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A Mercearia do Sr. Braga
César Barbosa Página 0
A Mercearia do Sr. Braga Espaço, práticas e hábitos. 2011/2012
Sócio-Antropologia Urbana e Rural
César Barbosa 60336
Docente: Luís Cunha
A Mercearia do Sr. Braga
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Índice
Introdução ......................................................................................................................................................................... 2
Metodologia ...................................................................................................................................................................... 3
Contexto Histórico......................................................................................................................................................... 3
Memórias de um merceeiro ..................................................................................................................................... 4
Espaço tradicional vs. Espaço moderno ............................................................................................................. 6
Novos espaços de mercearia ................................................................................................................................. 10
Conclusão ........................................................................................................................................................................ 11
Bibliografia ..................................................................................................................................................................... 12
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Introdução
Em 1999, o terceiro canal da televisão portuguesa lançava aquele que viria a ser
uma das mais populares séries realizadas em Portugal1. Contando no seu elenco com
Camilo de Oliveira, este protagonizou o papel de dono de uma mercearia antiga,
algures em Lisboa. A personagem interpretada por Camilo interagia com os clientes
numa forma simpática e desconfiada, tentando vender sempre o mais possível.
Naquele bairro todas as pessoas se conhecem e a mercearia funciona como local de
acção central, sendo também um ponto de tertúlia. Camilo representa o merceeiro
devidamente equipado com a sua bata castanha e o próprio cenário procura
representar o estabelecimento tal como uma mercearia tradicional. Este trabalho tem
como ponto de partida este tipo de representações. Através do estudo da Mercearia
Marinho & Braga Ltda., procuraremos perceber como se organiza esta mercearia, dita
tradicional, ao nível do espaço. As memórias de merceeiro serão também abordadas
podendo assim comparar aquilo que mudou nesta mercearia ao longo dos anos. Ao
longo deste trabalho, teremos também em linha de conta as características do mundo
líquido (Bauman, Modernidade Líquida, 2001) das grandes superfícies em comparação
com esta mercearia do tipo tradicional. Na parte final, olharemos, ainda de que forma
breve, as novas mercearias que procuram trazer para o séc. XXI um revivalismo daquilo
que é mais tradicional.
1 Esta série foi originalmente transmitida em 1999 pela SIC.
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Metodologia
Este trabalho foi realizado entre Outubro e Dezembro de 2011 com o recurso à
investigação do tipo qualitativa. Face ao nosso objecto de estudo utilizámos dois
métodos de investigação de forma a recolher a informação necessária para este
trabalho. A primeira técnica utilizada foi a entrevista semi-estruturada. As perguntas
colocadas ao entrevistado foram abertas. Pretendemos, com esta técnica, dar
liberdade ao entrevistado dentro do tema que nos propusemos a tratar. A segunda
técnica utilizada foi a observação realizada no próprio espaço da mercearia, onde foi
possível compreender a forma de organização daquele espaço.
Contexto Histórico
A mercearia que tratámos neste estudo encontra-se no coração da cidade de
Braga, no norte de Portugal. Foi na praça do município que esta mercearia nasceu em
1921 com o nome de J. Ferreira & Companhia. Este estabelecimento foi gerido desde
este ano até 1968 por dois irmãos que contavam com dois funcionários até então. Foi
um destes funcionários, actual gerente da loja, que encontramos nesta mercearia. O
seu nome é José Braga, nascido em 1932, começou a laborar na mercearia da praça do
município com 14 anos, em 1946. Desde esta data até 1968, trabalhou ali como
funcionário. A data em que Marcelo Caetano sucede a António de Oliveira Salazar na
presidência do concelho de ministros do Estado Novo coincide com a data em que José
Braga, em conjunto com o seu colega de trabalho, Manuel Marinho adquire a
mercearia J. Ferreira & Companhia. A partir desse momento passa a chamar-se de
Mercearia Marinho & Braga Lda. Actualmente é apenas o Sr. Braga que gere toda a
mercearia devido ao falecimento do seu sócio.
Enquadrando-nos historicamente com a própria cidade de Braga, esta sofreu
um crescimento exponencial durante todos estes anos. Em termos de população, nos
anos de 1920, a cidade dos arcebispos contava com cerca de cinquenta e sete mil
habitantes. No final dos anos 1960 registam-se cerca de noventa e três mil habitantes,
enquanto pelos registos do último recenseamento, o número dobrou para cerca de
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cento e oitenta mil habitantes.2 O progressivo aumento de população está a ligado a
um aumento de consumidores e o comércio tradicional é de grande importância para
o crescimento da cidade, pois, este pode servir para reter os rendimentos gerados
localmente tal como atrair rendimentos que são externos à cidade (J.Cadima Ribeiro,
1998).
Memórias de um merceeiro
Em meados de Novembro de 2011, tivemos a primeira abordagem à mercearia.
Numa das esquinas de um edifício adjacente à praça do município, encontramos umas
longas portas de madeira pintadas numa desgastada tonalidade de verde esperança.
Nos vidros das janelas daquele estabelecimento lê-se “Trespassa-se” num cartaz
formulado a computador. Podia ser este um sinal de modernização e consequente
perda daquilo que é tradicional, mas este cartaz parecia confirmar aquilo que pré-
concebíamos quanto a este tipo de espaços tradicionais, cada vez mais difíceis de
encontrar e com dificuldades para se manterem sustentáveis face à exigência da
economia contemporânea. Lá dentro encontramos José Braga, envolto na sua bata
cinzenta, ajeitando umas caixas de fruta encostadas a um dos pilares de suporte do
edifício. Logo no primeiro momento que falámos com José Braga, apresentando-lhe
aquilo que gostaríamos de fazer com este trabalho, este alertou-nos para o facto de
ser bastante complicado manter um negócio daquele género hoje em dia; “A
concorrência das grandes superfícies é muita”, referia-nos o proprietário deste
estabelecimento. Esta é uma das características da passagem de uma modernidade
hardware-focused para uma modernidade software-based. Nesta última privilegia-se a
competição em vez da solidariedade. A solidariedade nas cidades devia-se aos laços de
parentesco e de vizinhança que uniam comunidades e corporações (Bauman,
Confiança e Medo na Cidade, 2009) que viriam a perder força devido ao princípio
económico do laissez-faire3.
2 Dados retirados de www.ine.pt
3 Expressão da doutrina do liberalismo económico que se refere ao princípio de que o mercado deve
funcionar livremente, sem regulação do estado.
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No início do mês de Dezembro voltamos à mercearia para aí, sim, termos uma
conversa com José Braga no sentido de percebermos o que tinha mudado nesta loja de
comércio retalhista. Todo o seu discurso se pautou por uma diferenciação entre os
tempos antigos e modernos. Pouco passavam das quinze horas, hora de abertura do
estabelecimento, e aí, José Braga começou por nos descrever como era o horário de
laboração quando entrou para a mercearia como funcionário. Em 1946, não havia
semana-inglesa, a jornada de trabalho terminava apenas às vinte e uma horas,
inclusive ao sábado. O dia de folga nesta altura era apenas o Domingo. Apesar de nem
todas as classes profissionais terem aderido na mesma data à semana-inglesa, estima-
se que o primeiro Sábado em que se gozou desta lei terá sido em sete de Janeiro de
19614. José Braga recorda-nos, que ao contrário do que se passa hoje com a liberdade
de horário para o comércio tradicional, naquela altura “o horário tinha de ser
cumprido rigorosamente, se a gente fechasse mais tarde podíamos ser autuados, e
algumas vezes fomos. Depois da hora tínhamos de fechar a porta e só se atendia os
clientes que estavam lá dentro”. Esta memória leva José Braga a referir que na época
em que ele adquiriu a mercearia trabalhava-se muito, havia muitos clientes.
Perguntamos se este tinha sido o melhor período para a mercearia, ao que de forma
assertiva, responde José Braga: “Não digo que este fosse o melhor período, mas
eramos novos e não pensávamos em tristezas.” Acrescenta ainda que por ele já tinha
fechado a mercearia, mas não o faz devido à família que o pressiona em sentido
contrário. Para o merceeiro, este tipo de casas “são para acabar”, muito devido ao
advento das grandes superfícies5. Conformado, José Braga refere que “naquele tempo
era vida alegre e fato roto” numa clara alusão saudosista a uma época em que a
mentalidade do trabalho “longo-prazo” predominava. Hoje com a passagem para a
modernidade líquida, emergiu a mentalidade de “curto-prazo”, regulada por uma vida
de trabalho cheia de incertezas (Bauman, Modernidade Líquida, 2001).
4 A 7 de Janeiro de 1961, na edição 13674 do Diário de Lisboa escreve-se “Por despacho do ministro do Interior, os funcionários administrativos passam, a partir de hoje, a ter a tarde de sábado livre. Para o efeito, terão de trabalhar, durante toda a semana, mais meia hora.” 5 Na cidade de Braga, a primeira grande superfície comercial foi o Feira Nova que abriu em 1989.
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Espaço tradicional vs. Espaço moderno
Abordemos, agora, como se organizava esta mercearia, através das suas
práticas características da organização do espaço e ainda procuremos traçar um
contraponto com as grandes superfícies de hoje em dia.
Um dos traços característicos daquilo que é tradicional é o balcão. Este cimenta
uma certa distância entre o cliente e o vendedor. O cliente não tem acesso à grande
parte dos produtos, estando o espaço atrás do balcão restringido apenas ao
merceeiro. Neste espaço, José Braga, sabe minuciosamente onde se encontra cada
produto. Além de manter uma certa distância entre os dois actores, é no balcão que se
situa a balança, onde se pesam os produtos e é nele que se colocam os mesmos para
serem partidos. Toda a interacção é dividida por este delimitador, desde o pedido de
determinado produto até ao pagamento do mesmo. Nas grandes superfícies, o acesso
a grande parte dos produtos é livre, estando até envolvida uma certa organização
científica dos produtos, apelando a um maior consumo dos mesmos. São até
realizados estudos sobre o conceito moment of truth6 (Google/Shopper Sciences,
2011). Uma das diferenças entre uma típica mercearia tradicional e um hipermercado
é que os últimos são de cariz self-service. Os primeiros estabelecimentos self-service
surgiram no final dos anos 1910 e a partir daí expandiram-se a um ritmo muito
elevado. Nos Estados Unidos, este formato foi um choque para grande parte da
população, mas os preços que ofereciam eram bastante mais baixos que noutro tipo
de estabelecimentos (Ellickson, 2011). No entanto, podemos notar que em alguns dos
espaços do hipermercado, está presente o balcão, nomeadamente na parte da peixaria
e charcutaria. Apesar de o pagamento ainda se efectuar por intermédio de um balcão
entre o funcionário e o cliente, este tende a desparecer, estando as caixas automáticas
cada vez mais presentes nestas grandes superfícies. É perfeitamente possível, hoje em
dia, numa grande superfície, entrarmos, comprarmos e sairmos sem ter qualquer tipo
de interacção com os funcionários do estabelecimento. Um dos paradoxos da
6 O conceito moment of truth foi introduzido pela norte-americana Proctor & Gamble que congrega em
si um conjunto de sub-empresas ligadas à alimentação, higiene e limpeza. Este conceito determina o momento em que o consumidor está em frente ao produto e toma a decisão de adquiri-lo.
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sociedade actual é a substituição de trabalhadores por tecnologia que propicia uma
melhor relação entre custo-eficiência.
“Assim a política de precarização conduzido pelos operadores dos
mercados de trabalho acaba por ser apoiada e reforçada pelas políticas de
vida, sejam elas adoptadas deliberadamente ou apenas por falta de
alternativas. Ambas convergem para o mesmo resultado: o
enfraquecimento e decomposição dos laços humanos, das comunidades e
das parcerias” (Bauman, Modernidade Líquida, 2001, p. 187).
Apesar do balcão ser também ele uma barreira, não oferece as características líquidas
das caixas automáticas, pois atrás do balcão está lá alguém para nos atender.
A forma de pagamento nas mercearias de antigamente era, também ela,
peculiar. A mercearia Marinho & Braga não é excepção e ainda hoje é utilizada a
sebenta. José Braga refere-nos que neste momento apenas tem seis clientes a pagar
desta forma, mas “dantes era tudo de livro, pelo menos a maior parte. Agora nos
poucos que vêm, é quase tudo a dinheiro. Dantes havia muitos clientes e havia muita
confiança” – completa. A sebenta regula o crédito dos clientes e nela estão anotadas a
lista de compras dos mesmos.
“Neste sentido, um instrumento de escrita contável, simples e eficiente,
que o dono da mercearia não podia dispensar era a não menos famosa
“caderneta” – um simples caderno onde se anotava os nomes dos clientes e as
suas respectivas despesas mensais. Os clientes faziam as suas compras e as
despesas eram anotadas na caderneta. No prazo estabelecido, a dívida era
saldada e, imediatamente, era contraída outra – a ser paga no mês subsequente.”
(Silva apud Amorim, 2011, p.102)
Este instrumento eficaz de controlo de consumo e de crédito não tinha qualquer tipo de
cunho formal. A confiança entre merceeiro e cliente eram suficientes para vincular este tipo de
relação de crédito. Caso não houvesse pagamento por parte do cliente, além do risco de ser
mal falado em praça pública, o fornecimento de produtos também lhe era negado. Com
alguma mágoa, José Braga conta que, alguns clientes ainda hoje lhe estão em dívida, mesmo
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depois de vários meses sem lhes negar “fiado”. Enquanto estivemos à conversa com José
Braga, a própria caixa registadora não foi utilizada, sendo apenas usada uma gaveta para o
efeito. Numa superfície comercial moderna, a forma de pagamento tem algumas semelhanças.
Podemos, naturalmente, pagar a dinheiro, mas no que toca a crédito, a relação diádica recebe
um intermediário. O banco, através do fornecimento de cartões de crédito7 permite-nos gerir
as nossas compras e pagar mensalmente estas despesas. O dinheiro é disponibilizado
electronicamente e o pagamento da factura anterior permite-nos utilizar de novo o cartão,
criando uma nova factura a ser paga no mês subsequente. Na vida moderna, o acesso ao
crédito não se limita apenas a compras de supermercado, mas passou a ser uma característica
presente na roda frenética de consumo da sociedade contemporânea. O pagamento com
recurso ao uso de cartões de crédito é “ […] um acto de todo despersonalizado: na ausência de
comunicação face-a-face, é mais fácil esquecer o desagrado de qualquer indemnização em que
o momento do prazer possa incorrer.” (Bauman, Vida para o Consumo, 2008, p. 135) Assim,
percebemos que o crédito é concedido tanto num espaço tradicional como num espaço
moderno, mas enquanto um é regulado pela confiança, o outro é regulado por uma instituição
financeira.
Na mercearia Marinho & Pinto, observamos que não existe uma organização específica
dos alimentos. Como é possível observar nas fotografias em anexo, não há uma ordem pré-
estabelecida. No caso do arroz, por exemplo, junto aos pilares estavam sacos de 75 kg. José
Braga refere-nos que noutros tempos, “durante o dia despejava-se mais que um saco de
arroz”. O cliente levava o arroz para casa em cartuchos. Estes eram uns sacos de cartão em
que o seu tamanho correspondia a determinado peso. Muitas vezes, e como estes cartuchos
podiam ascender aos 5kg, eram utilizados sacos de pano para os transportar, de forma aos de
cartão não rebentarem. Esta forma de embalamento foi progressivamente abandonada a
partir do momento em que os produtos começaram a vir separados em embalagens de
plástico. O preço vinha, também ele, fixado na embalagem. “A margem de lucro era muito
pequena, mas naquela altura vendia-se muito. Agora a margem é pouca, mas também se
vende pouco” – refere José Braga. Como pudemos observar, apesar de já serem utilizados
sacos plásticos, alguns dos produtos daquela mercearia continuam a ser embalados em folhas
de jornal. O sabão é partido em cima do balcão e depois é habilidosamente embrulhado em
antigas folhas de jornal. Os sacos de plástico apareceram em 1977 nos Estados Unidos como
uma alternativa aos sacos de papel. No ano de 1996, neste país, quatro em cada cinco sacos de
7 O cartão de crédito é um cartão de plástico e a ideia surgiu em 1914 pela Western Union nos Estados
Unidos da América. Em 1997, Portugal foi o líder mundial de transacções electrónicas com recurso a cartão de crédito (Infopédia).
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comércio retalhista eram sacos de plástico (Food Market Institute, 2008). Ao contrário do
tradicionalismo desta mercearia, num hipermercado, a aventura das compras baseia-se na
condução de um carrinho, no qual armazenámos todos os produtos que desejamos comprar.
Vagueámos por corredores minuciosamente organizados e deixamo-nos invadir por uma
sensação de desorientação, dada a constante troca de produtos de prateleira em prateleira.
A mercearia é também um espaço de interacção. Durante a tarde que estivemos à
conversa com José Braga, contamos seis clientes. Destes seis clientes, nenhum se limitou a
entrar, pedir, pagar e deixar a mercearia. Ora se conversou sobre o tempo, ora sobre o preço
do produto, ora sobre a defesa do S.C. Braga, mas em todos os casos houve um mínimo de
interacção entre vendedor e cliente. José Braga confidencia-nos que conhece toda a gente
naquela zona, afirmando até que é um pormenor que conta nas vendas;
“Não havia cliente aqui nenhum dos arredores, não digo bem nenhum, mas quase
tudo aqui pela beira vinha a esta mercearia. Se nós procurávamos fazer festa aos
clientes, os outros também procuravam fazer o mesmo. Os meus vizinhos às vezes
iam ali à mercearia do campo da vinha e outros de lá vinham a esta. Há clientes
que conversam de futebol, de problemas de saúde e desabafam coisas da vida.”
José Braga beneficia do seu conhecimento, pois mora no mesmo edifício onde se localiza a
mercearia e os seus clientes são, na sua maioria, habitantes daquela zona. Procuramos assim
perceber por que motivo estes clientes continuam a efectuar compras nesta mercearia. A
resposta foi comum, todos eles se justificam pela proximidade ao nível da distância. De referir
também que os clientes com quem tivemos contacto são pessoas, na sua maioria, de idade já
avançada e que vivem naquele local desde muito novos, senão mesmo desde sempre. Como
vimos anteriormente, nas grandes superfícies, este tipo de interacção é praticamente
inexistente, sendo pautado por “ […] encontros fugazes, por gestos apressados que modelam e
atenuam a brutalidade da existência humana e urbana.” (Arruda, 2008, p. 475)
É no espaço que encontramos aquilo que de mais tradicional há nesta mercearia típica.
Apesar de mergulhada na modernidade da cidade, a arquitectura deste estabelecimento
resiste ao tempo. José Braga, apesar de já ter recebido uma proposta da Associação Comercial
de Braga para modernizar a mercearia, rejeitou-a pois esta, não lhe traria grandes vantagens.
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Novos espaços de mercearia
As mercearias do tipo tradicional, tal como a mercearia que tratámos ao longo deste
trabalho, são cada vez mais difíceis de encontrar. No entanto, nos últimos anos, assistimos ao
emergir de novas formas de mercearia que de certa forma procuram trazer para a actualidade
um certo revivalismo característico de outros tempos. Destacamos aqui dois tipos de
mercearia: a mercearia online e as lojas gourmet8. As mercearias online surgem ao abrigo de
um rápido crescimento da oferta de serviço de compras através da internet.
“Cada vez mais pessoas preferem comprar em websites do que em lojas.
Conveniência (entrega ao domicilio) e economia de gasolina compõem a
explicação imediata, embora parcial. O conforto espiritual obtido ao se substituir
um vendedor pelo monitor é igualmente importante, se não mais.” (Bauman, Vida
para o Consumo, 2008, p. 27)
Em Portugal, a merceariabio9 é um dos exemplos de mercearia online, especializada em
produtos alimentares biológicos que faz a entrega dos produtos porta a porta. Além desta,
encontrámos um sem número de exemplos. A modernidade liquida, com o rápido fluxo de
informação, atribuiu até ao simples acto de ir às compras uma facilidade nunca antes possível.
Noutra vertente mais requintada, encontrámos as mercearias gourmet. Este tipo de
mercearias aponta para um certo elitismo. Os próprios produtos que nela se vendem são, por
norma, de um elevado preço, mas estão carimbados por um nível superior de qualidade em
relação aos produtos que encontramos em qualquer outro espaço de venda de produtos
alimentares. Em Braga, como exemplo destes espaços, temos a Terra Mater e a D’Gourmet10.
Estes espaços gourmet procuram envolver-se num imaginário daquilo que de mais é
tradicional nas antigas mercearias.
8 Gourmet é o nome que se dá aos produtos alimentares associados à alta cozinha. Está ligado a um ideal cultural no que toca a artes culinárias. 9 Os produtos da merceariabio são entregues em qualquer zona do país e as encomendas podem ser feitas através do www.merceariabio.pt 10
A D’Gourmet está situada junto ao Arco da Porta Nova enquanto a Terra Mater localiza-se na Freguesia de Sé, na rua Frei Caetano Brandão.
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Conclusão
Ao longo deste trabalho procurámos perceber como se organiza uma mercearia
tradicional a partir do estudo da mercearia Marinho & Braga. Observámos também quais as
diferenças e semelhanças entre este espaço de comércio tradicional e os espaços de comércio
moderno. A comparação, na sociedade contemporânea, entre tradicional e urbano pode
tornar-se ambígua se não tivermos em linha de conta uma contextualização histórica, não
abandonando, assim, o binómio passado/presente.
“ Dentro das grandes cidades modernas encontramos desde pessoas e
grupos sociais que mantêm-se, por longos períodos de tempo, em posição socio
espacial de isolamento e estabilidade, até as mais variadas formas de navegação
intensa e exploratória, em alguns casos, quase monádicas”. (Velho, 2009, p. 15)
Além de encontrarmos pessoas ou grupos sociais, também encontramos espaços que resistem
ao tempo e, na imensidão da modernidade líquida, mergulham no caos da cidade preservando
características de outros tempos. A sociedade líquida é como uma hamster wheel que ameaça
deixar para trás quem não tiver força para acompanhar este ritmo de aceleração. As
mercearias tradicionais não conseguem fugir disso, dada a força motriz estar toda ela
concentrada no poder das grandes superfícies comerciais. José Braga lá continua atrás do
balcão e refere-nos que apesar do negócio ser cada vez menos, ainda não é isso que o faz
parar; “Tenho setenta e nove anos e o que me faz parar é a idade. Tenho tido uma vida de
trabalho.”
A Mercearia do Sr. Braga
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Bibliografia
Amorim, H. R. (2011). Entre a Mercearia e o Supermercado. Recife.
Arruda, P. C. (Maio/Agosto de 2008). Cidades Líquidas. Sociedade e Estado, pp. 469-476.
Bauman, Z. (2001). Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor Ltda.
Bauman, Z. (2008). Vida para o Consumo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor Ltda.
Bauman, Z. (2009). Confiança e Medo na Cidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor Ltda.
Ellickson, P. B. (2011). The Evolution of the Supermarket Industry From A&P to Wal-Mart.
Grocery Store Anti-Trust Conference, (pp. 1-20). University of Rochester.
Infopédia. (s.d.). Cartão de Crédito. Obtido em 10 de Dezembro de 2011, de Infopédia.
Porto: Porto Editora, 2003-2011: http://www.infopedia.pt/$cartao-de-credito
Institute, F. M. (2008). Plastic Grocery Bags - Challenges and Opportunities. Arlington.
J.Cadima Ribeiro, J. S. (1998). Emprego e Desenvolvimento Regional. V Encontro Nacional
da APDR. Coimbra.
Google/Shopper Sciences. (Abril de 2011). ZMOT. The Zero Moment of Truth Macro Study.
U.S.
Velho, G. (2009, nº 99). Antropologia Urbana - Encontro de Tradições e Novas
Perspectivas. Sociologia, Problemas e Práticas, pp. 11-18.
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Anexos
1 - Mercearia Marinho & Braga na praça do município.
2 - Na entrada lê-se "Trespassa-se".
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3 - Entrada da mercearia.
4 - José Braga
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5 - A organização dos produtos não obedece a um padrão.
6 - O balcão separa o vendedor do cliente.
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7 - Cartuchos utilizados para o embalamento determinados produtos.