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A MENTALIDADE CONSERVADORA
Ricardo Vélez Rodríguez Coordenador do Centro de Pesquisas Estratégicas “Paulino Soares de Sousa”, da UFJF.
Membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.
Professor Emérito da ECEME.
Se eu fosse conservador, os amigos leitores poderiam duvidar da objetividade
com que farei esta caracterização da mentalidade conservadora. No entanto,
justamente pelo fato de que sou um liberal de convicção, os meus leitores podem
estar seguros de que não farei "história participante" segundo a expressão do filósofo
paulista Luís Washington Vita (1921-1968), ou seja, não farei uma apologia da
mencionada atitude mental. Tentarei descreve-la como quem observa friamente um
fenômeno social, sem a paixão de quem está defendendo um ponto de vista.
De outro lado, acho de grande importância abrir espaço, hoje, para o estudo
sistemático da mencionada mentalidade. Em primeiro lugar, porque o predomínio da
esquerda acadêmica terminou privando os alunos brasileiros desse tipo de abordagem,
ao longo da “Nova República” que emergiu com o fim do ciclo militar. Em segundo
lugar, pelo fato de o Brasil ser, majoritariamente, um país conservador,
dramaticamente polarizado por elites ditas “progressistas” que se envergonham de
reconhecer essa característica da nossa sociedade, radicalmente ancorada em
tradições sedimentadas ao longo dos séculos.
Tematizar a mentalidade conservadora é, contudo, tarefa difícil. Como
acertadamente frisa o historiador João Camillo de Oliveira Torres (1915-1973) na sua
obra Os construtores do Império - Ideias e lutas do Partido Conservador 1, "não é fácil
definir o que seja o conservadorismo, antes um estado de espírito do que um sistema
racionalmente fundamentado, podendo dizer a mesma coisa das posições que lhe são
opostas. Muitos autores já o estudaram e tentaram fixar em vários pontos descritivos
a situação conservadora, mas que dificilmente destacam a devida posição".
1TORRES, João Camillo de Oliveira. Os construtores do Império - Ideias e lutas do Partido
Conservador. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1968.
2
Apesar dessa dificuldade que provém, sem dúvida, da índole não sistemática da
mentalidade conservadora, tentarei uma caracterização dos pontos que, a meu ver,
tornam sui generis essa atitude, notadamente no terreno político. De forma mais
ampla tratei desse ponto no meu livro intitulado: Liberalismo y conservatismo en
América Latina. 2
Em quatro notas podem ser agrupadas as características fundamentais da
mentalidade conservadora: 1 - Ateorização e antieconomismo, ou seja, a desconfiança
em face do papel teórico atribuído pelo liberalismo à razão e o menosprezo em relação
às atividades do homo oeconomicus. 2 - Reação, ou seja, a tendência a estruturar uma
anti-utopia que sirva para a própria orientação e a defesa. 3 - Identificação da
verdade com algo concreto, ou "com a ideia enraizada na realidade viva do aqui e
agora e se exprimindo concretamente nela". 3 4 - Descoberta do tempo como criador
de valor ontológico e de ordem.
I - Ateorização e antieconomismo.
O conservadorismo professa desconfiança em face do papel teórico atribuído
pelo liberalismo à razão e em face, também das atividades do homo
oeconomicus. Estas características concretizam-se claramente naquilo que poderíamos
denominar de "uma concepção nobiliárquica da vida", que floresce na civilização
ibérica e ibero-americana.
Em relação à inserção do indivíduo no mundo, o Liberalismo destaca dois ideais
básicos, notadamente a partir da síntese efetivada por John Locke (1632-1704) no final
do século XVII nas suas obras fundamentais: Ensaio sobre o entendimento
humano (1689) 4 e Dois tratados sobre o governo civil (1690) 5. Em primeiro lugar, a
razão joga um papel de primeira ordem na orientação do indivíduo para cumprir com a
missão de conquistar o mundo. Em segundo lugar, a presença do homem no mundo
possui uma única finalidade: se apropriar da natureza mediante o trabalho,
transformá-la e, dessa forma, fazer uma obra digna da glória de Deus, que no contexto
calvinista em que essa ideia surge, constitui uma sinal da predestinação. Os
proprietários são, para a filosofia liberal clássica, "filhos de Deus", pois somente neles
encarnou-se o ideal de incorporar à corporeidade humana a natureza transformada
pelo trabalho.
2 VÉLEZ-RODRÍGUEZ, Ricardo. Liberalismo y conservatismo en América Latina. Bogotá: Tercer Mundo /
Ediciones Universidades Simón Bolívar, Libre de Pereira y Medellín. 1978. Coleção "Universidad y Pueblo". 3 MANNHEIM, Karl. Ideología y Utopía, Madrid: Aguilar, 1966, p. 302.
4 LOCKE, John. Ensaio sobre o entendimento humano. (Tradução, apresentação e notas de Pedro Paulo
Garrido Pimenta; revisão técnica de Bento Prado). São Paulo: Martins Fontes, 2012. 5 LOCKE, John. Dois tratados sobre o governo. (Tradução de Julio Fischer; prefácio, introdução e notas
de Peter Laslett). São Paulo: Martins Fontes, 1988.
3
A razão é, para a tradição liberal, uma luz natural que guia o indivíduo sem
necessidade de recorrer a uma iluminação sobrenatural, ao contrário do que tinham
salientado as grandes sínteses teológico-filosóficas da Idade Média. A razão é,
também, uma faculdade não especulativa e eminentemente prática. No denominado
"estado de natureza" corresponde à faculdade ou ao poder de legislar do "estado de
sociedade" e é a lei que orienta o indivíduo na defesa dos seus direitos inalienáveis
que, segundo John Locke, se identificam com a vida, a liberdade e as posses. A razão
natural é, portanto um bom senso inato que guia o indivíduo ao longo da sua
passagem pelo mundo e que lhe assinala a forma de fazer valer os seus direitos
inalienáveis.
Quando o indivíduo entra em sociedade, mediante o pacto social, o bom senso
originário que repousa nos indivíduos, essa luz natural que a todos assistia no "estado
de natureza", converte-se na faculdade de legislar, que se realiza mediante a sujeição
da sociedade à vontade da maioria. É, pois, a maioria dos indivíduos que se fazem
representar, a depositária da racionalidade social, de tal forma que resulta irracional se
opor a ela. A racionalidade social, que Thomas Hobbes (1588-1678) tinha concentrado
no Leviatã,6 Locke a faz repousar na maioria daqueles que se fazem representar no
Parlamento. Mas, de uma ou outra forma, a razão do indivíduo se alargou deste ao
poder que dá unidade à sociedade. Essa concepção, que privilegia a razão individual,
na concepção hobbesiana ou lockeana, é adotada integralmente pelas versões
americana e francesa do liberalismo político.
Ecoando o primado da razão individual na filosofia cartesiana, os filósofos
franceses do século XVIII, Voltaire (1694-1778), Diderot (1713-1784), Montesquieu
(1689-1755), Rousseau (1712-1778) e todos aqueles sob cuja inspiração se gesta e se
desenvolve o complexo fenômeno econômico-político-cultural que foi denominado de
Revolução Francesa (1789), destacam o papel orientador da razão, que é interpretada,
como em Descartes (1596-1650), não apenas como razão especulativa, mas
basicamente como razão prática que ilumina ao homem no processo de se
assenhorear do mundo. Segundo este pensador, no plano da temporalidade compete
ao homem uma missão fundamental: se apropriar da natureza, seguindo as leis que
lhe são próprias, ou seja, as leis do movimento. E é a razão prática a encarregada de
guiar o homem nessa tarefa.
Dentro desse contexto situam-se também os pensadores da época da
Revolução Americana (1776). George Washington (1732-1799), Thomas Jefferson
(1743-1826), James Madison (1751-1836), John Jay (1745-1829), Alexander Hamilton
(1755-1804), etc., serão enfáticos ao reivindicar o posto que corresponde à razão
individual na vida do homem em sociedade. Ao longo dos anos que se seguem à
6 HOBBES, Thomas. Leviatã, ou matéria, forma e poder de um Estado Eclesiástico e Civil. (Tradução de
João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva). 4ª. ed. São Paulo: Nova Cultural, 1988.
4
Convenção de Filadélfia (1786) e por causa da necessidade política de ratificar essa
Convenção nos diferentes Estados mediante a aprovação, pelas Assembleias
Provinciais, da Constituição votada em Filadélfia, desenvolve-se uma intensa atividade
jornalística que divulga as idéias fundamentais inspiradoras dos constituintes
americanos. É nessa série de artigos de imprensa, especialmente nos compilados no
livro denominado de O Federalista,7 que condensa a discussão efetivada na área de
Nova Iorque, onde encontramos de novo as ideias lockeanas acerca do papel
orientador da razão na organização da sociedade. Aparece ali o princípio da maioria
dos que se fazem representar, como norma reitora da racionalidade social.
Só que, como destacou Alexis de Tocqueville (1805-1859) 8, na América se
amplia o âmbito da representação. Enquanto que para John Locke, que se inspira na
mais pura tradição do puritanismo, somente se pode fazer representar o proprietário,
que é o único que recebeu um sinal da sua predestinação, pelo fato de ter efetivado,
mediante o trabalho, uma obra digna da glória de Deus, para os americanos é válida
uma ampliação do conceito de representação, que termina por se cristalizar na
instituição do sufrágio universal. Agiram, aqui, as ideias do liberalismo posterior à era
das revoluções do século XVII na Holanda e na Inglaterra, como é, por exemplo, a
síntese de John Stuart Mill (1806-1873) 9, que incorpora a mencionada ampliação do
conceito de representação.
Para John Locke, somente o proprietário era o autêntico detentor do bom
senso que deveria reger a organização da sociedade. Para os liberais posteriores ao
século XVII, na Inglaterra, e para os liberais americanos e franceses, todo indivíduo é
potencialmente suscetível de encarnar o bom senso, sendo necessário apenas um reto
processo educativo, fato que é destacado especialmente por Stuart Mill. Mas para
todos os ideólogos liberais é um princípio aceito que a racionalidade social encarna-se
na vontade da maioria. A razão da maioria constitui a fonte da organização social. O
pensador suíço-francês Henri-Benjamin Constant de Rebecque (1767-1830), precursor
dos doutrinários, considerava, no entanto, que a vontade geral expressa no
conceito de soberania, não podia ser entendida como algo absoluto. Era limitada, por
essência, se circunscrevendo apenas à organização política da sociedade, sem que
pudesse se apropriar de todos os aspectos da vida individual. Constant de Rebecque
fazia, na sua obra Princípios de Política 10, uma crítica severa à forma ilimitada em que
Rousseau entendia a vontade geral.
7 HAMILTON, Alexander; MADISON, James; JAY, John. O Federalista. (Tradução de A. Della Nina. Seleção
de textos de Francisco Weffort). São Paulo: Abril Cultural, 1973. 8 TOCQUEVILLE, Alexis de. A democracia na América. (Tradução de Neil Ribeiro da Silva). Belo
Horizonte: Itatiaia, 1977. 9 MILL, John Stuart. Ensaio sobre a liberdade. (tradução de Rita de Cássia Gondim Neiva). São Paulo:
Escala, 2006. 10
CONSTANT DE REBECQUE, Henri-Benjamin. Princípios de Política. (Tradução espanhola de Josefa Hernández Junco, introdução de José Alvarez Junco). Madrid: Aguilar, 1970, p. 7-18.
5
Contrapondo-se ao papel preponderante que a filosofia liberal atribui à razão
do indivíduo e como reação contra a torta evolução do liberalismo ao longo do século
XVIII em todos os campos: filosófico, econômico e político, sendo a principal
manifestação desse processo a Revolução Francesa, os ideólogos conservadores são
unânimes ao manifestar a sua profunda desconfiança em face da razão individual,
geradora de tantos males.
Tal é a sincera reação dos pensadores que criticam a Revolução Francesa como
Edmund Burke (1729-1797), Joseph de Maistre (1753-1821) ou o conde Louis de
Bonald (1754-1840). Todos eles destacam a necessidade de uma tutela para a razão
individual que, deixada por si só, produziu tantas aberrações. Essa tutela identificar-se-
á com uma volta à tradição e com a imposição de uma elite que é o seu fiel intérprete.
E, em alguns casos, será exigida, no contexto do regresso desse elemento tradicional, a
presença da fé como um dos elementos constitutivos fundamentais da civilização. É
isso o que encontramos no tradicionalismo francês de inspiração católica, que deita
raízes na obra de Maistre e de Bonald.
Um exemplo do tradicionalismo leigo é encontrado, na América espanhola, na
influência do krausismo com a sua insistência no controle da razão individual pela
tradição espiritualista contrária ao homo oeconomicus e que se torna presente numa
rígida hierarquia social, à cuja testa devem estar os educadores e os artistas. Tal é, por
exemplo, o pensamento dos liberais espanhóis da década de 1890 na Espanha, um de
cujos principais expositores foi Francisco Giner de los Ríos (1839-1915) 11, fundador da
Instituição Livre de Ensino. A obra dos krausistas hispânicos foi divulgada, na América
espanhola, por José Enrique Rodó (1872-1917) e, no Brasil, por Carlos Mariano Galvão
Bueno (1834-1883).
Essa volta à tradição como epokhé da soberba razão individual se reveste de
um caráter de cruzada moral para salvar a sociedade, na obra de Augusto Comte
(1798-1857), 12 que ensina que os males sociais serão curados na medida em que seja
combatida a desordem no terreno mental e no dos costumes, mediante a volta da
tradição, graças a um processo educacional: "os vivos devem ser governados pelos
mortos", defendia o filósofo de Montpellier. Tal afirmação conduziu, no Brasil, à
instauração da ditadura positivista que durou mais de três décadas no Rio Grande do
Sul (1891-1930) e que teve continuidade no governo autocrático de Getúlio Vargas
(1883-1954) entre 1930 e 1945, no plano nacional.
11
Cf. GINER DE LOS RÍOS, Francisco. Ensayos sobre educación. Buenos Aires: Losada, 1945. 12
Cf. COMTE, Auguste. Apelo aos conservadores. (Tradução de Miguel Lemos). Rio de Janeiro: Igreja Positivista do Brasil, 1899. Do mesmo autor, Discurso sobre o espírito positivo. (Tradução de José Arthur Giannotti). São Paulo: Abril Cultural, 1973, coleção “Os Pensadores” e La science sociale. (Apresentação e introdução de Angele Kremer-Marietti). Paris: Gallimard, 1972.
6
Uma original concepção conservadora do papel da razão foi legado por Alexis
de Tocqueville (1805-1859). Este pensador, com a sua obra clássica: A democracia na
América deu ensejo, na França, a uma nova ciência política. Quais os contornos que a
definem? Em primeiro lugar, Tocqueville estava animado por uma autêntica modéstia
epistemológica. Para ele, se é verdade que o absolutismo, em política, é irmão gêmeo
do dogmatismo em filosofia, também podemos afirmar que essa atitude mental de
modéstia é pressuposto do liberalismo. Não pode haver autêntica defesa da liberdade
e da tolerância ali onde se professam verdades intocáveis, no que tange à concepção
do homem e do mundo.
Eis o que Tocqueville escrevia, em 1831, ao seu amigo Charles Stöffels (1809-
1886): “Para a imensa maioria dos pontos que nos interessa conhecer, nós não temos
mais do que verossimilhanças, aproximações. Desesperar-se porque as coisas são
assim é desesperar-se pelo fato de ser homem; pois essa é uma das mais inflexíveis leis
da nossa natureza (...). Sempre considerei a metafísica e todas as ciências puramente
teóricas, que de nada servem na realidade da vida, como um tormento voluntário que
o homem consentia em se impor”. 13
Em 1858, Tocqueville explicava ao filósofo Hervé Bouchitté (1795-1861) 14 que
a mais refinada metafísica não era mais clara que o simples senso comum acerca do
sentido do mundo e, especialmente, em relação “(...) à razão do destino deste ser
singular que chamamos homem, ao qual foi dada justamente tanta luz quanto era
necessária para lhe mostrar as misérias de sua condição e insuficiente para muda-la”. 15 Passagem de verdadeira inspiração pascaliana segundo Françoise Mélonio, que
escreve a respeito: “Que miséria que é o homem... Tocqueville retoma a crítica
pascaliana dos limites da Razão, atualizando-a para dirigi-la contra todos aqueles que
identificam o discurso racional com o real. A hostilidade futura de Tocqueville a Hegel
não terá outra fonte diferente desta rejeição a um providencialismo secularizado,
junto com o desgosto dos espíritos finos em relação às coisas especulativas, fora do
uso comum”. 16
Na trilha que acaba de ser mencionada, Tocqueville situa sua crítica ao
historicismo. Esta tendência, para ele, termina sacrificando a liberdade e a pessoa no
altar da abstração histórica. Tocqueville considerava que esse era um vício próprio dos
historiadores que vivem em “séculos democráticos”, preocupados mais em serem lidos
com facilidade pelas grandes multidões do que em fazer uma análise verdadeira dos
fatos concretos. Antecipava-se genialmente Tocqueville, destarte, da crítica que os 13
Apud MÉLONIO, Françoise. Tocqueville et les Français. Paris: Aubier, 1993, p. 31. 14
Cf. BOUCHITTÉ, Hervé. Histoire des preuves de l´existence de Dieu considerées dans leurs principes
les plus généraux jusq´au Monologium d´Anselme de Cantorbéry, Paris, 1846. Edição fac-similar pela Universidade de Toronto: https://archive.org/details/histoiredespreuv00bouc [consulta em 01/05/2014]. 15
Apud MÉLONIO, Françoise. Tocqueville et les Français. Ob. cit., ibid. 16
Apud MÉLONIO, Françoise. Tocqueville et les Français. Ob. cit., ibid.
7
neokantianos, com Heinrich Rickert (1863-1936) à testa, deflagraram, na virada do
século XIX para o XX, à tendência abstrata da Escola Histórica alemã de Friedrich Carl
von Savigny (1779-1861). Crítica que, aliás, confronta Tocqueville com os românticos
alemães que farão, como mostrarei logo mais adiante, a apologia da Escola Histórica.
A respeito da historiografia que se pratica nos “séculos democráticos”,
Tocqueville escreve o seguinte, diferenciando-a da historiografia que se pratica nos
“séculos aristocráticos”: “Os historiadores que vivem nos séculos democráticos
mostram tendências inteiramente contrárias. A maior parte deles quase não atribui
influência alguma ao indivíduo sobre o destino da espécie, nem aos cidadãos sobre a
sorte do povo. Mas, em troca, atribuem grandes causas gerais aos pequenos fatos
particulares. Essas tendências opostas são explicáveis. Quando os historiadores dos
séculos aristocráticos lançam os olhos para o teatro do mundo, a primeira coisa que
nele percebem é um pequeno número de atores principais, que conduzem toda a
peça. Esses grandes personagens, que se mantêm à frente da cena, detêm sua visão e
a fixam: ao passo que se aplicam a revelar os motivos secretos que fazem com que
ajam e falem, esquecem-se do resto. A importância das coisas que veem alguns
homens fazer dá-lhes uma ideia exagerada da influência que pode exercer um homem
e naturalmente os dispõe a crer que é sempre necessário remontar à ação particular
de um indivíduo para explicar os movimentos da multidão (...) Quando, ao contrário,
todos os cidadãos são independentes uns dos outros, e cada um deles é frágil, não se
descobre nenhum que exerça um poder muito grande nem, sobretudo, muito durável,
sobre a massa. À primeira vista, os indivíduos parecem absolutamente impotentes
sobre ela e dissera-se que a sociedade marcha sozinha pelo concurso livre e
espontâneo de todos os homens que a compõem. Isso leva naturalmente o espírito
humano a procurar a razão geral que pode assim atingir a um tempo tantas
inteligências e volta-las simultaneamente para o mesmo lado”. 17
O principal defeito que Tocqueville enxergava na historiografia dos tempos
democráticos consistia no fato de tal modelo se alicerçar numa concepção fatalista da
história, que pressupõe, em primeiro lugar, uma concepção abstrata e determinista do
homem. A respeito escreve: “Os historiadores que vivem nos tempos democráticos
não recusam, pois, apenas atribuir a alguns cidadãos o poder de agir sobre o destino
do povo; ainda tiram aos próprios povos a faculdade de modificar a sua própria sorte e
os submeterem ora a uma Providência inflexível, ora a uma espécie de cega fatalidade.
Segundo eles, cada nação é invencivelmente ligada, pela sua posição, sua origem, seus
antecedentes, sua natureza, a certo destino, que nem todos os esforços poderiam
modificar. Tornam as gerações solidárias umas às outras e, remontando assim, de
época em época, de acontecimentos necessários em acontecimentos necessários, à
origem do mundo, compõem uma cadeia cerrada e imensa que envolve todo o gênero
17
TOCQUEVILLE, Alexis de. A democracia na América. (Tradução e Introdução de Neil Ribeiro da Silva). 2ª edição. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1977, p. 375.
8
humano e o prende. Não lhes basta mostrar como se deram os fatos: comprazem-se
ainda em mostrar que não podiam se ter dado de outra forma. Consideram uma nação
que chegou a certo ponto da sua história e afirmam que foi obrigada a seguir o
caminho que a conduziu até ali. Isto é muito mais fácil que mostrar como teria podido
fazer para seguir um melhor caminho”. 18
Tocqueville, pensador definidamente liberal-conservador, rejeita de plano tal
historiografia por considerar que essa concepção nega a liberdade humana, base da
“dignidade das almas”. Tratava-se de superar as desgraças da Revolução e do Terror,
não de conduzir a Nação Francesa à sua definitiva destruição. O nosso autor
identificava, alto e bom som, o caminho que deveria ser seguido: o da liberdade
concreta, ou melhor, o da conquista da efetiva liberdade para todos os franceses. Mais
do que uma dádiva “revolucionária”, a consolidação da liberdade dependeria de
reformas conservadoras que não rompessem com o passado, mas que o tivessem,
sempre, presente, como pano de fundo de garantia da continuidade das novas
instituições.
O principal pecado da Revolução Francesa, segundo Tocqueville, foi este: ter
pretendido romper os vínculos com o passado, caindo no abismo de uma abstração
com o nome de “igualdade”. Não se trataria, pois, para remediar esse mal, de
renunciar à conquista da democracia liberal. Tratar-se-ia, melhor, de conquistar este
anseio, de forma segura, restabelecendo as pontes com o passado mediante o
aprofundado conhecimento das tradições francesas e, de outro lado, partindo para a
construção de instituições firmemente ancoradas nesse legado. Esse é o cerne da obra
de Tocqueville intitulada: O Antigo Regime e a Revolução. 19
Karl Mannheim (1893-1947), em Ideología y Utopía 20 estudou a desconfiança
da mentalidade conservadora em relação à razão individual. Para ele, é claro que,
segundo essa mentalidade, a razão não possui nenhuma predisposição para teorizar. O
homem, efetivamente, não é levado a teorizar acerca das situações humanas reais em
que vive, enquanto se encontrar perfeitamente ajustado a elas. Nessas condições, a
existência do ser humano considera aquilo que o rodeia como parte de uma ordem
universal natural que, por tal motivo, não é problemática. Em virtude disso, Mannheim
frisa que a mentalidade conservadora não possui nenhuma utopia, entendida como
construção ideal que vai além daquilo que é dado na concreção do momento histórico.
"Idealmente - frisa - está, pela sua mesma estrutura, em completa harmonia com a
realidade que, no momento, dominou. Carece de todas aquelas reflexões e
iluminações do processo histórico que provêm de um impulso progressivo". Por tal
18
TOCQUEVILLE, Alexis de. A democracia na América. Ob. cit., p. 376. 19
TOCQUEVILLE, Alexis de. L´Ancien Régime et la Révolution. (Introdução, organização e notas de Françoise Mélonio). Paris: Flammarion, 1988. 20
MANNHEIM, Karl. Ideología y utopía. Ob. cit., p. 302-303.
9
motivo, Mannheim destaca que o tipo conservador de conhecimento é originalmente
uma classe de saber que outorga um domínio prático.
Trata-se de uma série de orientações habituais e, algumas vezes, reflexivas,
acerca dos fatores que são imanentes à reflexão. Os elementos ideais que, na nossa
vida diária, se opõem ao concretamente dado são restos da tensão dos períodos
primitivos, quando ainda não havia completa estabilização no mundo; mas a sua
atuação no presente é apenas ideológica, como crenças, mitos e religiões, que devem
ser situados no campo que lhes corresponde: para além da história. "Nesta etapa -
frisa Mannheim - o pensamento (...) inclina-se a aceitar o contorno total na concreção
acidental em que ocorre, como se essa fosse a ordem exata do mundo e tivesse que
ser pressuposta e não apresentar nenhum problema (...)." Nessa perspectiva, a razão
individual não possui nenhuma possibilidade para realizar uma construção segundo os
seus próprios desejos. Está encadeada à concreção do momento e daí não pode sair. É
uma tutela exercida pela dimensão ôntica.
O caráter débil da razão liberal, para os conservadores, é expresso assim por
Mannheim: "Os conservadores consideraram a ideia liberal que caracterizou o período
da Ilustração como algo vaporoso e carente de concreção. E foi a partir desse ângulo
por onde iniciaram o seu ataque contra ela e a desvalorizaram. Hegel enxergava nela
nada mais do que uma simples opinião - uma pura imagem - uma possibilidade apenas
por trás da qual alguém se refugia, se salva a si mesmo e elude as exigências do
momento". 21
A sujeição da razão humana à concreção histórica foi caracterizada por Charles
Wright Mills (1916-1962) da seguinte forma, ao analisar o modo em que se dá no meio
norte-americano contemporâneo: "(...) Aquilo que (os intelectuais conservadores
norte-americanos) descobriram é a falta de inteligência e de moralidade na vida
pública de nosso tempo e o que conseguiram criar é uma simples elaboração do seu
próprio estado de ânimo conservador. É um estado de ânimo muito adequado para
homens que vivem num vazio político. No fundo dessa atitude há um sentimento de
importância sem angústia, e uma sensação de pseudo-poder baseada unicamente
numa falsa segurança. Quebrando a vontade política, esse estado de ânimo ou humor
permite que os homens aceitem a depravação pública sem nenhum sentido íntimo de
ultraje, e sem renunciar à meta essencial do humanismo ocidental, tão fortemente
sentida na experiência norte-americana do século XIX: o presunçoso domínio do
destino do homem pela razão" 22.
De outro lado, a mentalidade conservadora reage contra a visão econômica do
homem típica do liberalismo (que afirmava, como vimos, na visão clássica de Locke
inspirada no calvinismo, que o homem está na terra para fazer, com o seu trabalho, 21
MANNHEIM, Ideología y Utopía, ob. cit., p. 306. 22
MILLS, Charles Wright. La élite del poder, México: Fondo de Cultura Económica, 1973, p. 303.
10
uma obra digna da gloria de Deus). Os conservadores reivindicam uma concepção do
homem espiritualista e desinteressada. Trata-se de uma nova epokhé em que o
conservadorismo submerge o ser humano, desta vez do ângulo da liberdade e do agir.
Onde mais nitidamente apareceu esta reação foi na Espanha; ali não houve influência
do puritanismo calvinista, tendo-se consolidado, ao contrário, um espiritualismo de
inspiração medieval.
O historiador colombiano Jaime Jaramillo Uribe (1917-), na sua obra: El
pensamiento colombiano en el siglo XIX, analisou este fenômeno. Na Espanha surge,
desde fins da Idade Média, um tipo cultural diametralmente oposto ao homo
oeconomicus, que desde início da modernidade foi-se enraizando na Europa,
acompanhando o fenômeno do nascimento e expansão das cidades, origem da
nascente burguesia. As características do tipo castelhano, do cavaleiro cristão que
Manuel García Morente (1886-1942) define como defensor de uma causa e possuidor
de virtudes nobiliárquicas como ânsia de grandeza, coragem, altivez, palpite e não
cálculo, personalismo e culto à morte, modelaram-se ao longo da história da Espanha,
sobretudo durante o episódio tão decisivo na vida do povo espanhol que foi a luta de
vários séculos contra os muçulmanos, em defesa da sua própria existência e da
cristandade.
Essa defesa da cultura hispânica em face do invasor foi apreendida pelo povo,
desde o início, como a defesa de si próprio. "Ao terminar essa contenda - escreve
Jaramillo Uribe - e ao se iniciar a Época Moderna, que já vinha se gestando e
amadurecendo no Continente e nas Ilhas Britânicas, tinha-se constituído na meseta
castelhana um tipo de homens cujas virtudes não eram as do homo oeconomicus. A
descoberta da América e a luta pelo Império que inesperadamente lhes doava a
História firmaram o seu caráter cavalheiresco e terminaram por frustrar,
definitivamente, a formação em Castela do tipo que construiu a economia moderna do
capitalismo, e com isso a possibilidade de que Espanha assimilasse o espírito das novas
formas de vida, sobretudo o moderno ethos do trabalho". 23
Analisemos em detalhe duas notas que Jaramillo Uribe destaca acerca do
caráter espanhol, no texto que acaba de ser citado: a sua afirmação por cima do
invasor árabe e a sua afirmação sobre o Novo Mundo. Ao submeter o elemento
alienígena depois da Reconquista espanhola e ainda durante a última parte da Idade
Média, o espanhol encontrou dois grupos sociais, mouros e judeus, que o substituíram
nas fainas econômicas. O judeu, nos trabalhos comerciais, bancários e financeiros e o
mouro nos trabalhos agrícolas e artesanais. "O trabalho - frisa Jaramillo Uribe -
praticado assim por grupos considerados inferiores religiosa e politicamente, recebeu
23
JARAMILLO Uribe, Jaime. El pensamiento colombiano en el siglo XIX. 2ª edição. Bogotá: Temis, 1974, p. 10.
11
os mesmos estigmas que o caracterizavam naquelas sociedades onde era exercido por
escravos. Foi uma ocupação de párias e não de senhores".
Entre os historiadores houve muita discussão acerca das implicações
decorrentes da expulsão de árabes e judeus sobre a economia da Espanha. Ocorreram
controvérsias acerca da importância que alguns autores deram aos elementos árabe e
judeu e acerca do número de indivíduos que abandonaram a Península quando se
produziram os Editos de Estranhamento. No entanto, todos os autores estão de acordo
em afirmar que ambos, mouros e judeus, eram pilares da atividade econômica na
Espanha. Américo Castro (1885-1972) 24 faz um balanço dos termos relativos a
atividades urbanas e rurais provenientes do árabe, nas línguas castelhana e
portuguesa. A farta presença desses termos, no vocabulário corrente, indica que
mouros e judeus foram os fatores mais importantes nesses campos dos quais, por
outro lado, estiveram ausentes os espanhóis e os portugueses.
Paralelamente à sua afirmação nobiliárquica sobre judeus e mouros, o caráter
espanhol firmou-se no Novo Mundo de uma forma que nega as virtudes do homo
oeconomicus. A conquista predatória do solo americano, impulsionada pela
mentalidade aventureira e a lenda do El Dorado, foi o marco econômico que presidiu a
obra da Espanha no Novo Mundo. O ouro e a prata que chegaram a torrentes da
América produziram inflação crescente numa economia cuja produção de bens de
consumo permanecia estática. Por isso é lícito concluir com Jaramillo Uribe que, longe
de ter constituído a saída dos mouros e judeus da Espanha a oportunidade para que o
24
CASTRO, Américo. España en su historia. Buenos Aires: Labor, 1950. Em relação à grande quantidade de termos herdados do árabe pelas línguas castelhana e portuguesa, frisa o autor español: "(...) Essas importações de termos referem-se a muito diversas zonas da vida: agricultura, construção de prédios, artes e ofícios, comércio, administração pública, ciências, guerra. Já é significativo que tarea (tarefa, em português), seja árabe. Os alarifes planejavam as casas e os albañiles (pedreiros) as construíam; e por isso são arabismos alcácer, alcova, azulejo, azotea (terraço), baldosa, saguão, aldrava, alfeizar, fivela; a grande técnica no manejo da água aparece em acequia, aljube (que adota o francês com a forma de ogive), alverca, e em multidão de outras palavras. Porque os sastres eram mouros se chamavam de alfayates (português alfaiates); os barbeiros eram alfajemes; as mercadorias eram transportadas por arrieros (tropeiros) y recueros (recoveiros); eram vendidas nos zocos (zoicos)e azoguejos (açougues),em armazéns, alhóndigas e almonedas; pagavam direitos nas aduanas, eram pesadas e medidas por arrobas, arreldes, quintais, adarmes, fanegas, almudes, celemines, cahices, azumbres, que eram inspecionados pelo zabazoque (azoque) e o almotacén (almotacé); o almojarife (almoxarife) recebia os impostos que eram pagos em maravedis, ou em meticales. Cidades e castelos eram regidos por alcaides, alcaldes, zalmedinas (almedinas) e alguaciles. As contas eram feitas com cifras e guarismos (algoritmos) ou com álgebra; os alquimistas destilavam o álcool nos seus alambiques e alquitaras, ou preparavam álcalis, elixires ou jarabes (xaropes), que eram vertidos em redomas. As cidades constavam de bairros e arrabaldes, e as pessoas comiam açúcar, arroz, laranjas, limões, toronjas, berinjelas, cenouras, albaricoques, sandias, altramuces, alcachofres, alcauciles, albérchigos, alfónsigos, almôndegas, escabeche, alfajores e muitas outras coisas. As plantas antes mencionadas eram cultivadas em terras de regadio, e como na Espanha chove pouco (exceto na região do Norte), a irrigação precisa de muito trabalho e arte para canalizar e distribuir a água para lavar o corpo e para fertilizar a terra. Mencionei antes alverca, aljube, acequia, mas o vocabulário relativo à irrigação do campo é muito amplo; eis aqui uma amostra: nória, arcaduz, açude, almatrixe, alcantilara, atarjes, atanor, alcorque, etc”.
12
espanhol mudasse a sua atitude perante o trabalho, "(...) nessa conjuntura, a história
lhe deparou o Novo Mundo, continuou exigindo-lhe virtudes heroicas e colocou à sua
disposição uma nova classe pária: as populações indígenas americanas, classe que
continuou criando riquezas para o povo senhorial e conferindo à atividade econômica
um caráter não nobre". 25
O espiritualismo de inspiração medieval que faz do cavaleiro espanhol um
conservador das tradições nobiliárquicas sobre o ethos do trabalho e que desconfia da
razão individual, foi muito bem caracterizado por Américo Castro no seguinte trecho:
"O cavaleiro espanhol (...) precisava se rodear de um halo de transcendência, de um
prestígio religioso, régio ou de honra. Tinha de se sentir num além-mágico e como
suspenso sobre a face da terra. Daí o desdém pelas atividades mecânicas, comerciais
ou de pura razão". 26
2 - Reação, ou seja, a tendência a estruturar uma anti-utopia que sirva para a própria
orientação e a defesa.
A estruturação da mentalidade conservadora se dá como anti-utopia que serve
para a auto-orientação e para a defesa e como uma reação contra a hierarquização –
baseada na riqueza - da sociedade burguesa, numa tentativa de revalorizar um
espiritualismo de inspiração medieval, reconhecendo uma hierarquização social de
tipo espiritual. Analisarei aqui esses aspectos.
Para Mannheim, 27 a mentalidade conservadora é obrigada a elaborar as suas
reflexões histórico-filosóficas, só a partir do contra-ataque em face das agressões
perpetradas pelas classes opostas, que pretendem derrubar a ordem existente. Isso é
tão certo que, se não se tivesse dado o prévio ataque das classes progressistas, os
conservadores teriam permanecido inconscientes em face da sua própria ideologia, e
“a concepção conservadora permaneceria no nível da conduta inconsciente”. Portanto,
a mentalidade conservadora descobre a sua própria identidade só “ex post facto”. As
ideologias conservadoras, especialmente na Europa, aparecem como reação contra a
progressiva ascensão de agressivos grupos liberais, que já desde o início da Idade
Moderna foram tomando força graças ao desenvolvimento do comércio, na luta que
travaram contra as classes dominantes tradicionais, o clero e a nobreza. Assim, o
conservadorismo é uma reação contra a ascensão do liberalismo. Desta forma,
encontramos esse fenômeno na França e na Alemanha, e assim também o podemos
observar na América espanhola. Não é casual que na Nova Granada, a primeira
plataforma conservadora tenha aparecido em 1849, um ano depois de que a burguesia
comerciante e exportadora tivesse iniciado, em 1848, profundos câmbios econômicos
25
JARAMILLO Uribe, El pensamiento colombiano en el siglo XIX, ob. cit., p. 11. 26
CASTRO, Américo, España en su historia, ob. cit., p. 34. 27
MANNHEIM, Karl. Ideología y utopía, ob. cit., p. 303-305.
13
e sociais que afetavam às classes tradicionais: o clero e a aristocracia latifundiária de
origem colonial.
Mannheim destaca de que forma na Alemanha a classe social conservadora que
adquiriu estabilidade mediante a posse da terra, não conseguiu estruturar uma
interpretação teórica da sua própria existência, e que a descoberta da ideia
conservadora foi devida a um grupo de ideólogos que apoiaram os conservadores. Tal
foi o trabalho dos românticos, especialmente de Hegel, que ofereceu às antigas classes
conservadoras uma interpretação coerente do sentido da existência. Por este motivo,
frisa Mannheim que: “(...) A grande realização de Hegel foi edificar, contra a ideia
liberal, outra proposta conservadora, não no sentido de purificar artificialmente certa
atitude e certo modo de conduta, mas no sentido de elevar uma forma de experiência
já existente até um nível intelectual e sublinhar as características distintivas que a
contrapunham à atitude liberal perante o mundo”. O mesmo Hegel dá testemunho da
sua valorização do conservadorismo, ao afirmar que a ideia de uma realidade histórica
consegue se tornar visível somente numa segunda etapa, quando o mundo conseguiu
adotar uma forma interna fixa e determinada.
No famoso parágrafo final do prefácio de Hegel (1770-1831) à Filosofia do
Direito, o filósofo alemão frisa: “Só uma palavra mais relativa ao desejo de ensinar ao
mundo o que deveria ser. Para semelhante propósito, a filosofia, pelo menos, chega
sempre tarde demais. A filosofia, como pensamento do mundo, não aparece até que a
realidade tenha completado o seu processo formativo e tenha se preparado a si
mesma. Desse modo, a história corrobora aquilo que ensina a concepção de que o
ideal só aparece na maturidade da realidade, como algo oposto ao real. Apreende o
mundo real na sua substância e o configura num reino intelectual. Quando a filosofia
desenha com cores cinza uma forma de vida, tornou-se velha e não pode ser
rejuvenescida por esse cinza, mas somente conhecida. A coruja de Minerva levanta o
voo unicamente quando as sombras da noite se aproximam”. 28 Mannheim destaca,
também, que enquanto a ideia liberal, traduzida em termos racionalistas, insiste mais
naquilo que é normativo ou no dever-ser, “(...) o conservadorismo translada a ênfase à
realidade existente, àquilo que é. O fato da simples existência de uma coisa outorga-
lhe o mais alto valor (...)”. 29
No relacionado ao segundo aspecto da reação como característica da
mentalidade conservadora, dizíamos que nega a estratificação da sociedade burguesa
baseada no poder econômico e pretende levantar a bandeira de um igualitarismo de
inspiração medieval, que não se opõe ao reconhecimento da hierarquização espiritual
da sociedade. Jaime Jaramillo Uribe 30 destacou que a nobreza europeia foi reagindo,
28
HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich, Filosofia do Direito, cit. por MANNHEIM, in: Ideología y utopía, ob. cit., p. 304. 29
MANNHEIM, Ideología y utopía, ob. cit., p. 308. 30
JARAMILLO Uribe, El pensamiento colombiano en el siglo XIX, ob. cit., p. 3-7.
14
nos países do continente, em face do avanço da burguesia. É claro que isso não
aconteceu em um meio como as Ilhas Britânicas, onde a própria nobreza assumiu a
escala de valores da burguesia, tendo-se tornado comerciante. Mas o romantismo
alemão, por exemplo, que aglutinava tantas figuras nobres, manifesta a sua
desadaptação diante da concepção burguesa do mundo. O protesto dos nobres
franceses, de outro lado, se manifestou no nobre aventureiro, no emigrado
mercenário e no pensador arcaizante e antidemocrático do tipo encarnado pelo
combativo Joseph de Maîstre. Mas onde mais clara se manifestou esse protesto
nobiliário foi na Espanha, o país nobre por excelência, digno das tradições de Dom
Quixote.
Jaramillo Uribe não duvida em afirmar que este “(...) foi o caso extremado
desse protesto nobiliário contra o mundo que começava a configurar o homem
burguês. Com uma circunstância especial que constitui a chave de toda a evolução
posterior da nação espanhola e da sua dificuldade para se adaptar às formas do viver
moderno (...). Na Espanha, o próprio povo adquiriu a concepção nobiliária da vida, e
situada fora desta somente restou uma burguesia minoritária que não conseguiu ter
influência política nem espiritual e que, por outro lado, esteve circunscrita aos
contornos regionais da Catalunha e da Vascônia. A fidalguia espanhola, presente até
nos seus vagabundos e mendigos, é integrada por categorias nobiliárias de vida,
particularmente por aquelas que, em relação à economia e ao trabalho, possuem um
forte conteúdo anticapitalista e antiburguês: a hospitalidade, a prodigalidade nos
gastos, a ausência de previsão para o amanhã, o menosprezo pelo dinheiro e o amor
ao ócio”.
Em contraste com essa concepção nobiliária que comporta um igualitarismo da
sociedade, é importante destacar que o “anarquismo” social hispânico reconhece
hierarquias espirituais. Se bem é certo que, como frisa Ramiro de Maeztu (1874-1936),
na sua obra La defensa de la hispanidad: 31 “(...) aos olhos do espanhol, todo homem,
qualquer que seja a sua posição social, o seu saber, o seu caráter, a sua nação ou a sua
raça, é sempre um homem; mesmo com aparência humilde, ele é o rei da criação;
mesmo desfrutando de alta posição, ele é uma criatura pecadora e débil”, no entanto,
o espanhol reconhece as hierarquias espirituais que regem a sociedade: a Igreja e a
Monarquia, como expressões máximas da alma espanhola.
Isso para não falar em tendências doutrinárias altamente hierarquizantes e
espiritualistas, como os krausistas, por exemplo.32 Os krausistas espanhóis defendiam
a denominada “selectocracia”, que reconhece a superioridade das minorias de
intelectuais e artistas, os únicos que, segundo essa corrente, se elevaram
31
MAEZTU, Ramiro de. La defensa de la hispanidad. 5ª edição, Madri: Gráfica González, 1946, p. 64. 32
Cf. MORILLAS, Juan López, El krausismo español, 1ª edição, México: Fondo de Cultura Económica, 1956; RÍOS, Francisco Giner de los, Ensayos, Madrid: Alianza, 1969.
15
definitivamente por cima da animalidade e que têm a missão de educar as massas
incultas no cultivo dos valores espirituais, responsáveis pela humanização do homem. 33
Alexis de Tocqueville considerava que, na França, a ação deletéria da
Revolução, do Terror jacobino e, já no século XIX, dos socialistas, terminaram por
erradicar progressivamente o ideal de uma burocracia desinteressada que era
integrada, como se sabe, pelos nobres no Antigo Regime. A Monarquia restabelecida
na França pelos Bourbons e, depois, a Segunda República, deram ensejo a uma
centralização cada vez maior e a uma gestão despótica e corrupta dos negócios
públicos, tendo sido banido o ideal do serviço de qualidade. Tocqueville considerava
que ficou um vácuo nesse espaço antes ocupado pela nobreza, tendo-se instalado ali o
reinado da mediocridade e das benesses burocráticas. A República converteu-se no
reino dos aventureiros de todos os matizes, absolutamente descompromissados com o
bem-estar do povo. A respeito Tocqueville escrevia, ao ensejo dos eventos de 1848:
“As revoluções nascem espontaneamente de uma doença geral dos espíritos, induzida
de repente ao estado de crise por uma circunstância fortuita que ninguém previu;
quanto aos pretensos inventores ou condutores dessas revoluções, nada inventam ou
conduzem; seu único mérito é o dos aventureiros, que descobriram a maior parte das
terras desconhecidas: atrever-se a ir sempre em linha reta, para a frente, com o vento
a favor”. 34
3 - Identificação da verdade com algo concreto, ou, como frisa Mannheim, "com a
ideia enraizada na realidade viva do aqui e agora e se exprimindo concretamente
nela". 35 Esta morfofania da verdade encontra a sua expressão, por exemplo, no tema
do agrarismo como leitmotiv da literatura e da filosofia, na Espanha e em
Iberoamérica. Aparece, também, na morfologia goethiana, que insiste na utilização da
percepção intuitiva como instrumento científico, método que também utiliza a Escola
Histórica, na Alemanha. Detenhamo-nos nas duas expressões da morfofania da
verdade que mencionamos.
O agrarismo, ou seja, o exprimir a problemática da vida do homem não em
termos abstratos, mas através de formas plásticas tiradas da natureza, é uma
tendência profundamente conservadora. Em primeiro lugar, porque é um intento de
encadear a razão ao dado imediato da experiência, é um esforço de concreção daquela
no meio circundante. Em segundo lugar, em decorrência do caráter não utilitarista de
33
Cf. PIKE, Frederik B. “Making the Spanish World safe from Democracy: Spanish Liberals and Hispanismo”, The Review of Politics, julho 1971, pgs. 307-322. Escrevi uma síntese das idéias educacionais e políticas dos krausistas na minha obra intitulada: El Hispanismo o Liberalismo
Conservador legado por los Krausistas españoles. Medellín: Instituto de Integración Cultural, 1977. 34
TOCQUEVILLE, Alexis de. Lembranças de 1848 – As jornadas revolucionárias em Paris. (Tradução de Modesto Florenzano; introdução de Renato Janine Ribeiro; prefácio de Fernand Braudel). São Paulo: Companhia das Letras / Penguin, 2011, p. 73. 35
MANNHEIM, Karl. Ideología y utopía, ob. cit., p. 302.
16
apreciação da terra, fundamento da vida agrária. A terra reveste-se aqui de uma áurea
de mistério, parecendo que ocultasse em si uma realidade exemplar, jamais esgotável
nos estreitos limites da apreciação humana. A morfofania caracteriza-se, assim, como
a nota típica do conservadorismo.
Para Espanha, a terra possui um valor sacro, porque é dela de onde provém e
onde se dissolve toda forma biológica. 36 Aquele que possui a terra, em termos
hispânicos, possui a vida. É a terra a única capaz de nos transmitir segurança. Para John
Locke, também, a terra joga um papel essencial na vida humana: é a fonte da
segurança e da liberdade. No entanto, há uma diferença abissal entre a forma em que
Locke e a mentalidade espanhola interpretam a relação do homem com a terra. O
pensador inglês a entende como posse por excelência, à qual o homem chega
mediante o seu trabalho, que projeta o próprio corpo sobre a natureza tornando-a,
assim, algo próprio.
A mentalidade espanhola extasia-se na posse da terra, fazendo dela algo
representativo, como se o homem se relacionasse com ela não através do trabalho
apenas, mas mediante a contemplação. Para o espanhol, a terra é a mãe da qual deriva
o seu sustento e que o acolhe desde o nascimento até a morte. Para o inglês, a terra é
meio de sustento e base da comercialização, que dá vazão aos interesses individuais. O
espanhol não entende a terra em termos comerciais, mas vitais. “O tráfico comercial –
frisa Américo Castro – (...) desenraiza o homem da própria terra, o desintegra, o afasta
da natureza e o induz a incorrer em fraude. Em tais sulcos cai a semente de que
brotarão, mais tarde, os sonhos da Idade de Ouro, o menosprezo do cultivo e do canto
à vida rústica, da novela pastoril, bem como o horror de Dom Quixote às armas de
fogo. Aqueles que não derivam toda a sua substância da terra em que vivem, esses
terminam por deixar de serem eles mesmos, se desintegram”. 37 Por tal motivo, o
ministro de Carlos III (1716-1788), Gaspar Melchor de Jovellanos (1744-1811), dirá que
a posse da terra, na Espanha, acontece “somente como uma especulação de orgulho e
vaidade”. 38
O agrarismo espanhol passa a Iberoamérica. O elogio do rústico é um dos
leitmotivs da literatura colombiana do século XIX. O sentimento rural fazia valorizar a
literatura virgiliana entre as classes cultas da Colônia e da República. A respeito deste
ponto frisa Jaramillo Uribe: “O sentimento a que fazemos referência é sentimento
específico da terra, como aquilo que não perece, aquilo que é autêntico. Não é
36
Cf. MANNHEIM, Ideología y utopía, ob. cit., p. 14-19. 37
CASTRO, Américo. España en su historia. Ob. cit., p. 35. 38
JOVELLANOS, Gaspar Melchor de. Informe sobre la Ley Agraria. Madrid: I. Sancha, 1820. Edição digital http://www.cervantesvirtual.com/obra/informe-sobre-la-ley-agraria--0/ [Consultada em 25-04-2014].
17
sentimento da natureza à maneira renascentista ou segundo o estilo exótico, de certo
tipo de alma romântica”. 39
Essa morfofania do espírito ibérico que se exprime na posse nobiliárquica da
terra, é acompanhada de outras formas concretas para representar um papel social.
Elas são descritas da seguinte forma por Jaramillo Uribe: “A burocracia, o serviço
eclesiástico e o exército – as armas e as letras – eram as formas de vida preferidas pelo
espanhol. A superabundância de empregados, o séquito nobiliárquico e os
funcionários eclesiásticos, quer dizer, as classes improdutivas constituíam, desde a
Idade Média, um traço característico da vida peninsular”. 40
A morfofania como expressão do espírito racional aparece também no Brasil,
onde o espírito conservador se manifestou durante o século XIX, numa valorização
muito forte da vida camponesa e da vinculação à terra, e no culto à figura do
Imperador como personificação viva da Nação. Eis as palavras com que João Camillo de
Oliveira Torres caracterizava este fenômeno: “(Os conservadores brasileiros) não
negavam a liberdade, nem a amavam menos do que os outros. Somente sabiam que a
liberdade não se preserva unicamente com palavras, gestos e hinos, mas que requer
condições efetivas e bem fundadas na realidade (...). Pelas suas relações mais íntimas
com as bases rurais da vida nacional, pelo seu realismo e a sua objetividade, que os
tornavam imunes ao lado perigoso do liberalismo, que é a retórica, os Saquaremas, no
fundo, defendiam uma política mais consistente, mais autêntica. Lendo um Uruguai,
sentimos literalmente o cheiro da terra. Eram homens que viviam a realidade concreta
do país em que estavam, não do país em que gostariam de estar (...). Nada prova
melhor a disposição mais fiel dos conservadores em relação à realidade nacional, que a
sua defesa do Poder Moderador, quer dizer, da autoridade do Imperador. Os liberais
queriam um parlamentarismo de estilo inglês, que reduzisse o Imperador à posição de
meio juiz do jogo, que governasse de acordo com as maiorias parlamentares. Mas
acontece que por força das condições puramente sociais do país (densidade
demográfica, população praticamente rural, etc.), a vida eleitoral era impraticável.
Faltava o que havia na Inglaterra: uma população urbana densa, uma classe média
sólida. Ora, o Imperador (além de ser um tipo de autoridade sensível à imaginação
popular, e respeitada), podia substituir como primeiro representante da nação o corpo
eleitoral, que de fato não tínhamos. E que tampouco poderíamos ter”. 41
Na Alemanha, a busca pela morfofania como meio de expressão do espírito
nacional foi efetivada por Johan Wolfgang von Goethe (1749-1832) e a Escola
Histórica. Contrastando com a pretensão liberal de identificar a ideia com uma
construção abstrata da mente e de buscar ali a racionalidade do mundo, os
39
JARAMILLO Uribe, Jaime. El pensamiento colombiano en el siglo XIX, ob. cit., p. 19, nota 22. 40
JARAMILLO Uribe, Jaime. El pensamiento colombiano en el siglo XIX, ob. cit., p. 14-15. 41
TORRES, João Camillo de Oliveira. Os construtores do Império. Ob. cit., p. XIV-XV.
18
conservadores alemães do século XVIII buscavam a racionalidade, ou melhor, o sentido
da realidade, em dois tipos de concreção morfológica: o espírito subjetivo e as criações
culturais.
A primeira tendência é representada, por exemplo, por Adam Heinrich Müller
(1779-1829), que afirmava que nada pode substituir o espírito de um povo, como
fonte de toda a vida social e cultural. A propósito, escrevia: “A constituição dos Estados
não pode ser inventada, o cálculo mais lúcido neste assunto é tão fútil quanto a
ignorância total. Não existe nenhum substituto para o espírito de um povo, nada pode
substituir a força e a ordem que dele procedem, e não se pode encontrar nada de
parecido nem sequer nos espíritos mais brilhantes nem nos maiores gênios”.42 Esta
ideia é expressada, em termos mais amplos, por Friedrich Carl von Savigny (1779-
1861), para quem o sentido da realidade humana provém do espírito que está em nós
como uma força que trabalha silenciosamente e que agiu, através de nós, para realizar
as nossas obras.
A busca alemã pelo sentido da realidade na concreção morfológica das criações
culturais é realizada por Hegel, mas principalmente é Goethe quem se situa nessa
perspectiva e a desenvolve. Segundo Mannheim, o espírito humano, em tal
perspectiva, está presente em nós como uma enteléquia43, “(...) que se desenvolveu a
si mesma nas criações coletivas da comunidade, do povo, da nação e do Estado, como
uma forma interna que, na maior parte das vezes, pode ser apreendida
morfologicamente. A perspectiva morfológica, focalizada em direção à linguagem, à
arte e ao Estado, se desenvolve a partir deste momento. E mais ou menos ao mesmo
tempo em que a ideia liberal traduzia a ordem existente em movimento e estimulava a
especulação construtiva, Goethe renunciava a esse método ativista para se dedicar à
contemplação: à morfologia”. 44 É efetivamente com ele que começa a utilização da
percepção intuitiva à maneira de instrumento científico. Em alguns aspectos, o método
seguido pela Escola Histórica, na Alemanha, é semelhante ao de Goethe. Ambos vão
rastreando a emanação das “ideias”, mediante a observação de diferentes
manifestações culturais como a linguagem, os costumes, o direito, etc., e não através
de generalizações abstratas, “(...) mas preferentemente por intuição simpática e
descrição morfológica”.
42
MÜLLER, Adam Heinrich. Uber König Friedrich II, und die Natur, Würde, und Bestimmung der
preussischen Monarchie. Berlin: Sander, 1810, p. 49, cit. por MANNHEIM, Karl, Ideología y utopía, ob. cit., 307-308. 43
É em face desta entelequia, interpretada (à maneira espinosana) como uma força supra individual que age nos seres humanos, que se insurge Alexis de Tocqueville. Por esse motivo, o pensador francês rejeita a Escola Histórica alemã. 44
MANNHEIM, Karl, Ideología y utopía, ob. cit., p. 306-308.
19
4 - Descoberta do tempo como criador de valor ontológico e de ordem.
No conservadorismo se dá a descoberta do tempo como criador de valor óntico
e de ordem. Uma frase de Giuseppe Salvioli (1883-1950) exprime muito bem essa
ideia: “O presente, mesmo depois das mais profundas revoluções morais e sociais, se
liga ao passado por vínculos de tal natureza que não se poderiam romper sem torna-lo
um enigma”. 45
A mesma ideia acerca do tempo como gerador de valor óntico e de ordem é
formulada por João Camillo de Oliveira Torres desta forma: “Poderíamos definir o
conservadorismo da seguinte maneira: é uma posição política que reconhece que a
existência das comunidades está sujeita a determinadas condições e que as mudanças
sociais, para serem justas e válidas, não podem quebrar a continuidade entre o
passado e o futuro. Podemos afirmar que o traço mais característico da psicologia
conservadora consiste, exatamente, no fato de que não considera viáveis as
transformações e mudanças feitas sem o sentido da continuidade histórica. Mais
ainda: o conservador considera impraticáveis e condenadas ao suicídio, todas as
reformas fundadas unicamente na vontade humana, sem respeito pelas condições
preexistentes. Podemos reformar, mediante um processo de cautelosa adaptação
daquilo que existe às novas condições. Mas não poderemos conseguir nunca o
estabelecimento de algo radicalmente novo”. 46
O que pretende uma posição autenticamente conservadora? A esta pergunta,
responde Oliveira Torres: “(...) Uma política autenticamente conservadora não
pretende mais do que exigir que a história seja respeitada. Não tomando a iniciativa de
reformas, a menos que isso seja uma condição de preservação, uma reforma para
evitar uma revolução. O conservadorismo busca acompanhar as transformações de
forma a defender o princípio de que, como frisa justamente Augusto Comte, o
progresso seja o desenvolvimento da ordem. O conservadorismo se justifica pela
convicção, perfeitamente legítima, de que há valores permanentes na vida social e de
que certos bens devem ser preservados”. 47
Karl Mannheim enfatiza que o sentido do tempo para a mentalidade
conservadora é completamente oposto ao do liberalismo. Enquanto que, para este, o
futuro é tudo, “(...) a forma conservadora de experimentar o tempo encontrou a
melhor corroboração de seu sentido da determinação, na descoberta da importância
do passado, na descoberta do tempo como criador de valor (...). Para o
conservadorismo, tudo quanto existe possui um valor nominal e positivo,
simplesmente porque chegou a existir lenta e gradualmente. Em consequência,
45
Apud MERCADANTE, Paulo. A consciência conservadora no Brasil. 2ª edição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1972, epígrafe. 46
TORRES, João Camillo de Oliveira. Os construtores do Império. Ob. cit., p. 1-2. 47
TORRES, João Camillo de Oliveira. Os construtores do Império. Ob. cit., p. 5-9.
20
ademais de que a atenção se volta para o passado e para o esforço de resgatá-lo do
esquecimento, aquilo que há de presente e de imediato no conjunto do passado
converte-se numa experiência real”. 48
Essa valoração do passado como criador de valor óntico e de ordem, leva a uma
conclusão no plano da exigência de uma ordem hierárquica na sociedade. Charles
Wright Mills, ao comentar este aspecto da mentalidade conservadora, frisa: “Se não
destruirmos a ordem natural das classes e a hierarquia dos poderes, teremos
superiores e caudilhos” que nos orientem. 49 Isto equivale a afirmar que, para a
mentalidade conservadora, constitui um princípio indiscutivelmente válido aceitar,
com gratidão, a direção de uma série de homens considerados como uma minoria
consagrada, como frisa Russel Kirk (1918-1994) na sua clássica obra intitulada: The
Conservative Mind. 50
Reforçando essa valoração do passado como garantia de ordem e de
sobrevivência, conservadores como Burke se levantam contra o “espírito de
novidade”, como muito bem sintetizou Robert Nisbet (1913-1996), na bela obrinha
intitulada Conservadorismo. A respeito escreve: “Aquilo que Burke e os seus
sucessores combateram é o que ele denominou de espírito inovador. Ou seja, a
adoração vã da mudança em si mesma, a necessidade superficial, mas penetrante, que
sentem as massas de distração e excitação através de novidades sem fim. O espírito de
inovação é particularmente letal quando se aplica às instituições humanas”. 51
O filósofo espanhol José Ortega y Gasset (1883-1955), no clássico livro
intitulado: La rebelión de las masas, já tinha traçado um quadro bastante amplo desse
imediatismo, no contexto da caracterização do denominado homem-massa, que
passou a ocupar todos os espaços sociais após as grandes reformas econômicas e
políticas acontecidas na Europa ao longo do século XIX e que se espraiaram pelo
mundo afora no decorrer do século passado. A mais completa fotografia desse homem
se dá no seio da politização total que, à maneira gramsciana, tomou conta do universo
social ao longo do século XX.
Eis o quadro verdadeiramente trágico que Ortega desenha desse ser humano
massificado, imediatista e efêmero, no seu Prólogo para Franceses: “O politicismo
integral, a absorção de todas as coisas e de todo o homem pela política é a mesma
coisa que o fenômeno da rebelião das massas descrito aqui. A massa rebelde perdeu
toda a capacidade de religião e de conhecimento. Não pode conter mais que política,
uma política exacerbada, frenética, fora de si, visto que pretende suplantar a religião, a
48
MANNHEIM, Karl. Ideología y utopía, ob. cit., p. 308. 49
MILLS, Charles Wright. La elite del poder. Ob. cit., p. 303. 50
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sagesse, enfim, as únicas coisas que por seu conteúdo estão aptas a ocupar o centro
da mente humana. A política priva o homem de solidão e de intimidade, e por isso a
pregação do politicismo integral é uma das técnicas usadas para socializa-lo”. 52
Quadro, aliás, bastante fiel do homem massa brasileiro, moldado nos
laboratórios do lulopetismo nestes últimos onze anos, no contexto de uma
nauseabunda degradação do espírito público ensejada pelo maior processo de
corrupção conhecido na história brasileira.
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