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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS FACULDADE DE DIREITO DO RECIFE PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO PEDRO PARINI MARQUES DE LIMA A METÁFORA DO DIREITO E A RETÓRICA DA IRONIA NO PENSAMENTO JURÍDICO TESE DE DOUTORADO Recife, Abril de 2013

A METÁFORA DO DIREITO E A RETÓRICA DA … PEDRO... · PEDRO PARINI MARQUES DE LIMA A METÁFORA DO DIREITO E A RETÓRICA DA IRONIA NO PENSAMENTO JURÍDICO Tese apresentada ao Programa

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO DE CINCIAS JURDICAS

    FACULDADE DE DIREITO DO RECIFE PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM DIREITO

    PEDRO PARINI MARQUES DE LIMA

    A METFORA DO DIREITO E A RETRICA DA IRONIA NO PENSAMENTO JURDICO

    TESE DE DOUTORADO

    Recife, Abril de 2013

  • PEDRO PARINI MARQUES DE LIMA

    A METFORA DO DIREITO E A RETRICA DA IRONIA NO PENSAMENTO JURDICO

    Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao

    em Direito da Faculdade de Direito do Recife/

    Centro de Cincias Jurdicas da Universidade

    Federal de Pernambuco como requisito parcial

    para obteno do grau de Doutor.

    rea de concentrao: Teoria e dogmtica do

    direito

    Linha de pesquisa: Linguagem e direito

    Orientador: Prof. Dr. Torquato da Silva Castro Jr.

    Recife, Abril de 2013

  • Catalogao na fonte Bibliotecria Eliane Ferreira Ribas CRB/4-832

    L732m Lima, Pedro Parini Marques de A metfora do direito e a retrica da ironia no pensamento jurdico / Pedro

    Parini Marques de Lima. Recife: O Autor, 2013. 383 folhas : fig. Orientador: Torquato da Silva Castro Jr. Tese (Doutorado) Universidade Federal de Pernambuco. CCJ. Direito,

    2013. Inclui bibliografia. 1. Retrica. 2. Metforas - Aspectos jurdicos. 3. Anlise do discurso -

    Aspectos jurdicos. 4. Linguagem e lnguas. 5. Direito - Linguagem. 6. Direito - Filosofia. 7. Persuaso (Retrica). 8. Argumentao jurdica. 9. Crtica. 10. Conceitos. I. Castro Jr., Torquato (Orientador). II. Ttulo.

    340.1 CDD (22. ed.) UFPE (BSCCJ2013-018)

    http://catalogos.bn.br/scripts/odwp032k.dll?t=bs&pr=livros_pr&db=livros&use=sh&disp=list&sort=off&ss=NEW&arg=linguagem|e|linguashttp://catalogos.bn.br/scripts/odwp032k.dll?t=bs&pr=livros_pr&db=livros&use=sh&disp=list&sort=off&ss=NEW&arg=direitohttp://catalogos.bn.br/scripts/odwp032k.dll?t=bs&pr=livros_pr&db=livros&use=sh&disp=list&sort=off&ss=NEW&arg=persuasao|(retorica)http://catalogos.bn.br/scripts/odwp032k.dll?t=bs&pr=livros_pr&db=livros&use=sh&disp=list&sort=off&ss=NEW&arg=argumentacao|juridica
  • Autor: Pedro Parini Marques de Lima

    Ttulo: A METFORA DO DIREITO E A RETRICA DA IRONIA NO

    PENSAMENTO JURDICO

    Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Direito da Faculdade de Direito do Recife - Centro de Cincias Jurdicas da Universidade Federal de Pernambuco como requisito parcial para obteno do grau de doutor.

    rea de concentrao: Linguagem e direito

    Orientador: Prof. Dr. Torquato Castro Jr. A Banca Examinadora composta pelos professores abaixo, sob a presidncia do primeiro, submeteu o candidato defesa em nvel de Doutorado e a julgou nos seguintes termos:

    Prof. Dr. George Browne Rego

    Julgamento: _______________________________

    Assinatura: _______________________________

    Prof. Dr. Eduardo Ramalho Rabenhorst

    Julgamento: _______________________________

    Assinatura: _______________________________

    Prof. Dr. Karl-Heinz Efken

    Julgamento: _______________________________

    Assinatura: _______________________________

    Prof. Dr. Jos Arlindo de Aguiar Filho

    Julgamento: _______________________________

    Assinatura: _______________________________

    Prof. Dr. Gustavo Just

    Julgamento: _______________________________

    Assinatura: _______________________________

    MENO GERAL:

    __________________________________________________________

    Recife, 24 de abril de 2013.

  • A Janice

  • AGRADECIMENTOS

    A Marina, por suportar a ironia cotidiana.

    A Janice, por t-la suportado antes.

    A Cristina, por me fazer querer levar a srio a cincia e a Joo, pela orientao que nunca termina.

    A Hugo, Diogo, Daniel e Leo, pelo esforo desde sempre em compreender as idiossincrasias.

    A Mariana e Digenes, pelo suporte, pela amizade e pela fora para trabalhar.

    A Flavianne e Alfredo, pelo exemplo de amizade e profissionalismo.

    A Graziela, por me fazer tentar compreender a diferena entre sarcasmo e ironia.

    A Torquato, por compartilhar comigo suas metforas.

  • RESUMO

    LIMA, Pedro Parini Marques de. A metfora do direito e a retrica da ironia no

    pensamento jurdico. 2013. 383 f. Tese (Doutorado em Direito). Programa de Ps-

    Graduao em Direito, Centro de Cincias Jurdicas/Faculdade de Direito do Recife,

    Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2013.

    A tese defende que, para se lidar com a noo de direito, so necessrias habilidade

    potica e criatividade literria. preciso construir metforas, manipul-las e interpret-

    las astuta ou ironicamente. Analisando-se retoricamente estratgias jurdicas, percebe-se

    que a ironia fundamental no pensamento jurdico. Conclui-se que o vocabulrio final,

    e os discursos acerca de fenmenos considerados jurdicos so metaforicamente

    estruturados, ao mesmo tempo em que so apresentados como conceituais ou literais. A

    literalidade tomada pela dogmtica jurdica tradicional como dado inquestionvel, que

    ora corroborado, ora combatido. Entretanto na extraliteralidade proporcionada pela

    metfora e pela ironia que opera o pensamento jurdico. Constata-se que, alm de

    possurem origem metafrica, expresses fundamentais da retrica material dos juristas

    so ironicamente invertidas: nota-se o emprego de justia significando vingana, de

    saber no lugar de querer, de racionalidade ao invs de regularidade. Paradoxos

    e contradies que se formam no pensamento jurdico dissolvem-se diante de alguma

    forma de compreenso irnica. A ironia est em diferentes mbitos da retrica jurdica:

    como ironia de evento, est presente no prprio carter contraditrio das expresses

    empregadas em diferentes contextos; como ironia instrumental, elemento dogmtico

    de persuaso e crtica; como auto-ironia, est na construo e na apresentao das

    teorias jurdicas. O modo irnico de pensar, agir, comunicar e interagir tomado como

    modo de captar o fenmeno jurdico em suas inmeras formas e possveis

    manifestaes na histria.

    Palavras-chave: Retrica jurdica; metfora; ironia.

  • ABSTRACT

    LIMA, Pedro Parini Marques de. Laws metaphor and the rhetoric of irony in legal

    thinking. 2013. 383 p. Doctoral Thesis (PhD of Law) Programa de Ps-Graduao

    em Direito, Centro de Cincias Jurdicas/Faculdade de Direito do Recife, Universidade

    Federal de Pernambuco, Recife, 2013.

    It is argued that, in order to deal with the notion of law, poetic skill and literary

    creativity are demanded. To build metaphors, manipulate and interpret them in an astute

    or ironic way is essential. It is manifest that irony plays a key role in legal thinking. The

    final vocabulary and speeches related to legal phenomena are metaphorically structured,

    however they are presented as being literal-conceptual. Literalness is taken by

    traditional dogmatics as an unquestionable fact. Even though it is therefore in the

    extraliteralness provided by metaphor and irony that legal thinking operates. It is also

    noted that, besides having a metaphorical origin, fundamental expressions which form

    the rhetoric of lawyers are ironically reversed. Examples of these reversions are the

    usage of the concept of justice as meaning revenge, of knowing instead of

    wanting, of rationality rather than regularity. Paradoxes that take place in legal

    thinking are dissolved when confronted with ironic understanding. Irony is in several

    different areas of legal rhetoric: as irony of fact, it is present in the contradictional

    meaning of expressions in different contexts; as instrumental irony, it is part of

    dogmatic strategies of persuasion and critique; as self-irony, it is present in the

    construction and presentation of legal theories. As a result, an ironic way of thinking,

    acting, communicating and interacting may well become the appropriate way to capture

    the legal phenomenon in its many forms and possible manifestations in history.

    Keywords: Legal rhetoric; metaphor; irony.

  • Sumrio

    INTRODUO ................................................................................................................. 9

    I Metfora e ironia na anlise retrica do direito ....................................................... 9

    II Metodologia: a filosofia de cunho retrico e a auto-ironia desta tese ................... 13

    III Roteiro de exposio ............................................................................................. 20

    PARTE I A METFORA DO DIREITO .................................................................. 22

    Captulo 1 Retrica da ontologia ou ontologia da retrica? Os pressupostos

    fundamentais de uma concepo irnico-metafrica do direito ................................. 22

    1.1 A noo de direito entre conceito e metfora ........................................................ 22

    1.2 A estratgia retrica de reificao do direito pela linguagem metafrica ............. 34

    1.2.1 O essencialismo objetivista e categrico da linguagem jurdica ........................... 34

    1.2.2 As remotas origens da tese subjetivista e seu reflexo na linguagem mtico-

    potica do direito ................................................................................................... 47

    1.2.3 O carter metafrico da noo de direito de acordo com o realismo jurdico

    escandinavo ............................................................................................................ 52

    1.3 O mundo no dado, mas construdo do direito: conhecimento, produo e

    construo retrico-esquemtica das narrativas do direito .................................... 58

    Captulo 2 Teorias da metfora como pontos de partida para uma

    compreenso metafrica do direito ................................................................................ 77

    2.1 Teorias construtivistas da metfora: metfora como estrutura cognitiva da

    linguagem convencional ........................................................................................ 77

    2.2 Metfora e convencionalismo da comunicao humana: o sentido figurado

    produzido pela violao de mximas conversacionais .......................................... 88

    2.3 O sentido literal da metfora ................................................................................. 96

    2.4 Linguagem figurada e formao de um plano autnomo de existncia da

    metfora do direito ............................................................................................... 100

    2.4.1 As conexes metafricas entre a produo do direito e sua apresentao .......... 100

    2.4.2 A realidade metafrica do direito ........................................................................ 105

    Captulo 3 Linguagem jurdica metafrica e a produo retrica de verdades

    discursivas no direito ..................................................................................................... 120

    3.1 A linguagem jurdica dogmtica e o sentido literal no lugar do metafrico ....... 120

    3.2 Epistemologia da metfora e produo de conhecimento na prtica do direito .. 133

    3.2.1 A proibio e o desestmulo do estudo da retrica entre os juristas como

    paradoxo .............................................................................................................. 133

    3.2.2 A independncia da verdade metafrica em relao aos enunciados literais ...... 138

    Captulo 4 O papel das metforas na construo de modelos cientficos na

    teoria do direito .............................................................................................................. 148

    4.1 A cincia do direito como escrita ..................................................................... 148

    4.2 Os modelos cientficos como metforas para a configurao do direito ............. 159

    4.2.1 A capacidade de redescrio potica prpria da imaginao cientfica do

    jurista... ................................................................................................................ 159

    4.2.2 Modelos como ponto de referncia para as construes de juzos prescritivos

    e descritivos da realidade jurdica ........................................................................ 177

  • PARTE II A IRONIA DO DIREITO ....................................................................... 185

    Captulo 5 Definio e formas de ironia: a ironia como metfora complexa

    das incongruncias e contradies do ser .................................................................... 185

    5.1 Da ironia como figura retrica ironia constitutiva da personalidade ou

    estilo de existncia ............................................................................................... 185

    5.2 A ironia como determinao da subjetividade experimental e provisria .......... 198

    5.3 O problema do conhecimento e da verdade diante da ironia ............................... 206

    Captulo 6 O srio e o irnico no jurista ................................................................... 222

    6.1 Confiado e desconfiado no direito: o jurista e sua necessidade de crer e

    duvidar ................................................................................................................. 222

    6.2 Otimismo e pessimismo na doutrina do direito: positividade e negatividade

    doutrinria do artista que pretende construir e destruir mundos .......................... 237

    6.3 A ironia no cu dos conceitos jurdicos ............................................................... 246

    Captulo 7 Ironia como garantia de credibilidade do discurso jurdico ................ 260

    7.1 A ironia jurdica do discurso volitivo que se apresenta como cognitivo ............. 260

    7.2 O jurista irnico quando s pode crer, mas, no s espera, como afirma ter

    certeza epistmica de seu conhecimento ............................................................. 270

    7.3 O saber do jurista entre simples sabena e sabedoria (phrnesis/sopha) ....... 285

    7.3.1 Justia e segurana como lugares-comuns para uma lgica do raciocnio

    jurdico ................................................................................................................. 285

    7.3.2 A sabedoria do jurista como phrnesis ............................................................... 295

    Captulo 8 O velado e o oculto do discurso irnico na retrica do direito: o

    que se quer e o que se pode fazer ver ........................................................................... 305

    8.1 A ironia nos trs planos da retrica: material, prtica e analtica ........................ 305

    8.2 A ironia na retrica material do operador do direito: a ironia irrefletida da

    linguagem-objeto dos juristas .............................................................................. 314

    8.3 A ironia na retrica prtica da atividade terico-dogmtica: a ironia como

    expediente estratgico de consolidao da dogmtica jurdica ........................... 337

    8.4 A ironia na retrica analtica da teoria e da filosofia do direito: a ironia como

    constituio de um mundo terico prprio do jurista .......................................... 357

    Concluso ....................................................................................................................... 371

    Referncias ..................................................................................................................... 373

  • INTRODUO

    I Metfora e ironia na anlise retrica do direito

    For the determined ironist any

    anomaly or incongruity is ironic, and

    almost any phenomenon can be seen as

    incongruous in some light or other: what is

    not incongruous viewed locally will be

    found so when placed in a larger context.

    (BOOTH, 1974, p. 236)

    H tempos convivo com a intuio de que, toda vez que me falavam sobre o

    direito, fossem meus professores, colegas, alunos, eu deveria tomar por significado o

    talvez no exatamente, mas de algum modo oposto do expressado. No sei se foram as

    diversas situaes relatadas que de to curiosas resultaram na minha suspeita, ou se a

    desconfiana j me habitava a mente antes de ouvi-los. Cheguei, de qualquer modo,

    generalizao de que juristas tendem a falar o contrrio do que dizem falar, expressam-

    se metaforicamente e raciocinam ironicamente: dizem estar certos no reino das aporias,

    falam a lngua da objetividade na terra dos critrios subjetivos, afirmam aterem-se aos

    mais ordinrios conceitos literais enquanto elaboram as mais refinadas e sofisticadas

    metforas.

    Tais pensamentos me levaram seguinte hiptese: direito metfora e

    compreend-lo importa ironia. Nunca se definiu satisfatoriamente um conceito de

    direito, porque direito no conceito, mas na qualidade de metfora foge a delimitaes

    ou demarcaes categoriais ntidas. No entanto, enquanto tradicionalmente a

    compreenso do direito pressupe o estabelecimento de seu conceito, ironicamente o

    que se apresenta so metforas indefinveis que no se deixam conceituar. Sem esforo

    irnico no possvel levar o jogo do direito a srio. Isto , s ironicamente possvel

    aceitar ou construir discursos que levem em considerao um conceito de direito. Esta

    a pressuposio fundamental de que parte a tese.

    Sou capaz de entender a nsia do leitor da tradio jurdica por uma definio,

    mesmo que preliminar, do que entendo, no contexto dessa tese, por metfora e ironia.

    Acostumado a ter o conceito como ponto de partida para o conhecimento, natural que

    o estudioso do direito reivindique definies sobretudo, categoriais, para parte da

  • 10

    tradio das palavras que so empregadas antes de comear o trabalho de

    compreenso. Reconheo que isso seria tambm de se esperar em um trabalho

    acadmico: definir as palavras para seguir adiante. No entanto, diante da dificuldade de

    se estabelecer contemporaneamente um sentido unvoco, mesmo que estratgico, para

    os tropos em geral e, em especial, para a metfora e para a ironia, sugiro que o leitor

    aguarde ou antecipe a discusso do Captulo 2 e do Captulo 5 de acordo com sua

    necessidade. Recomendo, contudo, que, se puder esperar, empregue sua prpria intuio

    sempre que essas palavras aparecerem. Esse precisamente o propsito do percurso do

    texto. Uma definio sinttica e preliminar poderia tornar-se prejudicial prpria

    compreenso do problema. De toda sorte, entendo que a definio de metfora proposta

    por George Lakoff e Mark Johnson (1980), parece mais adequada. Com relao ironia,

    costumo pens-la num sentido entre o proposto por Kierkegaard (2006) e o oferecido

    por Wayne Booth (1974), isto , entre uma abordagem metafsica e outra retrica.

    Como objetivo geral, a tese procura compreender e apresentar a noo de direito

    ironicamente como metfora do conceito de direito. Parte-se, pois, da proposio de

    que compreender a metfora do conceito de direito implica, de alguma forma,

    compreend-lo ironicamente. Isso porque o que se apresenta superficialmente nas

    teorias do direito o conceito se ope ao que de fato significado a metfora.

    Assim, portanto, se esta tese se confirma, o modo irnico de pensar, agir,

    comunicar e interagir pode vir a se tornar a maneira mais apropriada de captar o

    fenmeno jurdico em suas inmeras formas e possveis manifestaes na histria. Se o

    prprio jogo de compreenso da metfora do direito irnico, porque se apresenta em

    oposio quilo que , torna-se ento imprescindvel pens-lo ironicamente. S

    ironicamente seria possvel levar a srio o que se afirma sobre o direito no s na prtica

    da atividade dogmtica, como tambm nas teorias que o representam procurando defini-

    lo literalmente enquanto conceito.

    Como objetivo especfico, a tese procura investigar se esta ironia est presente

    no prprio direito de forma objetiva, na maneira subjetiva de compreend-lo, ou no

    modo relativamente controlado de apresent-lo.

    Para resolver esse problema, preciso impor uma advertncia preliminar a todos

    que pretendem cutucar a ironia: o grande risco que se corre ao perseguir a ironia, isto

    , ao tentar entend-la para depois empreg-la como chave de leitura para um fenmeno

    qualquer, que se pode passar a ver ironia em tudo. A ironia como expresso de uma

  • 11

    negatividade absoluta (KIERKEGAARD, 2006, p. 222) ou ainda como momento

    dialtico da ideia que corresponde a uma negatividade absoluta e infinita (HEGEL,

    2000a, p. 92) pode se transformar num potente centro de gravidade que tudo para si

    atrai e instantaneamente consome. No caso de Hegel, em relao noo de ironia

    cunhada pelos romnticos, a negatividade irnica implica a vacuidade do concreto e a

    nulidade de tudo o que objetivo ou possui valor imanente. Assim, no se pode tomar

    qualquer verdade a srio, nem mesmo ou talvez, especialmente a verdade da ironia.

    Uma parte da ironia jurdica, portanto, talvez esteja no prprio direito (ou na

    noo que se tem de direito), no seu modo de ser, mas tambm no seu modo de aparecer

    e na forma de compreend-lo. A metfora do direito pode ser encarada como uma rede

    irnica de interaes que se manifesta na experincia e que compreendida e

    apresentada numa ainda mais complexa trama de ironias, cada vez mais reflexivas e, o

    mais importante, imperceptveis como tal, isto , como sendo irnicas.

    O que diferencia afinal o irnico do no-irnico?

    Um discurso no-irnico pode ser ameaado constantemente pela ironia. Isto , a

    cada nova sentena, o discurso torna-se suscetvel de ser tomado completamente como

    irnico. Diante da suspeita de presena de ironia, h constantemente uma reavaliao

    crtica daquilo que foi tomado seriamente, isto , literalmente. Isso porque uma simples

    frase pode acabar com a seriedade do discurso e fazer com que o interlocutor passe a ver

    ironia retroativamente em relao a toda a parte anterior do discurso, previamente

    tomada como sria ou literal. O contrrio, no entanto, no pode acontecer: no se pode

    desfazer a ironia e converter o discurso figurado em um discurso literal. Nenhuma

    sentena posterior pode endireitar ou desironizar o discurso irnico (BOOTH, 1974,

    p. 51). Talvez por essa razo no exista no nosso vocabulrio o verbo que corresponde

    ao contrria de ironizar. E, sem dvida, isso faz a ironia, ou o discurso irnico, ser

    mais potente em relao ao no-irnico. isso que, paradoxalmente, proporciona ao

    discurso indireto da ironia um grau de confiana maior se comparado ao discurso

    literalizado. Aquilo que apenas suscitado em uma possvel relao de oposio,

    justamente porque no explicitado ou literalizado, propicia uma maior grau de

    expectativa de consenso de um consenso acerca do no revelado, mas apenas intudo,

    esperado, ou acreditado. A partir dessa hiptese, pretendo desenvolver a tese de que ,

    portanto, o modo irnico de compreender o direito que proporciona um sentimento de

  • 12

    segurana, certeza e confiana de quem de uma forma ou de outra se envolve na retrica

    jurdica, seja em sua retrica prtica, material ou terica.

    Para desenvolver esse trabalho de compreenso irnica do fenmeno jurdico

    preciso, em primeiro lugar, obviamente entend-lo de maneira no-literal. A extra-

    literalidade da ironia subentende a identificao da noo de direito com alguma forma

    de linguagem metafrica, figurada ou imagtica. Se a teoria jurdica, a que chamarei

    ortodoxa, empenhou-se como pretendo apresentar ao longo do trabalho em definir o

    conceito de maneira literal, levando o direito a srio, o propsito aqui ser de apresentar

    o direito como uma metfora que se compreende ironicamente. A minha tese de que

    nada h de literal no conceito de direito, seno metforas que, ironicamente, deixaram

    de ser apresentadas como figuras ou tropos, em razo de exigncias supostamente

    racionalistas e reducionistas que moldaram a imagem cristalizada no pensamento

    jurdico moderno.

    No entanto, a compreenso moderna dos vrios conceitos de direito oferecidos

    pela teoria no conseguiu superar o carter metafrico, imagtico, mgico-mstico das

    compreenses originrias de diferentes noes de direito. O pensamento moderno no

    foi capaz de literalizar o pensamento antigo, isto , de substituir uma linguagem

    metafrica arcaica por outra literal.

    No possvel opor o pensamento jurdico moderno ao pr-moderno afirmando

    simplesmente que enquanto o primeiro racional o segundo irracional. So formas

    distintas de racionalizao dos fenmenos jurdicos. Como diz Alf Ross (1961, p. 20), a

    estrutura do conceito de direito remonta a essas antigas noes mgico-msticas, mas

    isso no significa que essas noes pr-modernas sejam fices puramente acidentais,

    pelo contrrio, surgiram de um processo de racionalizao de vivncias jurdico-morais

    semelhantes s de hoje. Portanto, da mesma forma em que h uma racionalidade nas

    propostas modernas de definio do conceito de direito, h racionalidade tambm nas

    formas mticas de sua compreenso alegrica ou metafrica pr-moderna. Contudo,

    outro tipo de racionalidade, determinada pelos tpoi ento vigentes. possvel afirmar

    que cada poca ou cada contexto histrico determina seus parmetros de racionalidade

    de acordo com suas imagens prprias, suas maneiras particulares de produzir metforas

    no gostaria de dizer mais uma vez, mas me sinto obrigado e seus paradigmas.

    Entenda-se racionalidade aqui no sentido mais abrangente de justificao retrica dos

    critrios de verdade, correo, realidade, conhecimento e justia.

  • 13

    Se o esforo ortodoxo da teoria jurdica de compreenso literal do significado

    do conceito de direito, a compreenso irnico-metafrica, na qualidade de sua anttese,

    ser patentemente heterodoxa. Talvez entender o significado do direito requeira

    justamente uma compreenso desse tipo, heterodoxa, que no leva o direito a srio e que

    defende a impossibilidade de qualquer definio literal de seu significado, seja no

    contexto de uma racionalidade mtica ou pr-moderna, seja no mbito de uma

    racionalidade cientfica ou moderna. Mesmo que, concomitantemente, no se possa

    desprezar o conceito nem o esforo retrico de representao literal que fazem parte das

    estratgias operacionais do trabalho jurdico.

    Dessa forma, metfora e ironia so duas formas complementares de

    comunicao indireta capazes de representar os fenmenos jurdicos que nos chegam

    igualmente de forma indireta. Parte-se do princpio de que no h contato direto ou

    linear entre o sujeito e o objeto quando se trata do jurista e do jurdico. Essa interao

    que h entre jurista e direito que pode ser compreendida em termos de uma relao

    entre sujeito cognoscente e objeto a ser conhecido, ou ainda entre intrprete e

    significado sempre tortuosa, oblqua, indireta e requer uma srie de saltos sobre

    contradies, peties de princpio, aporias e paradoxos com a ajuda da f e de

    esperana prprias do modo de pensar dogmtico. No direito, quando o sujeito irnico

    percebe, por exemplo, que se chega justia por meio da injustia, ou que se impe a

    paz por meio da violncia, ele percebe que tudo no passa de um grande jogo, de uma

    grande brincadeira, de uma performance bem-sucedida em criar a realidade artificial em

    cujo interior nos auto-impomos a necessidade de viver com naturalidade.

    II Metodologia: a filosofia de cunho retrico e a auto-ironia desta tese

    A tese pressupe que o direito, em seus nveis ntico, prtico e terico1, se

    subdivide em trs diferentes retricas que se referem respectivamente aos planos

    lingusticos a) dos prprios textos normativos, b) do vocabulrio estratgico da

    dogmtica jurdica e c) dos modelos da teoria e da filosofia do direito. Nada obstante,

    tenho conscincia de que essa tripartio em nveis retricos do direito tem, da mesma

    1 Essa mais uma redefinio possvel do modelo em trs planos ou nveis de linguagem da retrica

    analtica estruturado por Ottmar Ballweg (retrica material, retrica prtica e retrica analtica).

  • 14

    forma, um carter retrico e, portanto, tpico ou circunstancial, e tambm estratgico,

    de impor uma determinada viso terica a uma restrita comunidade de leitores. Uma

    tese de doutorado em retrica jurdica no pode se autonegar, isto , no pode negar

    suas pretenses de cientificidade, demonstrabilidade, comunicabilidade e todas as outras

    que lhe so acessrias. Pelo contrrio, fazer uma tese de doutorado de acordo com os

    padres normativos no somente tcnicos, mas tambm jurdicos, morais (e por que no

    teolgicos?) da universidade um forte indcio de respeito e reverncia academia,

    forma de sua concepo e ao papel social e poltico que desempenha. No momento em

    que se afirma (ou pelo menos se supe) que o direito e as coisas que se dizem sobre o

    direito (isto , o que compreende tanto o prprio conjunto de textos normativos, quanto

    os discursos elaborados pela dogmtica e as reflexes de teoria e filosofia jurdicas) so

    uma forma de retrica, implica-se necessariamente que os argumentos dessa tese

    formam tambm uma retrica. Mas no uma retrica material, e sim uma retrica com

    pretenses analticas e reflexivas sobre um objeto que tambm fenmeno retrico. Por

    ser retrica, isto , por, em parte, se declarar uma prtica retrica ao mesmo tempo em

    que no se quer reconhecer como sendo apenas uma retrica que no vai alm da

    metfora que , o prprio direito se faz irnico.

    Dessa forma, irnica uma tese de doutorado que parte em primeiro lugar da

    hiptese de que o direito metafrico, porque sua linguagem a linguagem material

    que o constitui metafrica, no havendo, portanto, qualquer conceito ou objeto

    algum a ser definido e, em segundo lugar, de que o processo para compreend-lo e p-lo

    em prtica da dogmtica, da teoria e da filosofia do direito irnico porque nega,

    mesmo que s de maneira aparente, a sua origem metafrica enquanto dela retrico-

    dependente. A ironia da tese est em procurar definir o indefinvel, em criticar

    racionalmente a prpria racionalidade na qual se insere.

    A dependncia do direito em relao retrica que procuro desenvolver aqui no

    mbito desse trabalho pode ser resumida da seguinte forma: se no fossem as suas

    metforas e a atitude irnica de sua compreenso, os juristas no poderiam falar sobre o

    direito; e se pudessem falar, no seriam capazes de se fazerem ouvir; e se conseguissem

    serem ouvidos, no poderiam convencer ou persuadir. O direito uma construo

    retrica que depende da fora de suas metforas, do sucesso das estratgias de

    compreenso e dos diferentes modos de representao discursiva.

  • 15

    Pretende-se aqui, pois, desenvolver a hiptese subsidiria de que as construes

    dos discursos tericos e prticos dos juristas dependem de sua capacidade imaginativa

    de manipular metforas, pois o estabelecimento de um novo jogo de linguagem em que

    novos sentidos devero se manifestar requer uma habilidade com o entrelaamento de

    diversas figuras, algumas mais outras menos, complexas. A ironia, por sua vez, est em

    apresentar o discurso como um conjunto de enunciados literais, isto , como uma

    retrica conceitual, quando na verdade a possibilidade de manipulao e composio de

    novas metforas e a pseudo-literalizao de metforas velhas e supostamente mortas

    mesmo que o debate acerca da vida e morte das metforas no seja pacfico entre seus

    estudiosos fundamental para um desempenho retrico satisfatrio em relao aos

    propsitos que se lhe impem.

    Evidentemente, faz parte da tese, a tarefa de dizer o que o direito e o que o

    direito no em termos retricos, ao modo das demais propostas de compreenso e de

    descrio do conceito de direito e da natureza do jurdico. Claro que o ser do direito

    aqui entendido como a metfora de um sujeito que se liga a um predicado, mas que

    justamente por isso no escapa metfora da conexo ou da ligao de algo que

    est sujeito a algo que predica. preciso ter em mente que nos arriscamos

    constantemente quando dizemos que algo alguma coisa. Mesmo que se saiba que

    no h outro modo de contornar o problema da justaposio de um predicado a um

    sujeito. Da mesma forma, existe a necessidade de se rejeitar as compreenses e

    descries da prpria reflexo jurdica que no reconhecem o seu carter retrico.

    Entretanto a estratgia, diferentemente, no a de refutar as teorias ou as formas de

    compreenso que se tem do direito, mas de se redescrever o direito como metfora de

    vrias retricas possveis a partir de um vocabulrio terico prprio da retrica terica e

    filosfica.

    Retoricamente, toda nova proposta de compreenso de um fenmeno ou de

    assimilao da racionalidade intrnseca a um objeto uma redescrio ou reformulao

    de um vocabulrio que ocorre por meio do estabelecimento de novas metforas. Todo

    projeto desse tipo leva a uma obra impregnada de propsitos ideolgicos de impor uma

    viso de mundo parcialmente particular, por meio de uma estrutura apenas em parte

    objetivada ou precariamente compartilhada por uma comunidade de indivduos. Uma

    redescrio a partir de novos termos, ou pelo menos de termos diferentes, mas que

    mantm a forma do trabalho cientificamente e, portanto, metodologicamente

  • 16

    compromissado, uma ironia autorreferente ou, simplesmente, uma auto-ironia

    (MUECKE, 1995, p. 59), em que os papis de ironista e objeto so combinados, como

    por exemplo, autor (ironista) e tese (objeto). Se o pensamento jurdico irnico, dentre

    outras razes, por no se reconhecer explicitamente como sendo retrico e por

    estrategicamente no revelar o carter metafrico do direito, uma tese de doutorado em

    filosofia do direito ela mesma uma ironia quando aceita ser tese e prope tambm ela

    uma filosofia, mesmo que assumindo a posio do iron (), isto , de quem pratica

    a eironia () (MUECKE, 1995, p. 31) ou a retrica da dissimulao

    autodepreciadora e da modstia simulada.

    evidente que no ser possvel partir do nada, e recorrer apenas a um

    vocabulrio agora, neste momento, inventado ou imaginado. Os conceitos e as

    dicotomias tradicionais da linguagem da filosofia ocidental fazem parte da metodologia

    a que se submete pesquisa e da prpria concepo da crtica presente no texto. Ainda

    , e por um bom tempo provavelmente continuar a ser, preciso lidar com as noes

    dicotmicas, antagnicas e bipolares de literal/metafrico, racional/irracional,

    cientfico/literrio, objetivo/subjetivo etc. largamente empregadas nos vocabulrios

    filosficos da Modernidade. Mas, da mesma forma que a filosofia moderna foi capaz de

    elaborar uma nova redescrio da prpria filosofia com o desenvolvimento da

    epistemologia e o abandono ou reformulao da metafsica dos conceitos de arch,

    aret, lgos, semeon, phsis, dke etc., o que se pode impor desde j o fato de que

    estamos lidando com metforas e, portanto, fato, verdade, racionalidade,

    igualdade, subjetividade so palavras no gostaria de escrever que so somente

    palavras e que cada uma dessas palavras pode ser empregada para diferentes

    propsitos retricos, ou seja, estratgicos e persuasivos mesmo no que se refere

    instruo.

    Quando me vejo obrigado a recorrer a outros vocabulrios com o intuito de

    redescrever um determinado estado de coisas a partir de uma filosofia retrica, por

    exemplo, sou levado a pensar a comunicao como um conglomerado de formas

    distintas de persuaso com inmeros objetivos e no de troca de mensagens que

    pressupe a linguagem como sendo apenas um meio para o intercmbio de informaes.

    Portanto, retoricamente, comunicar persuadir, o que vale dizer que expressar-se

    impor aos nossos interlocutores e do mesmo modo impor-se as prprias metforas,

    ou seja, a prpria viso esquemtica e imagtica de mundo e de si mesmo. assim que

  • 17

    palavras que so amplamente empregadas de forma duradoura para descrever um

    conceito na filosofia no-retrica, isto , uma filosofia que no se reconhece como

    manifestao retrica, devem ser novamente reformuladas, estabelecendo novos usos ou

    mesmo restabelecendo antigos significados j no mais em voga estratgia comum na

    filosofia e no contnuo processo de reinvent-la. A reformulao de termos, ou a

    redescrio do mundo por meio de novas metforas ou novos usos metafricos de

    velhas palavras corresponde ao estabelecimento de novas narrativas que no s

    descrevem a realidade, mas que a constituem (constroem ou inventam, a depender da

    teoria que seja adotada, como ser discutido ao longo da primeira parte desta tese).

    Mas uma redescrio absolutamente inovadora, radicalmente nova, seria

    simplesmente incomunicvel. preciso recorrer aos conceitos, ou s metforas

    literalizadas para admitir os saltos semnticos que as metforas proporcionam. preciso

    reconhecer a dicotomia entre literalidade e metaforicidade para falar de metforas e at

    negar a prpria literalidade das palavras. Assim, se direito metfora ou o conceito de

    direito na verdade uma metfora preciso ser capaz de lidar com a linguagem

    metafrica para compreend-lo em suas entranhas (para usar as metforas espaciais

    tpicas da epistemologia e da metodologia do dentro e fora, ou do interno e do externo,

    dos pontos de vista interior e exterior). Mas se apenas ironicamente o direito se

    apresenta ou se revela (e, para sua prpria eficcia e mesmo sobrevivncia, defendo o

    ponto de vista de que s poderia ser assim) como metfora, sua compreenso

    necessariamente irnica. A ironia talvez o nico caminho srio capaz de lidar com os

    paradoxos e contradies do discurso jurdico, o que impede que toda investigao no

    mbito jurdico termine em uma aporia. Sobretudo no que se refere no tanto s ironias

    de palavra ou verbais (BRAIT, 2008, p. 92), mas s ironias de situao em que as

    contradies existentes em dois fatos contguos e simultneos so detectadas por um

    observador.

    O trabalho de construo desta tese adota ainda uma perspectiva metodolgica

    necessariamente dialtica. Claro, o termo dialtica no nada bvio. Em razo de sua

    hipertrofia semntica e saturao histrica possvel entend-lo em vrios sentidos,

    alguns bem diferentes entre si. Cada poca, cada filosofia e cada filsofo terminam por

    adequar o conceito a suas formas prprias de compreenso e a seu prprio sistema

    filosfico. Emprego a expresso dialtica no sentido que empregado por Richard

    Rorty (2007, p. 142), isto , num sentido mais retrico do que lgico mesmo que a

  • 18

    oposio entre lgica e retrica seja questionvel para um ironista, assim como a

    distino entre filosofia e literatura, entre racional e irracional e assim por diante

    (RORTY, 2007, p. 150). No quero dizer com isso que um sentido exclua

    necessariamente o outro: so em vrios pontos intercambiveis at, pois h uma lgica

    na retrica, como h uma retrica na lgica, pelo menos na lgica clssica e medieval,

    se os lgicos modernos mo permitirem. Isso pode ser visto na prpria histria da noo

    de dialtica (BARTHES, 2000, p. 30-41) ou na oposio entre dialtica antiga e

    dialtica moderna (GADAMER, 2007, p. 14).

    Assim, dentre os vrios sentidos possveis que se encontram nos diferentes

    contextos, desde a filosofia eleata de Parmnides e Zeno, ou da filosofia jnia de

    Herclito, passando pela filosofia platnica e pela lgica aristotlica e, posteriormente,

    pelo desenvolvimento medieval das artes do trivium, chegando at a Modernidade na

    filosofia de Kant, Hegel e Marx, o significado metodolgico que emprego aqui para a

    palavra dialtica est relacionado ao carter lingustico-retrico da contraposio de

    diferentes vocabulrios. Nesse sentido, dialtica no tem tanto o carter lgico de

    inferncias entre proposies, mas assume um carter retrico de redescrio ou de

    passagem de um vocabulrio a outro, ou ainda de transio de uma terminologia para

    outra.

    Essa metodologia retrico-dialtica, pois, parte da relao de oposio entre dois

    vocabulrios antagnicos, tradicionalmente opostos pelo vrtice, como diferentes

    formas de pensar, compreender, descrever, narrar, agir e se situar: o vocabulrio dos

    metafsicos e o vocabulrio dos ironistas. Enquanto o primeiro est preso a uma posio

    ontolgica ou dogmtica de procura da verdade, o segundo est ligado a um

    nominalismo retrico ligado noo de verossimilhana. Entretanto, a tese no procura

    receber passivamente essa tradio ou apenas compreender a relao de oposio entre

    os dois vocabulrios, mas tem o objetivo de subvert-la.

    patente que os metafsicos adotam como pressuposto para suas construes

    filosficas o binmio aparncia/realidade, sendo a filosofia para os metafsicos a

    doutrina da verdade absoluta (HEGEL, 2000b, p. 388). Estranhamente, contudo, essa

    oposio entre aparncia e realidade ou entre aparncia e essncia tambm

    fundamental para o sujeito irnico. O ironista no pode simplesmente desprezar esse

    vocabulrio metafsico. Assim como no h metfora sem a oposio entre sentido

    literal e sentido metafrico, no h ironia sem a pressuposio de que h algo aparente

  • 19

    que expressado e algo essencial que significado. Ou seja, do mesmo modo que a

    noo de metfora depende da oposio entre literalidade e metaforicidade, a noo de

    ironia pressupe a relao de contrariedade entre aparncia e essncia. O ironista se v

    obrigado a reconhec-la.

    Diante disso, difcil, mesmo para um ironista relativista, ou para uma filosofia

    que se auto-intitula ctica e retrica abrir mo de um vocabulrio prprio da metafsica.

    Do mesmo modo como um sentido metafrico s se justifica com base na diferenciao

    em ralao a um sentido literal pressuposto, a ironia necessariamente depende do jogo

    entre o aparente e o oculto ao passo que tende a fazer daquilo que est oculto a sua

    essncia.

    diferena do metafsico, contudo, o ironista, sem poder lev-la a srio, toma a

    oposio apenas como um jogo, isto , como um jogo de oposio entre aparncia

    revelada e aparncia ocultada, da mesma forma que o metafrico pode se valer do

    sentido literal apenas para reforar a noo de metfora sem assumir que de fato existem

    sentidos literais. Pode at mesmo tratar a prpria noo de literalidade como uma

    metfora, a metfora da escrita e da letra, ou seja, a metfora da apreenso do

    significado pela palavra escrita.

    Ambas as noes, pois, de metfora e de ironia podem apenas se servir de suas

    relaes subjacentes e fundamentais de oposio para logo em seguida simplesmente

    dissolv-las, negando assim a possibilidade de um sentido literal, no caso da metfora,

    ou de uma essncia, no caso da ironia. O sujeito irnico se v obrigado a assumir a

    oposio entre essncia e aparncia, ao mesmo tempo em que capaz de simplesmente

    refut-la e de tratar tudo o que considerado essencial como meramente aparente. Na

    verdade, a ironia trata tudo o que essencial como aparente e tudo o que aparente

    como essencial, subvertendo a prpria ideia de oposio.

    Em tempo, todos os negritos empregados servem para destacar expresses das

    referncias ipsis literis. Os destaques feitos pelos prprios autores, quando for o caso,

    sero aludidos.

  • 20

    III Roteiro de exposio

    O texto da tese se subdivide em duas partes: a primeira dedicada compreenso

    da noo de direito como metfora e a segunda objetivando apontar o modo irnico de

    pensar a metfora do direito.

    A leitura do texto deve seguir a ordem dos captulos, de forma que as discusses

    dos primeiros captulos servem de fundamento para os desdobramentos dos captulos

    subsequentes. No entanto, existe uma circularidade do prprio texto, na medida em que

    algumas ideias so retomadas com o propsito de apontar as conexes entre ideias

    trabalhadas em tpicos distintos.

    Nesse sentido, o Capitulo 1 tem a funo de estabelecer o ponto de partida para a

    compreenso irnico-metafrica do direito. Ali procurei apontar como o a busca por um

    conceito de direito parece remontar sempre a noes metafricas do direito. De modo

    que a realidade do direito esquemtica e metaforicamente determinada pela linguagem

    empregada na construo dos discursos que procuram se referir a fenmenos para que

    sejam considerados jurdicos. A noo de juridicidade, pois, entendida como o

    resultado de uma construo retrica de supostos conceitos que mais adequadamente se

    comportam como metforas.

    No Captulo 2, tratei das concepes tericas contemporneas acerca do estudo

    da metfora com o intuito de definir, mesmo que precariamente, algum sentido para a

    noo de metfora que guiou o processo de elaborao da tese. Nesse mbito, procurei

    destacar o papel das metforas na produo de conhecimento, na orientao do

    pensamento jurdico e na construo de uma realidade prpria do direito.

    O Captulo 3 foi destinado determinao de uma epistemologia prpria da

    metfora, no apenas no sentido de que a linguagem metafrica propicia alguma forma

    de conhecimento, mas de que o conhecimento jurdico depende diretamente de sua

    linguagem metafrica. Alm disso, procurei apontar como a noo de sentido literal

    tomada por bvia nos discursos jurdicos tericos, mesmo quando os juristas no

    conseguem expurgar o carter figurativo da linguagem que empregam para se referir aos

    fenmenos jurdicos.

  • 21

    O Captulo 4 teve como objetivo apontar as conexes entre a noo de metfora

    debatida nos dois captulos anteriores e a noo de modelo cientfico. Procurei

    investigar como os modelos da cincia jurdica contribuem retoricamente para a

    configurao do prprio objeto direito. Assim, o discurso cientfico dos juristas

    encarado como uma forma de literatura criativa e imagtica.

    No Captulo 5, procurei delimitar uma gama de sentidos para a ironia

    objetivando o subsequente desenvolvimento de uma abordagem irnica do fenmeno

    jurdico. Nesse mbito, procurei analisar as vrias formas de ironia suscitadas por

    diferentes autores, indo desde um sentido de ironia como figura retrica at a ironia

    como modo de existncia.

    No Captulo 6, apresento o que entendo por fundamento do modo de pensar

    irnico prprio do jurista. Recorro s ironias de Rudolf von Jhering no seu trabalho

    Scherz und Ernst in der Jurisprudenz como exemplo de uma personalidade irnica que,

    a despeito de seu carter jocoso, procura levar o debate jurdico muito a srio.

    No Captulo 7, tratei do saber prudencial do jurista e da ironia como um

    mecanismo capaz de lidar com as ambiguidades, contradies e paradoxos do prprio

    raciocnio jurdico, sobretudo no que diz respeito oposio entre o saber e o querer do

    jurista.

    No Captulo 8, tentei aplicar o conceito de retrica analtica de Ottmar Ballweg

    como forma de investigar o carter irnico do prprio fenmeno jurdico em seus planos

    material, dogmtico e terico.

  • PARTE I A METFORA DO DIREITO

    Captulo 1 Retrica da ontologia ou ontologia da retrica? Os pressupostos

    fundamentais de uma concepo irnico-metafrica do direito

    1.1 A noo de direito entre conceito e metfora

    Sabedoria se tira das coisas que no existem.

    A tarde verde no olho das garas no existia.

    Mas era fonte do ser.

    Era poesia.

    Era o nctar do ser.

    (BARROS, 2010, p. 363)

    O problema da definio de um conceito de direito sempre tema presente na

    construo dos modelos tericos de compreenso dos fenmenos jurdicos. Mesmo que

    no seja o objetivo especfico de um trabalho terico e mesmo que o faa de maneira

    indireta ou implcita, uma proposta tipicamente moderna ortodoxa de teoria do direito

    carrega consigo a necessidade de definir primariamente o seu objeto. Evidentemente h

    teorias que explicitamente se escusam de tal exigncia, como especialmente as

    pertencentes ou derivadas da tradio hermenutica filosfica. Um exemplo

    notrio o de Arthur Kaufmann (1973, p. 31-35) que afirma ser possvel compreender o

    direito a despeito de uma definio peremptria de seu conceito.

    A definio do conceito de direito, por conseguinte, tanto pode ser o principal

    escopo de uma teoria por exemplo, nos trabalhos de filosofia jurdica analtica ,

    como pode ser apenas pressuposta para o desenvolvimento terico de um tema jurdico.

    como se para pensar o direito fosse sempre necessrio defini-lo previamente. O

    raciocnio seria algo como: se no se tem o conceito, no se tem uma ideia clara do que

    o direito . Por exemplo, quando se pretende desenvolver uma teoria da norma, uma

    teoria das fontes, ou uma teoria do fato jurdico, antes de tudo, parece fundamental dizer

    o que se entende por direito no contexto daquele determinado sistema terico. Se uma

    teoria tem como escopo definir o que torna jurdico um costume, ou determinar a

    diferena entre um mero costume social e um costume jurdico, primeiramente deve

    responder pergunta o que o direito? (LOSANO, 2007, p. 382). Ou seja, para que

    os outros conceitos jurdicos sejam definveis necessrio saber antes o que o direito.

  • 23

    A essa noo corresponde o postulado analtico de que compreender definir, isto , de

    que entender o direito implica apreender o conceito em uma definio.

    H quem chegue prximo do delrio filosfico ou do otimismo religioso e

    iluminado de atrelar a cruzada da definio busca da verdade, das essncia e

    existncia plenas, da forma e do contedo e ainda do substrato do conceito de direito,

    sem falar de sua configurao. Aparentemente muito o que se pode conseguir com o

    trabalho da definio:

    Quem busca o conceito de direito, procura a verdade do direito; e,

    como esta s pode encontrar-se na sua essncio-existencialidade

    plena, h mister determin-la em sua integralidade, o que vale dizer,

    fixar a matria e a forma do direito o seu substrato e a sua

    configurao. (JACQUES, 1964, p. 90).

    A presente tese procura inverter os termos no sentido de que a compreenso dos

    fenmenos jurdicos algo no s distinto da definio do conceito de direito como

    tambm anterior, imagtica, contingente, temporria, circunstancial, plurvoca e

    fragmentria. Compreende-se uma multiplicidade de fenmenos que supostamente se

    aglomeram unitariamente em torno do conceito de direito por outros meios no-

    conceituais e no-unvocos, e posteriormente parte-se em busca de uma definio, que

    j no mais prvia compreenso. Compreenso, em termos hermenuticos, est

    diretamente relacionada ao raciocnio analgico, isto , o raciocnio por analogias, como

    o raciocnio metafrico, em certo sentido, no que diz respeito relao de

    comparao, substituio ou interao (BLACK, 1993, p. 27) que ocorre entre dois

    termos. Quando se chega ao conceito porque j houve compreenso. Mas como esta

    contingente, circunstancial e temporria, quando se tem o conceito, ele j no mais do

    que a representao esttica de uma compreenso pretrita, isto , presa ao passado. O

    conceito a representao do que j no mais, ou seja, no mais presente.

    justamente com esse tipo de indagao com a busca por uma definio do

    conceito de direito que Herbert Hart (2002) comea o texto de sua obra mais

    conhecida O conceito de direito:

    Poucas questes referentes sociedade humana foram postas to

    insistentemente e foram resolvidas por pensadores srios de formas

    to diferentes, estranhas e por fim paradoxais como a questo O

    que o direito?. Mesmo limitando a nossa ateno teoria jurdica

    dos ltimos cento e cinquenta anos e deixando de lado a reflexo

    clssica e medieval sobre a natureza do direito, encontramo-nos

    diante de uma situao que no existe do mesmo modo em nenhuma

    outra matria estudada de forma sistemtica como disciplina

    acadmica em si. (HART, 2002, p. 3)

  • 24

    A busca de um conceito de direito, segundo Hart, , ao mesmo tempo, algo

    ordinrio no contexto do estudo dos fenmenos jurdicos, mas extraordinrio no que se

    refere aos resultados obtidos, isto , em relao s definies apresentadas pelos

    juristas.

    Em suas palavras, especialmente nas que destaquei em negrito, parece haver um

    tom irnico e at mesmo possivelmente sarcstico latente a sugerir a inquietude de

    ter identificado que pensadores srios so capazes de chegar a concluses no s

    diferentes, como tambm estranhas e at mesmo paradoxais. como se a

    diversidade, os paradoxos e o carter estranho ou inusitado das definies do conceito

    de direito propostas fossem incompatveis com a seriedade de seus autores. Mas isso

    seria o mesmo que dizer os juristas so srios, mas suas concluses esto longe de s-

    lo? O que torna a meno de sua seriedade pertinente? Seria a seriedade um requisito

    fundamental para a compreenso do direito?

    Esta tese pretende defender o seguinte ponto de vista: a seriedade dos juristas

    um artifcio retrico: uma estratgia irnica. Nada h de srio na compreenso do

    direito. Ao longo do texto procuro esclarecer o que pretendo dizer com isso.

    O que Hart pretende dizer que os resultados tericos, por mais esdrxulos que

    sejam, so o produto de um esforo de definir seriamente o direito. Essas revelaes de

    verdade sobre o direito procuram apresentar a sua natureza essencial (HART, 2002,

    p. 3) e mesmo que paream estranhas ou paradoxais seriam na verdade o resultado

    de longas meditaes sobre o direito, feitas por homens que eram antes de tudo juristas

    dedicados por profisso ao ensino ou prtica do direito (HART, 2002, p. 4).

    O principal problema dessas afirmaes tericas sobre o significado de direito

    que boa parte delas representa um exagero acerca de algumas verdades sobre o direito,

    mas no verdadeiras definies, e por essas razes so afirmaes ao mesmo tempo

    clarificadoras e perturbadoras, assim como a ironia que perturba e clarifica

    contemporaneamente.

    De acordo com Hart (2002, p. 5) essas verdades

    lanam uma luz que nos permite ver muitos aspectos do direito que

    estavam escondidos; mas a luz de tal forma fulgente que nos impede

    de ver o resto e nos deixa por isso ainda sem uma viso clara do

    fenmeno na sua totalidade.

    No h como deixar de vislumbrar no texto de Hart uma forte carga metafrica

    na sua prpria maneira de apontar as deficincias e os exageros das definies tericas

  • 25

    precedentes. Pretendia destacar com negrito as expresses figuradas, mas percebi que

    seria contraproducente em razo da densidade metafrica da citao. De fato, apenas

    uma ou outra preposio no seria destacada. Toda definio do conceito de direito

    termina por ser mais um ponto de vista sobre o direito. E todo ponto de vista (em

    consonncia com a metfora visual que representa) termina por amplificar certas

    caractersticas de fenmenos enquanto olvida outras. Isso nos permitiria concluir que,

    segundo Hart, boa parte das definies do direito so, contemporaneamente, flamejantes

    e ofuscantes assim como as metforas. As metforas, pela novidade que representam,

    criam uma sensao de estranhamento para quem se lhe coloca diante. Um

    estranhamento que leva a um trabalho hermenutico complexo cuja dificuldade de

    interpretao , em alguns casos, diretamente proporcional ao seu sucesso como

    metfora.

    Quanto mais brilhante a metfora, mais ofuscante e mais reveladora. Definies

    metafricas do direito so ofuscantes porque brilhantes, como na definio de Rudolf

    Stammler (1970) que perpassa toda a sua obra, o direito um querer autrquico,

    inviolvel e entrelaante. Literalmente essa definio no capaz de dizer coisa

    alguma. O querer (das Wollen), o carter autrquico (die Selbstherrlichkeit), a

    inviolabilidade (die Unverletzbarkeit) e o carter entrelaante (das Verbinden) do direito

    so, antes de literais descries conceituais acerca da essncia do direito, metforas que

    impem a toda uma comunidade de leitores uma viso genrica prpria dos fenmenos

    jurdicos carregada de idiossincrasias, mas tambm de preconceitos compartilhados

    por um determinado grupo, de pressupostos prprios a determinadas escolas de

    pensamento etc. difcil decidir onde situar a filosofia do direito nesses casos. Se por

    um lado se apresenta como definio cientfica que descreve o conceito de direito, por

    outro impregnada de metforas que ultrapassam os limites de uma mera descrio. A

    filosofia do direito se encontra entre os limites da cincia e da literatura: ora epistme,

    ora poesia. No se sabe se e at que ponto o jurista-filsofo deve agir como se fosse

    cientista ou poeta.

    Mesmo que se admita como nica definio possvel do direito aquela que se

    restringe a apresentar apenas as caractersticas estruturais semelhantes entre os vrios

    ordenamentos jurdicos, a despeito de suas importantes diferenas, isso no significa

    que a definio mais autntica aquela que revela apenas a estrutura do objeto. Outros

    elementos so tambm indispensveis compreenso adequada das coisas, como, por

  • 26

    exemplo, a finalidade, a funo, ou sua composio material pressupondo claro que as

    distines entre fundamento e finalidade, funo e estrutura, matria e forma so

    realmente pertinentes. Mas mesmo que as definies se limitem a uma anlise

    estrutural, no h como incluir todas as formas de manifestao do jurdico em uma s

    estrutura, ainda que extremamente generalizada. Isso s seria possvel da maneira

    condenada por Hart como exagerada ou ofuscante.

    Mesmo com todas as pretenses de analiticidade de sua teoria, Hart no

    consegue se livrar da expresso natureza quando prope a busca por uma definio do

    direito. difcil desvencilhar-se dos ontologismos e essencialismos. At os ironistas,

    apesar de cientes disso, no escapam do vocabulrio metafsico da filosofia, por mais

    que se esforcem em contorn-lo. certo que natureza para o jurista, ou mais

    especificamente natureza do direito, algo to metafrico quanto as expresses luz

    e viso clara do fenmeno utilizadas por Hart em sua crtica analtica. E muito

    provavelmente Hart consciente disso, especialmente quando, no seu texto, apresenta

    entre aspas a expresso antiga e medieval.

    S no possvel (ainda) afirmar que esteja sendo irnico ao suspender

    aparentemente a metfora da natureza no incio do trabalho, para depois tom-la como

    ponto central de sua teoria, com a aceitao de um contedo mnimo de direito natural

    que deve estar presente em todo direito positivo para que este seja at mesmo

    concebvel. Para a teoria de Hart o adjetivo natural designa, dentre vrias concepes,

    algo que intrnseco natureza humana. Fazem parte dessa natureza, as

    necessidades humanas, como alimentao e repouso. Ou seja, por mais livre que seja

    o ser humano, no pode este abdicar de comer ou dormir para manter seu sistema

    biolgico em funcionamento adequado. A necessidade de se cumprir essas exigncias

    fisiolgicas no depende de uma mera prescrio ou conveno entre os indivduos, mas

    parte de algo que acontece por natureza. Segundo Hart seria possvel dizer que o

    fim prprio da atividade humana a sobrevivncia e que a maior parte dos seres

    humanos deseja continuar vivendo. Embora essa vontade de sobrevivncia possa ser

    considerada contingente, algumas normas lhe parecem naturalmente necessrias para

    a manuteno da vida. Como na concepo de Hobbes e de Hume, em que, para

    continuarem a viver, devem os indivduos se associar; e uma associao de indivduos

    no pode perdurar sem o respeito a certas normas de equidade e justia.

  • 27

    Assim, na concepo de Hart, o contedo mnimo do direito natural

    composto de princpios de conduta universalmente reconhecidos que tm base em

    algumas verdades elementares com relao aos seres humanos, ao seu ambiente

    natural e aos seus objetivos. Pressuposta a sobrevivncia como um fim da natureza

    humana, um contedo mnimo do direito e da moral determinado aprioristicamente

    de forma especfica. Isso significa que, sem esse contedo, nem o direito, nem a moral,

    poderiam favorecer o escopo mnimo de sobrevivncia que os seres humanos tm em

    vista quando se associam (HART, 2002, p.225). Sem um contedo mnimo de direito

    natural, o direito estaria destitudo de parte importante de sua natureza, ou seja, de sua

    essncia, e poderia vir a se tornar um sem sentido (nonsense).

    Um exemplo do raciocnio que faz Hart: o ser humano vulnervel, est sempre

    exposto a ataques corporais. A proibio do uso da violncia, do homicdio e do dano

    corporal impede que isso acontea. Se no existissem normas que proibissem esse tipo

    de conduta, no haveria razo de se produzir normas de qualquer outro tipo. J se os

    seres humanos perdessem a sua vulnerabilidade, desapareceria o preceito mais tpico do

    direito e da moral: no matar (HART, 2002, p. 227). O raciocnio de Hart poderia ser

    traduzido da seguinte forma: a) porque os seres humanos tm uma natureza vulnervel,

    pretendem sobreviver e, para tanto, devem se associar e estabelecer regras que cuidem

    da manuteno do grupo que os mantm vivos, b) deveria haver uma natureza tambm

    no direito que estabelecesse essas regras e que protegesse essa instituio social.

    Natureza a um conceito biolgico que magicamente se transporta para o

    direito, a poltica e a sociologia. S h sentido na expresso se ela for compreendida

    metaforicamente seja no momento de recha-la, seja para tom-la como algo pertinente

    e essencial construo do raciocnio terico acerca do direito, seja para utiliz-la na

    prtica argumentativa forense. Hart no diz que a conexo entre natureza e direito

    seja de tipo metafrico, mas tambm no afirma que literal, diz apenas que

    importante destacar a conexo precipuamente racional entre fatos naturais e o

    contedo das normas jurdicas e morais neste raciocnio (HART, 2002, p. 225).

    Conexo racional uma expresso que muito provavelmente lhe serve de metfora

    para relao de causalidade cientificamente comprovada. Para um terico do

    positivismo jurdico, o racional o cientfico. E assim, Hart continua pedindo auxlio s

    cincias mesmo que ainda jovens da psicologia e da sociologia, contudo capazes de

    estabelecer com o mtodo da generalizao e da teoria, baseando-se na observao e,

  • 28

    onde possvel, no experimento (HART, 2002, p. 226) para chegar a uma definio do

    que ele denomina natural. No pretendo discutir aqui o lugar de Hart no debate entre

    positivistas e jusnaturalistas. Alm de complexo, parece-me irrelevante para o que quero

    dizer. Alguns ps-positivistas, especialmente os que rejeitam a pecha, por mais

    devedores que sejam das teorias dos jusnaturalistas, diriam at que este um debate no

    s anacrnico, antiquado, ultrapassado, superado, como tambm enfadonho.

    Diante dos binmios natural/artificial, racional/irracional, literal/metafrico

    provvel que Hart estabelea, mesmo implicitamente, uma conexo tpica (seguindo

    uma linha de pensamento prpria do senso comum) entre o natural, o racional e,

    portanto, o literal. Mas nada impede que exista uma racionalidade metafrica, uma

    racionalidade das/nas metforas. Hart no ope o seu racional-natural prprio da

    essncia do direito a um irracional-artificial em que um plo autntico e legtimo

    (literal), enquanto o outro inautntico e ilegtimo porque mera metfora do direito.

    Por mais que Hart rejeite, nas primeiras palavras de seu texto, a tradio

    jusnaturalista antiga e medieval e mesmo a moderna que se apia na imagem da

    natureza e do natural para determinar uma semntica para o naturalmente jurdico,

    no quer dizer que ele abdique da metfora jusnaturalista para chegar essncia do

    direito.

    Este um exemplo tpico de nosso inexorvel aprisionamento em um

    vocabulrio determinado. uma dvida para com a tradio. Desde um horizonte

    historicamente distanciado no qual nos encontramos, parece fcil afirmar que Hart no

    representa um retorno ao jusnaturalismo e que, na verdade, o que acontece que a

    metfora da natureza reinserida no contexto jurdico-terico do positivismo analtico

    ingls. O difcil determinar at que ponto a metfora positivista da natureza pode ser

    interpretada sem que nos leve a uma teoria jusnaturalista. Se, aos olhos de um

    positivista, j era metfora a dos antigos e medievais, parece ficar mais metafrica ainda

    a expresso cunhada no mbito do positivismo jurdico.

    Ainda com relao ao texto de Hart, podemos depreender que o problema da

    definio do conceito de direito muito provavelmente apenas uma reformulao em

    termos modernos de uma velha questo: a determinao da essncia (natureza) do

    direito. No entanto, os compromissos modernos com a maneira positivista de encarar o

    direito estatal autopoitico em uma palavra, dogmtico impedem que o problema de

    sua definio seja representado numa linguagem prpria das teses jusnaturalistas (que

  • 29

    atualmente devem ser no apenas rechaadas, como tambm desacreditadas ou mesmo

    superadas por essa proposta sempre inconsistente de um ps-positivismo). Mesmo

    assim, a questo de fundo parece ser a mesma: o que h de essencial no direito?.

    Admitindo-se que a pergunta pertinente, resta saber se a resposta pode ser dada em

    termos conceituais ou unicamente por meio de metforas.

    Se no passado a questo era colocada em termos metafricos com o emprego da

    expresso natureza, no mbito terico moderno das investigaes jurdicas, a

    linguagem deve ser literalizada; da mesma forma, se as indagaes sobre o que h de

    essencial no direito no contexto do pensamento jusnaturalista demandavam uma tarefa

    relativamente criativa e imaginativa (potica), no contexto positivista (no oscilante e

    funmbulo ps-positivista impossvel de se determinar um propsito comum) deveria

    prevalecer o empenho em apenas descrever o conceito de modo analtico, a partir da

    observao controlada e da experimentao sem qualquer apelo imaginao ou

    intuio, j que o conceito se ope intuio (KANT, 1992, p. 109) em razo de ser

    aquele uma representao universal (repraesentatio per notas communes) ou refletida

    (repraesentatio discursiva) e este uma representao singular (repraesentatio

    singularis). Segundo Kant, o conceito diverso da intuio justamente por ser

    universal, de forma que a expresso conceito universal absolutamente tautolgica,

    pois o conceito, por ser uma representao na medida em que pode estar contida em

    diferentes objetos sempre universal, podendo ser particular, universal ou singular

    apenas o seu uso.

    Podemos afirmar, contudo, que o problema o mesmo, o que muda a pergunta,

    ou simplesmente a maneira de apresent-la. A retrica juspositivista substitui a retrica

    jusnaturalista, adequando o problema a um novo contexto e incitando a construo de

    narrativas mais sofisticadas. A retrica jusnaturalista soa inadequada ao ouvido

    moderno.

    Claro que a reformulao retrica de um problema, o emprego de uma

    linguagem condizente com os ideais do pensamento moderno, faz com que o velho

    enigma se transforme num novo problema, o que seria aparentemente paradoxal. Seria

    como afirmar que o problema o mesmo, mas no . O conceito substitui a

    natureza e se apresenta como uma nova questo.

    A compreenso irnico-metafrica do direito permite ao jurista lidar com esses

    problemas apontados por Hart com mais tranquilidade e parcimnia. Ao invs de

  • 30

    encarar a diversidade e o carter inusitado ou paradoxal das definies do conceito de

    direito como uma aberrao terica, o jurista que compreende a noo de direito como

    metfora e no como conceito toma os pontos de vista divergentes como narrativas

    retricas possveis e muitas vezes elucidativas devido ao alto grau de variao

    semntica ou de amplitude imagtica da linguagem figurada, razo pela qual o jurista

    fala e se faz ouvir e compreender.

    Os paradoxos e a multiplicidade de interpretaes ou construes tericas que

    procuram definir o direito so parte intrnseca da compreenso dos fenmenos jurdicos:

    esto diretamente conectadas a suas imagens ou figuras. Alm disso, assumir a posio

    de um sujeito irnico permite ao jurista esvaziar qualquer contedo das expresses de

    vocabulrios j desgastados, impregnados de sentido e abarrotados de ontologias. O

    ironista simplesmente parte da negao de toda peculiaridade, de toda determinao, de

    todo contedo previamente dado por uma tradio, e, em seu lugar, coloca seu prprio

    eu. De acordo com a viso de Hegel (2000a, p. 89), especialmente em relao ironia

    romntica2, o eu do ironistas porque sua subjetividade extremada e levada s ltimas

    consequncias define todo e qualquer contedo de maneira que tudo o que , pelo

    eu. Claro que esse eu s por meio de outro eu se completa, o que faz da

    subjetividade um corolrio da objetividade. No por acaso as propostas filosficas

    contemporneas ditas ps-modernas tendem a substituir a noo de objetividade como

    critrio de validade para a produo de conhecimento pelas variegadas noes de

    intersubjetividade a prpria subjetividade que se ampara na subjetividade alheia.

    Da a metfora do espelho como forma de compreenso desta troca de olhares,

    essencial compreenso de si mesmo, do prprio eu, pois o auto-conhecimento no

    pode ser obtido apenas por introspeco, j que um olho no pode se ver sem o

    auxlio de outro olho (RABENHORST, 2012, p.14). Como o olhar alheio no apenas

    um reflexo, a auto-imagem sempre, de algum modo, heternoma, mesmo que

    proveniente do semelhante.

    O olho alheio, ao contrrio, especialmente o olho do amigo, no

    apenas uma superfcie refletora, mas uma via para a autorreflexo, isto

    , para a formao da prpria conscincia de si. Quando queremos

    conhecer a ns mesmos, diz Aristteles, podemos faz-lo mirando o

    amigo, porque este , por assim dizer, um duplo de ns mesmos.

    (RABENHORST, 2012, p. 15)

    2 A noo de ironia romntica tratada abaixo com mais acuidade no Captulo 5.

  • 31

    No entanto, preciso ter em mente que nem sempre o olhar alheio, mesmo

    aquele metafrico do mero reflexo especular inanimado foi tomado como verdadeiro ou

    livre de mentiras e enganos (RABENHORST, 2012, p. 17) e eu complementaria de

    dissimulaes.

    Se, por um lado, o jurista entender o direito como metfora cuja determinao

    sempre intersubjetiva pelo menos na reflexo entre autor e intrprete e no como

    conceito, no ver problema no desacordo entre os tericos, mas diferentes esboos de

    solues possveis para a representao dos diversos e variegados fenmenos jurdicos,

    estes sempre contingentes. Em outras palavras, retoricamente, do ponto de vista terico

    e filosfico, mais eficiente desenvolver o estudo da metfora do direito ao invs de

    procurar definir um conceito de direito.

    No h algo de essencialmente jurdico no que se chama de direito, seno

    enquanto metfora de uma suposta natureza jurdica. E, se por outro lado, o jurista

    entender a forma de compreenso do direito como ironia, no se espantar com o fato de

    que pensadores srios tenham chegado a formulaes por vezes bizarras acerca do que

    entendem como conceito. Se h pouca seriedade no tom solene das teorias jurdicas,

    logo compreender o fenmeno jurdico compreend-lo ironicamente. A ironia, pois,

    pode funcionar como chave de leitura para o jurista que pretende compreender o direito,

    de forma que s ironicamente seria possvel levar o direito a srio enquanto metfora.

    Assim, apresentar o direito como metfora deixar de lado qualquer tentativa de

    definio conceitual. As metforas, como ser discutido ao longo do trabalho, escapam

    com frequncia s tentativas de defini-las ou apresent-las em termos literais. A

    metfora do direito no se submete pacificamente parfrase literal de uma definio

    conceitual. Isto , a metfora do direito se ope ao conceito de direito, na medida em

    que a atitude de entender o direito como metfora, exclui qualquer possibilidade

    peremptria de defini-lo conceitualmente.

    Talvez, portanto, o insucesso de todas as tentativas de definio do conceito de

    direito se deva ao fato de que o direito no deve ser compreendido em termos

    conceituais (ou literais), mas em termos metafricos. E, se as metforas no se deixam

    definir com facilidade, isso equivale a dizer que a cada tentativa de parafrasear uma

    metfora, surge uma nova possibilidade inaudita de interpretao ou determinao no

    apenas de seu sentido, mas de um estado de coisas que lhe seja referente.

  • 32

    As metforas no se definem porque no permitem que lhe sejam impostos

    limites, ou que seja literalmente delimitado o seu significado. As metforas so

    relutantes no que diz respeito a qualquer tentativa de estabiliz-las ou apreend-las em

    uma moldura conceitual. O que pretendo mostrar a ideia de que no possvel definir

    o direito, porque enquanto metfora no se deixa apreender em um conceito. Metfora

    implica imprevisibilidade e surpresa.

    As perspectivas tericas em torno da metfora, contudo, so as mais variadas.

    possvel agrupar as teorias e dividi-las em razo da relao que estabelecem entre

    metforas e conhecimento (PALMA, 2004, p. 9), desde as que negam qualquer valor

    cognitivo linguagem metafrica, at as que no veem distino entre a linguagem

    figurada e a linguagem literal.

    A primeira v a linguagem metafrica apenas como ornamental e incapaz de

    apresentar qualquer valor cognitivo. De acordo com esta perspectiva esttico-literria,

    as metforas no produzem conhecimento e no pertencem ao mbito da linguagem

    referencial, salvo se intermediadas ou traduzidas em uma linguagem literal. Outro

    agrupamento de pontos de vista atesta o valor heurstico das metforas, inclusive no

    desenvolvimento de modelos para a cincia. No entanto, as metforas, segundo essas

    teorias, tm mais uma funo psicolgica de proporcionar novos insights em um

    contexto de descoberta, que sero apenas temporrios e por essa razo devero ser

    posteriormente adequados aos rigores da cincia e traduzidos em uma linguagem literal.

    Um terceiro modo de compreender as metforas, mais recente e ainda em

    construo, enxerga nelas a mesma capacidade de produo de conhecimento que tem a

    linguagem da cincia. No haveria distino essencial entre a linguagem metafrica e a

    linguagem literal, ou entre a linguagem da literatura e a linguagem da cincia. Por fim,

    um ponto de vista mais exacerbado em relao capacidade cognitiva das metforas v

    na linguagem figurada um valor referencial prprio e no secundrio ou subsidirio.

    Nesse sentido, a linguagem metafrica tem um status cognitivo genuno e um valor

    epistmico fundamental para o desenvolvimento do conhecimento cientfico3.

    Mas afinal asseverar que o direito uma metfora no seria o mesmo que tentar

    defini-lo de alguma forma? Mesmo que seja para defini-lo como indefinvel? A

    conceituabilidade do direito sempre uma armadilha, uma espcie de jaula sedutora,

    3 Essa discusso ser retomada com mais detalhamento no Captulo 2.

  • 33

    talvez inescapvel aos propsitos de estabelecimento de qualquer teoria jurdica. Quem

    sabe seja nossa prpria finitude, ou a conscincia de que a nossa existncia individual

    implica a presena de um fim que nos compele a buscar uma definio em tudo que

    percebemos como ser.

    Mas no fundamental que se despreze simplesmente a noo de conceito.

    possvel entender o conceito como uma espcie de metfora formal que representa um

    conjunto de interaes e usos lingusticos de palavras que apontam para algum sentido

    genrico.

    Sentidos so gerados a partir de interaes e usos. Conceitos so as

    formas e regularidades tomadas por nossa discusso; eles no podem

    ser intudos em uma forma pura e ideal. Contra o platonismo, no h a

    beleza ela mesma; do contnuo reconhecimento de coisas belas

    particulares que formamos uma regra do belo. () Ns s temos

    conceitos, selves e falante por meio da linguagem4. (COLEBROOK,

    2006, p. 63)

    Parafraseando a autora e ampliando o sentido que d linguagem, podemos

    dizer que no h o direito ele mesmo, mas um contnuo reconhecimento de

    fenmenos jurdicos particulares a partir dos quais formamos linguisticamente uma

    metfora do jurdico. A metfora do jurdico, isto , a metfora do direito, capaz de

    agrupar esses vrios sentidos particulares atribudos a cada fenmeno particular

    (qualificado como jurdico de acordo com os mais variados critrios: fticos,

    normativos, ideolgicos, cientficos, religiosos etc.) como se houvesse uma nica

    direo ou um sentido comum, genrico e at universal transcendental de um jurdico

    em si. O desejo dos juristas por conceituar tudo o que relevante para o direito, isto ,

    de dar forma ao jurdico, sobrepujado pelo carter fluido e contnuo da vida, do caos e

    da histria. A realidade dinmica e o conceito esttico. Na medida em que o conceito

    fixado, o fluxo histrico da vida no se deixa capturar. A metfora, ao contrrio,

    sempre um eterno devir e uma constante fonte de reinterpretao da realidade.

    nesse sentido que procuro entender como a metfora do direito chega a ser

    reificada (coisificada, tornada coisa) por meio da linguagem. A fora retrica do lgos

    metafrico do direito capaz de produzir a coisa, isto , o direito como coisa. como se

    das imagens que correspondem s metforas se passasse magicamente s coisas. Em

    4 Meanings are generated from interaction and use. Concepts are the forms and regularities that our

    discussion takes; they cannot be intuited in some pure and ideal form. Contra Platonism, there is no

    beauty itself; it is from the continued recognition of particular beautiful things that we form a rule of the

    beautiful. (...) We only have concepts, selves and speakers through language.

  • 34

    outras palavras, como se do lgos do direito se criasse a realidade jurdica. Essa

    estratgia tipicamente retrica de se transformar discursos em realidade se refora na

    medida em que quanto menos se percebe que se trata de discurso, menos evidente se

    torna o carter retrico da realidade.

    Entender o direito como metfora e no como conceito tambm uma forma de

    compreender determinados fenmenos como sendo fenmenos jurdicos sem que se

    precise de uma determinao prvia conceitual do que seja o direito. O emprego

    metafrico da expresso direito permite reconhecer e constituir ao mesmo tempo a

    realidade semntica dos fenmenos jurdicos. Isto , cada fenmeno considerado

    metaforicamente como jurdico pelos usos lingusticos em um determinado contexto

    contribui para formao de uma noo genrica de juridicidade que por sua vez

    contribuir para a construo de outras metforas com significado jurdico relacionadas

    a fenmenos ulteriores. Isso seria o mesmo que dizer que cada expresso metafrica

    particular do jurdico relativa a um fenmeno individualizado se refere a uma metfora

    geral do direito, e, em sentido contrrio, a compreenso geral metafrica do direito

    contribuiria para a formao de novas metforas particulares de novos fenmenos

    jurdicos.

    Assim, portanto, por meio de expedientes retricos de reificao (metforas

    reificadoras), o direito se torna algo quase tangvel e, por conseguinte, um misterioso

    tipo de objeto ou o mtico objeto normativo que assume o papel de objeto imediato

    do conhecimento jurdico (CASTRO Jr., 2011, p. 66). Se no fosse essa capacidade de

    transformar metaforicamente o lgos do direito em coisa, no seria possvel tampouco

    falar do direito como sendo algo, muito menos transform-lo em objeto de uma

    cincia.

    1.2 A estratgia retrica de reificao do direito pela linguagem metafrica

    Die Sprache bezeichnet sich selbst als

    Wirklichkeit. (BALLWEG, 1989, p. 233)

    1.2.1 O essencialismo objetivista e categrico da linguagem jurdica

  • 35

    Chegamos ao ponto em que possvel dizer que a caracterizao da realidade

    como realidade efetiva para os sujeitos ou utentes de uma lngua, apanhados na

    imanncia dos seus sistemas lingusticos, um produto dos prprios sistemas

    lingusticos. A retrica, entendida no sentido de doutrina retrica, isto , no sentido das

    vrias doutrinas retricas da efetividade, no trata da realidade efetiva (ber die

    Wirklichkeit), mas sustenta as prprias pretenses de efetividade ou pretenses de

    realidade efetiva (Wirklichkeitsanspruch). Nesse sentido a retrica efetiva a prpria

    realidade. Isto , noes como a de verdade, de texto, de discurso, de escrito, de ser, de

    razo, de sistema fazem-se reconhecer por meio da linguagem (BALLWEG, 1989, p

    234).

    A realidade do direito, como boa parte do que a realidade para ns, termina por

    ser um produto da efetividade retrica de sistemas lingusticos. A partir de sua

    linguagem o direito torna-se experincia para ns, torna-se experincia real efetivada ou

    concretizada. De acordo com Ottmar Ballweg (1989, p. 233), o prprio xito dos

    sistemas lingusticos sociais que, de um ponto de vista interno, garante o carter de sua

    realidade ou efetividade (Wirklichskeitscharakter) e que, para o utente desse sistema,

    representa a sua imanncia. Nesse mesmo sentido, Ballweg (1991b, p. 177) afirma ainda

    que

    Essas retricas materiais do direito, da religio, da moral etc. atuam de

    maneira que a imanncia lingustica dos sinais de linguagem

    transcendida. Elas criam essas realidades em que vivemos. Esta

    transcendncia da linguagem permite-nos ento experimentar o

    direito, a religio, a moral, o amor, o dinheiro etc. como realidades.

    Nada obstante, a situao de imanncia do utente em relao ao seu prprio

    sistema lingustico que o faz no tomar a realidade como uma efetivao retrica de sua

    linguagem. Paradoxalmente, como se a retrica fosse mais bem sucedida justamente

    na medida em que no percebida como retrica. Assim, a retrica da supresso da

    retrica do direito (SHERWIN, 2009, p. 88) prevalece at os dias atuais.

    Com exceo de algumas concesses, como a de Neil MacCormick (2008), a re-

    aproximao mesmo que, nesse caso especfico, MacCormick parea se referir

    retrica apenas no ttulo do livro entre retrica e direito uma tarefa difcil de ser

    executada no plano da teoria jurdica. De fato, MacCormick (2008, p. 3) parece

    privilegiar os aspectos ideais em detrimento dos aspectos lingusticos na determinao

    da realidade do direito quando reconhece que o direito uma construo:

  • 36

    claro que um sistema jurdico no uma entidade fsica tangvel.

    uma construo ideal ou um objeto mental. Um sistema jurdico

    pertence ao mundo social real, no a um mundo puro de ideias, na

    medida em que uma ordem legal correspondente exista, ainda que

    imperfeitamente.

    A noo de idealidade no retoricamente menos importante, mas do ponto de

    vista filosfico de cunho retrico a prpria noo de construo ideal ou de existncia

    efetiva de objetos mentais resultante da efetivao lingustica da metfora da ideia e

    da metfora da mente. O sucesso da metfora platnica da ideia, do idos (), como

    o ato de ver com o esprito ou, em termos modernos, ver com a mente e sua correlao

    com as noes de aparncia, forma, ou modelo fazem da noo de ideia uma realidade.

    A metfora cunhada por Plato vem de uma noo j literalizada na cultura grega do

    verbo ido (), que significava ver, perceber ou saber. Ou seja, a realidade da noo

    de ideia para ns depende diretamente do xito retrico de efetivao de uma metfora,

    nesse caso, de uma metfora que tem mais de dois milnios. Ideia, portanto, uma

    realizao da linguagem e de sua capacidade retrica de transbordar para fora de sua

    imanncia a sua prpria realidade. A realidade da noo de ideia antes de tudo a

    realidade lingustica da prpria metfora da ideia.

    De qualquer forma, definio, no sentido de definio ideal de um conceito de

    direito, o que nos permite desenvolver noes jurdicas e aplicar as frmulas mgicas

    do dar a cada um o seu ou de estabelecer a justa medida entre a falta e o excesso e

    assim por diante. Todos esses jogos definitrios, no entanto, requerem um avanado

    desenvolvimento lingustico, discursivo e, segundo esta tese, irnico-metafrico.

    A metfora matematizante das frmulas lgicas que se apresentam como

    definio do essencialmente jurdico teve um papel crucial no desenvolvimento disso

    que atualmente chamamos de cincia do direito. O positivismo jurdico, sobretudo,

    esforou-se em perseguir esses fins retricos de apresentao de seu objeto como algo

    cujos contornos fossem perfeitamente definidos, encobrindo, entretanto a funo

    pragmtica de sua prpria metodologia positivista.

    O impasse moderno em definir o direito parece ter muito a ver com

    este problema metodolgico: o positivismo, como uma manifestao

    nominalista, precisa reduzir a realidade ao que indivisvel,

    realidade sensvel, experimental. Como esse fenmeno, o direito,

    precisa de uma cincia que lhe encubra de segurana racional, ento a

    questo somente como reduzir-lhe a sua natureza a um objeto

    individual, dizer, a algo no-relacional. (CASTRO Jr., 2011, p. 67)

    No trecho acima, Torquato Castro Jr. se refere ao conceito de norma e sua

    instrumentalidade retrica no processo de construo de uma realidade positiva do

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    direito, isto , de uma realidade que seja experimentvel, mensurvel, empiricamente

    afervel, praticamente sensvel. A fora do direito no est apena