repertórios variados que poderiam ser

adaptados de acordo com o público e, por fim, cada máscara usava os diferentes

dialetos que correspondiam a sua região. Tudo isso para fidelizar o público.

Na gravura abaixo percebemos a evolução da caracterização do

personagem e consequentemente do figurino.

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31

3

O personagem Arlequim e suas modificações: dos remendos primitivos ao conceito de losango.

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32

Como exemplo de personagem que faz um percurso nas mais diversas

épocas, temos o velho representado como “o avarento –, que atravessa a história

do teatro desde Plauto (com o Euclião, da Aulularia), passando por Molière (com o

Harpagon, de O avarento) e chegando até o brasileiríssimo Ariano Suassuna (com

o Euricão de O santo e a porca)” (VENDRAMINI, 2001) e se pensarmos nas

novelas (que utilizam toda estrutura popular tal qual os roteiro da Commedia),

temos o avarento Nonô Correia, personagem famoso do contemporâneo ator Ary

Fontoura9.

A Commedia dell’arte teve seu auge no Renascimento e seu

“desaparecimento” no fim do século XVIII. No século XIX não há Commedia de

Máscara e sua tradição é transferida para os bonequeiros-titereiros que

reproduzem os tipos cômicos e suas histórias através do teatro de marionetes,

mas ela enquanto encenação some das praças e ruas e também do cenário

teatral. Quando suas histórias deixam de ser improvisadas por atores e passam a

ser escritas por grandes autores, deixa de ser teatro popular de rua e se

transforma em teatro de sala, em texto dramatúrgico. Nesse período o melodrama,

uma espécie de opereta popular, passa a ser um novo gênero de alcance popular.

9 Novela de Ivani Ribeiro dirigida por Atílio Riccó, Jayme Moinjardim, Gonzaga Blota exibida em

1984. Fonte: site <www.globo.com.br>, blog de Paulo Senna, 2010.

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1.2 A CORPOREIDADE DA MÁSCARA

O uso da máscara por um ator envolve uma adaptação, um

transvestimento (como falamos) uma ampliação dos gestos. Ela surge para

agigantar e sintetizar a personagem e isso automaticamente modifica os gestos e

a voz. Não se pode usar uma máscara em cena e ter os mesmos gestos

cotidianos. Ela é um objeto fixo, em repouso ou um objeto morto, mas cria vida ao

ser utilizada por um ator.

E para que ela crie vida, o corpo do ator funciona como uma espécie de

moldura à máscara, pois seus movimentos vão transformar essa fixidez e, em

determinados momentos, o espectador precisa ter a nítida sensação de que a

máscara também tem mobilidade.

Assim como na Grécia ou Roma, os atores da Commedia Italiana eram

acrobatas, dançarinos, mas também dominavam a corda bamba e equilíbrio de

copos e pratos, tocavam instrumentos e cantavam além, é claro, de improvisarem,

já que tinham tantas ferramentas a sua disposição.

O ator de commedia dell'arte devia ser capaz de fazer contorções, piruetas, cambalhotas, saltos mortais. (Um ator incapaz dessas artes estaria praticamente impossibilitado de representar o Arlequim servidor de dois amos, de Goldoni.) Silvio D'Amico nos informa, em Storia del Teatro Drammatico, que o Scaramuccia Fiorilli, com 83 anos, ainda distribuía chutes aos interlocutores com a planta do pé. Ainda nesse aspecto – as acrobacias –, há referências que remetem imediatamente aos números circenses (o que evidencia o filão popular a que pertencem tanto a commedia dell'arte quanto a arte do circo): era comum, na commedia dell'arte, um ator dar uma cambalhota no ar com uma garrafa cheia de vinho na mão sem derramar uma só gota. Eletrizada, a plateiaplateia com certeza devia ficar profundamente gratificada por tanta diversão (VENDRAMINI, 2001).

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34

A relação ator-plateia se dava diretamente sem nenhum ilusionismo

privilegiando mais as ações físicas do que a dramaturgia. Atuavam olhando

diretamente para a plateia e em muitos casos conversavam com o público. Essas

informações nos chegaram através de relatos e ilustrações da época e foram

pesquisadas na grande maioria por artistas/pesquisadores do início do século XX.

As máscaras eram feitas de couro molhado e eram fixas num molde

que em geral era esculpido na madeira. As linhas podiam ser inspiradas por algum

traço de animais relacionado a uma característica física.

Por exemplo, a agilidade de um gato ou a fome de um porco podia ser

incorporada ao seu jeito de andar e falar, por isso o ator tinha que explorar outras

movimentações e explorar “outras vozes”.

4

Gravura de pesquisa do grupo de teatro Moitará comparando máscaras baseadas em animais e humanos. 10

No caso da Commedia, os tipos criados representam os arquétipos, a

máscara de um velho traz todos os velhos; a do empregado, todos os serviçais; a

dos enamorados, todos os que estão apaixonados; os doutores, a sua erudição.

10

Fonte: < http://www.grupomoitara.com.br/d200_por.php>

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35

As máscaras se tornam a representação do coletivo e, por isso, em várias partes

do mundo de diferentes épocas encontramos as mesmas características de

determinados tipos e hierarquia social.

Encontramos, ainda, no teatro oriental muita semelhança das máscaras

e seus tipos, como nos diz Dario Fo:

[...] as máscaras da Commedia dell’Arte descendem, parcialmente dos mesmos tipos encontrados no teatro greco-romano. Por sua vez se sabe, o teatro grego possui suas raízes no teatro oriental. Existe uma máscara balinesa muito semelhante à máscara do Pantalon de Bisognosi: a imitação de um velho, com a mesma carranca, igual risada de escárnio, os olhos encovados, sobrancelhas e saliências frontais que criam um tipo bastante particular. Além disso, há uma máscara simiesca proveniente da Índia, de conotações antropomórficas: assemelha-se à máscara mais arcaica do Arlecchino. A partir dessas analogias, podemos compreender a trajetória das migrações culturais, desde o Oriente até o Mediterrâneo, do mundo antigo ao da Commedia dell’Arte (FO, 1998, p.40)

Quando o ator coloca uma máscara pela primeira vez, percebe que não

é possível fazer uma cena de forma natural, não pode ignorar esse objeto que tem

uma forma definida e que modifica o seu rosto. E por ter uma forma fixa, a

máscara deve criar movimento quando for utilizada pelo ator, sua linha vai ser

transformada pelo desenho corporal de acordo com as indicações que ela vai

sugerir ao ator. O primeiro passo é tatear e sentir os relevos que foram criados

pelo artista que a moldou, depois ela vai ser colocada no rosto e, a partir daí, cria-

se um primeiro contato.

O trabalho de conhecimento e reconhecimento da máscara é

importante, pois vai criar uma intimidade entre ela e quem vai usá-la. É necessário

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36

que esses primeiros momentos sejam percebidos com delicadeza para que as

sensações permaneçam no trabalho que vai se desenvolver, pois ela em geral já

contém significados que a própria máscara traz para o personagem.

A máscara é feita a partir de um molde do rosto do ator e depois

esculpida com a forma do significado do personagem. Na Commedia, os traços,

as linhas e reentrâncias são baseados em rostos de animais, tornando-se uma

forma exagerada e até absurda. Mas na verdade este exagero será compensado

pela movimentação do ator, que vai projetar seu corpo para criar vida à máscara.

Como nos diz na entrevista a diretora paulista Cristiane Paoli-Quito:

Essa relação da oportunidade de você criar uma personagem através do seu conteúdo físico - quando eu digo físico estou falando da máscara incorporada - na hora que você veste aquilo, ela tem um peso... a ponta do nariz indica o desenho gráfico que seu corpo constrói no espaço e isso é código. Então o espectador, na hora que ele vai te ver, vai ter as leituras, se aquele nariz está recuado pode denotar medo, quando ligeiramente levantado pode te indicar certa arrogância (ou falsa arrogância). Esses pequenos desenhos de angulações que a máscara traz são leituras muito claras da interpretação, do que eu tenho enquanto espectador na leitura daquele desenho. 11

O estudo do movimento dos animais é um material riquíssimo para os

atores e bailarinos, e a máscara permite essa pesquisa, pois ela confere um status

mágico a quem a utiliza. Isso acontece porque ela lida com uma relação de

igualdade na relação animalesca que somos, não trabalha necessariamente com a

inteligência, trabalha com o primitivo, com nosso instinto, que na evolução o

homem foi cada vez mais renegando.

11

Entrevista com Cristiane Paoli-Quito, diretora da Escola de Arte Dramática/ USP e diretora artística do Grupo Nova Dança 4, Abril de 2006, apud monografia de Deborah Serretiello de A. Camargo para o curso de pós-graduação Arte integrativa, p. 51.

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37

Os enredos da Commedia de máscaras eram de fácil compreensão,

pois o perfil das personagens era prontamente reconhecível pela plateia, uma vez

que se repetiam de peça em peça, variando somente o roteiro. Seus temas tinham

estrutura precursora ao melodrama e giravam sempre em torno do amor de

jovens, aliás, os tipos chamados enamorados eram os únicos personagens sem

máscaras e cativavam o público por representar o amor ingênuo.

Todos os recursos que estivessem disponíveis poderiam ser colocados

em cena para atrair o público. Por isso havia um incentivo às habilidades de cada

componente da companhia. O ator-mímico, por exemplo, dominava os lazzi,

pequenas cenas de ação rápida e cômica com o objetivo de provocar gargalhadas

levantando a energia da cena ou que tinham a função de “fazer hora” para dar

tempo dos demais atores descansarem ou realizarem trocas de roupas. Contudo,

ainda mais importante é o fato de que toda a representação costumava ser

improvisada durante a apresentação, por isso não existem “textos” de Commedia

dell’Arte.

Por isso essa manifestação de teatro ancestral deu origem e foi

referência de um tipo de teatro moderno. Como nos diz Vendramini:

Guardadas as profundas diferenças que caracterizam cada um deles, pode-se pensar que a commedia dell'arte antecipou, na prática, o que só muito tempo depois viria a ser teorizado (e praticado, no caso do diretor russo) por Meierhold e Artaud, que preconizavam um teatro que nascesse do próprio palco, independentemente da dramaturgia (2001).

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38

1.3. Retomada da Teatralidade nos Séculos XIX e XX

O século XIX ficou conhecido como o tempo da sociedade do

espetáculo12. Historicamente esse é o período da grande indústria, da

urbanização, do desenvolvimento do progresso e da democracia. Com a expansão

das cidades havia uma necessidade de distrações e entretenimento. Nas

principais cidades europeias havia uma gama enorme de categorias sociais. Por

isso o divertimento coletivo começa a se desenvolver e o teatro consegue alcançar

grandes plateias, para cada tipo de plateia se criam gêneros diferentes. Como nos

diz Christophe Charle:

Entre as décadas de 1860 e 1890 florescem, assim, os novos gêneros mistos de cultura média (operetas, revistas, variedades); pouco depois surge o que hoje chamamos de “a vanguarda” e realizam-se diversas tentativas de um “teatro popular”, procurando afastar as classes populares de distrações fáceis, em pleno desenvolvimento (2012).

Se por um lado temos um teatro de texto naturalista13 dentro de prédios

tradicionais que apresentam peças de grandes autores, sobrecarregados de

cenários vistosos, de maquinários e jogos de luzes (pois nesse período estamos

em pleno desenvolvimento de recursos técnicos); por outro lado temos a

proliferação de casas com divertimento mais barato como cafés, concertos,

cabarés, circos, feiras e parques de diversões que tinham performances de rua

para atrair público popular.

12

CHARLE, 2012, p.19. 13

A representação naturalista se dá como sendo a própria realidade, e não como uma transposição artística no palco (nasce por volta de 1880-1890). Em PAVIS, 2011, p. 261.

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39

As grandes companhias eram empresas que empregavam muitos

artistas (músicos, atores, técnicos) e promoviam as “estrelas”, os grandes

protagonistas, os chamados “primeiros atores (atrizes)” das companhias, criando a

ideia de elenco composta ainda por coadjuvantes, figurantes e orquestra. O

mercado teatral tem grande expansão e já conta com estratégias para atrair

público de classes sociais mais ricas.

Nas atrações de cunho popular havia os parques de diversões

(carrosséis, balanços, rodas gigantes), o teatro de bichos (domadores de ursos,

leões, combates de animais), teatro mágico (prestidigitadores, desaparecimento

de objetos, hipnotizadores, autômatos, exibidores de monstros), o teatro mecânico

(panoramas, dioramas), demonstradores de força humana (ginastas, funâmbulos,

malabaristas), teatro dramático de marionetes (VALLIN, 2008, p. 2). Essas

manifestações vão inspirar o teatro de pesquisa e vanguarda do início do século

XX e contaminar o primeiro cinema.

Devido a esse panorama, quando os renovadores do teatro no início do

século XX buscam um novo ator, muitos recorrem ao treinamento da máscara

como um caminho para criação de uma nova presença cênica. O ator verborrágico

do teatro de texto não tinha o corpo expressivo necessário ao novo momento do

começo desse século, que prometia grandes transformações. E para reformular

esse novo momento artístico era preciso redescobrir técnicas do ator, do

movimento, da máscara resgatando momentos históricos em que o ator era o

principal elemento da cena. Em busca da teatralidade perdida então há um

resgate das técnicas da atuação da Commedia dell’arte, principalmente do ponto

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40

de vista do treinamento físico, da volta da improvisação e do jogo dos atores em

cena.

Inspirado no retorno à máscara da Commedia dell’Arte, Jacques

Copeau, pesquisador francês, iniciou o estudo de expressão corporal com várias

outras máscaras. Uma delas surgiu do isolamento do rosto, o chamado véu, que

consistia em um pano que cobria a cabeça e dava mais ênfase ao resto do corpo.

Ele cria, com isso, a L´École do Vieux Colombier 14, uma escola de formação de

atores que teve vida curta, mas suficiente para influenciar muita gente. Na escola,

durante cinco horas por dia, eram realizados, pelos atores, treinamento físico,

estudos de textos, leituras em voz alta ao ar livre, discussões teóricas. Ela foi uma

atitude pioneira e surgiu inspirada por outros pesquisadores da mesma época, tais

como Meyerhold, Stanislavski e Danchenko, na Rússia; Max Reinhardt, Littmann,

Fuchs e Erler, na Alemanha; Gordon Craig e Granville Barker, na Inglaterra. Todos

os artistas citados estavam em busca de um retorno às origens do teatro como

forma de descoberta de seus valores essenciais e da utilização da máscara como

meio de se expressar pelo corpo. Não só a meia máscara expressiva da

Commedia foi estudada, mas a técnica de máscara das mais variadas formas:

meia-máscara expressiva, a menor máscara do mundo que é o nariz de palhaço

(clown), a máscara neutra (que surgiu do véu) e também máscaras sugeridas

como acento de personagem, ou seja, apliques que modificam o rosto (nariz

exagerado, queixo proeminente).

14

Écola du Vieux-Colombier – (1913-14, França): Escola criada por Jacques Copeau, colaborou para diversas reformulações da cena francesa do início do século XX. Copeau formou diversos artistas reconhecidos pela crítica da época e subsequente. Tais como: Louis Jouvet, Charles Dullin, Suzanne Bing, Etienne Decroux, Jean-louis Barrault, Marcel Marceau.

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41

5

Etienne Decroux aluno da escola Vieux Colombier e seu estudo de expressões com véu.

Vejamos como Patrice Pavis (2011, p. 234) define a volta do uso da

máscara e os motivos para que isso tenha se dado:

O teatro contemporâneo ocidental reencontra o uso da máscara. Esta redescoberta (se se pensar no teatro antigo ou Commedia dell’Arte) acompanha a reteatralização do teatro e a promoção da expressão corporal. Além das motivações antropológicas do emprego da máscara, (...) a máscara é usada no teatro em função de várias considerações, principalmente para observar os outros estando o próprio observador ao abrigo dos olhares15. A festa mascarada libera identidades e as proibições de classe ou de sexo. Escondendo-se o rosto, renuncia-se voluntariamente à expressão psicológica, a qual em geral fornece a maior massa de informações, muitas vezes bastante precisa, ao espectador. O ator é obrigado a compensar esta perda de sentido e esta falta de identificação por um dispêndio corporal considerável. O corpo

15

Grifo meu.

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42

traduz a interioridade da personagem de maneira muito amplificada, exagerando cada gesto: a teatralidade e a espacialização do corpo saem daí consideravelmente reforçadas. A oposição entre um rosto neutralizado e um corpo em perpétuo movimento é uma das conseqüências estéticas essenciais do porte da máscara. A máscara, aliás, não tem que representar um rosto: assim, a máscara neutra e a meia máscara bastam para imobilizar a mímica e para concentrar a atenção do corpo do ator.

A máscara desrealiza a personagem16 ao introduzir um corpo estranho na relação de identificação do espectador com o ator. Ela será, portanto frequentemente utilizada quando da encenação buscar evitar uma transferência afetiva e distanciar o caráter.

A máscara deforma propositalmente a fisionomia humana, desenha uma caricatura e refunde totalmente o semblante. Expressão grotesca ou estilização, cópia reduzida ou enfatização, tudo se torna possível com os materiais modernos com formas e mobilidade surpreendentes.

Então, pode-se dizer que diante da revolução científico-tecnológica que

o mundo passa a viver principalmente no final do século XIX, a técnica de

interpretação com máscaras vai influenciar as performances no teatro como

preparação para o ator e no cinema mudo como forma de representar gestos sem

fala.

O cinema vai conquistar massas maiores do que o teatro e logo artistas

oriundos do teatro ou das artes burlescas percebem o potencial inovador e

passam a fazer experimentações aplicando técnicas de interpretação baseadas

no exagero da máscara. Esses artistas inicialmente vão aproveitar os esquetes

ou pequenas gags de números encenados nos próprios teatros de vaudevilles,

nos circos, encenações burlescas, números de mágica e ilusionismo. Nesse

sentido esses primeiros filmes eram muito próximos ao que se supõe que era feito

16

Grifo meu.

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43

na Commedia dell’arte organizados frontalmente, de forma não realista, com

cenários feitos de painéis misturando objetos reais com elementos pintados. E

principalmente outra característica importante desse período do cinema de

variedades é o que se chama de “sistema colaborativo”17, uma forma de trabalho

regido pela parceria. Nessa fase as artes teatrais são a base do cinema. É claro

que neste início a convivência entre os dois tipos de representação estava só

começando e a transposição não poderia ser imediata.

Se pensarmos no cinema mudo logo podemos fazer relações com a

Commedia e suas características “na década de 10, todas as formas de perigo

físico – explosões, colisões, lutas elaboradas, perseguições e resgates no último

minuto – estavam aperfeiçoadas” (ALMEIDA, 2007)

Esse gênero contextualiza o mundo urbano e mecânico que se inicia no

século XX e é denominado na década de 20 de cinema burlesco. Vejamos o

significado do Burlesco:

O burlesco é uma forma de cômico exagerado que emprega

expressões triviais para falar de realidades nobres ou elevadas,

mascarando assim um gênero sério por meio de um pastiche

grotesco ou vulgar: é a explicitação das coisas mais sérias por

expressões totalmente cômicas. Hoje é no cinema que o burlesco

se exprime melhor: nas comédias de Buster Keaton, dos Irmãos

Marx ou Mack Sennett, as gags visuais correspondem ao desvio

estilístico praticado pelo burlesco clássico. Neste sentido, o

princípio textual do burlesco se transforma em princípio lúdico e

visual: opõe, então, uma maneira séria de se comportar e sua

17

O processo colaborativo acontece quando todos os criadores colocam experiência, conhecimento e talento a

serviço da construção da cena de tal forma que se tornam imprecisos os limites e o alcance da atuação de

cada um deles. Foi muito praticado na Commedia Dell´ Arte e era muito utilizado no inicio do cinema.

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44

desconstrução cômica por um desarranjo inesperado (PAVIS,

2011).

Esse “cômico exagerado” de que diz o texto está relacionado à “principal

figura de linguagem utilizada em um trabalho cômico que é a hipérbole. Isto é,

quando se muda a dimensão de objetos, pessoas ou ideias, temos uma

imensa possibilidade de fazer rir. Um palhaço utilizando-se, por exemplo, de

uma bengala, cuja utilidade real é dar apoio, deve mudar-lhe o sentido. Se

usarmos a hipérbole - aumentando ou diminuindo esta bengala - ela perderá

sua função real de apoio, passando a ter uma função cômica e quando

utilizada não servirá para apoiar, provocando tombos e tropeções, mostrando o

erro. Aí está aquilo que pode servir de base a qualquer trabalho cômico, não só

de palhaço, que é: "Errar é humano" (POSSOLO, 2002).

O aumento grotesco das ações fica muito claro quando destacamos

algumas características do gênero burlesco e comparamos aos conceitos

vistos da Commedia dell’arte. Tais como:

Os personagens preferidos inicialmente são os tipos comuns inadequados, os bêbados, os vagabundos, os inaptos, os fracos, os excluídos. No final das histórias em geral acabam sendo acolhidos e aceitos. E esses personagens são as figuras mais importantes da ação com o seu corpo que é “móvel, maleável, transferível como o meio real de todas as aventuras do filme. E nestes tão pobres argumentos, o corpo é o primeiro objeto da ação... É sistemático que as aventuras burlescas tenham pouco a ver com o desenvolvimento da história, mas sim, primeiramente com a figura dos personagens (SCHEFER, 1980, p. 61).

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Cenários e maquiagens também são exagerados: os cenários eram

criados para que as movimentações pudessem ser realizadas e criassem a

sensação de que tudo aconteceu por acaso. Os ambientes internos explorados

eram escadas, portas, mesas que giram, tapetes e os mais variados tipos de

novidades da modernidade como camas que saem da parede, chuveiros do último

tipo, telefones de formas variadas. Os ambientes urbanos eram exaustivamente

explorados como ruas, construções, carros, trens mostrando a transformação que

a nova vida nas metrópoles trazia para o homem moderno.

A maquiagem, que parecia uma máscara, ressaltava olhos e bocas,

aumentava bigodes, cabelos reforçando as expressões e ainda muito próximo ao

exagero teatral. Muitos bigodes, sobrancelhas, costeletas eram feitas a lápis

exageradamente sem nenhuma preocupação com o real. Podemos observar que

para compor a sua máscara o ator Groucho Marx no início pintava seu grosso

bigode e as sobrancelhas e só muito tempo depois passa a ter um bigode real.

O ritmo das cenas nos remete a Commedia dell’arte. Sempre de

personagens saltitantes e acelerados que davam a sensação de urgência sem

perda de tempo. Isso, é claro, já demonstra um recurso cômico que foge do

realismo e faz com que o espectador não pense e seja levado somente pela ação

física. Percebemos que os atores que se destacaram no burlesco tinham uma

forma física ágil e acrobática. Possivelmente devido ao permanente risco a que se

submetiam, eles deram origem aos primeiros doublés no cinema, pois eles

mesmos executavam corajosamente todas as cenas perigosas. Um dos filmes

mais intrigantes nesse sentido é o de Harold Lloyd, Safety Last, de 1923. Nessa

narrativa, o personagem de Harold sobe um edifício inteiro pelo lado externo e

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ainda fica pendurado por um dos ponteiros do relógio onde tenta chegar a salvo

no topo do prédio.

E esse ritmo intenso era desenvolvido por meio da repetição e do

aumento das ações até o insuportável. Em um curta de 1916, One AM, Charlie

Chaplin faz um personagem playboy bêbado que tenta entrar em casa. Realiza

uma série de ações repetidamente e a cada repetição acontecem mais

dificuldades. Explorando com maestria o uso do trabalho acrobático, Chaplin vai

até o limite de cada ação: todas as possibilidades de um bêbado sair do carro,

todas as possibilidades de ele entrar em casa sem chave, todas as possibilidades

de ele subir as duas escadas que vão dar na porta do quarto, todas as

possibilidades de ele deitar-se na cama, de tomar banho ainda vestido até que,

por fim, exausto dorme de roupa na banheira.

Outra característica que foi emprestada da Commedia dell’arte é a de

inclusão do espectador cada vez que o personagem (ou o ator) quer destacar o

que está acontecendo ele para de se movimentar e dirige seu olhar para a

câmera. Olhar para plateia é muito utilizado em shows de variedades, circos e

espetáculos de rua e causa uma quebra na ilusão da história destruindo o

realismo da cena.

A queda de objetos, tapas, empurrões, tropeços são ações físicas que

têm sua raiz originalmente nos cômicos dell’arte e que são repetidas até hoje nas

técnicas da palhaçaria do circo, chamadas de claques18, presentes em quase

18

As claques, que em francês quer dizer palmas, são todos os tipos de tapas e bofetões que o palhaço leva ou dá e que saem fortes como o som das palmas feitas na hora, por próprios palhaços, para simular o barulho das pancadas. As cascatas que são os tombos e quedas variados, sempre cheios de recursos acrobáticos. POSSOLO, 2002.

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todas as cenas e que determinam a sua comicidade. As perseguições também

eram marca registrada nos primórdios. Como exemplo clássico, temos Keystone

Cops19, que faziam perseguições tresloucadas em grupos enormes. Eles dão

origem à clássica perseguição dos “guardas atrás dos inadequados sociais”

repetida ideia nas encenações cômicas de que sempre há um guarda tentando pôr

ordem na situação.

Quanto à construção narrativa, podemos ainda observar que não há

nelas continuidade predefinida, as histórias mais parecem “colagens” em que

quase sempre as situações

se passam nas ruas, tratam de conceitos banais do dia-a-dia, cenas da vida cotidiana vão se desenrolando no tempo, e vão desvendando uma incrível quantidade de coisas imperceptíveis que vão surgindo da imagem em movimento. De repente um detalhe inesperado dentro da normalidade provoca um transtorno e desestrutura a ordem normal dos acontecimentos. É a gag (LYRA, 2003, p. 187).

Temos, então, mais um elemento da Commedia dell’arte que é a gag,

ou seja, uma reapropriação dos lazzis. O burlesco tradicionalmente surge dessas

pequenas sequências de situações que levam ao riso por exagerarem

acontecimentos do dia-a-dia de forma grotesca. A gag nasce

do inglês norte-americano gag: efeito burlesco. A palavra é empregada em Francês e nasce (como foi dito) na década de 20. A gag é no cinema um efeito ou esquete cômico que o ator parece improvisar e que é produzido visualmente, a partir de objetos, de situações inusitadas: é, na gíria dos estúdios, um achado

irresistível que revigora e multiplica o riso num filme cômico20.

19

Em português: Guardas Keystone Os filmes eram produzidos pelo célebre Mack Sennett para a sua companhia, a Keystone Studios entre 1912 e1917. 20

Blaise. Cendrars em L`Homme Foudroyé

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Cada artista acabava desenvolvendo o seu repertório de gags que se

repetia e formava sua marca registrada. Temos como exemplo: Buster Keaton e

seu rosto impassível em oposição a sua agilidade corporal, Oliver Hardy e Stan

Laurel (O Gordo e o Magro) e suas atrapalhadas movimentações, todas as

sequências dos três irmãos Marx, em que cada um criava seu tipo cômico com

sua mania.

E ainda segundo Lyra, “a gag é indispensável para deflagrar o burlesco”.

Ela surge em situações variadas, das quais algumas se tornaram clássicas:

Polícia correndo atrás de bandido, cachorro acossando

um vagabundo, comerciante perseguindo um ladrão, mulher à

procura do marido... para correr melhor as senhoras levantam as

saias, os tornozelos à mostra é uma atração nos filmes de

perseguição... o filme de perseguição nasceu na Inglaterra e foi

rapidamente adotado nos EUA (TOULET, 2000, pp.118-119, apud

LYRA)

Esse contexto de retomada dos modelos de mascaramento da

Commedia dell’arte vai, entre outras coisas, criar a valorização da improvisação

influenciando os grupos de vanguarda não só do início do século, mas dos grupos

pós-modernos com seus happenings, criações coletivas e performances do final

do século XX.

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1.4. Teatralidade Cinema/Teatro

Vamos tratar agora de outro elemento que é a teatralidade e está

implicitamente relacionada à ideia de máscara. A teatralidade é um termo muito

utilizado no mundo contemporâneo e ao mesmo tempo se encontra em crise de

identidade em quase todas as artes, principalmente no teatro e cinema, onde as

fronteiras se misturam. Patrice Pavis (2011, pp. 371-2) a define assim:

A teatralidade seria aquilo que, na representação ou no texto dramático, é especificamente teatral (ou cênico). A teatralidade pode se opor ao texto dramático lido ou concebido sem a representação mental de uma encenação. Em vez a de achatar o texto dramático por uma leitura, a espacialização, isto é a visualização dos enunciadores, permite fazer ressaltar a potencialidade visual e auditiva do texto, apreender sua teatralidade. Que é teatralidade? Teatro menos o texto, é uma espessura de signos e de sensações, gestos, tons, distâncias, substâncias que submerge o texto sob toda a plenitude de sua linguagem exterior.

a) Teatral quer dizer muito simplesmente: espacial, visual, expressivo, no sentido de que se fala de uma cena muito espetacular e impressionante. Este emprego variável de teatralidade é muito frequente hoje... mas em suma, banal e pouco pertinente.

b) Teatral quer dizer a maneira especifica da enunciação teatral, a circulação da fala, o desdobramento visual da enunciação (personagem/ator) e de seus enunciados, a artificialidade da representação.

Nessa definição percebemos que a teatralidade está relacionada à ação

física ou à realização de movimento em um espaço que pode ser definido como

cênico. Entende-se por espaço cênico um palco ou qualquer lugar que se tenha

intenção de criar uma cena. O autor observa também que a palavra teatral pode

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ser empregada de forma pejorativa no cotidiano quando se quer dizer que algo é

muito exagerado.

A pesquisadora teatral, Josette Feral trata assim a noção de teatralidade:

A teatralidade pressupõe o sujeito que olha (espectador) e só tem sentido em relação a ele. Veremos que o papel desse sujeito é fundamental no funcionamento da teatralidade. (...) A noção de teatralidade surgiu em meados do séc. XX. Evreinoff 21 é o primeiro a mencionar a palavra em Russo (teatralnost) em 1922. A palavra será esquecida durante algumas décadas antes de ressurgir nos discursos há uns vinte anos [....] Na verdade, os textos datam no máximo, dos últimos vinte anos o que mostra que os esforços para conceituar a noção de teatralidade fazem surgir preocupações recentes e estão ligados a diversos intentos de pensar os fundamentos de uma teoria do teatro.

O primeiro uso do termo teatralidade qualifica como teatral uma ação de representação (que não está tomada necessariamente dentro de um marco teatral) muitas vezes excessiva, artificial, exagerada. Se falará assim de uma entrada teatral, de uma voz teatral, de um gesto teatral. Implicitamente se trata de um juízo de valor acerca da cena observada. É a acepção mais difundida – e a mais superficial _ da “doxa” que muitas vezes associa ali um juízo de valor para demonstrar a artificialidade da cópia. No domínio de uma teatralidade imitativa fundada na mimese concebida como imitação, estando a imitação observada, o espectador teria a imagem desse original e reconhece na cópia o parecido com essa imagem. Reconhecer: processo de reconhecimento do espectador, alusão a uma certa visão do teatro (que está fechada – parodicamente, o teatro que evoca não se faz mais -) e a afirmação de que “o ator” (o que atua) está na ordem da falsa aparência, do parecer (FERAL, 2003, pp. 33-4)

Feral vai distinguir quando a teatralidade é aplicada a cena ou quando é

utilizada como significado de artificialidade, de afetação. Ela define também que a

teatralidade está diretamente ligada ao espectador ao ato de representar, ou seja,

uma forma de jogo, lúdico. E continua: “O prazer da teatralidade não se baseia no

21

Nicolas Evreinoff:importante diretor teatral e dramaturgo russo do início do século XX, associado ao simbolismo russo e à Revolução Russa de 1917. Origem: Wikipédia, a enciclopédia livre.

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reconhecimento, mas provém do prazer de ver o outro jogar com as aparências. É

então o prazer do deslocamento de signos, o jogo de construção-desconstrução

que se entrega ao espectador (p. 34). “Para a teatralidade se instalar, o espaço

determinado para a representação é transformado a partir do instante que se

supõe que ali haverá uma encenação. Imediatamente esse local estabelecido

sofre uma mudança de significados e sua atmosfera já não faz parte da dimensão

do real”. Completando essa ideia, a dramaturga Silvia Fernandes diz que “a

teatralidade não é um dado empírico ou uma qualidade, mas uma operação

cognitiva ou ato performativo daquele que olha (o espectador) e/ou daquele que

faz (o ator). Tanto ópsis quanto práxis, é um vir a ser que resulta dessa dupla

polaridade” (FERNANDES, 2011).

Em o Espaço Vazio, o diretor Peter Brook (2008) define que para criar a

teatralidade basta estabelecer um determinado espaço (no caso um tapete) entre

o ator diante do público que imediatamente se abre uma brecha entre o real e o

teatral, entre realidade e ficção. São os agentes da ação (atores), usando o gesto,

o olhar e o sentido que as palavras desenham que criam os significados. Mas

também é a expectativa do espectador que desenvolveu sua atenção e começou a

ver de forma diferente aquele espaço. No entanto, aqui ainda contamos com a

intencionalidade de que haveria uma representação (local da apresentação, um

tapete ou cenário preparado para a cena ou qualquer indício de que vai haver uma

cena). E, então, a teatralidade já é esperada.

E quando não há nenhum indício de que o que aconteceu foi uma

representação? A teatralidade é estabelecida?

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Nos anos 70, Augusto Boal cria dentro do Teatro do Oprimido um exercício

chamado Teatro Invisível. A ideia é desenvolver um tema que se quer discutir e

um grupo de atores sai por diversos locais reais para fazer uma representação da

situação. Contudo, ninguém avisa ao público que se trata de uma encenação. O

intuito final é não avisar nem ao término que se trata de uma cena de teatro. Claro

que isso tem suas consequências:

O Teatro invisível esbarra quase sempre num problema importante: a segurança. O Teatro invisível oferece cenas de ficção, mas sem os atenuantes ritualísticos do teatro convencional, essa ficção torna-se realidade. O Teatro invisível não é realismo: é realidade. É nessa realidade que tudo se passa. Uma jovem assedia um rapaz no metrô de Paris, uma mulher que sente dores do parto em um ferry-boat em Estocolmo, uma mulher negra que é expulsa do seu lugar, um grego que disputa com um marido sueco a companhia de sua mulher, uma família que toma chá no meio da rua – tudo isso é realidade, mesmo que tudo tenha sido ensaiado. Realidade e ficção se interpenetram, mas nós sabemos que a ficção é sempre uma das múltiplas formas que a realidade assume, tão real como qualquer outra. Tudo é real: a única ficção que existe é a palavra ficção, porque designa uma coisa que não existe (BOAL, 2000, pp. 23-4).

Quando Boal insiste em afirmar que tudo isso “é realidade” é porque o

espectador desconhece a teatralidade, e a ação passa a ser simplesmente uma

cena cotidiana não se estabelecendo a atmosfera teatral. Contudo, em alguns

casos, acontecem imprevistos como com a cena da jovem do metrô, em que a

polícia foi acionada e o teatro revelado22. Nesse caso a discussão se modifica e

passa a ter uma leitura da teatralidade que só apareceu quando o espectador

22

Situação relatada por Augusto Boal em: BOAL, Augusto. O Arco-Iris do Desejo: Método Boal de Teatro e Terapia. Rio de Janeiro, 2002.

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soube que ali havia uma representação. De repente esse saber lhe permitiu ver a

coisa de modo diferente, transformar um acontecimento em representação, em

signo, o que o retirou da banalidade cotidiana. Quando o Teatro invisível não é

revelado, somente o grupo de atores pode descobrir qual foi o resultado dessa

experiência sociológica/estética e, nesse caso, a ilusão é um êxito. A simulação foi

perfeita. No caso do Teatro invisível temos uma ideia, um objetivo do seu criador

que é estimular o espectador a discutir certas situações da realidade social em

que vive Sendo assim, a questão da teatralidade tem uma condição sine qua non

que é saber que ali houve teatro. E ela tem pouco a ver com o espaço onde é

realizada. Ela pertence ao espectador, sem ele a teatralidade não faz sentido.

Para entendermos o que tem acontecido com a teatralidade na sociedade

hipermoderna é preciso pensar sobre a questão de um novo conceito de teatro

contemporâneo: o "pós-dramático".

Formulado pelo crítico e professor de teatro alemão Hans-Thies Lehmann

em sua obra Postdramatiches Theater , publicada em 1999, na Alemanha. Nesse

texto, Lehmann afirma que totalidade, ilusão e reprodução do mundo constituem

termos do teatro dramático23. E, nesse sentido, a realidade do novo teatro começa

exatamente com o desaparecimento do triângulo: drama, ação, imitação, o que

acontece em escala considerável apenas nas décadas finais do séc. XX.

O drama, para ele,

23

“Teatro dramático é o da dramaturgia clássica, do realismo e do naturalismo, ele se tornou a forma canônica do teatro ocidental desde a celebre definição de tragédia pela poética de Aristóteles: “Imitação de caráter elevado e completo, de uma certa extensão [...], imitação que é feita pelas personagens em ação e não através de um relato, e que, provocando piedade e terror, opera a purgação própria de tais emoções.” PAVIS, 2011, p.110.

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pressupõe a relação estabelecida entre duas pessoas (...) e está intrinsecamente relacionado com a noção de dialética, conflito. O teatro se constituiu a partir dessa série de elementos que são: pessoas, espaço e tempo. O que aconteceu com a modernidade foi que essa forma tradicional de teatro, ou todos os elementos

relacionados, explodiu (2013, p. 10).

Quando esses elementos explodiram, viraram o próprio tema da peça. Por

isso muitas peças pós-dramáticas são extremamente lentas, porque o tempo, por

exemplo, passa a ser o objeto. O autor afirma ainda que a forma como as histórias

são contadas no teatro não podem mais ser as mesmas. E que o teatro poderia

ser um “cinema tridimensional” 24. Essa noção é construída por Lehmann, a partir

de uma noção de Gertrude Stein, a qual escreveu as “peças-paisagens”, nas duas

primeiras décadas do século XX, nas quais se sugere uma produção de presença

dos atores em cena, em lugar da representação e os segmentos textuais de suas

obras funcionam como molduras de quadros. Essa autora é a fonte inspiradora do

diretor Robert Wilson, apontado pode Lehmann como um importante

representante do pós-dramático.

As disposições no ato teatral mudaram a utilização dos significantes do

teatro, tornando-o mais manifestação que significação, mais impulso de energia

que informação. No que interessa ao estudo da teatralidade, Lehmann descreve

como novo procedimento aquilo que ele chama de teatro cinematográfico. Embora

o autor trabalhe com muitos outros procedimentos a fim de definir esse novo fazer

teatral, que é o “pós-dramático”, tais como: os poemas cênicos, as

24

Relato aqui o que ouvi numa palestra, no Teatro GEO em SP, em março de 2012, após a peça “Vermelho”, protagonizada pelo ator Antonio Fagundes (e Bruno Fagundes) após o espetáculo, foi perguntado “o que ele achava dessa moda do cinema 3D?” Ao que o ator respondeu, afirmando que o cinema 3D é o Teatro.

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interdisciplinaridades, os ensaios teóricos encenados, o hipernaturalismo,

interessa a esta pesquisa a relação com o cinema. O destaque fica a cargo de um

interessante conceito, por ele elaborado, em torno da presença e não presença.

Por exemplo, em 2009, um espetáculo chileno - "Sin Sangre"25 -, que

encerrou o 18º Festival de Curitiba e esteve recentemente no Teatro Sérgio

Cardoso, o diretor Juan Carlos Zagal definiu a montagem como "thriller dramático

cine-teatral" ou, simplesmente, "teatro de ação". Já a Cia. Teatrocinema, como diz

o nome, tem tentado, em sua concepção teatral, a fusão das duas linguagens.

Assim, um carro estacionado no palco ganha "movimento" graças à estrada

projetada no telão alguns centímetros atrás; da mesma maneira, um chute no ar

de um ator "de carne e osso" abre uma porta imaterial. Nesse caso o resultado da

encenação é muito inusitado como pesquisa de linguagem, mesmo com a

quantidade enorme de aparato tecnológico e técnico (são ao todo cinco toneladas

de equipamento). O teatro parecia teatro ilusionista e tinha atmosfera de filme noir,

gângster, advindo dos anos 40. Como diz o ator Rodrigo Bazáes em uma

entrevista, os atores do grupo não sabiam como seria o resultado e sentiam que

essa pesquisa era a ponta de um iceberg de possibilidades a mistura entre cinema

e teatro. Para sustentar a teatralidade, o ator tem que manter uma atenção em

toda a manipulação da maquinaria necessária e, ao mesmo tempo, não perder a

concentração emocional da cena.

Christiane Jatahy é diretora e nos seus espetáculos teatrais incorpora

elementos da gramática cinematográfica. Em dois espetáculo teatrais recentes,

25

NEVES, Lucas. “Fim de Festival tem „Cine-teatro‟ de grupo Chileno”, 29/03/2009, em Folha de S. Paulo.

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56

como “Conjugado” (2004) e “Júlia” (Adaptação do texto "Senhorita Julia", de

August Strindberg), a diretora tem ido na direção da incorporação do cinema. No

primeiro, um monólogo, Malu Galli interpreta a vida de uma mulher solitária que

ganha representação por meio da combinação de performance, projeção de

documentário e instalação26.

A segunda peça utiliza telões por todo o palco, mostrando cenas que são

filmadas ao vivo e ampliadas em close, misturadas com cenas pré-gravadas como

se houvesse outros cômodos na casa. Esse dois exemplos causam

estranhamento no espectador que fica dividido entre todas as imagens que são

colocadas no palco e as cenas que acontecem ao vivo exigindo dele

transposições o tempo todo.

6

Cena de Júlia, de Christiane Jatahy. A cena ao vivo está na tela da esquerda, a pré-filmada

na da direita. O câmera fica no palco e interage com os atores.

26

Esta peça fez temporada no SESC Belenzinho/São Paulo em Setembro de 2012.

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Talvez seja essa a intenção: os fragmentos não se definem e ficam para o

público que vai definir o encaixe das imagens e o esforço de passar de uma

linguagem à outra. O desafio é como equacionar o uso dessas intersecções.

Por isso o ator também não atua mais da mesma forma, pois as imagens

atraem bem mais o olhar do espectador do que a presença do ator. Evidencia-se,

com isso, que um novo campo de pesquisa abriu-se, o qual vai nos ajudar a

entender como ator e espectador estão mudando sua relação com a teatralidade.

E um dos desafios da experimentação da teatralidade são os “modos de

presença”27 que precisam estar conscientes no trabalho do ator contemporâneo.

No teatro o desafio do ator é alternar a presença real com a imagem

projetada. E, de acordo com Vallin, “graças as técnicas de filmagem

cinematográficas, videográficas, videoconferências, o ator pode estar presente em

cena sem ter uma presença corporal, ele pode estar „presente –ausente‟”

(VALLIN, 2008, p. 8). No cinema hoje estamos mais além desse conceito porque o

ator virtualizado pode estar ausente também da cena cinematográfica, pois a

imagem do ator não aparece e sim as camadas de sobreposição de imagens que

nascem a partir da sua movimentação. Originalmente o cinema é influenciado de

várias maneiras pelo teatro, num relacionamento em que ora essas artes se

aproximam, ora elas se afastam. O espectador contemporâneo também mudou

influenciado por todas as mídias. Além do cinema, o rádio, a televisão e a internet

são fontes de alteração do teatro, que já não é mais o mesmo do século XX.

27

Proposta de designação de Batrice Picon-Vallin, em: VALLIN, 2011, p.8.

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Quando no primeiro cinema a câmera fica mais próxima, os espaços podem

ser de fato filmados no local da ação, a síntese teatral não é necessária no áudio-

visual. Assim, quando D.W. Griffith criou as bases para o cinema narrativo

clássico e deixou de manter a câmera fixa, a interpretação frontal, o exagero não

tinham mais sentido, pois a câmera já entrava na cena como personagem e as

expressões eram mais naturalistas. Cria-se, assim, um novo ponto de vista, a

linguagem cinematográfica.

Neste trecho, a seguir, de ensaio escrito por José Antonio Pérez

Bowie, o autor mapeia o caminho da teatralidade nos filmes ao longo das

décadas:

os vestígios da teatralidade continuaram presentes na tela até a chegada do som; a interpretação baseada nos excessos gestuais, que são herança evidente de gêneros como o melodrama ou a pantomima, era recurso imprescindível para suprir a falta de som (...) em determinados filmes desse período nos encontramos com uma teatralidade intencional e que não se limita ao campo da interpretação; é o caso da cinematografia expressionista alemã, onde a teatralidade dos cenários e ambientes contribuem para tensionar a dimensão irreal das histórias, ao mesmo tempo em que uma interpretação grande eloquente caracterizava seus atormentados personagens.

[..] Com a introdução do som e o novo tipo de filmagem de tomadas longas, motivado pela mobilidade da câmera e das lentes grande angulares determinaram um renovado interesse pelo teatro; seus textos podiam agora ser levados a tela de uma maneira mais “natural”. (...) Já nos anos 40 encontramos um conjunto de filmes que permitem falar de um novo modo de confrontar a teatralidade e com o qual o filme parece se aproximar sem complexo dos textos se libertando da fixidez e artificialidade que caracterizam as adaptações teatrais.

[...] O processo de teatralização experimentado pelo cinema a partir da aquisição da palavra é significativo nos anos 50 e tanto por razões técnicas quanto sociais. Os insuperados traumas do pós-guerra e os conflitos psicológicos por quem participou das batalhas aflora em muitos filmes da época.(...) tais filmes são em muitos casos adaptações de textos teatrais contemporâneos mas em outros são

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roteiros originais a partir dos quais os realizadores elaboram um discurso fílmico que se afasta da narrativa clássica e assume muitas estratégias da encenação teatral.

[...] Cinema teatralizado se situa num espaço intermediário entre o cinema narrativo e o cinema poético e que é um trecho de narrativa, embora a base é não haver necessariamente texto teatral (BOWIE, 2010, pp. 40-2).

Destaco particularmente o trecho abaixo no qual Bowie fala sobre a

oposição que vivem o teatro e o cinema. O teatro hoje nega seus princípios

teatrais através de temas como o “não-lugar”, a não construção de personagem e

o cinema, nos últimos anos, tem recorrido aos elementos teatrais para uma maior

teatralização extremamente exagerada ou estilizada:

É evidente que em nossos dias estamos assistindo a uma nova fase das relações entre os todos os meios, perceptíveis em alguns cineastas (Peter Greenaway poderia ser o caso mais paradigmático) de uma premeditada e sistemática teatralidade. Trata-se agora de uma ênfase consciente e deliberada das marcas que definem o teatral: artificialidade da cenografia e da iluminação, interpretação desmesurada dos atores, explicitação do processo e do ato de enunciação etc. Oscar Cornago, tem observado o fenômeno e chama a atenção sobre esta tendência de se produzir exatamente no momento em que a Arte Cênica parece ter renunciado às estratégias de recuperação e ênfase de seus elementos específicos para cultivar a via pós-dramática, destacando os aspectos performativos e de perceptivos capazes de proporcionar a transparência e autenticidade como meio mais eficaz de expressar as utopias e angustias do homem contemporâneo. Baseando-se nas teorias de Lyotard sobre o fenômeno da teatralidade pós-moderna, Cornago salienta como um filme contemporâneo utiliza a teatralidade para superar a crise de credibilidade sofrida pela retórica hollywoodiana e a enxurrada de imagens que padece a sociedade atual: “através do espaço aberto pela teatralidade mediante a demonstração da mídia, dos cenários ou dos processos de filmagem tenta-se recuperar a condição de realidade perdida no meio cinematográfico, a debilitada credibilidade das imagens de uma sociedade das imagens (BOWIE, 2010, p. 43).

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60

Para melhor percebermos a teatralidade cinematográfica, vale a pena

compararmos dois filmes, ambos da década de 90, do século passado. Filmes em

que a teatralidade se manifesta de modos diferentes, apesar de serem realizados

no mesmo período. Respectivamente, um nos remete à teatralidade clássica e o

outro à teatralidade já dentro do contexto midiatizado. O primeiro é Segredos e

Mentiras (Secrets & Lies, 1996), dirigido por Mike Leigh e produzido entre

a França e o Reino Unido.

Fig. 7 As atrizes Brenda Blethyn e Marianne Jean-baptiste

Segredos e Mentiras se caracteriza por ser muito realista, suas

personagens são tão minuciosamente construídas que quase nos fazem crer que

o diretor a qualquer momento vai nos revelar que a história é um documentário e

que suas personagens são reais. A ideia do filme de Mike Leigh é evidenciada

logo pelo título: segredos e mentiras, daquele tipo que guardamos e vivemos sem

falar deles e, mais cedo ou mais tarde, explodem nas horas mais inadequadas.

A teatralidade neste caso está presente e transpira com as

personagens, esquecemos totalmente que vemos ali atores, mas ao mesmo

tempo admiramos a realização dos detalhes das interpretações. Como é possível

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61

captar os momentos com tanta naturalidade e ao mesmo tempo dramaticidade

intensa? Ao assistir ao making of ou às entrevistas dos atores, tudo se revela. O

processo de preparação dos atores define o resultado. Não existe roteiro, tudo é

improvisado pelos atores. Eles trabalham na construção das personagens criando

e desenvolvendo cada trecho da história durante pelo menos seis meses. Então,

quando as cenas são gravadas, tudo já está no corpo do ator, cada movimento,

cada gesto que é “improvisado” (mas já foi feito na preparação muitas vezes).

Integração entre cinema e teatro, com muitas cenas frontais, espaços

vazios e foco nas personagens. O filme quase sem trilha sonora cria densidade

nas cenas, em poucos momentos o som extradiegético28 dá atmosfera no início e

no final.

Não há outras pessoas nas cenas, como se a vida dessas personagens

se destacassem de todas as outras ou fossem todas as nossas vidas. A ação se

concentra no conflito principal que gera tensão em todas as outras personagens

não menos intensas. Todos os envolvidos vão sofrer transformações ao longo dos

acontecimentos e terminam tomando chá no quintal e dizendo: “É a vida, não é?”.

Sensação de continuidade.

O segundo é Corra Lola Corra (Lola Rennt, 1998), dirigido por Tom

Tyckwer, na Alemanha.

28

“Por definição, a música extradiegética não indica aquilo que vê um personagem porque ela se situa fora de sua história. Ela é, ao contrário, um índice da voz narrativa”. Em VANOYE,et GOLIOT-LÉTÉ, 2008. p.147.

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62

8 A atriz Franca Potente

Antes de começar propriamente a história, vemos imagens de muitas

pessoas num campo de futebol e uma narração que diz que vai começar um jogo

que tem duração de 90 minutos. A história vai ser repetida três vezes e terá

consequentemente três desfechos diferentes.

O filme Corra Lola Corra cria uma teatralidade baseada na sucessão de

imagens e se caracteriza principalmente pela repetição dando a ideia de uma

narrativa com muitas possibilidades. Isso vem reforçar o conceito de velocidade

que está presente na história inteira e onde de fato a velocidade é a verdadeira

protagonista (aqui nos lembramos do pós-dramático em que explodem os

elementos da teatralidade e eles se tornam personagens). A música também é

protagonista e se sobrepõe às personagens. É curioso ver o que foi escrito no

período de lançamento do filme, vejamos o release:

O visual inovador e a narrativa, sempre corrente, são o grande diferencial da obra. Segundo Tykwer, suas histórias são sempre construídas em cima de uma imagem. No caso, era a imagem de uma mulher correndo. "Um filme dinâmico é a necessidade primária de qualquer cineasta", afirma. Corra Lola, Corra é um único filme, mas poderia ser vários. O diretor avança em diversos suportes, além do cinema, como vídeo,

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63

música, fotografia e animação. Além das diferentes mídias utilizadas pelo diretor, a pluralidade de estilos faz com que a obra seja imbatível. Misto de ação e romance moderno,Corra Lola, Corra é uma produção imperdível. Corra ao cinema para vê-la29.

A noção de espetacularização está presente. Não há mais espaço interno, pois

a sucessão de imagens, a corrida e o som da música eletrônica não nos deixam

respirar. A sugestão de um videogame é também muito explorada mostrando curto

espaço de tempo que Lola tem para cumprir a sua tarefa.

A ideia de Tykwer nasce de um curta-metragem de Win Wenders (Same Player

Shoots Again, 1968)30. Nele, Wenders repetia uma cena cinco vezes, alguns

movimentos que vão acontecendo em looping com versões diferentes. A trilha cria

a atmosfera do andar sempre em suspense. Aparece também uma cabine

telefônica. Como nas histórias em quadrinhos, o diretor usa no final o recurso de

uma onomatopeia para representar a ação do tiro, escrito em um cartaz “TLIP!”. A

ideia de história em quadrinho que nesse curta fica sugerida em Corra Lola Corra

é bem mais explícita quando no início da corrida um desenho animado representa

parte da corrida da personagem.

É interessante notar como as duas fotos (anteriormente reproduzidas) de

divulgação dos filmes indicam o que afirmamos. Sobre Segredos e Mentiras,

temos duas pessoas se relacionando frente a frente numa foto de convívio social

(motivação de dentro para fora). Enquanto em Corra Lola Corra, a personagem

29

Release escrito por Luciana Rocha disponível em: <http://www.terra.com.br/cinema/acao/lola.htm.> 30

Disponível em: < http://www.youtube.com/watch?v=6n9PUoeFhyI>

Page 64: a máscara digital

64

está de frente olhando para o público quase quebrando a ilusão, correndo num

quadro pictórico com cabelo vermelho e em um fundo circular (motivada de fora

para dentro).

Dois tratamentos de teatralidades diferentes que resultam outras

possibilidades de lidar com a emoção, em que onde um representa a vida e o

outro a espetaculariza.

Quando o cinema foi criado, ele permitiu que víssemos o mundo e as coisas

de outro modo, de uma maneira nova e agora parece estarmos numa fase

diferente: uma nova realidade se instalou na relação do homem com o mundo. O

campo simbólico está dando lugar ao campo das imagens. Estamos vivendo a era

da imagem em que o conceito de velocidade, de impermanência, de grande

quantidade de informação transformam nossa capacidade de percepção e mudam

hábitos ligados à emoção, ao sentir. Por isso a teatralidade novamente está em

plena ebulição e, de fato, não pode mais permanecer como era. Ela tem de

dialogar com esse contemporâneo e, nesse sentido, há muita experimentação

sendo feita. E é nesse contexto que o ator desenvolve a nova máscara no cinema,

desmaterializando a sua atuação para criar a máscara digital.

Page 65: a máscara digital

65

1.5 INTERAÇÕES COM A TECNOLOGIA

“Um novo cenário se vai instalando lentamente” 31

E se fossemos até a Lua? Como seria a Lua ou os seus habitantes,

caso eles existissem? Do que seria capaz a humanidade que inicia o século no

ano de 1900? Essa é uma maneira poética de imaginar o pensamento do homem

no início do século XX com uma alegria incalculável em um dos mais

entusiasmados dos séculos, o século elétrico, o século da velocidade, o século da

imagem.

A despeito de todas as expectativas que deram início ao século XX, hoje

sabemos o que foi que realmente aconteceu durante esse período. O entusiasmo

e os ideais foram dando lugar a “uma vaga melancolia” (p. 104). Hoje, no século

XXI, o momento é bem parecido, nossa percepção do mundo e da sociedade

também é outra, pois, embora tenhamos um progresso tecnológico como nunca

antes vivêramos, ainda há muita desigualdade, disputas e guerras. Com toda

evolução técnica alcançada, ainda existe a dificuldade “aos meios de sentir, de

compreender e de fazer muito complexos, que excedem o que a humanidade

procura” (p. 104).

Hoje a tecnologia faz parte das nossas vidas de tal maneira que não

seria possível simplesmente retirar os recursos tecnológicos que temos

31 LYOTARD, 1993, p.104.

Page 66: a máscara digital

66

disponíveis no dia-a-dia sem que se provocasse um colapso global. A sensação é

a de que sempre todos os recursos de que hoje dispomos, estiveram ao alcance

de nossas mãos. Como consequência da evolução das artes, observemos parte

das mudanças progressivas que aconteceram na evolução da tecnologia dos

equipamentos que envolvem a representação tanto teatral quanto cinematográfica.

E o que isso trouxe para a cena, para a interpretação dos atores que se

expressam pelo teatro ou pelo cinema.

Desde os tempos dos gregos as máquinas teatrais foram desenvolvidas

para criar atmosferas simbólicas que pudessem narrar da melhor maneira as

histórias encenadas. Mas quando as artes cênicas se profissionalizam, as áreas

técnicas têm vários saltos evolutivos. Os artistas foram se organizando e criaram

maiores possibilidade de interagir com o público. Há uma mudança na

interpretação dos atores e na criação de roteiros, os atores começam a se

especializar nos personagens que eles mesmos vão criando, sempre tendo como

interesse a manifestação do público que eram os moradores dos pequenos

vilarejos. No filme já citado, A Viagem do Capitão Tornado, o destaque é para o

avanço das máquinas teatrais impulsionado pela necessidade de sobrevivência

que é evidenciada na história.

Há uma cena em particular que mostra a chegada da trupe de teatro em

cortejo, divulgando o espetáculo que será realizado no fim da tarde. Em seguida,

um Cannovaccio32 é apresentado ao público. Nesse momento vemos como tudo

era feito: dobraduras criando adereços, iluminação feita com tochas e tecidos

coloridos para dar cor à cena, a carroça-cenário com mecanismos para que se

32

Cannovaccio eram os roteiros de ações das estórias que eram improvisados pelos atores.

Page 67: a máscara digital

67

abram alçapões e mudem os painéis de fundo, fogos de artifício dão a ideia de

batalhas. E ainda tochas para ressaltar o rosto (pois ninguém conseguiria ver o

ator no fim da tarde) e tudo isso criando uma atmosfera que não imita o real, mas

cria o poético.

A Commedia Dell´arte, acima de tudo, gera um fenômeno completamente

novo. Além de modificar todo o sistema expressivo da atuação e relação com o

público, necessita para criar impacto, muitos aparatos técnicos que são criados

para gerar surpresa e interesse. É nesse período que se inicia um grande

aperfeiçoamento do uso do cenário, da luz, dos figurinos, fogos de artifício, efeitos

em geral. É também nesse período que as companhias têm uma ideia inovadora

ao colocar mulheres em cena com o intuito de atrair o público. Esse público

interessado começa a pedir que os grupos venham encenar nas suas cidades,

gerando o início do mercado consumidor do entretenimento. O imaginário criado

pelo profissional do teatro faz nascer um interesse explosivo pelo teatro e que vai

se alastrando por toda Europa.

Profissionalizar significa ter técnica e utilizar tecnologia para criar

atmosferas que se comuniquem com a plateia. E foi nesse período que houve o

desenvolvimento inicial das “carretilhas, contrapesos, cordas, cunha, entelado,

esticadores, escoras, gornes, lastro, lona, malaguetas, manobras, nós, orelhas,

passarela, patamar, polia, porão, roldana, talha, tarugo, terça, trambolho, varas,

varanda e velário” (NERO, 2009, p. 193). Todos esses elementos cênicos têm

origem nas maquinarias navais:

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68

As cordas herdadas dos navios, dos oceanos, e dos séculos, e que no teatro são chamadas manobras, corriam para cima e para baixo, contrapesadas – umas curtas, outras longas, passando nos eixos dos gornes e das roldanas mestras, levando carga artística que cantava a glória dos deuses, reis e potestades (NERO, 2009, p. 201).

A partir desses acessórios, que compõem as caixas teatrais, os atores

desenvolveram suas técnicas de interpretação sempre sendo enriquecidos pelos

aparatos técnicos que sofreram muitas modificações de tempos em tempos, mas

nada comparado ao que ocorre no início do século XX. Com tantas

transformações e inovações tecnológicas em tão pouco tempo, nunca se viu uma

época tão impetuosa, tão cheia de progressos técnicos. É natural que nesses

tempos se tenha vontade de mudar tudo.

Com a “industrialização, urbanização e crescimento populacional rápidos:

proliferação de novas tecnologias e meios de transporte... a modernidade

inaugurou um comércio de choques sensoriais... Essas concentrações de

sensação visual e cinética resumiram uma intensidade distintamente moderna do

estímulo fabricado” (CHARNEY et SCHARTZ, 2004, p. 112). E surgiu um interesse

maior pelo Vaudeville, Melodrama, Pantomima, shows extravagantes “atrações

curtas, fortes e saturadas de emoção” (p. 112) que foram exploradas intensamente

pelos primeiros artistas de cinema mudo antes de ser criada uma linguagem

cinematográfica. A partir de 1880 começa na Europa a eletrificação dos teatros.

Com a eletricidade a iluminação teatral que era feita a gás e com telões pintados

passou a ser pensada com a ideia de tridimensionalidade, a luz fazia aparecer ou

desaparecer de cena. Não havia mais sentido um cenário pintado e, a partir desse

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69

momento, a luz faria o papel do pintor que daria forma para que os atores se

expressassem em cena. De acordo com a diretora teatral Cibele Forjaz, “a

linguagem da luz é responsável, na encenação moderna, por conduzir o percurso

da narrativa, juntando pedaços, encadeando cenas, criando signos, que tornaram

inteligíveis aos olhos dos espectadores essas viagens no espaço e no tempo”

(FORJAZ, 2010, p. 154).

Dois pesquisadores foram fundamentais neste processo de repensar a luz e

o cenário teatral: Adolphe Appia e Gordon Craig. Ambos defenderam a

transformação da cena e a necessidade de mudanças reais nos cenários criando

os espaços com formas geométricas e não realistas. A profundidade começa a ser

explorada e os cenários são concebidos de forma não realista. E com a mudança

do conceito estético novas teorias sobre a expressividade do ator passam a se

disseminar na área artística.

Como já foi dito, um novo paradigma se colocava para o ator do início do

século XX. Com as invenções e a imagem animada não era possível manter a

representação cênica da mesma maneira, pois o público, as cidades, o mundo

estavam em plena ebulição diante das mudanças de comportamento. O corpo do

ator ainda retratava o homem do século XIX e era urgente que ele se preparasse

para interagir com a vida moderna. Nesse momento surgem pesquisadores como

Constantin Stanislavski, Jacques Copeau, Etienne Decroux, Antonin Artaud,

Vsevolod Meyerhold 33, entre outros. E nessa busca pela expressividade do ator

muitas técnicas foram retomadas ou criadas. É o caso do retorno ao estudo da

33

Todos os nomes citados são de atores, diretores ou pesquisadores do início do séc. XX que exploraram as possibilidades de transformação da nova cena que se opunha ao naturalismo/realismo do séc. XIX.

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70

Commedia Dell´arte que, como vimos, foi o período da arte de representar que

mais impulsionou as artes cênicas. Outro exemplo é a criação do método

Stanislavski, o sistema de interpretação mais utilizado no cinema até o final do

século XX. Nesse período muitos atores já fazem experiências com a mediação da

máquina do cinema. Aqui já se inicia uma fissão34 entre o cinema e teatro e a

busca por pesquisas que modifiquem o processo de interpretar estão só

começando, a atuação com interpretação de máscaras vai ser fundamental neste

inicio.

Inicialmente a interpretação teatral era a base para as primeiras

experiências do cinema, a cena era realizada como se fosse feita num palco

filmado. O cinema se apropria do teatro para iniciar suas experimentações e logo

vai percebendo que os recursos podem ser diferentes. A câmera pode ficar mais

próxima, os espaços podem ser de fato filmados no local da ação, a síntese teatral

não é necessária no áudio-visual.

Aqui vemos que as telas, cinema e televisão influenciam também as

artes do palco, que não pode deixar de se adaptar aos aparatos tecnológicos.

Paralelamente o teatro vai aperfeiçoando a cenografia, explorando

outros espaços e aperfeiçoando as máquinas teatrais. Como destaque o

cenógrafo Josef Svoboda, que “nasceu na República Tcheca foi revelado na Expo

1958, em Bruxelas, quando representou sistemas inovadores na apropriação de

imagens e espelhos: a „lanterna mágica‟ (sistemas de articulação de atores e

34

“A fissão é a divergência gradual de um novo objeto em relação ao objeto modelo. Sempre que um novo sistema de signos recebe o atrito do sistema anterior, o novo sistema se autonomiza e começa a perder o caráter de réplica perfeita.” VILCHES 2001, p. 235.

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71

projeções) e o „poliécran‟ (representação audiovisual com colagem de imagens

projetadas em múltiplas telas). Em colaboração com Alfred Radok, artista tcheco

decisivo em sua formação, buscou outra forma dramática na simbiose com telas,

filmes, intérpretes” (SANTOS, 2005). Svoboda instala uma relação entre as Artes

Cênicas e a Tecnologia.

E simultaneamente a interpretação cinematográfica vai achando seu

espaço de maneira mais “natural” se libertando da “artificialidade” que o teatro ao

vivo necessita. Com a chegada do som no cinema e outros aparatos técnicos

acontece um renovado interesse pelo teatro só que agora de maneira diferente, os

temas de conflitos psicológicos crescem nos anos 50, mas os textos já adquirem

mobilidade, pois a movimentação da câmera dá maior dinamismo para as cenas.

Jean-Claude Carriére diz:

A falta de microfone ou alto-falantes, o teatro do século XIX estava condenado à declamação. Os filmes falados nos trouxeram o sussurro, a intimidade das relações verdadeiramente reservadas, até mesmo o arquejo, a pulsação. Utilizaram o olhar humano com infinita sensibilidade e dominaram a arte do silêncio. E, dos estranhos sentimentos dos quais vive a raça humana, extraíram significados cheios de nuances, que o teatro tradicional jamais poderia expressar e que a ficção literária abordou de forma diferente, através do eco percebido (ou não percebido) de determinadas palavras e determinadas frases (CARRIÈRE, 2006).

Durante a 2ª metade do século XX até quase o final do milênio, o

cinema apresentou várias etapas de relacionamento com o teatro. Muitos diretores

tiveram o teatro como uma referência importante. Os profissionais transitavam de

uma linguagem a outra fazendo experimentações. Diretores teatrais também

dirigiam no cinema e vice-versa. “Desde Eisenstein a Bergman, desde Dreyer a

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72

Manoel de Oliveira ou desde Lubitsch a Jacques Rivette temos muitos nomes de

diretores para quem o teatro foi uma referência importante” (BOWIE, 2010). A

televisão também cria uma mudança de hábito socializando o naturalismo e a

encenação do comportamento humano dentro dos lares de todo o mundo.

Se imaginarmos que no período em que no século XVI a Commedia

Dell´arte dá início a uma mercadoria cultural, a mudança do teatro de luxo da corte

para o teatro de rua como mercadoria aberta é uma realização efetiva dos atores

profissionais desse período. E com a criação de todos os meios audiovisuais os

atores e suas “máquinas” de representação têm que renovar o seu mecanismo de

ilusão, adaptando seu método de ator para cada tipo de veículo. O que não é fácil.

Como se comunicar com a plateia no cinema? Como interpretar personagens na

televisão? Como atrair o público ainda para um espetáculo que é feito ao vivo? E

agora no século XXI como usar a representação em todas as telas?

Paulo Autran certa vez afirmou que “O Teatro é do ator, o cinema é do

diretor e a TV é do patrocinador.” Talvez hoje pudéssemos dizer que o Youtube é

do usuário.

Se as invenções do século XX causam a revolução dos sentidos, das

transformações do tempo e do espaço na virada do século XXI, começamos a

perceber que não tínhamos ideia de que estávamos somente no começo de uma

revolução ainda maior. Se pensávamos que a velocidade das inovações eram

intensas, quando olhamos historicamente o século XX e suas décadas, o que

podemos dizer dos últimos dez anos quando temos em nossas mãos aparelhos

que conectam instantaneamente com qualquer parte do planeta?

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73

Essa velocidade não começa por acaso, ela vai progressivamente se

apoderando da nossa sociedade. Em um dos capítulos do livro de Jean-Claude

Carriére, A Linguagem Secreta do Cinema, ele descreve a conversa que teve com

um montador de filmes aposentado em 1972:

Esse homem havia trabalhado em Hollywood desde os anos 20, desde os últimos tempos do cinema mudo. Tinha estado intimamente envolvido com toda a evolução da montagem, com o ritmo interno do cinema – e com o fluxo da narrativa, que ele acreditava estar se movendo sempre com maior rapidez, como se o tempo se acelerasse junto com o século, como se o cinema, cada vez mais sem fôlego, estivesse acometido de um crescente e inexplicável senso de urgência. Como os carros e os aviões – ele me disse – eles têm que ficar cada vez mais rápidos. Contudo, nosso coração e nossa maneira de respirar não mudaram, nem nossa digestão. Nem o ritmo dos dias e das noites, das marés, das estações. Por que os filmes se movem cada vez mais rápidos? (CARRIÈRE, 2006, p. 95)

Talvez não sejamos mais os espectadores do século XX. Somos outros,

estamos muito diferentes. Adquirimos em nosso comportamento a velocidade

que foi se processando no passar dos anos e, aos poucos, absorvermos uma

quantidade de imagens e informações que modificam cotidianamente nosso

comportamento e nossa relação com o mundo.

A contemporaneidade trouxe a fragmentação dos elementos que

constituem a arte de representar: pessoas, espaço, tempo. E como nos

encontramos na cena? No espaço de comunicação com as plateias?

No teatro surge como movimento cênico da modernidade em contraposição ao teatro Dramático35 o teatro Pós-Dramático. Esse

35

Totalidade, ilusão e reprodução do mundo constituem o modelo dramático. FERNANDES, 2010, p.13.

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74

tipo de escritura cênica é um modo novo de utilização dos significantes no teatro, que exige mais presença que representação, mais experiência partilhada que transmitida, mais processo que resultado, mais manifestação que significação, mais impulso de energia que informação. (...) Para resistir ao bombardeio de informações do cotidiano, o teatro Pós-dramático adota uma estratégia de recusa. (...) cria elipses a serem preenchidas pelo espectador, de quem exige uma postura produtiva (FERNANDES, 2010, p. 13).

No teatro a tecnologia começa a funcionar como elemento importante para

criar a recusa da representação como imitação. “Ex: um pin Bin (pequeno foco

móvel) ilumina de perto um solilóquio, e estamos dentro da cabeça de Hamlet:

de repente as luzes de serviço do teatro acendem, todos os presentes se

olham e temos um ator diante de uma plateia: nesse momento, todos no teatro

podem ser ou não ser Hamlet. Se a realidade da ficção se quebra, a nossa

realidade também pode ter o mesmo fim (FERNANDES, 2010, p. 154).” O

teatro deve pensar na presença e nas mutações que as tecnologias implicam.

A pesquisadora Béatrice Picon-Vallin observa:

Diz-se frequentemente que as novas mídias vão permitir nos abstermos do ator, que haverá avatares em cena, robôs (já existe no Japão um autor-encenador36 que escreve peças para robôs!); bem, e por que não? Falava agora a pouco de teatros, e esse teatro de robôs será, sem dúvida, uma forma possível de teatro. Mas isso não impede, porém, que o teatro se defina inicialmente pela relação que nasce entre um ator e um espectador, dificilmente ele poderá abster-se da presença do ator. Em contrapartida, a noção de presença está se diversificando, ficando cada vez mais complexa e se aprofundando, e o trabalho sobre a presença, que é essencial ao jogo do ator, é crucial. O grande ator é aquele que está presente em cena; todavia, estar presente em cena não quer dizer somente estar no presente, mas saber conjugar os tempos (passado, presente, futuro). Para mim, a cena é verdadeiramente o lugar onde todos esses tempos se conjugam, se entrecruzam,

36

Referência a Oriza Hirata (1962) e sua peça Moi, le travailleur (Hataraku Watashi), encenada na Universidade de Okawa, em 2008.

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nessa presença absoluta do ator. Mas hoje, graças à imagem e ao som, graças às técnicas de filmagem cinematográficas, videográficas, vídeoconferências, o ator pode estar presente em cena sem ter uma presença corporal, ele pode estar “presente-ausente”. Há toda uma problemática em torno disso que chamo de os diferentes “modos de presença”. Penso que se trata aí de um novo desafio para o ator e que é algo que deve ser experimentado. (PICON-VALLIN, 2011)

Os “diferentes modos de presença” de que Vallin fala são a base para se

pensar na máscara criada digitalmente pelo ator. No cinema a atuação do ator

passa a ser um elemento como qualquer outro, pois a montagem, edição de

imagens e pós-produção é que vão definir cada vez mais o resultado da

interpretação que o roteiro exige. Claro que o ator ainda é importante, mas o

seu trabalho já está se misturando às novas tecnologias e se adaptando à

“interpretação digital”. No filme Avatar, de James Cameron, a pergunta do

diretor foi: “Podemos criar um personagem digital convincente? Como uma foto

realista?” E então muitos equipamentos, câmeras e efeitos especiais foram

desenvolvidos para dar vida a esse universo. Os atores “base” eram dirigidos

do mesmo modo como quando manipulamos bonecos em espetáculos de

títeres.

Mas como o ator evoluiu até a máscara digital?

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76

CAPÍTULO 2

1. MÁSCARAS NO CINEMA

Este capítulo aborda a trajetória da ideia de mascaramento no cinema.

Para o melhor entendimento da evolução da máscara cinematográfica separamos

alguns exemplos em três momentos: 1) máscaras que pontuam a adaptação do

ator à linguagem cinematográfica; 2) formas de composição da construção da

máscara no cinema (efeito compositivo e efeito narrativo) e 3) caminhos da

tecnologia. Essa separação serviu apenas para que os vários aspectos da

máscara fossem abordados, pois todos esses movimentos foram acontecendo de

maneira simultânea.

O cinema se espalhou rapidamente assim que foi divulgado em 1895 e logo

passou a ser visto por grandes plateias e muitas produções começaram a surgir

por diversos países nos continentes mais variados. “No início do século havia a

defesa das virtudes da arte muda em contraposição à arte teatral que era

entendida na época como um mundo da palavra” (XAVIER, 1996, p. 247). Os

filmes mudos foram responsáveis pela rápida identificação do público com a

imagem na tela, pois por não terem som não havia nenhuma barreira linguística

para essa nova modalidade de diversão. No início, a filmagem limitava-se a

apontar a câmera por tudo que cercava os cineastas, só depois começou se fazer

pequenas esquetes e experimentações iniciais.

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Com os primeiros atores também foi assim: ficar diante de uma câmera

e fazer o que se fazia no teatro. No entanto, ao se interpretar com o

cinematógrafo, a divulgação era muito mais rápida que no teatro, pois ela poderia

ser reproduzida. A notoriedade dos atores tornou-se maior e ainda eles podiam

ver seus trabalhos sob outro ponto de vista, o da câmera. Para ter-se ideia dessa

velocidade de divulgação, basta pensar que “Charlie Chaplin postou-se diante de

uma câmera pela primeira vez em janeiro de 1914, como um jovem artista inglês

do teatro de variedades e, ao fim daquele ano, já havia se tornado a pessoa mais

reconhecida no mundo inteiro” (KEMP, 2011, p.8).

A passagem do trabalho do ator de teatro para a tela começa a

desenvolver a questão da não presença do ator. Se, por um lado, essa forma pode

dar ao ator maior notoriedade e público; por outro, seu trabalho mediado pelo

cinematógrafo não pertence totalmente a ele. Nesse começo o ator ainda tem

domínio das esquetes que cria, pois não existiam ainda divisões de funções, tais

como direção, roteiro etc. Mas ao longo da evolução da história da indústria do

cinema o trabalho do ator passa a ser mais um elemento e não o centro da cena e

isso é um importante fator que diferencia o cinema do trabalho do espetáculo ao

vivo.

Mas o que acontece com a criação de máscaras no cinema?

Para ter-se um panorama das máscaras cinematográficas vamos ver

alguns exemplos a respeito das tipologias e adequação da teatralidade no cinema.

Esse painel nos ajuda a perceber a capacidade do ator em expressar as mais

amplas ou sutis expressões com a composição de suas máscaras.

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É importante notar que a concepção de máscara está ligada à ideia de

um “corpo-máscara”, isto é, não só o rosto, mas todo o corpo, no qual ressoam

todas as intenções, ações e reações criadas pela imaginação do ator e do diretor,

está envolvido no processo. Por isso a máscara não está restrita só à modificação

facial ou à maquiagem, apliques, perucas, figurino, mas ao estado cênico criado

pelo ator.

Em Viagem à Lua, de 1902, do visionário Georges Méliès, os atores

são absolutamente teatrais e, a fim de criar a ideia de uma ficção cientifica (Méliès

é o grande precursor deste gênero), os tipos criados são misturas de animais,

cenários gigantescos, cientistas de cartola, todos feitos por convenções bastante

teatrais. A Lua com a nave enfiada no olho é imagem imitada até hoje.

9

Le voyage dans la Lune, 1902

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79

Em outro exemplo, Os vampiros, de 1915, a particularidade da máscara

se faz no desenho da personagem Vep (a atriz Musidora). Ela parece indicar

apenas o desenho de uma jovem comum, mas logo se percebe que a personagem

não é a mocinha da história e sim, uma contra máscara, ou seja, uma máscara

que se opõe a ela mesma. Isso fica evidente na maquiagem combinada a sua

voluptuosa interpretação.

10

11

A atriz Musidora (Jeanne Roques) no papel de Irma Vep, a cantora e Stacia Napierkowska dançarina

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80

A máscara do Expressionismo Alemão da década de 20 teve bastante

expressão no teatro e também influenciou o cinema, onde encontrou terreno fértil

aproveitando a luz cinematográfica do preto e branco. O exagero dos gestos e da

estética das personagens resulta em interpretação intensa.

12

O Gabinete do Dr. Caligari, direção Robert Wiene,1920.

Já em Nosferatu, vê-se a representação de uma composição completa

em relação à construção de uma máscara compositiva no cinema, pois a

personagem mistura o grotesco e a fixidez da forma, a que o movimento do ator

dá vida, dialogando com a luz e sombra da estética da cena.

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81

13

Nosferatu: Uma Sinfonia de Horror, direção F.W Murnau, 1922

No filme Metrópolis, de 1927, o silêncio não limitava a capacidade de

comunicação. Muito pelo contrário, ele tornava o gesto ou as expressões faciais

intensas e sutis ao mesmo tempo. Visionário, o filme tem imagens que simbolizam

expressões opostas e significativas. O rosto dividido entre o bem e o mal, o

humano e a máquina, o ser híbrido. O tema da relação do homem com a

inteligência artificial será retratado em vários filmes ao longo do século e a

imagem da personagem Maria/robô é bastante representativa desse imaginário37.

Isso fica bem claro na cena em que a personalidade de Maria vai sendo

transferida para o robô.

37 Sua representatividade se mostra na proliferação de personagens da mesma espécie, ao longo

da história do cinema de ficção: Robôs no cinema: Metropolis (1927); 2001: Uma Odisseia no espaço (1968); Blade Runner (1982); O Exterminador do Futuro (1984); Matrix (1999); O Homem Bicentenário (1999); Inteligência Artificial (2001); Eu, Robô (2004). Em: AXT, Bárbara. “Robôs com Ética”, disponível em <http://super.abril.com.br/tecnologia/robos-etica-444624.shtml>

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82

14

15

Metrópolis, direção: Fritz Lang, 1927

O cinema de horror tem uma extensa lista de filmes que muito

contribuíram para a evolução dos efeitos de maquiagem e cenografia criando uma

estética própria baseados nos temas góticos. O ator Lon Chaney foi um dos

maiores representantes deste gênero.

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83

16

O fantasma da Ópera, Direção: Rupert Julian, 1925

2.1. COMICIDADE

“Os estúdios Keystones de Mack Sennett que desenvolveram as

características que definiriam a comédia muda e começaram a produzir filmes

desse tipo em escala industrial” (KEMP, 2011, p. 62), em 1912. Os típicos

“guardas atrapalhados” que vão ser referência para quase todas as histórias

cômicas.

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17 The Gangsters, 1913

A comédia muda criou máscaras de grande sucesso, atores cômicos que

viraram ícones culturais e que certamente se baseavam nas tradicionais técnicas

teatrais relacionadas no capítulo I deste trabalho. Buster Keaton, por exemplo,

criou o homem que nunca ri com sua máscara sempre igual, mas o resto do corpo

cheio de ação.

18 Sherlock Jr, direção: Buster Keaton, 1924

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Harold Lloyd tentou por diversas vezes criar uma máscara que se

identificasse com o público e que fosse um tipo bem urbano. James Mônaco diz

que

Os personagens inventados por Chaplin, Keaton e Lloyd estão entre as criações mais significativas na história do cinema‟ e ressalta ainda que „os grandes atores cômicos dos 19 aos vinte e tantos anos adicionaram uma dimensão ética e política que elevou de nível o filme pastelão por sua competência técnica repleta de metáfora e significado (MÔNACO, 1981).

19

Safety Last, direção: Fred C. Newmeyer, 1923

Com uma máscara de modelo arlequinesco, Carlitos, de Charlie

Chaplin, representa o marginal social e inábil, porém, com grande empatia com a

plateia. Ele trabalha com as oposições: suas roupas são rotas, mas imitam um

homem nobre, o seu ar é angelical, mas parece bem “endiabrado”. Quando vai

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86

realizar seus planos nunca segue um caminho reto, mas sempre curvo, via pela

qual a comicidade acontece. As tentativas é que são a cena e não seu desfecho.

O exagero das suas expressões forma uma máscara que com seu figurino e andar

compõem seu todo “mascarado” (se pensarmos que a máscara abrange o ser

inteiro).

20

O Garoto, direção: Charles Chaplin, 1921

A dupla “o Gordo e o Magro” (Stan Laurell e Oliver Hardy), que se

tornou conhecida durante as décadas de 1920 e 1930, é outro exemplo que

lembra os servos da Commedia. Compõem o inteligente e o estúpido, mas não

sempre na mesma ordem. Suas gags já são previsíveis, mas sempre esperadas

pelo público e o fato de olharem diretamente para a câmera, deixando claro a todo

o momento que estamos assistindo uma cena de cinema, remete-nos ao teatro ao

vivo. Essa quebra da quarta parede (como é chamada no teatro) é feita por quase

todos os atores no primeiro cinema do início do século XX.

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21

Stan Laurell e Oliver Hardy

2. 2. CINEMA SONORO

Com a chegada do som temos o filme O Cantor de Jazz, de 1927. O

primeiro filme falado da história do cinema representaria um importante divisor de

águas na indústria cinematográfica. Neste roteiro metaforicamente a máscara

criada pelo ator Al Jolson revela um jogo entre o que é falso e o que é real (cor da

pele, etnias diferentes). Assim além da novidade do som há uma transição entre o

exagero da máscara e a sutileza da interpretação, entre o homem real e o

espetáculo.

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22

O ator Al Jolson no primeiro filme a trazer falas e números cantados.

Quando o cinema começou a descobrir diferenças de linguagens entre o

espetáculo (mais pertinente ao teatro) e a narração (montagem cinematográfica) a

representação do ator foi experimentando a aproximação do real e

consequentemente a máscara foi diminuindo a forma externa. Desse modo, a

composição exagerada para se adequarem à tela, foram se deslocando mais para

as produções de filmes de terror, histórias fantásticas ou fábulas infantis. Nesses

gêneros era permitido manter as composições sem a perda do sentido.

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23

Frankenstein, direção: James Whale, 1931

24

O Mágico de Oz, direção:Victor Fleminng, 1939.

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90

A teatralidade, quando ajustada à linguagem cinematográfica, teve seu

sentido absorvido nas emoções internas e nos pequenos gestos e olhares.

Surgiram, então, as grandes estrelas do cinema. As divas das telas foram

importantes para trazer grandes bilheterias à indústria do cinema, tal como na

Commedia dell’arte a figura da enamorada foi introduzida na cena para atrair

público. Greta Garbo, Bette Davis, Vivien Leigh, Marilyn Monroe, Ingrid Bergman

são exemplos de atrizes com status de divindades e que tiveram seus rostos

transformados na máscara da perfeição e da beleza enigmática.

25 26

Greta Garbo e Marilyn Monroe

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91

O correspondente masculino era o homem que simbolizava a perfeição

por meio da elegância, com o cigarro na mão, viril e charmoso com seu olhar

também misterioso.

27

28

Cary Grant e Clark Gable, galãs de Hollywood

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Já no neorrealismo italiano, o rosto realista do não-ator aparece como

forma de revelar o homem no seu cotidiano sem maquiagem, sem artifícios com

duras marcas.

29

Ladrão de bicicletas, direção:Vittorio de Sica, 1948

Em outro tipo de narrativa, os filmes de juventude rebelde lançaram

alguns personagens que refletiam a imagem do adolescente descontente.

Marlon Brando, Montgomery Clift, Elvis Presley e James Dean romperam a

imagem clássica do bom moço, principalmente despenteando o cabelo, compondo

o tipo com roupas amassadas e barba por fazer.

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30

Juventude Transviada, direção: Nicholas Ray, 1955

O ator e diretor francês Jacques Tatit cria uma máscara que discute com

a ideia de tecnologia. O filme Meu Tio, de 1958, ele retoma a ideia que Chaplin

iniciou com o contraste entre um homem inadequado diante de uma sociedade

robotizada. É como se o ator com seu personagem, Monsieur Hulot, criasse uma

máscara que olha para a tecnologia e se sente desconfortável diante do

“progresso” que ela impõe.

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31

O personagem Monsieur Hulot

Há vários períodos em que muitos diretores são mais próximos da arte

teatral e desenvolvem máscaras que marcam um estilo, acentuando formas com

maquiagem e cabelos estranhos, como é o caso de Frederico Fellini e seu tipos

marcadamente grotescos.

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32

Roma, direção: Frederico Fellini, 1972.

No caso do diretor Ingmar Bergman, o trabalho se dá por meio de outra

forma de expressão da teatralidade usando, por exemplo, o close para revelar o

interior das personagens, tornando a face grande na tela, projetada e,

consequentemente, inversa à lógica: não são os traços da máscara que

aumentam o movimento, é a câmera que, de tão próxima, revela as minúcias da

personagem.

33 34

Persona, direção: Ingmar Bergman, 1966.

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Os movimentos no cinema muitas vezes se contrapõem ao exagero da

máscara, afastando-se dos artifícios teatrais e optando pela quase não máscara.

Muitas vezes, para se chegar a um resultado de “limpeza da cena”, a exaustão

torna-se um caminho da direção. O diretor Jean-Luc Godard afirmava que não

tinha grande capacidade de dirigir atores e, sendo assim, exigia que o ator

repetisse muitas vezes a cena até ela ficar pronta: “É preciso fazer com que um

ator trabalhe muito (mesmo que alguns não gostem)” (TIRARD, 2009, p. 249).

35

Viver a Vida, direção: Jean-Luc Godard, 1962.

Muitos atores criam máscaras marcantes, como Marlon Brando que

apesar de trabalhar a sua interpretação partindo de emoções internas, usa

estímulos externos para criar suas personas como, por exemplo, o algodão na

boca que usou para compor o mafioso Dom Corleone.

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36 37

38

Exemplos de composições marcantes de Marlon Brando

Nas comédias, Jerry Lewis criou presença cênica com personagens de

grande exagero. Seu rosto se transforma em máscara teatral. Ele dirige, escreve e

atua influenciando muitos atores como, por exemplo, Jim Carrey.

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39

Professor Aloprado, 1963, baseado no clássico da literatura o médico e o monstro.

Com 2001: uma Odisseia no espaço, de 1968, o diretor Stanley Kubrick

abre a sequência de máscaras tecnológicas que serão usadas no século XXI.

Fig. 40 e 41 2001, de Kubrick e Star Wars, direção de George Lucas, 1977

A ideia de máscara digital começa a surgir em Onde ninguém tem Alma,

dirigido por Michael Crichton, em 1973. Esse foi o primeiro filme a usar, em uma

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99

de suas cenas, imagens digitalizadas através de computadores (BARBOSA

JUNIOR, 2001, p. 324) e a fazer referência à mistura de robô com ser humano, “a

animação só foi usada para mostrar como se enxergava através dos olhos de um

robô”. E é repetida na continuação Ano 2003: Operação Terra, de 1976. Nesse

período não havia “um cineasta que dirigisse o uso da tecnologia integrada à

estrutura artística da obra” (p. 324).

42 43

Yul Brunner e Peter Fonda

Foi na década de 80 que as máscaras tecnológicas começaram a se

virtualizar. Na sequência o filme Tron, uma odisseia eletrônica, dirigido por Steve

Lisberger, em 1982, foi um trabalho de alta qualidade visual para a época e de

grande interesse do espectador pelo uso da computação gráfica, contudo não

havia muita expressão na atuação dos atores.

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44

Cena de Tron, 1982

Mas foi em Uma cilada para Rogger Rabbit, com direção de Robert

Zemeckis, em 1988, que se deu credibilidade na integração atores/tecnologia,

abrindo caminhos que persistem até hoje. A mistura de atores e personagens de

desenho animado criava a necessidade de um novo código de interpretação

estilizado e exagerado de tipos entre o mundo real e o universo do cartum.

Fig.45 e 46 Os atores Bob Hoskins e Christopher Lloyd

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Com O segredo do Abismo, de James Cameron, lançado em 1989,

começam a surgir máscaras digitais a partir de expressões dos próprios atores.

São outras camadas de imagens que se sobrepõe ao rosto ou corpo dos atores

reais. Isso abre caminho para que a captura de movimento inicie a possibilidade

de gerar expressão com máscaras tecnológicas. É bom ressalvar que quando a

máscara de efeitos especiais começa a surgir com mais intensidade (a partir a

década de 80) o processo de construção e autonomia da máscara sofre

modificações. O mascaramento da personagem, ou seja, uma personagem criada

a partir de um desenho ou animação dá lugar ao mascaramento da imagem. Ou

seja, a imagem real passa a ser desconstruída dentro da própria narrativa.

Fig. 47 O Segredo do Abismo

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102

Em O Exterminador do Futuro 2 – O julgamento Final, de 1991,

novamente a elaboração da máscara de James Cameron surpreende, criando

com mais realismo a sensação da máscara líquida, a partir do molde do rosto do

ator, como se vê na imagem abaixo:

101

O Robo liquido de O Exterminador do Futuro 2

Em A Morte Lhe Cai bem (1992) Robert Zemeckis, apoiado em novos

efeitos, que estavam sendo aprimorados, mostra que já é possível tornar o

absurdo mais realista. E nesse momento percebemos a oposição imagem real e

desconstrução da imagem.

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103

49

Meryl Streep em A Morte lhe cai bem.

Em 1994, com O Máskara, o ator Jim Carrey, dirigido por Chuck Russell,

utiliza elementos corporais exagerados e histriônicos para compor a mistura entre

história em quadrinho e desenho animado por meio dos efeitos especiais que

eram possíveis na época. O roteiro brinca com a máscara como objeto mágico e

transformador da personagem central que de tímido e inexpressivo passa a ser

extrovertido e ousado. Temos então claramente um conflito entre imagem real e

animação que brinca com o hibridismo das formas.

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50

Jim Carrey

No entanto é com Matrix, de Andy Wachowski (1999) que a ideia da

máscara por computação gráfica se estabelece, criando um caminho divisor de

águas que mistura a noção de mundos real e virtual. Em sua dissertação “Um

Mundo paralelo Virtual no cinema”, Geraldo de Lima explica acerca de Matrix:

Outro ponto importante foi o experimentalismo de efeitos especiais com foco na criação por computador. O efeito “Bullet-time” ou “tempo de bala” usa uma união entre a técnica corporal dos atores, somada à técnica de produção de imagens em Computação Gráfica, efeitos especiais com miniaturas, animação tradicional e cenários grandiosos, reais e virtuais, tudo isto unificado à ideia básica de ver uma ação em diversos ângulos. [...] Além de criar este ambiente virtual e inserir nele o mundo real, os criadores da arte visual estão dando um salto maior ainda. Eles usam dois efeitos de captura da imagem dos atores para dar maior realismo às cenas de ação. São chamadas de Motion Capture e Universal capture. O Motion Capture se trata da captura dos movimentos dos atores para dar maior realismo à animação digital (LIMA, 2009).

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O ator diante desse novo “espaço cibernético” no cinema foi-se

adequando à descoberta das novas máscaras virtuais.

Novo conceito que o filme Matrix introduz é a instantaneidade, a ideia de

que não precisamos construir o conhecimento parte por parte e sim “instalar” em

segundos a informação no ser. Isso se reflete em como construir a máscara sem

olhos, movimentos corporais robóticos, sem emotividade quase como se todos

fossem uma “base” para carregar as informações. O conflito entre animação e

mundo real quase não existe e então entramos na era do ator virtualizado.

51

Óculos pretos criam a imagem de máscaras tecnológicas

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Para dar maior realismo nos desenhos animados, os cineastas

passaram a recorrer aos atores para compor personagens em filmes de animação

com suas expressões capturadas e transformadas em moldes para personagens

inteiros. Como no caso do ator Tom Hanks em Expresso Polar (direção de Robert

Zemeckis, 2004). O ator é rapidamente identificado no produto final do filme mas

não há conflito entre imagem real e animação. O mascaramento da imagem é

totalmente integrado.

52

O Expresso Polar e a captação de interpretação do ator Tom Hanks

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Em 2002, por sugestão do próprio ator Andy Serkis, surge a primeira

máscara totalmente “criada por Computação Gráfica a aparecer no cinema de

grande circuito” (KEMP, 2011, p. 484) sem ser em desenho animado, e sim na

tecnologia chamada Motion Capture (MoCap). Captação de Interpretação é o

termo usado para designar a interpretação do ator que é utilizada para criar bases

de cenas animadas por computador. Toda movimentação e expressão facial que

são criadas pelos atores são emprestadas e transformadas em personagens.38 A

personagem se chama Smeagol/Gollum e é um alterego do personagem principal,

Frodo. Mas a máscara virtual já não é projeção real da face do ator e sim, uma

imagem que resulta da soma da colaboração do ator e dos criadores de efeitos

especiais.

38

Fonte: Blu-Ray do filme TinTin, de Steven Spielberg.

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108

53

O ator Andy Serkis como Gollum

Quase todos os personagens de Mocaps são ainda feitos

individualmente, mas em Piratas do caribe: O Baú da Morte, de 2006, o processo

de captura de interpretação foi feito coletivamente com os captadores colocados

em ao mesmo tempo por todos os atores/piratas do barco, e cada personagem

caracterizado individualmente.

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109

54

Foto com atores sendo capturados por MoCap e imagem virtual finalizada

E em 2009, em Avatar, James Cameron cria a primeira prova concreta de

que uma revolução com a máscara virtual estava para começar. As máscaras

digitais são criações artisticas (de interpretações) de seres humanos digitais. Com

esse sistema a tecnologia está integrada ao filme de tal maneira que a certa altura

nos esquecemos que não são atores que naquele momento fazendo a cena e sim

uma projeção da interpretação com outra roupagem. É como se camadas de

movimentos ou expressões realizadas por atores estivessem por baixo de todo o

trabalho final.

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110

55

O livro do making of de Avatar

Podemos notar que houve um avanço no mascaramento da imagem

pois as máscaras que funcionavam com o grande público estavam aliadas a um

domínio da tecnologia somada a uma preocupação artística. Em cada período de

revolução tecnológica os atores tentaram enfrentar o desafio de integrar as suas

ferramentas de interpretação às novas tecnologias que se apresentavam na cena.

Como nos fala Alberto Lucena, “a técnica viabiliza a arte, mas por mais sofisticada

que seja, não é capaz de substituí-la. Simplesmente porque a arte é uma coisa

dinâmica, orgânica viva. (BARBOSA JUNIOR, 2001, p. 121)”.

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2.2.1 A MÁSCARA DO EFEITO COMPOSITIVO PARA O EFEITO NARRATIVO

Pensemos no efeito compositivo e narrativo a partir da premissa de

Aristóteles (Poética, 1448a) onde a Mimese (imitação ou representação) quando é

“direta” é imitação pelo teatro e quando “indireta” é imitação pela narrativa (PAVIS,

2011, p. 242). Essa segunda forma de imitação, a indireta, pode ser relacionada à

representação cinematográfica.

Como vimos na teatralidade, quando tomamos por real ou verdadeiro o que

não passa de ficção (p. 202), então, temos a ilusão teatral. O efeito de ilusão se dá

no espectador quando ele vê a personagem a sua frente (ou na tela) e se

identifica com ele. Para que isso aconteça não há muitos mistérios, como diz

Pavis: “a ilusão se baseia numa série de convenções artísticas. E a ilusão e a

mimese não são mais que o resultado de convenções teatrais que é tudo aquilo

sobre o que plateia e cena devem estar de acordo para que a ficção e o prazer do

jogo ator/plateia se produzam” (p. 71).

A imitação não é passiva ela obedece a um conjunto de códigos:

De um modo geral, cada época inventa suas próprias receitas de ilusionismo. [...] a pintura, como o teatro, como as outras artes, é ilusionismo, e seus, meios, tanto quanto seus fins, estão ligados a um certo estado de sociedade e, mais ainda a um certo estado de seus conhecimentos teóricos e técnicos, até mesmo à medida das reações que um modo de vida, deduzido de uma certa compreensão do universo impõe a uma coletividade (apud FRANCASTEL, 1965, p. 224)

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112

Há um conjunto dos significantes cênicos que estão a serviço de efeitos de

ampliação, de simplificação, de abstração e de legibilidade da obra. Eles fazem

parte da materialidade cênica: cenário, adereços, iluminação, música. Esses

recursos cênicos são somados aos recursos lúdicos: atuação, corporalidade e

gestualidade, que formam a encenação.

Para poder conceituar as atuais máscaras dividimos e nomeamos a partir

da nossa observação como se segue:

A máscara concreta parte da mimese que “caricatura” a realidade através

do exagero e do grotesco e é feita a partir de um efeito compositivo, ou seja, é

construída a partir de um objeto real e concreto que modifica ao ser colocado na

frente do rosto. Pode partir de um acessório feito em couro, papel, espuma ou da

junção de outros elementos (papel, metal etc.). A maquiagem também é máscara,

se for usada para codificar o rosto do ator. As caretas que o ator produz causando

a mobilidade do rosto formam máscara também. Seu significado pode ser

completado com figurino, adereços, cenário, iluminação. O efeito compositivo

então é tudo que compõe concretamente a realização de uma cena, seja a cena

feita direta ou indiretamente.

A Máscara virtual parte da mimese do ator, sem nenhum elemento cênico

real, nem mesmo um cenário, pois ela vai ser construída a partir de elementos

sobrepostos virtualmente a posteriori. O material da performance do ator se

transforma em fragmentos que serão montados de acordo com os efeitos

computadorizados. Ela nasce da atuação dos atores dos seus movimentos que

capturados se tornam matéria-prima para construção da imagem virtual. Como

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113

não há composição direta e sim imagens sobrepostas ela é um efeito narrativo

porque é composto imaterialmente, virtualmente.

A partir dessa conceituação façamos uma relação de alguns filmes que

acompanham as evoluções técnicas relacionadas à maquiagem e à

caracterização de máscaras passando do concreto ao virtual.

Nos filmes do francês Georges Méliès, a máscara teatral está muito

presente e demarcada nos seus atores. Como vimos Méliès combinava “os

truques de teatro com as infinitas possibilidades da mídia cinematográfica”

(SCHNEIDER, 2008, p. 20). O filme Le Rois Du Maquillage é visionário e sintetiza,

já em 1904, imagens de como o efeito compositivo seria utilizado no cinema com o

próprio Méliès como ator, modificando seus rostos magicamente.

56

George Méliès atuava como ator

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114

Em 1910, a Edison Manufacturing Co. fez a primeira adaptação

cinematográfica de Frankenstein: uma estória de Mary Shelley, dirigido e

produzido por J. Searle Dawley. O interessante dessa versão pioneira é que o

momento mágico de transformação (ou surgimento) do monstro lembra

embrionariamente as cenas de monstros feitos por computadores. E toda a

caracterização da personagem foi feita graças a maquiagens e apliques teatrais

grotescos, lembrando o que seria no futuro o Corcunda de Notre Dame.

56

O ator Charles Ogle

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115

Os Vampiros (Lês Vampires), de Louis Feauillade, de 1915, apresenta uma

interpretação quase realista, mas ao mesmo tempo misteriosa com o auxílio da

maquiagem e da movimentação quase coreográfica39. Foi esse o filme que iniciou

o desenvolvimento do gênero thriller.

58

A atirz Musidora

Em O Gabinete do Dr. Caligari, de Robert Weine, do ano de 1919, os

efeitos estilizados, mágicos e teatrais que exageram a realidade dão o tom da

interpretação expressionista. Os atores que caracterizam os tipos chegam a criar

personagens/máscaras que se distanciam muito do real lembrando sempre ao

espectador que ele está assistindo a uma história fantástica. Ele é precursor dos

filmes de terror.

39

É nesse filme que temos a personagem Irma Vep, antes citada, a qual será referência para o espetáculo Irma Vap , enorme sucesso em São Paulo, estreou em 1991 com Marco Nanini e Ney Latorraca e direção de Marília Pêra.

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59

Cena de O Gabinete do Dr. Caligari

Todavia, em 1922, Nosferatu: Uma Sinfonia do horror, de F.W. Murnau,

cria o mais impressionante filme de terror e suspense de todos os tempos,

principalmente por causa dos efeitos compositivos utilizados. Primeira adaptação

de Drácula de Bram Stocker, o filme se destaca principalmente devido à

interpretação do ator Max Schreck (SCHNEIDER, 2008, p. 40). Aliás, Schreck

significa “medo” em alemão e, talvez por coincidência, esse ator tenha criado uma

máscara de gestos e expressões impressionantes que parecem se basear em

algo muito primitivo e grotesco40. Toda a caracterização da maquiagem e

apliques41 foi aproveitada pelo ator que deu vida a essa criatura que tem poucos

movimentos, causando uma sensação de outra dimensão para quem assiste ao

40

Não há nenhuma ligação direta, mas possivelmente o nome da animação Shrek seja uma homenagem ao ator. 41

São formas que modificam o corpo/rosto dando as características necessárias para a maquiagem. Podem alongar uma parte do corpo, como é o caso do vampiro, em que suas mãos e unhas ficam bem longas.

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filme. Esses efeitos são todos alcançados só com a movimentação e o tempo

ritmo da personagem que causam uma atmosfera de verdadeiro terror.

60

O ator Max Schreck

É claro que não poderíamos enumerar aqui os filmes que utilizam os

aparatos teatrais para construção de personagens, porém, podemos deduzir que

inicialmente tudo era desenhado a partir de estilização de figurino, cenários e

interpretações que exageravam ou caricaturizavam a realidade. Ou as histórias

eram baseadas em elementos fantásticos, filmes que causam terror com situações

extracotidianas.

Outro bom exemplo é o do ator Lon Chaney, que criava suas próprias

maquiagens, transformando seu rosto e corpo em grandes efeitos compositivos se

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118

especializando em filmes de terror. Foi um dos artistas que valorizou a maquiagem

na composição de máscaras.

61 62

London After Midnight, 1927 e O corcunda de Notre Dame, 1923.

Jack Pierce trabalhava com Lon Chaney e foi um dos maquiadores de

maior destaque na composição de máscaras com materiais diversos. Suas

criações viraram referência e influenciaram outros artistas até hoje. Compôs com

o ator Boris Karloff a famosa máscara de Frankenstein, filme de 1931. Foi ele que

deu forma ao Frankenstein que conhecemos: “criou a cabeça chata, os plugues no

pescoço, as pálpebras caídas e mãos cheias de cicatrizes (KEMP, 2011, p. 88). A

realização da maquiagem levava muitas horas, em geral desconfortáveis, muitas

vezes, inclusive, os atores sofriam devido à toxicidade dos produtos.

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119

64

Jack Pierce e Boris Karloff

Em 1933 surge pela primeira vez a máscara do gorila King Kong,

(Direção de Merian C. Cooper e Ernest B) criada por Willis H. O‟Brien, especialista

em reconstituições científicas que conseguiu idealizar as trucagens necessárias

para a mobilidade do macaco através de animação Stop-motion. Esse filme se

tornou um clássico dentro do cinema-fantástico e deu origem a outras versões

posteriores (de John Guillermin, em 1976 e Peter Jackson, em 2005).

64

Willis H. O’Brien e o boneco de King Kong

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120

Os irmãos Marx – Groucho, Harpo, Chico e Zeppo – são representantes

da comédia que se rende ao som e que usam de todos os recursos para se

adaptar às novas possibilidades. Utilizando muitas habilidades físicas que vinham

do vaudeville, somavam seus talentos à criação de tipos bem definidos e

peculiares.

Cada um tem a sua caracterização somada às gags físicas: Harpo não

tinha fala e sua comunicação era feita por instrumentos musicais, usava peruca

loira e uma cartola surrada. Chico usava um chapéu, tocava piano e era bem

histriônico. Zeppo era o galã, o enamorado do grupo. Groucho, o mais anárquico

de todos, usava a máscara do bigode, nariz adunco, óculos e charuto. O curioso é

que seu famoso bigode e sobrancelha (que até hoje é encontrado nas lojas de

carnaval da Rua 25 de março) eram feitos com maquiagem preta e não com

aplique.

65 66

Observe que o bigode e sobracelhas de Groucho Marx é pintado, ao lado os três irmãos Marx.

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A Bela e a Fera, dirigido por Jean Cocteau, em 1946, traz composições

com o uso de muita caracterização e maquiagem que já vai se deslocando para

adaptações de teatro para cinema. Ou para filmes de ficção científica.

67

Jean Marais (a fera) e Josette Day (a bela)

A tendência, que dominou a sétima arte na década de 50, era retratar

mutantes, discos voadores e invasões alienígenas. O monstro do lago era uma

criatura anfíbia, uma espécie aterrorizante de elo perdido entre seres marinhos e

terrestres. O Monstro da Lagoa Negra (1954), no auge do horror atômico no

cinema, as máscaras surgem como metáforas, quando os maiores medos se

voltavam à Guerra Fria e à ameaça de uma catástrofe nuclear.

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122

Os atores mascarados criam muitas vezes figuras marcantes, mas em

geral passam despercebidos pelo público, pois ninguém os reconhece.

68

O Dia Em Que a Terra Parou

69

Ben Chapman, o ator que interpretou a criatura O Monstro da Lagoa Negra

Page 123: a máscara digital

123

Na década de 60 a ficção científica, incentivada pela pesquisa espacial,

trouxe avanços dos efeitos compositivos, principalmente nos filmes O Planeta dos

Macacos e 2001: uma Odisseia no Espaço, ambos de 1968 (ambos serão

analisados no próximo capítulo). No filme 2001: uma Odisseia no Espaço, o diretor

Stanley Kubrick narra uma história futurista e cria uma nova espécie de filme de

ficção repleta de significados simbólicos.

O maquiador Stuart Freeborn, considerado avô da maquiagem

cinematográfica moderna, foi quem criou os seres humanos/macacos para a

sequência Aurora da humanidade no filme. Visionário, mistura estética tecnológica

e primitiva numa incrível sequência feita por bailarinos que representam macacos

e que foram tão bem caracterizados (figurino e movimento corporal), a ponto de

todos acreditarem que fossem imagens reais.

70

Stuart Freeborn com os bailarinos

Page 124: a máscara digital

124

Aliás, Kubrick é responsável por uma série de máscaras icônicas e

interpretações marcantes. A atmosfera da violência é criada com a expressividade

facial e não era composta por quase nenhum aplique, só pequenos detalhes como

um cílios postiço no olho, “sobre o olhar friamente malévolo de sua vítima herói,

Kubrick ao mesmo tempo estabelece o contato olho-a-olho com Alex que ele

incessantemente mantém durante todo o filme” (WALKER, 1999).

Figs. 71 e 72 Malcolm McDowell em Laranja Mecânica e Jack Nicholson em O Iluminado

A máscara trágica de Pier Paolo Pasolini em Medea se apoia na origem

do teatro para redescobrir a máscara trágica no cinema. Ela é composta por

maquiagem e acessórios que, junto com os gestos, compõem signos que retratam

o período da tragédia grega.

Page 125: a máscara digital

125

73

Medea com Maria Callas

Duas composições de máscaras com o mesmo tema: Joana D‟Arc. A

Paixão de Joana D’Arc, direção de Carl T. Dreyer, de 1928, se forma a partir de

amplas expressões dramáticas. Já a Joana D’Arc, de 1962, parece que procura

uma não máscara. O diretor Robert Bresson cria uma estética mais limpa e um

estilo minimalista.

Page 126: a máscara digital

126

Figs. 74 e 75 Joana D‟Arc feita pelas atrizes Falconetti e Florence Delay

Depois de 2001: Uma Odisseia No Espaço, o maquiador Stuart

Freeborn ficou ainda mais reconhecido por seu trabalho na trilogia original Star

Wars, 1977, foi ele o criador da máscara do famoso personagem alienígena

Mestre Yoda. Fez também Superman, 1978.

Figs. 76, 77 e 78 Personagens de Star Wars e o ator Christopher Reeve

O efeito compositivo é feito de maneira artesanal, ou seja, não dispõe

de nenhuma tecnologia que modifique o corpo dos atores. Quando Star Wars foi

feito, os robôs eram “vestidos” por atores, ou seja, a imagem era futurista, mas a

realização ainda era bem concreta e exigia dos atores/manipuladores muito

Page 127: a máscara digital

127

sacrifício e paciência na composição. Como exemplo o ator /anão Kevin Baker que

manipulou o robô R2D2 em todas as versões da saga.

Figs.79 e 80 O ator Kevin Baker

Em Tron, 1982, Lucena nos diz “podemos verificar uma fraude

tecnológica, em nome da expressão, na “modelagem” dos guerreiros de vídeo

game – atores reais tiveram seus corpos envolvidos por malhas de fios

fosforescentes vermelhos adicionados através de método óptico tradicional – não

havia ainda tecnologia e a animação exigiria demais em termos de

processamentos.” Então a ilusão era feita “teatralmente”.

O Coringa, do ator Heath Ledger, em Batman – O cavaleiro das trevas

(direção de Christopher Nolan) é um bom exemplo de transformação do ator com

efeito compositivo. Mesmo sendo feito em 2008, quando já era possível criar

máscara com efeitos narrativos.

Page 128: a máscara digital

128

81

Heath Ledger interpreta o Coringa em O cavaleiro das trevas, de 2008

Para exemplificar essa diferença de efeito compositivo/narrativo temos

dois atores de épocas distintas, que vêm, contudo, da mesma tradição de

formação do teatro inglês, mas desenvolvem metodologias diferentes para a

construção de máscara. O ator Lawrence Olivier desenvolveu personagens nos

anos 50 a partir de efeitos compositivos. Dizia que o primeiro passo para a

caracterização de qualquer personagem era visualizar a aparência física. Então

adicionava uma peruca, um nariz falso ou outra composição elaborada mesmo

quando não havia necessidade, dizia que precisava dos acessórios para dar

verdade ao personagem.

Page 129: a máscara digital

129

82 Lawrence Olivier em Ricardo III, 1955.

O outro ator é Ralph Fiennes, que interpreta a personagem Voldemort

na série de filmes Harry Potter (2001- 2011) e que tem a sua transformação quase

toda feita por computação gráfica. Sua personagem tem um aspecto monstruoso

como se estive em formação embrionária e essa imagem é dada principalmente

devido à ausência do nariz no rosto. A remoção do nariz da personagem só

acontece no tratamento final da imagem. Essa máscara é quase toda feita de

efeito narrativo aplicado na pós-produção. Por isso o trabalho do ator é imaginar

esse rosto e desenhar a movimentação a partir dessa sugestão.

83

Captadores vão gerar o efeito para criar a máscara de Voldemort sem nariz.

Page 130: a máscara digital

130

Então entramos na era das criações artísticas de seres humanos digitais. O

efeito narrativo se estabelece quando muitos detalhes da máscara passam a ser

aplicados após a captura da atuação do ator. Esse sistema de Captação de

Interpretação cria definitivamente o efeito narrativo da máscara. Toda

movimentação e expressão facial que são criadas pelos atores são emprestadas e

transformadas em personagens. A partir dessa técnica, os movimentos de um ator

e expressões são eletronicamente controlados e traduzidos em imagens geradas

por computador (CGI) para trazer um personagem de filme para a vida.

Como já vimos, Gollum, do filme O senhor dos Anéis, foi o primeiro

personagem todo capturado em Motion capture (MoCap) dando origem à máscara

virtual pelo ator britânico Andy Serkis. Na época de lançamento do filme quase

ninguém sabia quem era o ator que delineou a personagem e só nos últimos anos

com a divulgação desta técnica que o público conheceu seu criador.

84 85

Gollum e o ator Andy Serkis

Page 131: a máscara digital

131

Do filme Beowulf, direção de Robert Zemeckis (2007) para Avatar, de

James Cameron, em 2009, a tecnologia de captura de movimento percorre um

longo caminho. Num ambiente de galpões sem cenários e com formas que

“marcam” os objetos reais assim são criados os personagens e a atmosfera de

Avatar. Esse ambiente de filmagem é chamado de “Teatro Virtual” pelos técnicos

de efeitos visuais. Para construção das cenas o galpão fica semelhante ao local

de ensaio de teatro - o figurino e máscaras todos são imaginados pelos atores.

Figs. 86 e 87 Atores de AVATAR e suas roupas de MoCap gravando no Galpão

Page 132: a máscara digital

132

88

A atriz Zoe Saldanha e sua máscara Neytiri, a princesa do mundo Na'vi

2.3.1 Antecedentes da Captura de Movimento (MoCap)

Os fatos significativos que levaram a animação e a tecnologia Motion

Capture a transformar a performance do ator em matéria prima para modelo de

máscaras tridimensionais criadas no computador tem início no estudo do

movimento dos antigos gregos que foram os primeiros a deixaram um registro de

investigação sobre a análise do movimento humano.

Aristóteles (384-322 a C) pode ser considerado o primeiro biomecânico. Ele

escreveu o livro chamado "De Motu Animalium” sobre o movimento dos animais.

Ele não observou apenas corpos de animais, como os sistemas mecânicos, mas

pensou questões como a diferença fisiológica entre imaginar, realizar uma ação e

realmente fazê-lo.

Page 133: a máscara digital

133

Escultores como Michelangelo (1475-1574) e Leonardo da Vinci (1452-

1519) pensaram em sistemas biomecânicos e os aplicaram a seus trabalhos

estéticos. Galileu Galilei (1564-1643), cem anos mais tarde, fez as primeiras

tentativas de analisar matematicamente a função fisiológica. Com base no

trabalho de Galilei, Borelli (1608-1679) descobriu as forças necessárias para o

equilíbrio em várias articulações do corpo humano bem antes de Newton publicar

as leis do movimento. O trabalho precoce desses pioneiros da biomecânica foi

seguido por Newton (1642-1727), Bernoulli (1700-1782), Euler (1707-1783),

Poiseuille (1799-1869), Young (1773-1829), e outros de fama igual42. Os estudos

de movimento eram realizados não só para fins científicos, mas também com

finalidade estética na pintura, escultura, na arte de espetáculos (teatro, dança,

circo).

Mas foi na mudança para o século XX, com a invenção da fotografia que o

registro da imagem capturada trouxe base para o aperfeiçoamento científico e o

início da performance virtual. Muybridge (1830-1904) foi o primeiro fotógrafo a

dissecar o movimento humano e animal.

42

The fascination MoCap, disponível no site: <http://www.xsens.com/en/company-pages/company/human-mocap>.

Page 134: a máscara digital

134

89

Sequência colocar a cadeira, sentar e ler.

Essa técnica influenciou o fisiologista Ettiene Jules Marey (1830-1904),

que em 1882 desenvolveu um método que ele chamou de chrono or time

photography e assim foi pioneiro na análise do movimento e inspirou muitos

artistas ao longo do século. Ele criou um macacão com marcadores que gerava

informações muito semelhantes ao da captura de movimentos atuais.

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135

90 Traje com marcações de captura desenvolvido por Marey em 1884.

No início do século XX houve uma transferência da tecnologia dos

pesquisadores científicos para os artistas de cinema, teatro, artes plásticas.

Muitos pesquisadores estiveram envolvidos no estudo do movimento biomecânico

e aplicavam esses estudos em suas respectivas áreas procurando entender o

movimento do homem. August Rodin (1840-1917) escultor que buscava o

movimento, Marcel Duchamp (1882-1968) evoca a dinâmica do movimento numa

sequência de posições de um personagem descendo a escada. No teatro Jacques

Copeau (1879-1949) funda uma escola de atores inovadora que buscava a

expressão do ator pelo estudo do movimento, o ator Meierhold desenvolve um

estudo chamado de Biomecânica que decupava as ações físicas, Gordon Craig

(1872-1966) desenvolve a teoria do ator-marionete, como um boneco a serviço da

arte.

A efervescência das mudanças tecnológicas ao longo do século XX

mostra que a ideia de manipular o corpo aplicada à performance sempre existiu.

Page 136: a máscara digital

136

91

Exercícios de Biomecânica do Russo Meierhold

Então observamos que o uso de captura de movimentos para animação de

computador ou aplicativos de realidade virtual (RV) é relativamente novo. Mas a

ideia de copiar o movimento humano, para caracteres animados naturalmente,

não é nova e, como vimos, havia um interesse nesse sentido por várias áreas

distintas.

Para obter movimento convincente para os personagens humanos em

Branca de Neve (1936), Peter Pan, Cinderela, os estúdios Disney criaram

animações sobre filmagens de atores ao vivo “performando” o movimento das

cenas.

Page 137: a máscara digital

137

92

Atores em ação como modelos de movimento

Esse método, chamado Rotoscopia (rotoscoping), foi muito utilizado

para os caracteres humanos na animação. As “imagens são utilizadas como

referência para os animadores para ajudá-los a visualizar as cenas, posturas e

movimentos para desenhar” 43.

Em 1945, no filme Marujos do Amor44,o ator Gene Kelly entrou para a

história do cinema como a primeira dança com um personagem animado, o rato

Jerry.

43

Consulta feita no site: On The Trendy Road, disponível em: <http://onthetrendyroad.com/2013/04/page/2/> 44

Diretor George Sidney

Page 138: a máscara digital

138

93

Unidos animação e dança no cinema com o ator Gene Kelly

Outro efeito especial, que vem antes do advento de qualquer efeito por

computador, foi a animação dimensional que começa com Georges Méliès. Em

1896, ele descobriu, completamente por acaso, quando ele estava filmando uma

cena de rua para seu filme Place de l'Opera, que se a câmera parou enquanto

pessoas e veículos foram passando, uma coisa poderia substituir a outra. Seu

nome para o 'truque' foi 'Stop-ação ", que agora é chamado de Stop-motion45.

Ray Harryhausen e Willis O‟Brien trabalharam na década de 1950, 60 e

70, como pioneiros na animação dimensional e descobriram como poderiam criar

ilusão permitindo que um modelo fosse inserido diretamente na ação e parecesse

interagir com os atores.

45

Informações do site de Ray Harryhausen, disponível em: < http://www.rayharryhausen.com/pre-dynamation.php>

Page 139: a máscara digital

139

94

Jasão e o Velocino de Ouro, direção de Don Chaffey, 1963

Até então os efeitos especiais eram construídos paulatinamente com

muito trabalho braçal utilizando massinha, recortes quadro a quadro de maneira

bem manual exatamente como a composição dos atores e suas máscaras. Mas foi

depois de Star Wars, 1977, que houve a grande mudança ”os profissionais de

feitos especiais se tornaram homens sentados à mesa, trabalhando em

computadores, manipulando pixels e não massinhas”(KEMP, 2011, p. 484).

95

Cartaz de Star Wars

Page 140: a máscara digital

140

Então os truques feitos com maquiagem e bonecos passaram a ser

feitos por computadores. Mas é somente nos anos 80 que a indústria de imagens

geradas por computador (CGI - do inglês computer-generated imagery) descobre

como criar uma robô computadorizada com mais realismo, num filme comercial

chamado Brilliance.

Veremos com mais detalhes, no próximo capítulo, os desdobramentos

desse novo momento.

Page 141: a máscara digital

141

CAPÍTULO 3 - A MÁSCARA DO ATOR DIGITALIZADA

Esse início do século XXI lembra um pouco o início do século XX quando

houve um anúncio sobre o fim do teatro por causa do aparecimento do cinema.

Hoje também é recorrente outro anúncio: o da morte do ator no cinema. O teatro,

no entanto, sobreviveu entre as discussões dos modernos e dos antigos que

falavam da divisão entre cinema e teatro - “Não há possibilidade de união entre

teatro e cinematógrafo sem o extermínio de ambos” (BRESSON, 2005, p. 15). No

entanto a história do século XX mostra que as relações entre cinema e teatro

foram inúmeras: repulsão, interação, trocas efetivas e hibridismo sem que com

isso ambos sucumbissem. Pelo contrário, se o teatro trouxe a teatralidade que

evoluiu com seus signos e sensações, o cinema melhorou o olhar do público,

refinando os progressos da iluminação, das tecnologias, do som da imagem e,

apesar de serem concorrentes, cada um sempre teve o seu público.

Contudo hoje, no século XXI, o ator de cinema (e sua perfomance) se

encontra num paradigma onde a representação se vê diante das trucagens

audiovisuais de seus clones, num século que se inicia em “crise na relação da

imagem com a verdade” (VALLIN, 2008, p. 156).

De que maneira se dá a perfomance do ator em relação às tecnologias que

se tornaram realidades? Uma nova cultura que modifica a fronteira entre o filme

analógico e o filme digitalizado surge: a criação de atores em modelo virtual. A

captura de movimento (MoCap) é uma tecnologia que vem evoluindo desde os

primeiros dias na animação de personagens, mas hoje ocupa um espaço cada vez

Page 142: a máscara digital

142

maior, envolve uma grande equipe e todo o tempo na pós-produção do filme muito

mais do que o tempo da própria filmagem.

Os recentes avanços na tecnologia têm levado ao desenvolvimento de

muitas personagens virtuais concebidos para o cinema e jogos de vídeo. Assim,

os filmes atuais tendem a ocorrer em um ambiente que sugere algo muito realista,

mas na verdade tudo foi criado virtualmente.

As novas ferramentas digitais permitem a representação de tal modo

realista que ajudam a criar a ilusão cinematográfica totalmente virtual. Como ficam

as atuações dos atores, os movimentos e as ações capturadas por Motion

Capture? São creditados ao ator mesmo não aparecendo sua imagem real? Como

passamos a entender sua atuação se não corresponde à imagem do produto final

dos filmes? Em que lugar fica a sua perfomance com relação à projeção do seu

movimento no MoCap? Como avaliar a perfomance/máscara que foi criada por ele

e está representada na primeira camada da montagem do filme?

3.1. A MÁSCARA46 EM CAMADAS

Como vimos, desde a invenção do cinema os atores contracenam muitas

vezes com objetos ou personagens que não existem. Aliás, a criação da ilusão

sempre foi a matéria principal da atuação de um ator. Ele constrói a atmosfera

simbólica a partir da imaginação criativa e no jogo da cena ele imprime a verdade

46

Lembrando que o conceito de Máscara não está limitado apenas ao rosto, está relacionado, sobretudo, à aparência global, ao conjunto de expressão corporal (corpo e voz) do ator.

Page 143: a máscara digital

143

cênica47. Principalmente no teatro o ator cria jogos lúdicos que não necessitam de

objetos ou cenários para o espectador entender a ação dramática. O ator é

compositor desses códigos e muitas vezes são “fisicalizados” e entendidos pelo

público. Como no jogo dramático infantil, a criança entra em vários mundos

imaginários e volta à realidade sem nada para fazer a transição, fazendo uso

somente de sua fé inabalável. Simplesmente é sereia e está no mar e, logo em

seguida, está de volta a sua casa para almoçar. Entrar e sair do jogo lúdico esta é

a matéria do ator.

Ocorre que no cinema isso se dá de maneira diferente, a perfomance do

ator se transforma em imagem e é essa imagem é a narrativa.

A peculiaridade do ofício do ator no cinema é que na filmagem o fio

condutor das personagens não se dá de maneira contínua, linear. A construção da

personagem para o ator é feita como uma colcha de retalhos, um patchwork. É na

montagem e na pós-produção que toda a perfomance vai ter continuidade

narrativa. Essa fragmentação modifica totalmente a metodologia de trabalho do

ator, pois não é ele quem determina a sequência das imagens e

consequentemente da perfomance. Os atores que trabalham na experiência

cinematográfica têm que adaptar a sua metodologia de construção de

personagem, ou seja, desenvolver uma capacidade sensorial e técnica para criar

um sentido interno de ação continua da própria perfomance. Ele tem que criar a

47

O termo “verdade cênica” foi introduzido pelo diretor russo Konstantin Stanislavski no vocabulário teatral e, desta maneira, influenciou e polemizou toda uma série de pesquisas em busca dessa qualidade. O ator tem que se transformar na personagem e fazer com que o público acredite nessa verdade.

Page 144: a máscara digital

144

sua máscara a partir de estímulos que foram dados pelo roteiro, diretor e equipe

entregando o material da sua atuação nas mãos da pós-produção.

E não há como controlar o trabalho da filmagem e muito menos o da

imagem construída pelo ator, pois essa imagem vai ser retrabalhada em várias

instâncias. Por isso a perfomance criada indiretamente para o público vai ser

intermediada por muitas máquinas além da câmera. O material registrado do ator

é transformado na narrativa.

Inicialmente no cinema a caracterização da personagem pertencia ao

roteirista, diretor, ator e uma equipe de figurinistas, maquiador, dublês que

discutiam sua aparência, seu figurino, sua movimentação e a composição de

acordo com o tema da obra e era feita na maior parte ainda num ambiente

concreto. O diretor e seus assistentes estavam nos locais da locação, nos sets de

filmagens e acompanhavam a montagem da criação das personagens orientando

os atores. Até as últimas décadas do século XX havia certa fragmentação do

trabalho do ator, mas as sequências das cenas que não eram “editadas”

permaneciam com sua consistência dramática quase intacta.

Com a utilização cada vez maior da computação gráfica a fragmentação

das imagens começa a aumentar e por consequência a representação dos atores

perde importância porque a sua teatralidade não é aproveitada integralmente, mas

em pedaços. A perfomance do ator passa por um processo de diluição em relação

aos outros elementos cinematográficos. Sua cena cada vez mais tem a mesma

importância que a luz, a música, a montagem etc. A decupagem da imagem dilui a

importância do ator, ele já não é mais o centro das atenções e sim um elemento

como qualquer outro.

Page 145: a máscara digital

145

Com o uso da tecnologia da captura de interpretação hoje, a fragmentação

não está só na edição das cenas, mas na própria teatralidade da cena. Ocorre

uma inversão e tudo que era feito concretamente é manipulado digitalmente por

meio de ferramentas de sofisticados softwares. Cada vez mais os diretores não

acompanham os atores ao vivo e sim por meio de monitores fora do ambiente da

locação.

Desde Georges Méliès, pai do cinema de efeito48 (trickfilms) que os atores

se veem envolvidos com a necessidade de criar a partir do nada, contracenar com

o vazio. Com a criação do chroma key que é a combinação de dois fragmentos de

imagem com origens distintas, os atores tiveram que desenvolver métodos

próprios para contracenar com elementos que na hora da cena não estão, mas

vão ser inseridos a posteriori na montagem. Os filmes em live-action49 também

foram evoluindo com o tempo. O primeiro filme a ter atores reais contracenando

com desenhos animados foi Alô Amigos50, da Disney que teve sua première em

1942, no Rio de janeiro. E em seguida, em 1945, o filme Marujos do Amor51 que,

como vimos, misturava na tela Gene Kelly e o rato da série animada Tom e Jerry

e, mais uma vez em 1953, Esther Williams faz parceria com mesmo Tom e Jerry

em Salve a Campeã. Os estúdios da Disney produziram A Canção do Sul 52(1946)

e Mary Poppins (1964).

48

BARBOSA JUNIOR, 2001 p. 83. 49

Filme em live-action /animação é um filme que apresenta uma combinação de atores reais e elementos criados por meio de animação, interagindo normalmente. Fonte: Wikipédia. 50

Saludos Amigos 51

Anchors Aweight, 1945. 52

Song of the South, EUA, 1946.

Page 146: a máscara digital

146

96

Canção do Sul

Uma Cilada para Roger Rabbit, de 1988, foi o filme de interação de atores

reais com desenhos animados que deu “um passo a frente e trouxe a interação

entre humanos e desenhos que, embora não tenha sido novidade, subiu o nível

das produções e expectativas do público: os desenhos foram coloridos de forma

mais dark para torná-los mais tridimensionais, e os humanos tiveram suas

imagens mais saturadas, e ficaram mais bidimensionais. Assim, a linha que

separa os dois mundos ficou menos óbvia, e suas interações mais realistas”53.

53

Disponível em: <http://criticosbotequim.wordpress.com/2010/11/11/uma-cilada-para-roger-rabbit/>

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147

97

Uma Cilada para Roger Rabbit dirigido por Robert Zemeckis

A questão é: como trabalharam esses atores? Quais as dificuldades de

atuar quase sempre sem réplica real? Os atores ao longo dos anos foram

percebendo a nova realidade sobre os verdadeiros astros dos filmes, os quais não

eram eles próprios, mas outros elementos, tais como a edição e sequência

escolhida pelo diretor, os efeitos especiais, a animação com elementos

sobrepostos. Do mesmo modo a postura dos diretores foi se modificando, já que a

direção sempre fora próxima ao ator, indicando as marcações e atmosfera da

cena dadas diretamente no set de filmagem. Hoje, contudo, os diretores quase

sempre dirigem de frente para o monitor e muitas vezes não encontram o ator,

criando uma distância sem ter contato direto com a perfomance física da atuação.

Com o aumento da quantidade de imagens, a fragmentação das cenas é enorme:

o que o diretor vê vai sendo modificada pela equipe de efeitos especiais e o

Page 148: a máscara digital

148

número de monitores também aumenta na medida em que se sobrepõem outras

camadas de máscaras.

98

James Cameron e os Monitores em Avatar, 2009.

Certamente, podemos compreender que, em todos esses filmes que

utilizam composições por computador ou a técnica de Movimento Capturado

(MoCap) e que desenvolvem a relação ator real e imagem desenhada, a postura

dos atores precisa ser de experimentação. A construção do ator é ajustada aos

equipamentos, de maneira empírica, ele, portanto, precisa se adaptar à situação,

confiando na ideia dos diretores e da equipe, pois não há ainda uma metodologia

que direcione a atuação ao resultado da máscara virtual.

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149

3.2. MoCap - A Desmaterialização da Máscara

A captura de movimento (MoCap), assim como a computação gráfica, foi muito

impulsionada pela indústria cinematográfica norte-americana que consegue forçar

o limite tecnológico ao máximo em prol das suas produções de cinema. Como diz

Lucena:

os norte-americanos já detinham a supremacia do entretenimento, eram o maior mercado consumidor e comandavam o desenvolvimento da tecnologia digital. Como os estúdios de animação não davam conta de ocupar o campo do cinema de fantasia, cineastas de filme ao vivo, como Steven Spielberg e George Lucas (professadamente amantes da animação que se dizem influenciados por esse meio), passam a dominar essa vertente cinematográfica, com exigência crescente por efeitos especiais convincentes (BARBOSA JUNIOR, 2001, p.323)

Apesar da técnica de Movimento Capturado ser desenvolvida inicialmente para

aplicações em medicina e estudos de ortopedia, ela se tornou atraente para a

indústria cinematográfica e, nos anos 80, George Lucas (ILM54) já possuía uma

técnica de captura que fazia o básico abrir e fechar de mãos.

Em Enigma da Pirâmide (1985) foi criada uma história para contextualizar a

tecnologia que eles queriam experimentar na tela. Em O Exterminador do Futuro 2

(1991), o androide, com sua forma líquida, representou um avanço um tanto maior

para a época no que diz respeito à textura: embora a pele humana perfeita ainda

não fosse produzida por meios artificiais, a sensação visual do líquido já era

54

Industrial Light & Magic.

Page 150: a máscara digital

150

possível. No entanto, no ano seguinte já foi possível uma boa cópia da pele por

computador no filme A Morte Lhe Cai Bem, e conseguir uma boa sensação de

textura de pêlo foi alcançado pouco tempo depois com o filme Jumanji (1995).

A marca dos anos 80/90, na indústria cinematográfica norte-americana recaiu

sobre a busca de movimentos realistas e texturas. Assim, um outro marco dessa

pesquisa foi Jurassic Park (1993), que conseguiu texturas mais reais para os

dinossauros.

As divisões das etapas de avanços tecnológicos não são muito claras, elas se

misturam nas muitas produções simultâneas do período. Por isso criamos uma

tipologia para facilitar um histórico do avanço tecnológico dividindo a captura de

movimentos em várias fases possíveis de distinção:

1. A leitura do movimento: buscar uma leitura precisa do movimento

que criasse uma ideia de realismo, aplicando as leis da gravidade e da

física.

2. Passar o objeto realista para um objeto tridimensional era o

desafio. Como anexar o movimento criado no computador junto com o

movimento realista? Por exemplo, reproduzir a mão de uma pessoa

tridimensional por Stop Motion55 ou uma leitura de uma mão real. A questão

era que a mão real não se movia simetricamente: um dedo desce e depois

puxa o outro e todos se movem por assimetria (movimentos biomecânicos).

55

Stop Motion (que poderia ser traduzido como “movimento parado”) é uma técnica que utiliza a disposição sequencial de fotografias diferentes de um mesmo objeto inanimado para simular o seu movimento. Fonte: Site <www.tecmundo.com.br>

Page 151: a máscara digital

151

O 3D já podia simular isso quadro a quadro, mas o grande desafio era

como colocar os pontos da mão equivalentes no computador. Quais eram

os pontos que equivaleriam na maquete 3D? Essas questões acontecem

nos anos 80/90.

3. Depois veio o desenvolvimento da textura que buscava a mesma

sensação ótica de ver pêlos, tecidos, elementos da natureza e, finalmente,

pele. E como tornar isso real.

4. A busca da Aplicação com precisão do movimento real.

O 3D caminha junto com o Motion Capture quanto à evolução de

textura, de mobilidade, de realismo. E quando surge o interesse em detalhar o

rosto humano e suas expressões, percebeu-se que a face em 3D tinha várias

falhas. Os olhos não tinham vida e a boca não tinha profundidade (sua aparência

era quase a de uma dentadura), ou seja, faltava-lhe elasticidade. No final dos anos

90, os técnicos tinham um paradigma de como fazer uma boca realista. A

perspectiva na época era que demorariam 10 anos para que houvesse melhoras

nessa tecnologia, mas a realidade é que em três anos, depois de 2000, a questão

da expressão da boca já fora resolvida. Os olhos, contudo, foram mais difíceis que

a boca, isso porque um dos elementos de maior realismo, que revela emoção é,

principalmente, o olhar. O olhar é de difícil tradução, dado que a expressão dos

olhos pode dizer muito. Em uma máscara real a única parte não fixa do ator são

os olhos. Porque não é só o olho físico que gera expressão, é o “olhar” que

compreende sensações internas e, como diz o ditado, “o olho revela a alma”,

muitas vezes.

Page 152: a máscara digital

152

A questão do olhar só foi resolvida recentemente a partir do filme Avatar,

filme que se configura com o divisor de águas nesse cinema, porque traz pela

primeira vez “um equipamento especial na cabeça, semelhante a um capacete de

futebol americano, no qual era afixada uma minúscula câmera. O aparelho ficava

voltado para o rosto do ator, e a câmera filmava as expressões faciais e os

movimentos dos músculos num nível que jamais havia sido possível. E o mais

importante é que a câmera filmava o movimento dos olhos, o que não ocorria nos

sistemas anteriores”56.

A partir desse filme os ajustes foram evoluindo rapidamente e se

sofisticaram a cada nova produção como o Planeta dos Macacos – a Origem (Rise

of the Planet of the Apes) (2011), Tintin (2012), Hobbit (2012).

A partir do momento em que a tecnologia consegue desenvolver o

movimento da boca bem próximo do real e reproduzir o olhar humano de forma

convincente o modelo virtual começa a se tornar competitivo em relação à

interpretação real. Aqui começamos a ter a separação do corpo real do ator e a

sua máscara para um movimento doado para o espaço virtual.

Durante esta pesquisa observamos que isso é só a “ponta do iceberg”.

Percebemos que a partir do momento em que o ator se transforma em modelo

virtual já é possível, por exemplo, ver artistas que faleceram, sendo reconstruídos

virtualmente, pois os modelos virtuais podem automatizar características das

56

Extraído de <http://pipocamoderna.com.br/conheca-a-tecnologia-inovadora-de-avatar/11089>

Page 153: a máscara digital

153

pessoas reais criando um “banco de dados” de movimentação e os dados serem

aplicados para uma “reconstrução” da imagem57.

Atualmente quando falamos em modelo real e virtual no esquema de Motion

Capture, o modelo virtual é mérito da perfomance do ator, pois temos uma

fidelidade da expressão e dos movimentos que são capturados e que recebem

interferência em camadas do programador. Em geral, a captura de movimentos é

utilizada para isso: captura a interpretação, o olhar, a mecânica do movimento, e

cria texturas, uma semelhança de real que é projetada no boneco virtual. Não é

mais um humanóide formado pelo computador. Mas ainda não está claro se com

um grande banco de dados será possível no futuro prescindir do ator.

O trabalho do ator é avaliado quando falamos da interpretação da

personagem feita por MoCap, como por exemplo, no caso do filme Planeta dos

Macacos – a Origem, em que o macaco foi totalmente criado através de MoCap

pelo ator Andy Serkis (voltaremos a esse assunto mais adiante), que já tinha

interpretado um gorila com captura de interpretação no filme King Kong no ano de

2005. Então o ator, apesar de não ter a sua imagem real na tela, pode receber os

créditos pela perfomance captada. Essa perfomance virtual, de certa forma,

mantém a sua primeira “camada” de realidade. De tal modo que transparece o

trabalho do ator.

Mas e quando houver um grande armazenamento e sistematização

catalogados das perfomances dos atores? Quando for possível programar a

representação por composição digital?

57

O rapper norte-americano Tupac Shakur, morto em 1996, apareceu em um show de outro rapper Snoop Dogg em forma de holograma “muito realista”. A apresentação ocorreu em 15/04/2012. Fonte: site <www.tecmundo.com.br.>

Page 154: a máscara digital

154

Se fizermos um paralelo com a voz, hoje já existem programas de fala58 que a

processam de tal maneira que se aplicam a ela outras texturas sonoras, tornando-

a uma voz diferente da original. Sabemos que existem cantores que não têm uma

grande voz, mas é possível “melhorá-la” no estúdio de gravação. O mesmo

fenômeno pode ser uma tendência da interpretação virtual: suponhamos que um

ator, cuja perfomance não seja tão convincente, fale um texto qualquer sem muita

expressão. O modelo 3D incorpora as características do ator e coloca, por

exemplo, o ator Marlon Brando falando esse mesmo texto. “É possível

transformar um impulso simples em um impulso mais elaborado. No computador

quando se faz um desenho, uma linha um pouco torta num programa como flash

ou corel draw59, o programa tem a capacidade de corrigir a linha, ele pode fazer

uma linha mais suave, a pessoa não sabe fazer a linha reta e suave, mas o

computador pode melhorar o desenho. Essa é uma característica possível de ser

colocada em softwares, isso poderá acontecer também com a interpretação a

partir do momento em que ela se torna programável?” 60

Estamos numa fase de captura de interpretação que é totalmente

dependente do ator. Se o ator não criar a cena, não teremos uma imagem tão

próxima ao realismo. Seu olhar, sua movimentação, sua relação com a câmera

não será captada e desenvolvida para o filme. Mas qual será o futuro do MoCap?

Talvez criar um modelo de ator virtual que tenha características próprias e que

58

<http://alice.pandorabots.com/> - (chatbot de chat, conversa, e bot, robô), um programa de inteligência artificial criado para simular uma conversa em linguagem natural. 59

Programas que possibilitam a criação e a manipulação de vários produtos como, por exemplo: desenhos artísticos, publicitários, logotipos, capas de revistas, livros, CDs, imagens de objetos para aplicação nas páginas de Internet (botões, ícones, animações gráficas etc.) confecção de cartazes, etc. Fonte: Wikipédia. 60

Questões feitas a partir do depoimento do Prof. Claudio Yutaka do Curso de RTV da Universidade Anhembi Morumbi, 2013.

Page 155: a máscara digital

155

possa ser aplicado a qualquer pessoa. Podemos aplicar uma interpretação

qualquer, talvez inexpressiva em um modelo tridimensional com as características

já captadas de um ator virtual? Aqui teremos um paradigma da interpretação essa

mistura pode ser considerada ou não uma interpretação?

Não parece ainda possível que a computação consiga conter o lado

invisível da interpretação humana que não é programável, não é elaborada a partir

de fórmulas cartesianas. O ator elabora seu personagem com muita pesquisa,

observação da vida, método de interpretação, mas também com o imponderável e

com a criação a partir do caos criativo da desconstrução/construção.

Nota-se nos making of das filmagens que os atores que interpretam em

MoCap criam seus personagens através de pesquisas de observação, técnicas de

interpretação, construção de máscaras e “insights performáticos, ou seja, impulsos

de movimentação inesperados que surpreendem a quem assiste e até ao próprio

ator”61. Quando usamos a palavra criação do papel está implícito que o ator vai

compor seu personagem somando todos esses elementos. Mesmo com grande

tecnologia é muito difícil conseguir simular todas as características da

interpretação de um ator.

Qual é a origem de uma emoção? A interpretação não é só voz, olhar

expressão corporal, são todos esses componentes juntos. E a computação não

consegue simular a experiência do ator, suas referências e a emoção com todo o

seu significado e colocar num modelo 3D; o computador copia as coisas,

memoriza, mas não cria perfomance. Talvez os personagens que atuam como

61

Fala da atriz Glenn Close apud WESTON1996, p.86.

Page 156: a máscara digital

156

figuração, personagens flat62 ou complemento de cenas possam ser substituídos

totalmente, como já acontecem em inúmeras produções63. O computador não

consegue construir personagens, ele pode fazer o que está programado. Existe

grande diferença entre o que é interpretação do ator e o que seria uma simulação

da interpretação por computador.

Mas qual seria a vantagem do homem em querer virtualizar a

perfomance totalmente? Por que virtualizar tanto a ponto de querer que a

computação construa as personagens ou perfomances dos filmes sem

interferência da ação física? E entramos na questão da necessidade da arte e da

ilusão para o homem. No livro The Making of Avatar, Cameron comenta: “Os

atores me perguntaram se estávamos tentando substituí-los. Ao contrário,

estamos tentando dar a eles mais poderes, novos métodos de expressão para

criar personagens, sem limitações. Não quero substituir atores, adoro trabalhar

com eles. Isso é o que eu faço como diretor. O que estamos tentando é substituir

as cinco horas na cadeira de maquiagem, que é como se criam personagens

como extraterrestres, lobisomens, bruxas, demônios etc. Agora você pode ser

quem ou o quê quiser, ter qualquer idade, até mudar de sexo, sem o tempo e o

desconforto da maquiagem complicada”64 (DUNCAN, 2010, p. 140).

Hoje ainda não compensa, para as produções cinematográficas, a

realização de toda a interpretação virtualmente, o ator real tem um custo menor e

62

Personagem plana (flat character) Segundo E. M. Forster, a personagem plana é construída em torno de uma única ideia ou qualidade. Sem profundidade psicológica. FORSTER, E. M 1927. 63

Em várias séries de TV já existem os personagens reais e os personagens 3D, como no caso de Walking Dead, cujos zumbis são feitos por computador com padrão de movimento realista. Estão em segundo plano e não conduzem a estória, seu padrão vocal é programado. 64

DUNCAN, Jody.The Making of Avatar. New York : Abrams, 2010, p.140.

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157

é mais prático. Sendo assim, o MoCap é utilizado em situações especificas como

no caso de personagens fantásticos, de grande número de personagens

figurantes ou na filmagem de personagens animais. Mas e quando o MoCap for

aplicado em personagens que vivem em universos cotidianos contracenado com

atores reais? Será que o conceito deste personagem aplicado ao trabalho do ator

tem a mesma intenção na representação?

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158

3.3. EXEMPLO DE TRANSIÇÃO DO EFEITO COMPOSITIVO PARA O EFEITO

NARRATIVO

O objeto escolhido para a observação de refilmagem com transição

tecnológica do trabalho de composição dos atores, em que o efeito compositivo foi

sendo substituído pelo efeito narrativo será aqui visto na trajetória da máscara dos

atores na saga Planeta dos Macacos. Este filme e suas continuações representam

o exemplo completo de transposição do concreto ao virtual. Principalmente porque

o último filme lançado em 2011 cria o primeiro protagonista macaco feito

totalmente em MoCap e sua narrativa se passa em uma situação cotidiana, numa

cidade comum, com pessoas comuns e não num ambiente fantástico.

A primeira versão desse filme foi realizada em 1968 e se seguiu por várias

décadas chegando até 2011 e, até o final dessa dissertação, estará ainda em

andamento uma próxima filmagem, com estreia prevista para 2014, quando

provavelmente os avanços tecnológicos já terão superado os de hoje.

Aqui nosso olhar se refere à construção da máscara do ator e de sua

participação na composição do filme ao longo desses anos, acompanhando a

transição dessa máscara do sistema analógico para o digital. Consequentemente

o intuito é estudar a presença do ator, sua imagem real e de que maneira a

personagem se constitui no modelo virtual.

O primeiro filme da série mencionada, de 1968, O Planeta dos Macacos

(Planet of the Apes) é classificado como ficção científica65. Foi dirigido por Franklin

65

Antes, um gênero quase exclusivo do cinema "B", a ficção científica deu uma grande virada em 1968. Nesse ano, foram lançados dois de seus marcos: 2001 – Uma Odisseia no Espaço e Planeta

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159

J. Schaffner, com roteiro escrito a partir do livro de Pierre Boulle, Planete des

Singes. Considerado um clássico muito ousado, possuía elementos que juntos

poderiam ter levado ao fracasso de bilheteria ou ao pertencimento ao acervo de

filmes de categoria “trash”. A maior questão da produção era fazer atores

parecerem macacos com uma interpretação que fosse de fato convincente. Um

verdadeiro desafio, se pensarmos que não havia ainda uma tecnologia de

computação gráfica na época que pudesse criar essa realidade. Mas com o

trabalho minucioso dos atores e os recursos usados pelo maquiador para criar as

máscaras, a experiência da “Verdade Cênica”66 do filme foi muito bem realizada.

Eram construídas máscaras a partir de um molde feito sob medida para

cada um dos atores, (foto a seguir), como um aplique no meio do rosto os moldes

eram quase iguais67·. O que fazia com que cada macaco tivesse um rosto

diferente eram as interpretações dos atores. O ator, Roddy Mcdowall, na hora da

maquiagem, experimentava movimentar a musculatura para ter um pouco mais de

mobilidade. E, de fato, ele e a atriz Kim Hunter trabalhavam nesse insistente

exercício de movimentação com a máscara, a fim de conseguirem o melhor

resultado expressivo no filme.

dos Macacos. Tudo que o filme de Stanley Kubrick tinha de metafórico e cerebral, a aventura do diretor Franklin J. Schaffner tinha de visceral. Símios falantes e prepotentes, seres humanos mudos e aguilhoados – não era preciso muita perspicácia para entender as bordoadas que o cineasta disparava sobre o frágil estado das relações humanas (por falta de palavra melhor) e sobre a corrida armamentista, que poderia roubar à humanidade seu posto de espécie dominante. BOSCOV, 2001. 66

Verdade Cênica: O termo verdade cênica foi introduzido pelo diretor russo Konstantin Stanislavski no vocabulário teatral e, desta maneira, influenciou e polemizou toda uma série de pesquisas em busca dessa qualidade, o ator tem que se transformar na personagem e fazer com que o público acredite nessa verdade. 67

No teatro chamamos essa máscara expressiva de acento, pois ela não se configura como máscara por ser pequena e preencher só quase o nariz, mas modifica o rosto completamente.

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160

Os atores tinham suas roupas e maquiagens montadas algumas horas

antes da filmagem. Mas a preparação era demorada, o que desmotivava alguns

atores a continuarem com o filme68.

A forma como os atores realizaram a composição física dos macacos é

totalmente baseada em construção de personagem clássica e está ligada a ações

reais. Observa-se que a interpretação dos atores é de efeito totalmente

compositivo, ou seja, cria-se a personagem através de uma pesquisa imitativa dos

macacos e transformam-se os movimentos estudos em movimentos humanizados,

que, assim, vão caracterizar cada personagem da história. Para isso, os atores se

submetiam a buscar um trabalho corporal baseado na observação dos símios

(nota-se um jeito característico do andar do macaco em cada personagem/macaco

do filme) e a isso, depois, somava-se o figurino e a maquiagem, que completavam

a construção das personagens.

68

Uma cena piloto foi feita com Charleston Heston (como o humano Taylor) e Edward G. Robison (como macaco Dr. Zaius), mas Robinson, temendo que horas na cadeira do maquiador ameaçassem sua já debilitada saúde, saiu do elenco e foi substituído por Maurice Evans. Outro caso a respeito da maquiagem é que houve rumores de que Roddy McDowall (Cornelius, o macaco amistoso) seria alérgico aos componentes químicos usados na fabricação da máscara e só tenha aceitado continuar na produção após a criação do pagamento de um "seguro" pela irritação de sua pele. SCHNEIDER, 2008. p.484.

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161

99 Molde de confecção da máscara dos Macacos

A maquiagem convincente foi feita por John Chambers69, um inovador, que

desenvolveu as melhores maquiagens da época (família Adams, o rosto e a orelha

do personagem Spok de Star Trek, alienígenas de vários filmes). Chambers

recebeu 50 mil dólares para desenvolver os efeitos com sobreposição de apliques

(formato do rosto de macaco, pelos, sombreamento) que formavam uma máscara,

maquiavam também a cor das mãos com pelos e os pés tinham uma espécie de

pantufa para parecerem pés de símios.

O figurino, era uma túnica comprida, ajudava a cobrir o corpo todo e

resolver de forma convincente o corpo do macaco. Para poder ter alguma

mobilidade, ele teve que fazer muitos testes com os mais variados materiais até

69

Ganhou o Oscar, Prêmio Especial de Maquiagem. É o maquiador que aparece no filme Argo, de 2012, com direção de Ben Affleck, e que ajuda no caso dos funcionários da embaixada americana escondidos no Irã.

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162

chegar à máscara de látex que, na época, era a tecnologia possível. Mesmo

assim, o ator não tinha muita mobilidade expressiva no rosto, quase nenhuma

musculatura facial, o que tornava os movimentos de expressão facial muito

rudimentar, já que o material da máscara não era flexível, de modo que somente o

olhar e pequenas aberturas da boca é que davam as emoções das personagens.

Ainda assim, é impressionante notar como a interpretação tem vida. Podemos

compará-la ao trabalho dos atores com máscaras na Commedia dell’arte e

perceber que no filme também, apesar de a expressão ser quase fixa, o ator

consegue ter a capacidade de dar vida à personagem. E, nesse sentido, o olhar é

responsável por essa capacidade. Isso fica muito claro se observarmos a

interpretação dos dois macacos principais interpretados por Roddy McDowall e

Kim Hunter (Cornelius e Zira) que, apesar da máscara sem mobilidade,

conseguem uma enorme gama de expressões, o que na época causava certo

medo na plateia, pois até então nunca houvera nada parecido ou tão próximo do

real.

E talvez esse seja um dos motivos do sucesso que fez o filme na época. O

empenho dos atores (boa escolha de elenco) e da equipe, todos criando a ilusão

de que esses macacos humanizados teriam as mesmas características dos

homens, sem nenhum efeito de computador, somente com elementos de

encenação e filmagem tradicionais.

O ano de 1968 foi também o do lançamento do filme 2001: Uma Odisseia

no Espaço, dirigido por Stanley Kubrick, e considerado um marco do cinema: um

dos melhores filmes de ficção científica de todos os tempos. Num mesmo ano,

então, temos duas películas que coincidentemente caracterizam macacos.

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163

Situações diferentes, mas que de qualquer forma investigam o homem e sua

relação instintiva. Um aborda questões filosóficas relacionadas à existência

humana e o outro, uma ficção em que macacos evoluiriam como humanos. Em

ambos temos abordagens diferentes da construção física dos macacos

representados.

Originalmente, Stanley Kubrick teve o maquiador Stuart Freeborn70 para

criar os primitivos macacos/hominídeos, a primeira ideia era uma maquiagem

semelhante à humana para os atores que interpretavam o homem primitivo, mas

ele não conseguiu encontrar uma maneira de fotografá-los em tamanho completo,

uma vez que tinham que estar nus. Então Kubrick resolveu usar o modelo de

macaco com traje peludo de corpo inteiro. Com a exceção de dois bebês,

chimpanzés reais, todos foram interpretados por excelentes atores/bailarinos

vestidos de figurino. Daniel Richter interpreta um macaco que observa a lua e foi

ele que coreografou a maioria dessas cenas. Não há falas, as cenas dos macacos

dialogam com a música “Assim Falou Zaratrusta”71 numa grande simbiose entre

som e movimento. A movimentação dos símios é tão real que espectadores no

início do filme se perguntavam “onde Kubrick conseguiu macacos tão

qualificados”? E como os “dirigiu”? Especula-se que mais tarde ele mesmo brincou

dizendo que 2001 teria perdido o Oscar de Melhor Maquiagem para John

Chambers, de O Planeta dos Macacos, porque os juízes não perceberam que os

macacos eram realmente pessoas, a Academia pensou que as personagens

70

Relembrando: Stuart Freeborn foi um maquiador britânico criador de criaturas cinematográficas como Yoda e Chewbacca, da série de filmes Guerra nas Estrelas, morreu recentemente, dia 07/02/2013, aos 98 anos. 71

Richard Strauss compôs a sinfonia “Assim falou Zaratustra” quando tinha 32 anos, em 1896, inspirada no livro homônimo de Nietzsche, escrito em 1885.

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164

fossem macacos reais. De qualquer forma, não havia nomeação de conjunto de

maquiagem, pois o prêmio de maquiagem não foi criado antes de 1981 – o Prêmio

de Chambers foi meramente honorário.

Notamos em 2001 uma criação de máscara de enorme impacto: homens

fazendo mimese de macacos com perfeição, enquanto em Planeta dos Macacos

temos a ideia física do macaco se humanizando. Os dois trabalham com a noção

do instintivo/primitivo, mas obtiveram resultados totalmente diferentes na

representação.

Em 1970, foi feita uma continuação dessa ficção, cujo título era De Volta ao

Planeta dos Macacos (Beneath the Planet of the Apes). Essa continuação da

história fez certo sucesso como o anterior repetindo alguns atores, mas não foi

capaz de manter a mesma qualidade. Não acontecem grandes novidades, o

elenco dos macacos, que já tinha desenvolvido um estilo de atuação no trabalho

anterior, manteve a linha de movimentação e o uso de máscaras. Só estão mais à

vontade na movimentação que agora parece mais humana. Não há um grande

salto interpretativo em relação ao primeiro, já que entre um filme e outro,

passaram-se apenas dois anos. Provavelmente o filme tinha uma produção de

baixo custo, nota-se o uso de Chroma key em muitas cenas nesse segundo filme

e também muito estúdio, sendo que o primeiro utilizou mais locações externas.

Nesse caso, quando falávamos de um fio tênue entre uma boa perfomance e outra

menos convincente, essa continuação parece menos elaborada em relação ao

trabalho dos atores, e a plateia já tinha se acostumado com o macaco/homem e

não se surpreendeu mais. O fato é que o seu desfecho (a explosão do planeta

Terra), a trama rebuscada misturando os macacos, mais uma civilização

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165

intraterrena com uma bomba atômica e seres humanoides não ajudaram o bom

desempenho dos atores.

Na terceira sequência, A Fuga do Planeta dos Macacos (Escape from the

Planet of the Apes) feita um ano depois, em 1971, portanto, o casal chimpanzé

(Roddy Mcdowall e Kim Hunter) vem para o planeta Terra com a nave que retorna

no tempo. Ainda temos como ponte original os mesmos atores que desenvolveram

a perfomance da máscara dos macacos e, com isso, a técnica aprendida ao longo

de três filmes fica preservada. Como na Commedia dell’arte, os atores repetem

suas perfomances sempre que o público se identifica com os tipos criados e,

nesse caso, a saga desses símios (e da atriz) vai terminar o seu ciclo neste

terceiro filme. Nos três filmes criou-se uma empatia coletiva do casal de macacos

com o público do cinema e na narrativa isso vai ser repetido quando os macacos

chegam ao planeta e inicialmente causam estranheza, mas logo cativam os

humanos da Terra. O casal de macacos morre no final deste filme, mas o filhote

vai dar o gancho para a continuidade. “Essa foi a melhor das continuações, ainda

que um pouco descaracterizada”, segundo Rubens Ewald Filho, e abriu espaço

para uma nova etapa.

Em 1972, A Conquista do Planeta dos Macacos (Conquest of the Planet of

the Apes) narra o que aconteceu com o filhote, chamado César. Esse filme

contém cenas com maior violência, que foram suprimidas na época. Uma segunda

edição foi refeita, amenizando as cenas violentas. Somente no ano de 2012 essas

cenas reaparecem no Box Blue Ray comemorativo de 44 anos. A Conquista do

Planeta dos Macacos vai servir de base para a refilmagem de O Planeta dos

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166

Macacos – a origem 72, 2011. Eles têm muitas semelhanças: o nome do filhote

também é César, o filhote cresce e é muito inteligente e será um revolucionário, as

cenas de revolução têm sequências parecidas e violentas. O de 1972 foi o filme

mais político da série talvez refletindo os conturbados acontecimentos da época. A

grande diferença entre o de 1972 e 2011 é o uso da tecnologia. O modo de

compor o macaco César que em 1972 era totalmente construído por efeito

compositivo e sua perfomance realizada pelo mesmo ator Roddy Mcdowall desde

1968, modifica-se completamente. Em 2011 o macaco César é totalmente

capturado por Motion Capture (MoCap) através do ator Andy Serkis, que já havia

criado o personagem King Kong, em 2005.

O quinto e último filme desta etapa foi feito em 1973, A Batalha do Planeta

dos Macacos73 e tem algumas semelhanças com o segundo filme. A história se

passa depois da devastação de uma guerra nuclear e os sobreviventes são

liderados pelo macaco César que prega a igualdade entre as espécies (no atual

Planeta dos Macacos - a Origem, o macaco César não quer igualdade e sim, o fim

da raça humana). Aqui há uma repetição de ideias, como no segundo filme, pois

César vai procurar informações sobre seus pais dentro de destroços subterrâneos,

onde encontra um povo mutante. Tal qual De Volta ao planeta dos Macacos, os

figurinos dos mutantes são muito parecidos e também toda ação dos macacos.

Mais uma vez o ator Mcdowall atua tornando sua perfomance de macaco/humano

uma especialidade. Sempre identificado por essa atuação, em 1974, ele vai com a

máscara característica e figurino do macaco se apresentar na TV, no The Carol

72

Rise of the Planet of the Apes. 73

Battle for the Planet of the Apes.

Page 167: a máscara digital

167

Burnett Show. Caracterizando, assim, a ideia de que quando os atores criam tipos

fixos74, eles podem “performar” em qualquer situação, criando uma mistura entre a

persona do ator e a personagem, já que ele vai ao programa de máscara como

“ele mesmo”, o seu rosto de ator não aparece e isso não importa.

Neste mesmo ano (1974) também foi criada uma série de TV semelhante

ao filme, de qualidade inferior, no entanto, foi considerada ruim pela crítica da

época. Outro agravante para a série não dar certo foi que o tempo médio gasto em

cada episódio era de 5 a 7 dias, ritmo que resultava em falhas de gravação, pois

só na maquiagem dos macacos eram gastas diversas horas. A série foi cancelada

com apenas 14 episódios.

Até essa etapa o trabalho desenvolvido pelos atores e direção aproveitava

ainda os recursos e os efeitos especiais que foram desenvolvidos para o primeiro

filme da série. Não houve mudanças significativas entre os filmes com relação à

atuação dos atores que dependiam da sua própria composição da personagem e

da construção física relacionando o macaco e o homem. A interpretação

procurava dar vida à máscara zoomórfica, criada por Chambers, e os atores

fizeram um trabalho excelente dentro da tecnologia quase artesanal da época.

74

Tipo fixo – Fr.: type; Ingl.: type; Al.:typus; Esp.: tipo. Personagem convencional que possui características físicas, fisiológicas ou morais comuns conhecidas de antemão pelo público e constantes durante a performance. PAVIS, 1999, p.61.

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100 Cartazes dos filmes do planeta dos macacos até 2001

Depois da última produção dos anos 70, O Planeta dos Macacos foi

refilmado em 2001, com direção de Tim Burton, num filme tipicamente pós-

moderno, cheio de referências às outras continuações. Burton misturou o roteiro

original de 1968 ao livro do autor Pierre Bouelle e aqui o apelo comercial é de um

Blockbuster75.

Nessa releitura do clássico de 1968, temos um salto evolutivo na

maquiagem e nos efeitos especiais. No final dos anos 60 era impossível mostrá-

los de corpo inteiro de forma convincente, por isso o uso das longas túnicas com

que se vestiam os chimpanzés da época; não havia também variedades dos tipos

75

Blockbuster – Em tradução livre para o português, é “arrasa-quarteirão”. A palavra foi usada para designar um filme de sucesso em 1975, “Tubarão” e se tornou adjetivo para filmes de grande bilheteria. Informação retirada do blog: <http://estacao-nerd.blogspot.com.br/2012/12/o-que-e-um-filme-blockbuster-parte-1.html.>

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169

de macacos. Nesta versão, o trabalho de maquiagem dos protagonistas também

consumia até quatro horas por dia, pois o processo de montagem das máscaras

era trabalhoso. Mas o resultado eram chimpanzés, orangotangos, gorilas, com

uma enorme variedade de espécies humanizadas. Rick Backer, responsável pela

criação da maquiagem dos filmes como MIB, Professor Aloprado, O Grinch,

consegue misturar as espécies símias com a fisionomia humana, como explica

essa reportagem da Revista Veja:

Não só era preciso aplicar com cuidado as próteses de látex, flexíveis o suficiente para acompanhar os movimentos da musculatura facial, como se tinha de espetar os pelos um a um. O saldo é estarrecedor: macacos que parecem de verdade, mas preservam as feições de seus intérpretes. Para estes, a pior parte do ritual era a dentadura postiça, que aumenta a mandíbula e dá uma aparência animalesca aos dentes. Ninguém conseguia sequer tomar um refrigerante com ela, quanto mais falar direito – o que obrigou os atores a regravar muitos dos seus diálogos em estúdio. "Felizmente, ninguém deu chilique, o que é uma raridade", contou Backer a Revista VEJA. “É uma sorte, considerando que, em certos dias, ele e sua equipe tiveram de preparar até 500 atores de uma vez. Nem todos, claro, necessitavam dos cuidados reservados aos protagonistas. Os figurantes, por exemplo, usavam máscaras rígidas, já que não têm falas. Mas, numa foto, esses apliques pareceriam idênticos aos dos atores principais (BOSCOV, 2001)

Isso contribui para que a construção dos tipos físicos dos macacos pelos

atores se diferenciasse. A tecnologia desenvolvida no setor de make-up é tão

avançada que permite aos atores que seu rosto se misture ao do macaco. Mesmo

de máscara o público reconhece os atores. Nesse período já existe uma transição

entre a elaboração de cenas de efeito compositivo com cenas de efeito narrativo,

mas a composição concreta com materiais e figurinos ainda prevalece sobre os

efeitos de computador.

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170

Na pós-produção, essa máscara de efeito compositivo se mistura ao

efeito narrativo das imagens. A fusão acontece de tal forma que quase não

sabemos o que é ou não virtual. Começa na construção da máscara real concreta

que se realiza no trabalho corporal do ator e se desenvolve nas aplicações de

efeitos especiais. Mas os atores ainda estão nas cenas concretamente criando a

composição.

Na movimentação as personagens estão mais viscerais, como é o caso da

atriz inglesa Helena Bonham-Carter que lembra muito a Dr ª Zira do primeiro filme,

embora um pouco mais sensual; Tim Roth, o general, mistura o gestual de

soldado policial com a ferocidade animal e o ator Mark Wahlberg é um herói mais

prático, mais musculoso e parece querer salvar a própria pele, não tem, portanto,

a grandiosidade de Charleston Heston, que parecia estar sempre a um passo da

morte, tal era sua dramaticidade. Uma novidade é a introdução da comicidade: o

ator Paul Giamatti constroi um macaco engraçado, dando alívio cômico à trama.

As etapas de transformação do ator em símio dão a noção das camadas de

materiais que compõem a caracterização da máscara:

101

Primeiro, uma touca de látex esconde os

cabelos.

Em seguida, aplica-se a incômoda dentadura.

A face é coberta com borracha

especial e pintada.

Por último, vão os pelos e a

peruca.

Page 171: a máscara digital

171

Ao assistir ao filme, imediatamente notamos que o tempo ritmo das cenas

está completamente diferente, ele é mais rápido e muito mais violento. A produção

sugere um épico, pois a música é grande eloquente, os efeitos especiais estão

presentes e dividem a composição das cenas com a maquiagem compositiva, nas

cenas das batalhas os inúmeros soldados já são multiplicados através de

computação gráfica. Com os efeitos especiais as cenas parecem mais reais.

102 O ator Tim Roth como General Thade

Nesse momento a narrativa acontece muito mais pela sequência de

imagens, as imagens de ação já se sobrepõem às cenas dialogadas. E o uso dos

vários recursos tecnológicos concorre com a compreensão da história, pois a

quantidade de acontecimentos simultâneos é bem maior do que nos anos 70. O

final da história fica mais rebuscado principalmente pela sua estrutura narrativa

que é um "vai-e-volta" na linha do tempo, com a ideia de uma ação circular. Esse

filme, embora não tenha feito o sucesso esperado, é muito convincente no

conjunto de interpretações antropomórficas, ponto que nos interessa.

Page 172: a máscara digital

172

3.4. VIRTUAL REAL

O Último filme O Planeta dos Macacos: a Origem, direção de Rupert Wyatt,

de 2011, reflete bem a mudança analógica para o processo de digitalização e

computação gráfica que foram desenvolvidos ao longo dos dez anos desde o filme

de Tim Burton até A Origem. Evidencia-se também a voracidade com que a

indústria de cinema realiza suas grandes produções, transformando o orçamento

do filme em milhões de dólares. O grande aspecto inovador é que a personagem

principal, o macaco César, que desencadeia toda a trama do filme, é construído

digitalmente e, no resultado final, não temos como protagonista a presença de

nenhum ator principal, mas de um macaco concebido virtualmente.

Observando os títulos das críticas da época do lançamento, notamos que a

aplicação de efeitos especiais está à frente de qualquer discussão e é o tema

central de divulgação do filme: “Com efeitos especiais impressionantes, o filme

coloca humanos como coadjuvantes da história”, diz Marco Tomazzoni 76,

“nenhum animal foi ferido durante as filmagens”, “se depender da Weta Digital de

Peter Jackson, esses dias de crueldade podem ficar definitivamente para trás”,

disse o crítico Érico Bogo77 se referindo ao fato de a empresa Weta Digital ter

criado todos os animais virtualmente. “Planeta dos Macacos: a Origem é um filme

76 Fonte: site IG – "Planeta dos Macacos - A Origem" dá novo fôlego à franquia, Tomazzoni,2011.

Disponível em: <http://ultimosegundo.ig.com.br/cultura/cinema/planeta+dos+macacos+a+origem+da+novo+folego+a+franquia/n1597177457372.html>

77 Fonte: site Omelete, disponível em< http://omelete.uol.com.br/planeta-dos-

macacos/cinema/planeta-dos-macacos-origem-critica>, acessado em /25 de Agosto de 2011.

Page 173: a máscara digital

173

em que a tecnologia digital FX já evoluiu a tal ponto que macacos super-

inteligentes podem ser demonstrados de forma convincente na tela pela primeira

vez”, diz o inglês Peter Bradshaw, do The Guardian. O primeiro trailer divulgado

em vez de citar “Do diretor de…”, diz “Da produtora de efeitos visuais Weta…”e

não há muita divulgação dos nomes dos atores reais, deixando claro que as

grandes estrelas do filme são os macacos desenvolvidos com Motion Capture

(MoCap) pela produtora de efeitos especiais.

Nessa nova versão a história é contada pela primeira vez sob o ponto de

vista de um animal, o macaco César, que nasceu inteligente por meio de um bem

sucedido experimento feito em laboratório. Por desenvolver qualidades humanas

de estratégia e organização, essa personagem precisava ser muito real,

convincente para que o público pudesse se identificar emocionalmente com ela. A

tecnologia MoCap que criou os mundos de King Kong, Harry Potter, Avatar e de O

Senhor dos Anéis, trouxe a solução e mais avanços na área de captação de

interpretação nesse filme, pois permitiu que os macacos tivessem uma

perfomance dramática muito próxima da realidade. Contudo, acentuou-se o

dilema: a perfomance do ator através do MoCap pode ser considerada atuação?

Não há mais próteses e efeitos compositivos, só aplicação de camadas

virtuais de computação gráfica. Os realizadores do filme dizem que essa é uma

fusão técnico-criativa: capturar a atuação do ator e sobrepor imagens de desenho

virtual, formando uma máscara virtual. Na filmagem, o ator não está com figurino

nem maquiagem de macaco. Ele veste um tipo de pijama cinza ou preto com

sensores no corpo todo e com pontos no rosto que vão fazer com que a equipe de

Page 174: a máscara digital

174

efeitos especiais leia as expressões no computador. Além da roupa especial 78 e

dos sensores, há uma câmera colocada na frente do rosto do ator para captar

minuciosamente suas expressões. Há também as extensões de braço que ajudam

a fazer a movimentação dos símios.

103

Andy Serkis e sua roupa de captura de interpretação

78

No teatro essa vestimenta é chamada de roupa básica, pois ela define o contorno do corpo e é de cor neutra. Aqui ela é igualmente utilizada para definir as expressões corporais do ator que vai ser revestido, posteriormente, por pelos virtuais.

Page 175: a máscara digital

175

104

As várias camadas de imagem para formar a máscara virtual

Esse efeito, que já não é mais de composição com maquiagem, mas

aplicado a partir do rosto do ator, ajuda na antropomorfia e identificação do público

com os macacos, que têm características quase humanas. Notamos que as

expressões dos macacos principais são muito detalhadas e de um realismo quase

concreto (principalmente quando César, que é um chimpanzé, está com outras

espécies de macacos e todos estão presos em jaulas de um abrigo). É claro que

ainda há aperfeiçoamentos relativos ao peso gravitacional a se fazer,

principalmente quando observamos as cenas coletivas dos macacos em bando. O

espectador pode perceber que eles parecem leves, muito mais leves do que

seriam os macacos reais. Em oposição a isso, o desenvolvimento das expressões

faciais está mais avançado e as sutilezas do olhar de César são o grande

diferencial do filme. A partir de O Planeta dos Macacos: a Origem já se pode notar

que a indústria cinematográfica começa a destacar os atores de MoCap, pois,

principalmente depois de Avatar, essa tecnologia tem causado muita curiosidade

Page 176: a máscara digital

176

no público e tem sido mais divulgada criando uma legião de fãs. Nesse filme

também há uma diferença importante: o fato de a personagem de MoCap não

estar num universo fantástico de alienígenas ou duendes e sim, num mundo mais

realista. O roteiro desenvolve a narrativa numa cidade comum. É o MoCap sendo

introduzido nas histórias de vida cotidiana.

A nova versão teve grande aceitação no mercado não só em função dessa

nova tecnologia, que impressiona ao espectador, mas pelo fato de comercialmente

desenvolver-se a partir de um pressuposto de potencial para uma trilogia. E isso

faz do “produto” uma possível franquia, nos mesmos moldes de Star Wars, X-Men,

Harry Potter, Senhor dos Anéis79 ou das sagas de super-heróis.

3.5. O ATOR VIRTUAL

A aposta nesse filme se dá na imagem do principal representante de

Motion Capture, o ator Andy Serkis. Não há como falar em MoCap sem destacar

sua importância, já que ele é o ator mais requisitado hoje nesse tipo de atuação. E

segundo um dos diretores de efeitos especiais do filme, é o primeiro ator que

entende (ou aceita) que a sua atuação seja “trabalhada” com elementos

adicionados por cima das nuances e sutilezas da sua construção de personagem.

Ele não é um dublê da personagem que será criada virtualmente, ele determina a

construção da personagem e, colaborativamente, com os outros criadores dão

79

Harry Potter, Senhor dos Anéis foram feitos também pela Weta Digital.

Page 177: a máscara digital

177

vida ao macaco César. Sua perfomance está destacada nos créditos do filme, no

making of, na divulgação em geral. Um fator de importância nesse novo processo

é que o público também já se acostumou a seus personagens virtuais. A máscara

virtual não causa mais estranheza. E conceitualmente essa quase perfeita

realidade criada por MoCap traz uma outra questão o conceito de mutação das

forças da natureza.

104 As várias etapas do MoCap

Aqui começa um impasse quanto ao lugar da tecnologia no processo de

criação das personagens, na relação dos atores com suas perfomances e das

equipes colaborativas, no público com as personagens e consequentemente com

Page 178: a máscara digital

178

os atores. Também começa a questão de como é esse imaginário do espaço

virtual e qual a necessidade da expansão do ficcional. E conceitualmente onde

seria possível, por exemplo, a premiação dessa perfomance, pois a interpretação

do ator parece não pertencer a nenhuma categoria existente.

O ator Andy Serkis em uma entrevista declarou que “ele absolutamente

acreditava que a interpretação por MoCap devia ser encarada como uma

categoria de atuação normal. E que, no final, a captura de interpretação era uma

tecnologia. Ela não é outra coisa que não isso. É uma forma de registrar a

perfomance do ator e, por isso, se o desempenho é emocionalmente envolvente e

se significa algo para uma plateia é porque essa emoção foi gerada inicialmente

pelo trabalho do ator. Diz ainda: “é um aperfeiçoamento de um filme onde a

propriedade, a autoria da personagem tem origem no ator, que é

significativamente diferente de um filme de animação que tem origem em algo

inanimado, onde a autoria do personagem realmente pertence a um grupo muito

maior de pessoas” 80.

Na verdade essa nova maneira de atuar, mesmo não se inserindo em

nenhuma categoria que exista, não pode mais ser ignorada. Proliferam filmes,

videogames, shows, instalações que utilizam o MoCap na elaboração da ação de

modelos virtuais. Em 2014, há uma nova sequência de Planeta dos Macacos cujo

título, no original, será Dawn of the Planet of the Apes, com Andy Serkis. E

atualmente o próprio ator abriu sua escola de formação para atores interessados

em desenvolver técnicas de treinamento para MoCap que se chama Imaginarium.

80

Entrevista dada ao jornalista Kristopher Tapley, 2011. Fonte: s<http://www.hitfix.com>

Page 179: a máscara digital

179

A jornalista Ana Maria Bahiana conta que “nos idos de 1998, os avanços da

tecnologia digital de imagem se encaminhavam para o inevitável – a manipulação

do desempenho dos atores a serviço da criação de personagens virtuais – a

maioria da classe (artística) ficou entre o pânico e a fúria”81. E diz que, ao contrário

de todos, Andy Serkis se prontificou a experimentar esse novo jeito de interpretar

no cinema. O próprio ator continua explicando: “Eu compreendo que muitos atores

não tenham gostado e ainda não gostem dessa opção, para eles, ter seu rosto na

tela é essencial para o trabalho que fazem, é como eles se expressam. Mas eu

nunca me importei com minha cara, e sim com os personagens que interpreto. Ter

mais uma ferramenta para me perder nos personagens me pareceu irresistível.”

Serkis reforça que a construção das personagens é mais importante que

sua imagem como ator relacionado ao filme, relação que nos remete ao trabalho

dos atores que se “emprestavam” aos tipos da Commedia dell´arte, onde a

máscara tinha importância maior do que quem a utilizava.

A matéria de Ana Maria Bahiana diz ainda que em 2001 “Serkis estava na

tela, irreconhecível, como Smeagol/Gollum, no primeiro filme da trilogia O Senhor

dos Anéis, de Peter Jackson. Foi o início de uma colaboração tão produtiva que

Serkis mudou-se parcialmente para a Nova Zelândia, mantendo uma casa em

Wellington só para ficar próximo do estúdio da Weta Digital, para quem continuaria

sendo Gollum e, em 2005, o Kong do King Kong, de Jackson. Outra colaboração

de Serkis com a Weta, foi Capitão Haddock de Tintin e o Segredo do Licorne”82

que estreou mundialmente em dezembro de 2011.

81

Fonte: Uol/ entretenimento, entrevista de 30/08/2011. 82

Fonte: idem.

Page 180: a máscara digital

180

Ana Maria Bahiana perguntou-lhe ainda sobre o personagem César e

Serkys revelou que sua fonte de pesquisa é a mesma com primatas desde King

Kong, indicando que como ator mantém o método usual de pesquisa:

Você teve uma inspiração individual para Caesar?

Tive. Além de toda a pesquisa que venho fazendo com primatas desde King Kong eu me inspirei diretamente em Oliver, um chimpanzé que foi muito popular nos anos 1970 porque andava sempre em duas patas e exibia uma série de comportamentos que podíamos chamar de humanos. Na época ele foi promovido como “o elo perdido” e a própria comunidade científica acreditou nessa possibilidade e submeteu Oliver a várias experiências. Quando se comprovou que ele era apenas um primata inteligente e, possivelmente, treinado, ele foi abandonado e posto numa jaula. Para mim ele é o centro do personagem Caesar: um inocente que, gradualmente, toma consciência do mundo à sua volta.

Aqui ele fala de nuances e de aprimoramento da técnica de captura de

interpretação:

Existe alguma técnica específica para o trabalho com captura de desempenho (MoCap)?

Muitos atores ainda acham que é preciso ser exagerado, fazer uma perfomance carregada, uma pantomina, para render bem em MoCap. Minha experiência me diz o contrário: a tecnologia é perfeitamente capaz de captar os movimentos mais sutis dos músculos, dos nervos. O desempenho precisa ser o que todo desempenho deve ser: sentido de dentro para fora, com integridade absoluta, fiel à verdade do personagem. Com MoCap não dá para fingir. Se existe uma técnica específica para o desempenho em MoCap é ser preciso. A precisão rende os melhores resultados.

Page 181: a máscara digital

181

A técnica de máscara do ator virtual está caminhando junto com as

mudanças que ocorrem a cada novo trabalho de filmagem:

Como a técnica em si evoluiu nessa década em que você trabalhou em MoCap?

Eu me lembro que no Senhor dos Anéis o trabalho teve que ser duas etapas: uma primeira em que trabalhei contracenando com outros atores num set normal, e depois a parte da captura, que foi separada, num estúdio menor. E no fim tivemos que refazer várias tomadas onde havia closes de Gollum, para que a sincronicidade fosse perfeita. Era mais um trabalho de animação, e os animadores tinham que criar expressões faciais para o Gollum a partir do que havíamos filmado. Em King Kong já tínhamos marcadores faciais, e eram eles que guiavam a “marionete digital” _ todas as expressões faciais de Kong eram, literalmente, as minhas expressões, direto do meu rosto. No Planeta do Macacos todos os equipamentos estavam mais leves e portáteis e a tecnologia muito mais ágil. Podíamos trabalhar como um grupo de atores, contracenando, inspirando-nos pelas atuações dos outros, respondendo aos movimentos, interagindo, e tudo era captado. Mais que isso: podíamos usar o mesmo processo em sets vivos, em locações, dando muito mais campo para trabalharmos com objetos, com reações diretas ao ambiente.

O equipamento está cada vez mais leve e cada vez mais acessível. Por

isso a possibilidade do uso desta ferramenta nos filmes está se tornando comum.

Quando iniciamos esta pesquisa quase ninguém tinha ouvido falar sobre esse tipo

de atuação, em pouco tempo inúmeros filmes foram feitos e no ano de 2013 a

abertura do Oscar foi feita toda com um personagem em MoCap.

Page 182: a máscara digital

182

106

Andy Serkis em captura de movimento de O Planeta dos Macacos: a Origem

E quanto ao processo, à técnica de atuação, Serkis ainda fala da

relação do ator com a criação da personagem e de não sentir diferença na hora de

atuar:

Seu trabalho como ator muda de um filme “normal” para um filme MoCap?

Não… ser ator é ser ator. Não tem diferença para mim. Ser ator é conscientemente se perder em outra pessoa, outro ser. Não faz diferença se esse outro ser é (o punk rocker) Ian Dury (que Serkis interpretou em Sex and Drugs and Rock n Roll, de 2010) ou Caesar em Planeta dos Macacos -a Origem. O trabalho é sempre achar a verdade do personagem, entrar em sua mente, procurar sua fisicalidade e construir emocionalmente o personagem, de dentro para fora. Nunca faço distinção entre um trabalho ao vivo e um trabalho MoCap.

Deveria haver uma categoria nos prêmios para atuações MoCap?

_Não sei. No fim das contas, todas as interpretações são interpretações humanas, conduzidas pelo ator. Se a interpretação é mostrada, em última forma, realística ou estilizadamente, isso não altera o essencial, que é o trabalho do ator. Animação, MoCap são apenas ferramentas. O que as anima é o espírito do ator.

Page 183: a máscara digital

183

Em 2010, Serkis foi capturado para o game Ninja Theory onde o co-

fundador Tameem Antoniades teve a ideia de desenvolver um videogame que

fosse mais envolvente, dramático e, para isso, convidou o ator para criar a

personagem virtual. Segundo o ator, sua atuação na captura lembra o sistema de

ensaio teatral, com improviso e construção da linha de pensamento da

personagem. Conforme declarou: "Eu nunca me aproximaria atuando de forma

diferente, pois eu atuo como o trabalho de palco no filme, ou agora no game", diz

Serkis. "No game também tenho que incorporar a personagem e ser tão

verdadeiro emocionalmente, como se pode ser em cinema ou teatro. A única

diferença é que você tem a capacidade de se transformar até certo ponto em

personagem marionete". Sempre que fala sobre seu trabalho no MoCap, Serkis

faz questão de enfatizar que utiliza as mesmas técnicas e procedimentos que

qualquer outro trabalho compositivo. Todavia, é bom notar que no caso do game

temos de levar em consideração uma mudança porque, em uma narrativa

cinematográfica, existe uma intenção para desenvolver o tema. Mas no game, por

ser manipulado como um jogo, não há intencionalidade nos bonecos construídos.

3.6. AUTORIA PERSONAGEM COMPOSITIVO PERSONAGEM NARRATIVO

Várias vezes, ao se referir à possiblidade de sua perfomance em MoCap

ser aceita como indicada a alguma premiação, os produtores do filme Planeta dos

Macacos: a Origem ou o próprio Andy Serkis se referem à perfomance do filme O

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184

Homem Elefante83, do diretor David Lynch. Guardadas as devidas circunstâncias

sobre esse filme, que se poderiam desenvolver mais aprofundadamente (uma

estética que criou um ambiente do século XIX parecido com os filmes de terror e a

imagem em preto em branco para enfatizar o drama da personagem principal),

observemos a máscara criada pelo ator que representa a personagem com

deformidade física.

O Homem Elefante (The Elephant Man,1980) foi indicado a oito prêmios

Oscar (USA), quatro indicações ao Globo de Ouro (EUA) , indicado a quatro

categorias do BAFTA (Reino Unido) ganhou três e venceu o César (França) como

melhor filme estrangeiro. Em todas as premiações, o ator John Hurt recebeu

indicação como melhor ator.

Esse filme é um grande exemplo de personagem feito com máscara de

efeito compositivo. A maquiagem do Homem-Elefante levava 12 horas para ser

feita a cada vez que era aplicada no ator. O que a princípio, parecia ser mais uma

história de terror e de suspense, ao longo do filme, vai-se mostrando um drama

tocante e muito emocional. Apesar de o ator principal estar debaixo de muita

maquiagem, John Hurt dá vida à máscara e consegue criar um ser com carisma,

delicadeza e cortesia que contrastam com seu visual. Construiu uma máscara que

englobou toda a gestualidade e movimentação corporal que foram sendo

construídas a partir das horas de montagem da maquiagem. A dificuldade que a

83

Elenco principal: John Hurt, Antony Hophkins, Anne Bancroft.

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185

máscara lhe impunha na boca e nariz é aproveitada pelo ator de maneira a

mostrar a própria limitação física da personagem.

107

O ator John Hurt e sua máscara em O Homem Elefante

Em uma entrevista registrada no site Digital Spy, o ator Andy Serkis diz não

entender qual a diferença da aplicação da máscara digital e compositiva., Ele se

prepara para compor os personagens de ação ao vivo do mesmo jeito como na

captura de interpretação, embora a tecnologia permita que os atores façam

personagens que seriam impossíveis sem as camadas de materiais de

maquiagem.

E ainda acrescenta que “é frustrante que esse processo (MoCap) não seja

melhor entendido. É fácil compreender o papel de John Hurt em O Homem

Elefante. Ele tinha camadas de muita maquiagem, mas o seu desempenho

surpreendente foi contemplado por muitas nomeações a prêmios. A captura de

Page 186: a máscara digital

186

interpretação é o mesmo que isso, mas a maquiagem é aplicada como linhas de

pixels pintados mais tarde no corpo do ator. Qualquer ator deve ser capaz de

reproduzir esse tipo de papel, é apenas uma questão de abraçar a tecnologia"84.

O que se observa, que ainda não é aceito, é o fato de que o ator de MoCap

não parece realizar grande esforço para executar a criação da perfomance. É

claro que o ator de MoCap fisicaliza a personagem, mas não passa por uma

“montagem” física da personagem. Contudo, alguns atores afirmam, justamente,

que usar roupa aderente ao corpo (sua roupa especial com captadores) dá

liberdade de criação para a partitura corporal. Outro fato da não aceitação é talvez

que a personagem não crie força dramática (tensões) para ser considerada uma

real interpretação. De fato a transformação fica composta virtualmente, no

programa do computador, e o ator pode até acompanhar em tempo real a imagem

transformada no vídeo, mas ela acontece fora do corpo numa relação de ausência

– presença.

Serkis está certo quando diz que a preparação é bastante similar a do ator

que desenvolve uma máscara compositiva, porém, todo o processo de tratamento

do material capturado vai ser finalizado externamente, o que é diferente de um

ator que trabalha a partir da sua imagem. No MoCap a imagem capturada vai ser

aplicada em outras imagens e também sofrerá sobreposições de camadas de

linhas que aumentarão ou diminuirão a proporção do tamanho do ator, da textura,

da forma. E essa imagem já não será correspondente ao ator. É sim como “um

simulacro”85 de uma máscara. E depois quando os movimentos estão todos

84

Fonte: Site Digital Spy – “Andy Serkis: performance-capture is like make-up”. 85

BAUDRILLARD, 1981.

Page 187: a máscara digital

187

capturados é criado um protótipo que se assemelha a um títere que vai ser

manipulado para a finalização da cena. É o mascaramento da imagem.

Podemos dizer que numa criação de máscara com efeito compositivo como

centro da narrativa temos o ator e isso fica claro neste exemplo de John Hurt. E

agora com a máscara digital temos como centro da narrativa a própria tecnologia.

Sendo assim, a questão talvez seja como essa máscara virtual representa,

ou não, o conceito de humanidade na sua narrativa. Qual o ponto fundamental que

a captura de interpretação traz nesse caso? O que parece mais, por exemplo, no

macaco virtual o instintivo/primitivo ou humano? O macaco é aparentemente

macaco, mas totalmente humanizado, parece gente e está no meio de nós (essa é

a justificativa do uso do MoCap). Como já dito, O Planeta dos Macacos: a Origem

é o primeiro filme de MoCap que introduz a personagem virtual associada a um

realismo mais próximo de uma história comum. Ou seja, o personagem não está

num reino fantástico, não está em uma outra dimensão, não é personagem de

história em quadrinho, não pertence a um universo paralelo ao real. As cenas são

feitas em uma suposta cidade comum.

Mas como a humanidade do macaco é criada? O macaco César tem um

percurso que tenta justificar a sua humanização através de uma experiência com

uma espécie de “Smart Drug86”, ou seja, pelo uso de uma substância que

desenvolveria no cérebro humano potencialidades adormecidas e que são

aplicadas na mãe do macaco, a mãe morre mas deixa o bebê. Ele nasce e

desenvolve todo o seu potencial, mesmo sem ter tido um contato social que

86

São drogas que melhoram a performance das funções mentais. Hoje existem vários filmes que tratam desse assunto.

Page 188: a máscara digital

188

justifique seu comportamento tão humano. Quer dizer, tudo acontece sem uma

razoável explicação: ele, macaco, se torna inteligente como um humano

meramente por uma causa química. Isso causa muitas vezes uma artificialidade

na dimensão da personagem. Do mesmo modo, não parece que haja uma

consciência que justifique o nascimento da sua raiva contra os homens.

Se compararmos essa máscara e essa personagem à máscara do Homem

Elefante, cuja narrativa diz respeito à bondade, a diferentes relações, à

monstruosidade humana e que nos toca diretamente, a personagem se aproxima

de nós pela identificação. Isso cria uma dimensão dramática que justifica o peso

da máscara criada. Algo que não ocorre na figura de César.

Em outro caso, como na cena dos macacos de 2001: Uma Odisseia no

Espaço, observamos que ela é essencialmente metafórica. Uma experiência não

verbal, por isso a relação entre a máscara macaco criada na narrativa do filme foi

rigorosamente trabalhada por profissionais de dança e atores com excelente

trabalho físico. Isso causa a sensação de um caminho sensorial onde há muito

mais acontecendo em 2001 do que o diálogo que o filme traz à tona. O tratamento

dado às máscaras de macacos está no âmbito da representação humana e do

desenvolvimento do espaço social. Ao se assistir ao filme sente-se certo choque

diante da mudança do laboratório espacial para os primitivos macacos. Todos se

perguntam o que os macacos estariam fazendo em um filme de ficção científica

sobre a exploração espacial? Mas o que parece sem sentido logo é transformado

em uma grande metáfora sobre os saltos evolutivos da humanidade e se justifica

pela presença marcante dos macacos quase reais criados pelos atores.

Page 189: a máscara digital

189

108

A cena do macaco feita por Dan Richter

Em O Homem Elefante, descobrimos a humanidade no monstro, atração do

circo, e nos identificamos com a vontade que ele tem de ser incluído na

sociedade.

O Planeta dos Macacos propõe um desafio de criar um macaco

antropomórfico, que quer se tornar humano, mas como, sendo um animal? Ele

desja ser identificado pelos homens como um igual (talvez venha daí a sua raiva),

mas não o é. E, ao mesmo tempo, não tem mais como se reconhecer na sua

própria raça. Ele não é mais um chimpanzé puro e sim, um híbrido. Assim como a

atuação do ator virtual.

3.7. PREPARAÇÃO INTENSA

Uma forma de entretenimento que se tornou popular na década de 1960

era chamada de "a caixa-preta" do teatro, e era assim chamado porque consistia

Page 190: a máscara digital

190

em um espetáculo de artistas em uma sala com paredes pretas e um piso plano (o

mesmo da plateia), com os atores de roupa básica da mesma cor, em geral preta,

iluminação básica, sem figurino, ou outros apetrechos teatrais para distrair o

desempenho, que era o mais importante. Em grande parte a maneira de construir

as perfomances em MoCap são, essencialmente, na caixa-preta, só que do

cinema. Apesar de toda a parafernália técnica que entraram no set-up, quando os

atores entram no galpão, a perfomance é fundamental, e a maior parte dos

elementos periféricos de produção de um filme normal está ausente. E fica por

longos períodos realizando esse trabalho.

Para os atores o começo parece difícil, pois têm que se adaptar aos

captadores que ficam por todo o corpo, principalmente no rosto, o que se torna um

tanto invasivo na criação do papel. No entanto, a se pensar nas enormes

máscaras compositivas que os atores usavam para os filmes anteriores ao

MoCap, de fato esses captadores são muito menos intromissores que a

maquiagem anteriormente usada. Dessa maneira quando vão para o set para o

trabalho de captura de interpretação sem fantasias, maquiagem, ou os requisitos

da fotografia convencional para distrair e atrasá-los, os atores, são capazes de se

concentrar na perfomance. As equipes, assim, procuram ver se os atores estão

confortáveis com a configuração da produção virtual usando as plataformas de

leitura e trajes de captura de movimento para que essa não saja a causa de

alguma desconcentração. Quando tudo isso se harmoniza, os atores estão

prontos para trabalhar. E em muitas declarações eles dizem que se divertem e

que a "captura de interpretação é incrivelmente libertadora. Você não pode se

esconder, por isso cada tomada tem que ser verdadeiro. No começo é um pouco

Page 191: a máscara digital

191

nervoso, mas depois você esquece que está vestindo capacetes e pontos em seu

rosto”87.

MoCap é atuação? Diante das polêmicas que envolvem esse novo tipo de

máscara, no mínimo é ousado da parte do ator experimentar esse novo modo de

atuar, que parece não ter mais volta, e se adaptar colocando sua arte em diálogo

com essa tecnologia. Mas ao mesmo tempo existe certa nebulosidade entre a

imagem do ator e a imagem formada pela máscara virtualizada. Mas a todo o

momento as equipes exaltam a importância expressiva do ator e mostram que

eles é que dão vida às expressões humanas e que são insubstituíveis, pois os

computadores não conseguem realizar a expressividade sem um “modelo” de ator

real.

Provavelmente temos uma nova forma de atuação, em que o ator não é

mais o centro das atenções, mas sim a sua imagem doada para o computador,

trabalhada por várias equipes. Essa imagem é que vai gerar a composição final e

talvez a autoria seja mesmo coletiva. Ainda assim, o resultado da atuação do ator

não é apresentado em toda a sua integridade. Ele é uma espécie de clone de si

mesmo.

Como um experimentador, o ator se coloca no novo espaço de

representação por MoCap. E uma pergunta que aqui começa a ser investigada

é para que serve o ator hoje?

Um modo de fazer completamente diferente, mas ao mesmo tempo igual,

pois no processo de preparação o ator passa por várias situações de pesquisa,

87

DUNCAN, 2010, p.126.

Page 192: a máscara digital

192

sua corporeidade está presente num estado de prontidão. Na ação não há nada

que o diferencie dos atores mascarados de outros tempos, mas no resultado é

como se sua interpretação se desmaterializasse na imagem. Talvez uma nova

ramificação que trafega por um território onde ainda não temos definições.

Page 193: a máscara digital

193

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Quando falamos sobre técnicas digitais na produção cinematográfica

percebe-se que há uma grande quantidade de material escrito relacionado a parte

técnica e aos modos de fazer, mas não há muitos textos que associem o recurso

digital à perfomance do ator. E, sobretudo, não há ainda uma formação que

desenvolva um pensamento reflexivo sobre a questão do uso da tecnologia e a

presença do ator. A intenção desta pesquisa foi trazer à tona panoramas relativos

ao trabalho do ator e suas relações com os processos imagéticos.

A questão da utilização das camadas de imagens para formar uma máscara

narrativa está apenas começando. Neste trecho, do texto de Beatrice Picon-Vallin,

a respeito do futuro da tecnologia em cena, podemos perceber que a interação

com a tecnologia tende a se aprofundar ainda mais:

A ampliação da nossa experiência, graças às tecnologias digitais,

implica a existência de uma nova condição sensorial,

independente de qualquer simbolização e de qualquer elaboração

imaginária. A realidade de hoje é ao mesmo tempo vivida e visual,

decididamente hibrida. Telepresença, vida artificial, robôs cada vez

mais próximos do humano são as novas facetas da existência que

o teatro pode e deve levar em consideração. A tensão entre nossa

realidade biológica e nossa realidade tecnológica obriga a

repensar a percepção, a visão que se tem do ser humano e os

problemas colocados por essa mutação podem ser analisados de

modo lúdico e critico em cena, lugar político para colocar o ator e o

espectador vivos diante de seus duplos digitais (vídeos, clones,

marionetes eletrônicos, hologramas, robôs) – e lugar experimental

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e lúdico ao mesmo tempo, para pensar a técnica em mutação e a

evolução dos modos de estar no mundo (VALLIN, 2009, p. 329).

Observando o percurso da máscara e seu processo de evolução com as

tecnologias, é possível notar como o ator reestrutura a sua técnica teatral

adaptando o jogo dramático a cada mudança tecnológica ao longo dos anos até

compor a atual máscara virtual. Sim, podemos afirmar que o teatro mantém-se

como a base de todo este processo. Isto nos leva a perceber que os diretores de

efeitos especiais do cinema estão em busca justamente do jogo lúdico que o ator

é capaz de desenhar para então molda-lo como “essência” da imagem. O que faz

com que a teatralidade a partir do lúdico na imagem pareça adquirir um certo

senso de autonomia. Um senso de autonomia que todos que participam do

processo vêm moldando em busca de um espaço comum que reflita a experiência

dramática virtualizada.

O que pudemos constatar foi que apesar de termos a nítida impressão

de que o cinema esteja se distanciando do trabalho artesanal do ator, nunca

estivemos tão perto (no plano da criação de personagem virtual) da necessidade

de elaboração física do ator tal qual os moldes de construção usados em outros

tempos. A composição de personagem, a corporeidade (e o suor) apesar de ser

feita como uma colagem de fragmentos, ainda utiliza os princípios da máscara

tradicional (moldagem, pesquisa de expressões, experimentação de postura física,

pesquisa vocal, agilidade e resistência física) e principalmente o elemento que dá

mais veracidade à máscara: a improvisação.

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Se observarmos todos os períodos em que a teatralidade é revista

(retomada) a noção de improvisação é o fator primordial para que as personagens

criem mais verdade cênica. Isso acontece quando o ator Andy Serkis sugere pela

primeira vez aos diretores de O Senhor dos Anéis que eles experimentem usar

seus movimentos para fazer o personagem Gollum. É o frescor da improvisação

do ator que abre a possibilidade de criar o personagem totalmente através da sua

captura do movimento.

Hoje, com a virtualização, podemos pensar que de fato o mundo

invisível se torna visível nas telas e não vemos a transformação acontecer na

nossa frente, mas mediada por telas e computadores. De certa forma, houve um

deslocamento dos efeitos especiais que antes estavam mais presentes nos

cenários e que, agora, foram se deslocando para o ator.

Quanto à fragmentação da imagem do ator ela nos traz um novo papel

do artista, que está diretamente relacionado a idéia de trabalho colaborativo, ou

seja cada artista ou técnico compõe a personagem de forma que o resultado

pertence a todos. Impondo nesse formato de construção da personagem uma

ideia de desapego e autoria ao mesmo tempo, pois o ator tem que “doar” sua

performance, suas formas, suas habilidades que vão ser compostas com outras

formas criadas pelo computador ou até por outros atores que somados a uma

imagem terão como resultado uma espécie de “colagem”. Nesse sentido não é só

o ator que repensa o seu papel, mas o diretor e os criadores de personagens

animados. Toda a equipe envolvida no universo da captura de interpretação

(maquiadores, figurinistas) estão reelaborando sua função.

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Mas não importa quantas camadas de imagem se sobrepõem para

formar a personagem digitalizada, originalmente quem dá vida à máscara é o ator

e sua fisicalidade. Quando pensamos na nova tecnologia MoCap entendemos que

foi preciso a interferência do ator nas ferramentas digitais para que a

expressividade das personagens virtuais criasse maior ilusão e realismo narrativo.

Resumindo: é o ator que dá moldura à tecnologia e também “corpo” à

interpretação. Sendo assim, supomos que a velha e boa máscara se manterá

agora revalorizada pela tecnologia. Arriscamos dizer ainda que ela vai permanecer

sob o comando do ator.

Page 197: a máscara digital

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DETRAS DE LA MASCARA DE PELICULAS FAMOSAS!

https://www.youtube.com/watch?v=GL6oxcYua3Y