17
A Mercearia do Sr. Braga Espaço, práticas e hábitos. 2011/2012 Sócio-Antropologia Urbana e Rural César Barbosa 60336 Docente: Luís Cunha

A Mercearia Do Sr. Braga

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: A Mercearia Do Sr. Braga

A Mercearia do Sr. Braga

César Barbosa Página 0

A Mercearia do Sr. Braga Espaço, práticas e hábitos. 2011/2012

Sócio-Antropologia Urbana e Rural

César Barbosa 60336

Docente: Luís Cunha

Page 2: A Mercearia Do Sr. Braga

A Mercearia do Sr. Braga

César Barbosa Página 1

Índice

Introdução ......................................................................................................................................................................... 2

Metodologia ...................................................................................................................................................................... 3

Contexto Histórico......................................................................................................................................................... 3

Memórias de um merceeiro ..................................................................................................................................... 4

Espaço tradicional vs. Espaço moderno ............................................................................................................. 6

Novos espaços de mercearia ................................................................................................................................. 10

Conclusão ........................................................................................................................................................................ 11

Bibliografia ..................................................................................................................................................................... 12

Page 3: A Mercearia Do Sr. Braga

A Mercearia do Sr. Braga

César Barbosa Página 2

Introdução

Em 1999, o terceiro canal da televisão portuguesa lançava aquele que viria a ser

uma das mais populares séries realizadas em Portugal1. Contando no seu elenco com

Camilo de Oliveira, este protagonizou o papel de dono de uma mercearia antiga,

algures em Lisboa. A personagem interpretada por Camilo interagia com os clientes

numa forma simpática e desconfiada, tentando vender sempre o mais possível.

Naquele bairro todas as pessoas se conhecem e a mercearia funciona como local de

acção central, sendo também um ponto de tertúlia. Camilo representa o merceeiro

devidamente equipado com a sua bata castanha e o próprio cenário procura

representar o estabelecimento tal como uma mercearia tradicional. Este trabalho tem

como ponto de partida este tipo de representações. Através do estudo da Mercearia

Marinho & Braga Ltda., procuraremos perceber como se organiza esta mercearia, dita

tradicional, ao nível do espaço. As memórias de merceeiro serão também abordadas

podendo assim comparar aquilo que mudou nesta mercearia ao longo dos anos. Ao

longo deste trabalho, teremos também em linha de conta as características do mundo

líquido (Bauman, Modernidade Líquida, 2001) das grandes superfícies em comparação

com esta mercearia do tipo tradicional. Na parte final, olharemos, ainda de que forma

breve, as novas mercearias que procuram trazer para o séc. XXI um revivalismo daquilo

que é mais tradicional.

1 Esta série foi originalmente transmitida em 1999 pela SIC.

Page 4: A Mercearia Do Sr. Braga

A Mercearia do Sr. Braga

César Barbosa Página 3

Metodologia

Este trabalho foi realizado entre Outubro e Dezembro de 2011 com o recurso à

investigação do tipo qualitativa. Face ao nosso objecto de estudo utilizámos dois

métodos de investigação de forma a recolher a informação necessária para este

trabalho. A primeira técnica utilizada foi a entrevista semi-estruturada. As perguntas

colocadas ao entrevistado foram abertas. Pretendemos, com esta técnica, dar

liberdade ao entrevistado dentro do tema que nos propusemos a tratar. A segunda

técnica utilizada foi a observação realizada no próprio espaço da mercearia, onde foi

possível compreender a forma de organização daquele espaço.

Contexto Histórico

A mercearia que tratámos neste estudo encontra-se no coração da cidade de

Braga, no norte de Portugal. Foi na praça do município que esta mercearia nasceu em

1921 com o nome de J. Ferreira & Companhia. Este estabelecimento foi gerido desde

este ano até 1968 por dois irmãos que contavam com dois funcionários até então. Foi

um destes funcionários, actual gerente da loja, que encontramos nesta mercearia. O

seu nome é José Braga, nascido em 1932, começou a laborar na mercearia da praça do

município com 14 anos, em 1946. Desde esta data até 1968, trabalhou ali como

funcionário. A data em que Marcelo Caetano sucede a António de Oliveira Salazar na

presidência do concelho de ministros do Estado Novo coincide com a data em que José

Braga, em conjunto com o seu colega de trabalho, Manuel Marinho adquire a

mercearia J. Ferreira & Companhia. A partir desse momento passa a chamar-se de

Mercearia Marinho & Braga Lda. Actualmente é apenas o Sr. Braga que gere toda a

mercearia devido ao falecimento do seu sócio.

Enquadrando-nos historicamente com a própria cidade de Braga, esta sofreu

um crescimento exponencial durante todos estes anos. Em termos de população, nos

anos de 1920, a cidade dos arcebispos contava com cerca de cinquenta e sete mil

habitantes. No final dos anos 1960 registam-se cerca de noventa e três mil habitantes,

enquanto pelos registos do último recenseamento, o número dobrou para cerca de

Page 5: A Mercearia Do Sr. Braga

A Mercearia do Sr. Braga

César Barbosa Página 4

cento e oitenta mil habitantes.2 O progressivo aumento de população está a ligado a

um aumento de consumidores e o comércio tradicional é de grande importância para

o crescimento da cidade, pois, este pode servir para reter os rendimentos gerados

localmente tal como atrair rendimentos que são externos à cidade (J.Cadima Ribeiro,

1998).

Memórias de um merceeiro

Em meados de Novembro de 2011, tivemos a primeira abordagem à mercearia.

Numa das esquinas de um edifício adjacente à praça do município, encontramos umas

longas portas de madeira pintadas numa desgastada tonalidade de verde esperança.

Nos vidros das janelas daquele estabelecimento lê-se “Trespassa-se” num cartaz

formulado a computador. Podia ser este um sinal de modernização e consequente

perda daquilo que é tradicional, mas este cartaz parecia confirmar aquilo que pré-

concebíamos quanto a este tipo de espaços tradicionais, cada vez mais difíceis de

encontrar e com dificuldades para se manterem sustentáveis face à exigência da

economia contemporânea. Lá dentro encontramos José Braga, envolto na sua bata

cinzenta, ajeitando umas caixas de fruta encostadas a um dos pilares de suporte do

edifício. Logo no primeiro momento que falámos com José Braga, apresentando-lhe

aquilo que gostaríamos de fazer com este trabalho, este alertou-nos para o facto de

ser bastante complicado manter um negócio daquele género hoje em dia; “A

concorrência das grandes superfícies é muita”, referia-nos o proprietário deste

estabelecimento. Esta é uma das características da passagem de uma modernidade

hardware-focused para uma modernidade software-based. Nesta última privilegia-se a

competição em vez da solidariedade. A solidariedade nas cidades devia-se aos laços de

parentesco e de vizinhança que uniam comunidades e corporações (Bauman,

Confiança e Medo na Cidade, 2009) que viriam a perder força devido ao princípio

económico do laissez-faire3.

2 Dados retirados de www.ine.pt

3 Expressão da doutrina do liberalismo económico que se refere ao princípio de que o mercado deve

funcionar livremente, sem regulação do estado.

Page 6: A Mercearia Do Sr. Braga

A Mercearia do Sr. Braga

César Barbosa Página 5

No início do mês de Dezembro voltamos à mercearia para aí, sim, termos uma

conversa com José Braga no sentido de percebermos o que tinha mudado nesta loja de

comércio retalhista. Todo o seu discurso se pautou por uma diferenciação entre os

tempos antigos e modernos. Pouco passavam das quinze horas, hora de abertura do

estabelecimento, e aí, José Braga começou por nos descrever como era o horário de

laboração quando entrou para a mercearia como funcionário. Em 1946, não havia

semana-inglesa, a jornada de trabalho terminava apenas às vinte e uma horas,

inclusive ao sábado. O dia de folga nesta altura era apenas o Domingo. Apesar de nem

todas as classes profissionais terem aderido na mesma data à semana-inglesa, estima-

se que o primeiro Sábado em que se gozou desta lei terá sido em sete de Janeiro de

19614. José Braga recorda-nos, que ao contrário do que se passa hoje com a liberdade

de horário para o comércio tradicional, naquela altura “o horário tinha de ser

cumprido rigorosamente, se a gente fechasse mais tarde podíamos ser autuados, e

algumas vezes fomos. Depois da hora tínhamos de fechar a porta e só se atendia os

clientes que estavam lá dentro”. Esta memória leva José Braga a referir que na época

em que ele adquiriu a mercearia trabalhava-se muito, havia muitos clientes.

Perguntamos se este tinha sido o melhor período para a mercearia, ao que de forma

assertiva, responde José Braga: “Não digo que este fosse o melhor período, mas

eramos novos e não pensávamos em tristezas.” Acrescenta ainda que por ele já tinha

fechado a mercearia, mas não o faz devido à família que o pressiona em sentido

contrário. Para o merceeiro, este tipo de casas “são para acabar”, muito devido ao

advento das grandes superfícies5. Conformado, José Braga refere que “naquele tempo

era vida alegre e fato roto” numa clara alusão saudosista a uma época em que a

mentalidade do trabalho “longo-prazo” predominava. Hoje com a passagem para a

modernidade líquida, emergiu a mentalidade de “curto-prazo”, regulada por uma vida

de trabalho cheia de incertezas (Bauman, Modernidade Líquida, 2001).

4 A 7 de Janeiro de 1961, na edição 13674 do Diário de Lisboa escreve-se “Por despacho do ministro do Interior, os funcionários administrativos passam, a partir de hoje, a ter a tarde de sábado livre. Para o efeito, terão de trabalhar, durante toda a semana, mais meia hora.” 5 Na cidade de Braga, a primeira grande superfície comercial foi o Feira Nova que abriu em 1989.

Page 7: A Mercearia Do Sr. Braga

A Mercearia do Sr. Braga

César Barbosa Página 6

Espaço tradicional vs. Espaço moderno

Abordemos, agora, como se organizava esta mercearia, através das suas

práticas características da organização do espaço e ainda procuremos traçar um

contraponto com as grandes superfícies de hoje em dia.

Um dos traços característicos daquilo que é tradicional é o balcão. Este cimenta

uma certa distância entre o cliente e o vendedor. O cliente não tem acesso à grande

parte dos produtos, estando o espaço atrás do balcão restringido apenas ao

merceeiro. Neste espaço, José Braga, sabe minuciosamente onde se encontra cada

produto. Além de manter uma certa distância entre os dois actores, é no balcão que se

situa a balança, onde se pesam os produtos e é nele que se colocam os mesmos para

serem partidos. Toda a interacção é dividida por este delimitador, desde o pedido de

determinado produto até ao pagamento do mesmo. Nas grandes superfícies, o acesso

a grande parte dos produtos é livre, estando até envolvida uma certa organização

científica dos produtos, apelando a um maior consumo dos mesmos. São até

realizados estudos sobre o conceito moment of truth6 (Google/Shopper Sciences,

2011). Uma das diferenças entre uma típica mercearia tradicional e um hipermercado

é que os últimos são de cariz self-service. Os primeiros estabelecimentos self-service

surgiram no final dos anos 1910 e a partir daí expandiram-se a um ritmo muito

elevado. Nos Estados Unidos, este formato foi um choque para grande parte da

população, mas os preços que ofereciam eram bastante mais baixos que noutro tipo

de estabelecimentos (Ellickson, 2011). No entanto, podemos notar que em alguns dos

espaços do hipermercado, está presente o balcão, nomeadamente na parte da peixaria

e charcutaria. Apesar de o pagamento ainda se efectuar por intermédio de um balcão

entre o funcionário e o cliente, este tende a desparecer, estando as caixas automáticas

cada vez mais presentes nestas grandes superfícies. É perfeitamente possível, hoje em

dia, numa grande superfície, entrarmos, comprarmos e sairmos sem ter qualquer tipo

de interacção com os funcionários do estabelecimento. Um dos paradoxos da

6 O conceito moment of truth foi introduzido pela norte-americana Proctor & Gamble que congrega em

si um conjunto de sub-empresas ligadas à alimentação, higiene e limpeza. Este conceito determina o momento em que o consumidor está em frente ao produto e toma a decisão de adquiri-lo.

Page 8: A Mercearia Do Sr. Braga

A Mercearia do Sr. Braga

César Barbosa Página 7

sociedade actual é a substituição de trabalhadores por tecnologia que propicia uma

melhor relação entre custo-eficiência.

“Assim a política de precarização conduzido pelos operadores dos

mercados de trabalho acaba por ser apoiada e reforçada pelas políticas de

vida, sejam elas adoptadas deliberadamente ou apenas por falta de

alternativas. Ambas convergem para o mesmo resultado: o

enfraquecimento e decomposição dos laços humanos, das comunidades e

das parcerias” (Bauman, Modernidade Líquida, 2001, p. 187).

Apesar do balcão ser também ele uma barreira, não oferece as características líquidas

das caixas automáticas, pois atrás do balcão está lá alguém para nos atender.

A forma de pagamento nas mercearias de antigamente era, também ela,

peculiar. A mercearia Marinho & Braga não é excepção e ainda hoje é utilizada a

sebenta. José Braga refere-nos que neste momento apenas tem seis clientes a pagar

desta forma, mas “dantes era tudo de livro, pelo menos a maior parte. Agora nos

poucos que vêm, é quase tudo a dinheiro. Dantes havia muitos clientes e havia muita

confiança” – completa. A sebenta regula o crédito dos clientes e nela estão anotadas a

lista de compras dos mesmos.

“Neste sentido, um instrumento de escrita contável, simples e eficiente,

que o dono da mercearia não podia dispensar era a não menos famosa

“caderneta” – um simples caderno onde se anotava os nomes dos clientes e as

suas respectivas despesas mensais. Os clientes faziam as suas compras e as

despesas eram anotadas na caderneta. No prazo estabelecido, a dívida era

saldada e, imediatamente, era contraída outra – a ser paga no mês subsequente.”

(Silva apud Amorim, 2011, p.102)

Este instrumento eficaz de controlo de consumo e de crédito não tinha qualquer tipo de

cunho formal. A confiança entre merceeiro e cliente eram suficientes para vincular este tipo de

relação de crédito. Caso não houvesse pagamento por parte do cliente, além do risco de ser

mal falado em praça pública, o fornecimento de produtos também lhe era negado. Com

alguma mágoa, José Braga conta que, alguns clientes ainda hoje lhe estão em dívida, mesmo

Page 9: A Mercearia Do Sr. Braga

A Mercearia do Sr. Braga

César Barbosa Página 8

depois de vários meses sem lhes negar “fiado”. Enquanto estivemos à conversa com José

Braga, a própria caixa registadora não foi utilizada, sendo apenas usada uma gaveta para o

efeito. Numa superfície comercial moderna, a forma de pagamento tem algumas semelhanças.

Podemos, naturalmente, pagar a dinheiro, mas no que toca a crédito, a relação diádica recebe

um intermediário. O banco, através do fornecimento de cartões de crédito7 permite-nos gerir

as nossas compras e pagar mensalmente estas despesas. O dinheiro é disponibilizado

electronicamente e o pagamento da factura anterior permite-nos utilizar de novo o cartão,

criando uma nova factura a ser paga no mês subsequente. Na vida moderna, o acesso ao

crédito não se limita apenas a compras de supermercado, mas passou a ser uma característica

presente na roda frenética de consumo da sociedade contemporânea. O pagamento com

recurso ao uso de cartões de crédito é “ […] um acto de todo despersonalizado: na ausência de

comunicação face-a-face, é mais fácil esquecer o desagrado de qualquer indemnização em que

o momento do prazer possa incorrer.” (Bauman, Vida para o Consumo, 2008, p. 135) Assim,

percebemos que o crédito é concedido tanto num espaço tradicional como num espaço

moderno, mas enquanto um é regulado pela confiança, o outro é regulado por uma instituição

financeira.

Na mercearia Marinho & Pinto, observamos que não existe uma organização específica

dos alimentos. Como é possível observar nas fotografias em anexo, não há uma ordem pré-

estabelecida. No caso do arroz, por exemplo, junto aos pilares estavam sacos de 75 kg. José

Braga refere-nos que noutros tempos, “durante o dia despejava-se mais que um saco de

arroz”. O cliente levava o arroz para casa em cartuchos. Estes eram uns sacos de cartão em

que o seu tamanho correspondia a determinado peso. Muitas vezes, e como estes cartuchos

podiam ascender aos 5kg, eram utilizados sacos de pano para os transportar, de forma aos de

cartão não rebentarem. Esta forma de embalamento foi progressivamente abandonada a

partir do momento em que os produtos começaram a vir separados em embalagens de

plástico. O preço vinha, também ele, fixado na embalagem. “A margem de lucro era muito

pequena, mas naquela altura vendia-se muito. Agora a margem é pouca, mas também se

vende pouco” – refere José Braga. Como pudemos observar, apesar de já serem utilizados

sacos plásticos, alguns dos produtos daquela mercearia continuam a ser embalados em folhas

de jornal. O sabão é partido em cima do balcão e depois é habilidosamente embrulhado em

antigas folhas de jornal. Os sacos de plástico apareceram em 1977 nos Estados Unidos como

uma alternativa aos sacos de papel. No ano de 1996, neste país, quatro em cada cinco sacos de

7 O cartão de crédito é um cartão de plástico e a ideia surgiu em 1914 pela Western Union nos Estados

Unidos da América. Em 1997, Portugal foi o líder mundial de transacções electrónicas com recurso a cartão de crédito (Infopédia).

Page 10: A Mercearia Do Sr. Braga

A Mercearia do Sr. Braga

César Barbosa Página 9

comércio retalhista eram sacos de plástico (Food Market Institute, 2008). Ao contrário do

tradicionalismo desta mercearia, num hipermercado, a aventura das compras baseia-se na

condução de um carrinho, no qual armazenámos todos os produtos que desejamos comprar.

Vagueámos por corredores minuciosamente organizados e deixamo-nos invadir por uma

sensação de desorientação, dada a constante troca de produtos de prateleira em prateleira.

A mercearia é também um espaço de interacção. Durante a tarde que estivemos à

conversa com José Braga, contamos seis clientes. Destes seis clientes, nenhum se limitou a

entrar, pedir, pagar e deixar a mercearia. Ora se conversou sobre o tempo, ora sobre o preço

do produto, ora sobre a defesa do S.C. Braga, mas em todos os casos houve um mínimo de

interacção entre vendedor e cliente. José Braga confidencia-nos que conhece toda a gente

naquela zona, afirmando até que é um pormenor que conta nas vendas;

“Não havia cliente aqui nenhum dos arredores, não digo bem nenhum, mas quase

tudo aqui pela beira vinha a esta mercearia. Se nós procurávamos fazer festa aos

clientes, os outros também procuravam fazer o mesmo. Os meus vizinhos às vezes

iam ali à mercearia do campo da vinha e outros de lá vinham a esta. Há clientes

que conversam de futebol, de problemas de saúde e desabafam coisas da vida.”

José Braga beneficia do seu conhecimento, pois mora no mesmo edifício onde se localiza a

mercearia e os seus clientes são, na sua maioria, habitantes daquela zona. Procuramos assim

perceber por que motivo estes clientes continuam a efectuar compras nesta mercearia. A

resposta foi comum, todos eles se justificam pela proximidade ao nível da distância. De referir

também que os clientes com quem tivemos contacto são pessoas, na sua maioria, de idade já

avançada e que vivem naquele local desde muito novos, senão mesmo desde sempre. Como

vimos anteriormente, nas grandes superfícies, este tipo de interacção é praticamente

inexistente, sendo pautado por “ […] encontros fugazes, por gestos apressados que modelam e

atenuam a brutalidade da existência humana e urbana.” (Arruda, 2008, p. 475)

É no espaço que encontramos aquilo que de mais tradicional há nesta mercearia típica.

Apesar de mergulhada na modernidade da cidade, a arquitectura deste estabelecimento

resiste ao tempo. José Braga, apesar de já ter recebido uma proposta da Associação Comercial

de Braga para modernizar a mercearia, rejeitou-a pois esta, não lhe traria grandes vantagens.

Page 11: A Mercearia Do Sr. Braga

A Mercearia do Sr. Braga

César Barbosa Página 10

Novos espaços de mercearia

As mercearias do tipo tradicional, tal como a mercearia que tratámos ao longo deste

trabalho, são cada vez mais difíceis de encontrar. No entanto, nos últimos anos, assistimos ao

emergir de novas formas de mercearia que de certa forma procuram trazer para a actualidade

um certo revivalismo característico de outros tempos. Destacamos aqui dois tipos de

mercearia: a mercearia online e as lojas gourmet8. As mercearias online surgem ao abrigo de

um rápido crescimento da oferta de serviço de compras através da internet.

“Cada vez mais pessoas preferem comprar em websites do que em lojas.

Conveniência (entrega ao domicilio) e economia de gasolina compõem a

explicação imediata, embora parcial. O conforto espiritual obtido ao se substituir

um vendedor pelo monitor é igualmente importante, se não mais.” (Bauman, Vida

para o Consumo, 2008, p. 27)

Em Portugal, a merceariabio9 é um dos exemplos de mercearia online, especializada em

produtos alimentares biológicos que faz a entrega dos produtos porta a porta. Além desta,

encontrámos um sem número de exemplos. A modernidade liquida, com o rápido fluxo de

informação, atribuiu até ao simples acto de ir às compras uma facilidade nunca antes possível.

Noutra vertente mais requintada, encontrámos as mercearias gourmet. Este tipo de

mercearias aponta para um certo elitismo. Os próprios produtos que nela se vendem são, por

norma, de um elevado preço, mas estão carimbados por um nível superior de qualidade em

relação aos produtos que encontramos em qualquer outro espaço de venda de produtos

alimentares. Em Braga, como exemplo destes espaços, temos a Terra Mater e a D’Gourmet10.

Estes espaços gourmet procuram envolver-se num imaginário daquilo que de mais é

tradicional nas antigas mercearias.

8 Gourmet é o nome que se dá aos produtos alimentares associados à alta cozinha. Está ligado a um ideal cultural no que toca a artes culinárias. 9 Os produtos da merceariabio são entregues em qualquer zona do país e as encomendas podem ser feitas através do www.merceariabio.pt 10

A D’Gourmet está situada junto ao Arco da Porta Nova enquanto a Terra Mater localiza-se na Freguesia de Sé, na rua Frei Caetano Brandão.

Page 12: A Mercearia Do Sr. Braga

A Mercearia do Sr. Braga

César Barbosa Página 11

Conclusão

Ao longo deste trabalho procurámos perceber como se organiza uma mercearia

tradicional a partir do estudo da mercearia Marinho & Braga. Observámos também quais as

diferenças e semelhanças entre este espaço de comércio tradicional e os espaços de comércio

moderno. A comparação, na sociedade contemporânea, entre tradicional e urbano pode

tornar-se ambígua se não tivermos em linha de conta uma contextualização histórica, não

abandonando, assim, o binómio passado/presente.

“ Dentro das grandes cidades modernas encontramos desde pessoas e

grupos sociais que mantêm-se, por longos períodos de tempo, em posição socio

espacial de isolamento e estabilidade, até as mais variadas formas de navegação

intensa e exploratória, em alguns casos, quase monádicas”. (Velho, 2009, p. 15)

Além de encontrarmos pessoas ou grupos sociais, também encontramos espaços que resistem

ao tempo e, na imensidão da modernidade líquida, mergulham no caos da cidade preservando

características de outros tempos. A sociedade líquida é como uma hamster wheel que ameaça

deixar para trás quem não tiver força para acompanhar este ritmo de aceleração. As

mercearias tradicionais não conseguem fugir disso, dada a força motriz estar toda ela

concentrada no poder das grandes superfícies comerciais. José Braga lá continua atrás do

balcão e refere-nos que apesar do negócio ser cada vez menos, ainda não é isso que o faz

parar; “Tenho setenta e nove anos e o que me faz parar é a idade. Tenho tido uma vida de

trabalho.”

Page 13: A Mercearia Do Sr. Braga

A Mercearia do Sr. Braga

César Barbosa Página 12

Bibliografia

Amorim, H. R. (2011). Entre a Mercearia e o Supermercado. Recife.

Arruda, P. C. (Maio/Agosto de 2008). Cidades Líquidas. Sociedade e Estado, pp. 469-476.

Bauman, Z. (2001). Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor Ltda.

Bauman, Z. (2008). Vida para o Consumo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor Ltda.

Bauman, Z. (2009). Confiança e Medo na Cidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor Ltda.

Ellickson, P. B. (2011). The Evolution of the Supermarket Industry From A&P to Wal-Mart.

Grocery Store Anti-Trust Conference, (pp. 1-20). University of Rochester.

Infopédia. (s.d.). Cartão de Crédito. Obtido em 10 de Dezembro de 2011, de Infopédia.

Porto: Porto Editora, 2003-2011: http://www.infopedia.pt/$cartao-de-credito

Institute, F. M. (2008). Plastic Grocery Bags - Challenges and Opportunities. Arlington.

J.Cadima Ribeiro, J. S. (1998). Emprego e Desenvolvimento Regional. V Encontro Nacional

da APDR. Coimbra.

Google/Shopper Sciences. (Abril de 2011). ZMOT. The Zero Moment of Truth Macro Study.

U.S.

Velho, G. (2009, nº 99). Antropologia Urbana - Encontro de Tradições e Novas

Perspectivas. Sociologia, Problemas e Práticas, pp. 11-18.

Page 14: A Mercearia Do Sr. Braga

A Mercearia do Sr. Braga

César Barbosa Sócio-Antropologia Urbana e Rural

Anexos

1 - Mercearia Marinho & Braga na praça do município.

2 - Na entrada lê-se "Trespassa-se".

Page 15: A Mercearia Do Sr. Braga

A Mercearia do Sr. Braga

César Barbosa Sócio-Antropologia Urbana e Rural

3 - Entrada da mercearia.

4 - José Braga

Page 16: A Mercearia Do Sr. Braga

A Mercearia do Sr. Braga

César Barbosa Sócio-Antropologia Urbana e Rural

5 - A organização dos produtos não obedece a um padrão.

6 - O balcão separa o vendedor do cliente.

Page 17: A Mercearia Do Sr. Braga

A Mercearia do Sr. Braga

César Barbosa Sócio-Antropologia Urbana e Rural

7 - Cartuchos utilizados para o embalamento determinados produtos.