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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO DE CINCIAS JURDICAS
FACULDADE DE DIREITO DO RECIFE PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM DIREITO
PEDRO PARINI MARQUES DE LIMA
A METFORA DO DIREITO E A RETRICA DA IRONIA NO PENSAMENTO JURDICO
TESE DE DOUTORADO
Recife, Abril de 2013
PEDRO PARINI MARQUES DE LIMA
A METFORA DO DIREITO E A RETRICA DA IRONIA NO PENSAMENTO JURDICO
Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao
em Direito da Faculdade de Direito do Recife/
Centro de Cincias Jurdicas da Universidade
Federal de Pernambuco como requisito parcial
para obteno do grau de Doutor.
rea de concentrao: Teoria e dogmtica do
direito
Linha de pesquisa: Linguagem e direito
Orientador: Prof. Dr. Torquato da Silva Castro Jr.
Recife, Abril de 2013
Catalogao na fonte Bibliotecria Eliane Ferreira Ribas CRB/4-832
L732m Lima, Pedro Parini Marques de A metfora do direito e a retrica da ironia no pensamento jurdico / Pedro
Parini Marques de Lima. Recife: O Autor, 2013. 383 folhas : fig. Orientador: Torquato da Silva Castro Jr. Tese (Doutorado) Universidade Federal de Pernambuco. CCJ. Direito,
2013. Inclui bibliografia. 1. Retrica. 2. Metforas - Aspectos jurdicos. 3. Anlise do discurso -
Aspectos jurdicos. 4. Linguagem e lnguas. 5. Direito - Linguagem. 6. Direito - Filosofia. 7. Persuaso (Retrica). 8. Argumentao jurdica. 9. Crtica. 10. Conceitos. I. Castro Jr., Torquato (Orientador). II. Ttulo.
340.1 CDD (22. ed.) UFPE (BSCCJ2013-018)
http://catalogos.bn.br/scripts/odwp032k.dll?t=bs&pr=livros_pr&db=livros&use=sh&disp=list&sort=off&ss=NEW&arg=linguagem|e|linguashttp://catalogos.bn.br/scripts/odwp032k.dll?t=bs&pr=livros_pr&db=livros&use=sh&disp=list&sort=off&ss=NEW&arg=direitohttp://catalogos.bn.br/scripts/odwp032k.dll?t=bs&pr=livros_pr&db=livros&use=sh&disp=list&sort=off&ss=NEW&arg=persuasao|(retorica)http://catalogos.bn.br/scripts/odwp032k.dll?t=bs&pr=livros_pr&db=livros&use=sh&disp=list&sort=off&ss=NEW&arg=argumentacao|juridicaAutor: Pedro Parini Marques de Lima
Ttulo: A METFORA DO DIREITO E A RETRICA DA IRONIA NO
PENSAMENTO JURDICO
Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Direito da Faculdade de Direito do Recife - Centro de Cincias Jurdicas da Universidade Federal de Pernambuco como requisito parcial para obteno do grau de doutor.
rea de concentrao: Linguagem e direito
Orientador: Prof. Dr. Torquato Castro Jr. A Banca Examinadora composta pelos professores abaixo, sob a presidncia do primeiro, submeteu o candidato defesa em nvel de Doutorado e a julgou nos seguintes termos:
Prof. Dr. George Browne Rego
Julgamento: _______________________________
Assinatura: _______________________________
Prof. Dr. Eduardo Ramalho Rabenhorst
Julgamento: _______________________________
Assinatura: _______________________________
Prof. Dr. Karl-Heinz Efken
Julgamento: _______________________________
Assinatura: _______________________________
Prof. Dr. Jos Arlindo de Aguiar Filho
Julgamento: _______________________________
Assinatura: _______________________________
Prof. Dr. Gustavo Just
Julgamento: _______________________________
Assinatura: _______________________________
MENO GERAL:
__________________________________________________________
Recife, 24 de abril de 2013.
A Janice
AGRADECIMENTOS
A Marina, por suportar a ironia cotidiana.
A Janice, por t-la suportado antes.
A Cristina, por me fazer querer levar a srio a cincia e a Joo, pela orientao que nunca termina.
A Hugo, Diogo, Daniel e Leo, pelo esforo desde sempre em compreender as idiossincrasias.
A Mariana e Digenes, pelo suporte, pela amizade e pela fora para trabalhar.
A Flavianne e Alfredo, pelo exemplo de amizade e profissionalismo.
A Graziela, por me fazer tentar compreender a diferena entre sarcasmo e ironia.
A Torquato, por compartilhar comigo suas metforas.
RESUMO
LIMA, Pedro Parini Marques de. A metfora do direito e a retrica da ironia no
pensamento jurdico. 2013. 383 f. Tese (Doutorado em Direito). Programa de Ps-
Graduao em Direito, Centro de Cincias Jurdicas/Faculdade de Direito do Recife,
Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2013.
A tese defende que, para se lidar com a noo de direito, so necessrias habilidade
potica e criatividade literria. preciso construir metforas, manipul-las e interpret-
las astuta ou ironicamente. Analisando-se retoricamente estratgias jurdicas, percebe-se
que a ironia fundamental no pensamento jurdico. Conclui-se que o vocabulrio final,
e os discursos acerca de fenmenos considerados jurdicos so metaforicamente
estruturados, ao mesmo tempo em que so apresentados como conceituais ou literais. A
literalidade tomada pela dogmtica jurdica tradicional como dado inquestionvel, que
ora corroborado, ora combatido. Entretanto na extraliteralidade proporcionada pela
metfora e pela ironia que opera o pensamento jurdico. Constata-se que, alm de
possurem origem metafrica, expresses fundamentais da retrica material dos juristas
so ironicamente invertidas: nota-se o emprego de justia significando vingana, de
saber no lugar de querer, de racionalidade ao invs de regularidade. Paradoxos
e contradies que se formam no pensamento jurdico dissolvem-se diante de alguma
forma de compreenso irnica. A ironia est em diferentes mbitos da retrica jurdica:
como ironia de evento, est presente no prprio carter contraditrio das expresses
empregadas em diferentes contextos; como ironia instrumental, elemento dogmtico
de persuaso e crtica; como auto-ironia, est na construo e na apresentao das
teorias jurdicas. O modo irnico de pensar, agir, comunicar e interagir tomado como
modo de captar o fenmeno jurdico em suas inmeras formas e possveis
manifestaes na histria.
Palavras-chave: Retrica jurdica; metfora; ironia.
ABSTRACT
LIMA, Pedro Parini Marques de. Laws metaphor and the rhetoric of irony in legal
thinking. 2013. 383 p. Doctoral Thesis (PhD of Law) Programa de Ps-Graduao
em Direito, Centro de Cincias Jurdicas/Faculdade de Direito do Recife, Universidade
Federal de Pernambuco, Recife, 2013.
It is argued that, in order to deal with the notion of law, poetic skill and literary
creativity are demanded. To build metaphors, manipulate and interpret them in an astute
or ironic way is essential. It is manifest that irony plays a key role in legal thinking. The
final vocabulary and speeches related to legal phenomena are metaphorically structured,
however they are presented as being literal-conceptual. Literalness is taken by
traditional dogmatics as an unquestionable fact. Even though it is therefore in the
extraliteralness provided by metaphor and irony that legal thinking operates. It is also
noted that, besides having a metaphorical origin, fundamental expressions which form
the rhetoric of lawyers are ironically reversed. Examples of these reversions are the
usage of the concept of justice as meaning revenge, of knowing instead of
wanting, of rationality rather than regularity. Paradoxes that take place in legal
thinking are dissolved when confronted with ironic understanding. Irony is in several
different areas of legal rhetoric: as irony of fact, it is present in the contradictional
meaning of expressions in different contexts; as instrumental irony, it is part of
dogmatic strategies of persuasion and critique; as self-irony, it is present in the
construction and presentation of legal theories. As a result, an ironic way of thinking,
acting, communicating and interacting may well become the appropriate way to capture
the legal phenomenon in its many forms and possible manifestations in history.
Keywords: Legal rhetoric; metaphor; irony.
Sumrio
INTRODUO ................................................................................................................. 9
I Metfora e ironia na anlise retrica do direito ....................................................... 9
II Metodologia: a filosofia de cunho retrico e a auto-ironia desta tese ................... 13
III Roteiro de exposio ............................................................................................. 20
PARTE I A METFORA DO DIREITO .................................................................. 22
Captulo 1 Retrica da ontologia ou ontologia da retrica? Os pressupostos
fundamentais de uma concepo irnico-metafrica do direito ................................. 22
1.1 A noo de direito entre conceito e metfora ........................................................ 22
1.2 A estratgia retrica de reificao do direito pela linguagem metafrica ............. 34
1.2.1 O essencialismo objetivista e categrico da linguagem jurdica ........................... 34
1.2.2 As remotas origens da tese subjetivista e seu reflexo na linguagem mtico-
potica do direito ................................................................................................... 47
1.2.3 O carter metafrico da noo de direito de acordo com o realismo jurdico
escandinavo ............................................................................................................ 52
1.3 O mundo no dado, mas construdo do direito: conhecimento, produo e
construo retrico-esquemtica das narrativas do direito .................................... 58
Captulo 2 Teorias da metfora como pontos de partida para uma
compreenso metafrica do direito ................................................................................ 77
2.1 Teorias construtivistas da metfora: metfora como estrutura cognitiva da
linguagem convencional ........................................................................................ 77
2.2 Metfora e convencionalismo da comunicao humana: o sentido figurado
produzido pela violao de mximas conversacionais .......................................... 88
2.3 O sentido literal da metfora ................................................................................. 96
2.4 Linguagem figurada e formao de um plano autnomo de existncia da
metfora do direito ............................................................................................... 100
2.4.1 As conexes metafricas entre a produo do direito e sua apresentao .......... 100
2.4.2 A realidade metafrica do direito ........................................................................ 105
Captulo 3 Linguagem jurdica metafrica e a produo retrica de verdades
discursivas no direito ..................................................................................................... 120
3.1 A linguagem jurdica dogmtica e o sentido literal no lugar do metafrico ....... 120
3.2 Epistemologia da metfora e produo de conhecimento na prtica do direito .. 133
3.2.1 A proibio e o desestmulo do estudo da retrica entre os juristas como
paradoxo .............................................................................................................. 133
3.2.2 A independncia da verdade metafrica em relao aos enunciados literais ...... 138
Captulo 4 O papel das metforas na construo de modelos cientficos na
teoria do direito .............................................................................................................. 148
4.1 A cincia do direito como escrita ..................................................................... 148
4.2 Os modelos cientficos como metforas para a configurao do direito ............. 159
4.2.1 A capacidade de redescrio potica prpria da imaginao cientfica do
jurista... ................................................................................................................ 159
4.2.2 Modelos como ponto de referncia para as construes de juzos prescritivos
e descritivos da realidade jurdica ........................................................................ 177
PARTE II A IRONIA DO DIREITO ....................................................................... 185
Captulo 5 Definio e formas de ironia: a ironia como metfora complexa
das incongruncias e contradies do ser .................................................................... 185
5.1 Da ironia como figura retrica ironia constitutiva da personalidade ou
estilo de existncia ............................................................................................... 185
5.2 A ironia como determinao da subjetividade experimental e provisria .......... 198
5.3 O problema do conhecimento e da verdade diante da ironia ............................... 206
Captulo 6 O srio e o irnico no jurista ................................................................... 222
6.1 Confiado e desconfiado no direito: o jurista e sua necessidade de crer e
duvidar ................................................................................................................. 222
6.2 Otimismo e pessimismo na doutrina do direito: positividade e negatividade
doutrinria do artista que pretende construir e destruir mundos .......................... 237
6.3 A ironia no cu dos conceitos jurdicos ............................................................... 246
Captulo 7 Ironia como garantia de credibilidade do discurso jurdico ................ 260
7.1 A ironia jurdica do discurso volitivo que se apresenta como cognitivo ............. 260
7.2 O jurista irnico quando s pode crer, mas, no s espera, como afirma ter
certeza epistmica de seu conhecimento ............................................................. 270
7.3 O saber do jurista entre simples sabena e sabedoria (phrnesis/sopha) ....... 285
7.3.1 Justia e segurana como lugares-comuns para uma lgica do raciocnio
jurdico ................................................................................................................. 285
7.3.2 A sabedoria do jurista como phrnesis ............................................................... 295
Captulo 8 O velado e o oculto do discurso irnico na retrica do direito: o
que se quer e o que se pode fazer ver ........................................................................... 305
8.1 A ironia nos trs planos da retrica: material, prtica e analtica ........................ 305
8.2 A ironia na retrica material do operador do direito: a ironia irrefletida da
linguagem-objeto dos juristas .............................................................................. 314
8.3 A ironia na retrica prtica da atividade terico-dogmtica: a ironia como
expediente estratgico de consolidao da dogmtica jurdica ........................... 337
8.4 A ironia na retrica analtica da teoria e da filosofia do direito: a ironia como
constituio de um mundo terico prprio do jurista .......................................... 357
Concluso ....................................................................................................................... 371
Referncias ..................................................................................................................... 373
INTRODUO
I Metfora e ironia na anlise retrica do direito
For the determined ironist any
anomaly or incongruity is ironic, and
almost any phenomenon can be seen as
incongruous in some light or other: what is
not incongruous viewed locally will be
found so when placed in a larger context.
(BOOTH, 1974, p. 236)
H tempos convivo com a intuio de que, toda vez que me falavam sobre o
direito, fossem meus professores, colegas, alunos, eu deveria tomar por significado o
talvez no exatamente, mas de algum modo oposto do expressado. No sei se foram as
diversas situaes relatadas que de to curiosas resultaram na minha suspeita, ou se a
desconfiana j me habitava a mente antes de ouvi-los. Cheguei, de qualquer modo,
generalizao de que juristas tendem a falar o contrrio do que dizem falar, expressam-
se metaforicamente e raciocinam ironicamente: dizem estar certos no reino das aporias,
falam a lngua da objetividade na terra dos critrios subjetivos, afirmam aterem-se aos
mais ordinrios conceitos literais enquanto elaboram as mais refinadas e sofisticadas
metforas.
Tais pensamentos me levaram seguinte hiptese: direito metfora e
compreend-lo importa ironia. Nunca se definiu satisfatoriamente um conceito de
direito, porque direito no conceito, mas na qualidade de metfora foge a delimitaes
ou demarcaes categoriais ntidas. No entanto, enquanto tradicionalmente a
compreenso do direito pressupe o estabelecimento de seu conceito, ironicamente o
que se apresenta so metforas indefinveis que no se deixam conceituar. Sem esforo
irnico no possvel levar o jogo do direito a srio. Isto , s ironicamente possvel
aceitar ou construir discursos que levem em considerao um conceito de direito. Esta
a pressuposio fundamental de que parte a tese.
Sou capaz de entender a nsia do leitor da tradio jurdica por uma definio,
mesmo que preliminar, do que entendo, no contexto dessa tese, por metfora e ironia.
Acostumado a ter o conceito como ponto de partida para o conhecimento, natural que
o estudioso do direito reivindique definies sobretudo, categoriais, para parte da
10
tradio das palavras que so empregadas antes de comear o trabalho de
compreenso. Reconheo que isso seria tambm de se esperar em um trabalho
acadmico: definir as palavras para seguir adiante. No entanto, diante da dificuldade de
se estabelecer contemporaneamente um sentido unvoco, mesmo que estratgico, para
os tropos em geral e, em especial, para a metfora e para a ironia, sugiro que o leitor
aguarde ou antecipe a discusso do Captulo 2 e do Captulo 5 de acordo com sua
necessidade. Recomendo, contudo, que, se puder esperar, empregue sua prpria intuio
sempre que essas palavras aparecerem. Esse precisamente o propsito do percurso do
texto. Uma definio sinttica e preliminar poderia tornar-se prejudicial prpria
compreenso do problema. De toda sorte, entendo que a definio de metfora proposta
por George Lakoff e Mark Johnson (1980), parece mais adequada. Com relao ironia,
costumo pens-la num sentido entre o proposto por Kierkegaard (2006) e o oferecido
por Wayne Booth (1974), isto , entre uma abordagem metafsica e outra retrica.
Como objetivo geral, a tese procura compreender e apresentar a noo de direito
ironicamente como metfora do conceito de direito. Parte-se, pois, da proposio de
que compreender a metfora do conceito de direito implica, de alguma forma,
compreend-lo ironicamente. Isso porque o que se apresenta superficialmente nas
teorias do direito o conceito se ope ao que de fato significado a metfora.
Assim, portanto, se esta tese se confirma, o modo irnico de pensar, agir,
comunicar e interagir pode vir a se tornar a maneira mais apropriada de captar o
fenmeno jurdico em suas inmeras formas e possveis manifestaes na histria. Se o
prprio jogo de compreenso da metfora do direito irnico, porque se apresenta em
oposio quilo que , torna-se ento imprescindvel pens-lo ironicamente. S
ironicamente seria possvel levar a srio o que se afirma sobre o direito no s na prtica
da atividade dogmtica, como tambm nas teorias que o representam procurando defini-
lo literalmente enquanto conceito.
Como objetivo especfico, a tese procura investigar se esta ironia est presente
no prprio direito de forma objetiva, na maneira subjetiva de compreend-lo, ou no
modo relativamente controlado de apresent-lo.
Para resolver esse problema, preciso impor uma advertncia preliminar a todos
que pretendem cutucar a ironia: o grande risco que se corre ao perseguir a ironia, isto
, ao tentar entend-la para depois empreg-la como chave de leitura para um fenmeno
qualquer, que se pode passar a ver ironia em tudo. A ironia como expresso de uma
11
negatividade absoluta (KIERKEGAARD, 2006, p. 222) ou ainda como momento
dialtico da ideia que corresponde a uma negatividade absoluta e infinita (HEGEL,
2000a, p. 92) pode se transformar num potente centro de gravidade que tudo para si
atrai e instantaneamente consome. No caso de Hegel, em relao noo de ironia
cunhada pelos romnticos, a negatividade irnica implica a vacuidade do concreto e a
nulidade de tudo o que objetivo ou possui valor imanente. Assim, no se pode tomar
qualquer verdade a srio, nem mesmo ou talvez, especialmente a verdade da ironia.
Uma parte da ironia jurdica, portanto, talvez esteja no prprio direito (ou na
noo que se tem de direito), no seu modo de ser, mas tambm no seu modo de aparecer
e na forma de compreend-lo. A metfora do direito pode ser encarada como uma rede
irnica de interaes que se manifesta na experincia e que compreendida e
apresentada numa ainda mais complexa trama de ironias, cada vez mais reflexivas e, o
mais importante, imperceptveis como tal, isto , como sendo irnicas.
O que diferencia afinal o irnico do no-irnico?
Um discurso no-irnico pode ser ameaado constantemente pela ironia. Isto , a
cada nova sentena, o discurso torna-se suscetvel de ser tomado completamente como
irnico. Diante da suspeita de presena de ironia, h constantemente uma reavaliao
crtica daquilo que foi tomado seriamente, isto , literalmente. Isso porque uma simples
frase pode acabar com a seriedade do discurso e fazer com que o interlocutor passe a ver
ironia retroativamente em relao a toda a parte anterior do discurso, previamente
tomada como sria ou literal. O contrrio, no entanto, no pode acontecer: no se pode
desfazer a ironia e converter o discurso figurado em um discurso literal. Nenhuma
sentena posterior pode endireitar ou desironizar o discurso irnico (BOOTH, 1974,
p. 51). Talvez por essa razo no exista no nosso vocabulrio o verbo que corresponde
ao contrria de ironizar. E, sem dvida, isso faz a ironia, ou o discurso irnico, ser
mais potente em relao ao no-irnico. isso que, paradoxalmente, proporciona ao
discurso indireto da ironia um grau de confiana maior se comparado ao discurso
literalizado. Aquilo que apenas suscitado em uma possvel relao de oposio,
justamente porque no explicitado ou literalizado, propicia uma maior grau de
expectativa de consenso de um consenso acerca do no revelado, mas apenas intudo,
esperado, ou acreditado. A partir dessa hiptese, pretendo desenvolver a tese de que ,
portanto, o modo irnico de compreender o direito que proporciona um sentimento de
12
segurana, certeza e confiana de quem de uma forma ou de outra se envolve na retrica
jurdica, seja em sua retrica prtica, material ou terica.
Para desenvolver esse trabalho de compreenso irnica do fenmeno jurdico
preciso, em primeiro lugar, obviamente entend-lo de maneira no-literal. A extra-
literalidade da ironia subentende a identificao da noo de direito com alguma forma
de linguagem metafrica, figurada ou imagtica. Se a teoria jurdica, a que chamarei
ortodoxa, empenhou-se como pretendo apresentar ao longo do trabalho em definir o
conceito de maneira literal, levando o direito a srio, o propsito aqui ser de apresentar
o direito como uma metfora que se compreende ironicamente. A minha tese de que
nada h de literal no conceito de direito, seno metforas que, ironicamente, deixaram
de ser apresentadas como figuras ou tropos, em razo de exigncias supostamente
racionalistas e reducionistas que moldaram a imagem cristalizada no pensamento
jurdico moderno.
No entanto, a compreenso moderna dos vrios conceitos de direito oferecidos
pela teoria no conseguiu superar o carter metafrico, imagtico, mgico-mstico das
compreenses originrias de diferentes noes de direito. O pensamento moderno no
foi capaz de literalizar o pensamento antigo, isto , de substituir uma linguagem
metafrica arcaica por outra literal.
No possvel opor o pensamento jurdico moderno ao pr-moderno afirmando
simplesmente que enquanto o primeiro racional o segundo irracional. So formas
distintas de racionalizao dos fenmenos jurdicos. Como diz Alf Ross (1961, p. 20), a
estrutura do conceito de direito remonta a essas antigas noes mgico-msticas, mas
isso no significa que essas noes pr-modernas sejam fices puramente acidentais,
pelo contrrio, surgiram de um processo de racionalizao de vivncias jurdico-morais
semelhantes s de hoje. Portanto, da mesma forma em que h uma racionalidade nas
propostas modernas de definio do conceito de direito, h racionalidade tambm nas
formas mticas de sua compreenso alegrica ou metafrica pr-moderna. Contudo,
outro tipo de racionalidade, determinada pelos tpoi ento vigentes. possvel afirmar
que cada poca ou cada contexto histrico determina seus parmetros de racionalidade
de acordo com suas imagens prprias, suas maneiras particulares de produzir metforas
no gostaria de dizer mais uma vez, mas me sinto obrigado e seus paradigmas.
Entenda-se racionalidade aqui no sentido mais abrangente de justificao retrica dos
critrios de verdade, correo, realidade, conhecimento e justia.
13
Se o esforo ortodoxo da teoria jurdica de compreenso literal do significado
do conceito de direito, a compreenso irnico-metafrica, na qualidade de sua anttese,
ser patentemente heterodoxa. Talvez entender o significado do direito requeira
justamente uma compreenso desse tipo, heterodoxa, que no leva o direito a srio e que
defende a impossibilidade de qualquer definio literal de seu significado, seja no
contexto de uma racionalidade mtica ou pr-moderna, seja no mbito de uma
racionalidade cientfica ou moderna. Mesmo que, concomitantemente, no se possa
desprezar o conceito nem o esforo retrico de representao literal que fazem parte das
estratgias operacionais do trabalho jurdico.
Dessa forma, metfora e ironia so duas formas complementares de
comunicao indireta capazes de representar os fenmenos jurdicos que nos chegam
igualmente de forma indireta. Parte-se do princpio de que no h contato direto ou
linear entre o sujeito e o objeto quando se trata do jurista e do jurdico. Essa interao
que h entre jurista e direito que pode ser compreendida em termos de uma relao
entre sujeito cognoscente e objeto a ser conhecido, ou ainda entre intrprete e
significado sempre tortuosa, oblqua, indireta e requer uma srie de saltos sobre
contradies, peties de princpio, aporias e paradoxos com a ajuda da f e de
esperana prprias do modo de pensar dogmtico. No direito, quando o sujeito irnico
percebe, por exemplo, que se chega justia por meio da injustia, ou que se impe a
paz por meio da violncia, ele percebe que tudo no passa de um grande jogo, de uma
grande brincadeira, de uma performance bem-sucedida em criar a realidade artificial em
cujo interior nos auto-impomos a necessidade de viver com naturalidade.
II Metodologia: a filosofia de cunho retrico e a auto-ironia desta tese
A tese pressupe que o direito, em seus nveis ntico, prtico e terico1, se
subdivide em trs diferentes retricas que se referem respectivamente aos planos
lingusticos a) dos prprios textos normativos, b) do vocabulrio estratgico da
dogmtica jurdica e c) dos modelos da teoria e da filosofia do direito. Nada obstante,
tenho conscincia de que essa tripartio em nveis retricos do direito tem, da mesma
1 Essa mais uma redefinio possvel do modelo em trs planos ou nveis de linguagem da retrica
analtica estruturado por Ottmar Ballweg (retrica material, retrica prtica e retrica analtica).
14
forma, um carter retrico e, portanto, tpico ou circunstancial, e tambm estratgico,
de impor uma determinada viso terica a uma restrita comunidade de leitores. Uma
tese de doutorado em retrica jurdica no pode se autonegar, isto , no pode negar
suas pretenses de cientificidade, demonstrabilidade, comunicabilidade e todas as outras
que lhe so acessrias. Pelo contrrio, fazer uma tese de doutorado de acordo com os
padres normativos no somente tcnicos, mas tambm jurdicos, morais (e por que no
teolgicos?) da universidade um forte indcio de respeito e reverncia academia,
forma de sua concepo e ao papel social e poltico que desempenha. No momento em
que se afirma (ou pelo menos se supe) que o direito e as coisas que se dizem sobre o
direito (isto , o que compreende tanto o prprio conjunto de textos normativos, quanto
os discursos elaborados pela dogmtica e as reflexes de teoria e filosofia jurdicas) so
uma forma de retrica, implica-se necessariamente que os argumentos dessa tese
formam tambm uma retrica. Mas no uma retrica material, e sim uma retrica com
pretenses analticas e reflexivas sobre um objeto que tambm fenmeno retrico. Por
ser retrica, isto , por, em parte, se declarar uma prtica retrica ao mesmo tempo em
que no se quer reconhecer como sendo apenas uma retrica que no vai alm da
metfora que , o prprio direito se faz irnico.
Dessa forma, irnica uma tese de doutorado que parte em primeiro lugar da
hiptese de que o direito metafrico, porque sua linguagem a linguagem material
que o constitui metafrica, no havendo, portanto, qualquer conceito ou objeto
algum a ser definido e, em segundo lugar, de que o processo para compreend-lo e p-lo
em prtica da dogmtica, da teoria e da filosofia do direito irnico porque nega,
mesmo que s de maneira aparente, a sua origem metafrica enquanto dela retrico-
dependente. A ironia da tese est em procurar definir o indefinvel, em criticar
racionalmente a prpria racionalidade na qual se insere.
A dependncia do direito em relao retrica que procuro desenvolver aqui no
mbito desse trabalho pode ser resumida da seguinte forma: se no fossem as suas
metforas e a atitude irnica de sua compreenso, os juristas no poderiam falar sobre o
direito; e se pudessem falar, no seriam capazes de se fazerem ouvir; e se conseguissem
serem ouvidos, no poderiam convencer ou persuadir. O direito uma construo
retrica que depende da fora de suas metforas, do sucesso das estratgias de
compreenso e dos diferentes modos de representao discursiva.
15
Pretende-se aqui, pois, desenvolver a hiptese subsidiria de que as construes
dos discursos tericos e prticos dos juristas dependem de sua capacidade imaginativa
de manipular metforas, pois o estabelecimento de um novo jogo de linguagem em que
novos sentidos devero se manifestar requer uma habilidade com o entrelaamento de
diversas figuras, algumas mais outras menos, complexas. A ironia, por sua vez, est em
apresentar o discurso como um conjunto de enunciados literais, isto , como uma
retrica conceitual, quando na verdade a possibilidade de manipulao e composio de
novas metforas e a pseudo-literalizao de metforas velhas e supostamente mortas
mesmo que o debate acerca da vida e morte das metforas no seja pacfico entre seus
estudiosos fundamental para um desempenho retrico satisfatrio em relao aos
propsitos que se lhe impem.
Evidentemente, faz parte da tese, a tarefa de dizer o que o direito e o que o
direito no em termos retricos, ao modo das demais propostas de compreenso e de
descrio do conceito de direito e da natureza do jurdico. Claro que o ser do direito
aqui entendido como a metfora de um sujeito que se liga a um predicado, mas que
justamente por isso no escapa metfora da conexo ou da ligao de algo que
est sujeito a algo que predica. preciso ter em mente que nos arriscamos
constantemente quando dizemos que algo alguma coisa. Mesmo que se saiba que
no h outro modo de contornar o problema da justaposio de um predicado a um
sujeito. Da mesma forma, existe a necessidade de se rejeitar as compreenses e
descries da prpria reflexo jurdica que no reconhecem o seu carter retrico.
Entretanto a estratgia, diferentemente, no a de refutar as teorias ou as formas de
compreenso que se tem do direito, mas de se redescrever o direito como metfora de
vrias retricas possveis a partir de um vocabulrio terico prprio da retrica terica e
filosfica.
Retoricamente, toda nova proposta de compreenso de um fenmeno ou de
assimilao da racionalidade intrnseca a um objeto uma redescrio ou reformulao
de um vocabulrio que ocorre por meio do estabelecimento de novas metforas. Todo
projeto desse tipo leva a uma obra impregnada de propsitos ideolgicos de impor uma
viso de mundo parcialmente particular, por meio de uma estrutura apenas em parte
objetivada ou precariamente compartilhada por uma comunidade de indivduos. Uma
redescrio a partir de novos termos, ou pelo menos de termos diferentes, mas que
mantm a forma do trabalho cientificamente e, portanto, metodologicamente
16
compromissado, uma ironia autorreferente ou, simplesmente, uma auto-ironia
(MUECKE, 1995, p. 59), em que os papis de ironista e objeto so combinados, como
por exemplo, autor (ironista) e tese (objeto). Se o pensamento jurdico irnico, dentre
outras razes, por no se reconhecer explicitamente como sendo retrico e por
estrategicamente no revelar o carter metafrico do direito, uma tese de doutorado em
filosofia do direito ela mesma uma ironia quando aceita ser tese e prope tambm ela
uma filosofia, mesmo que assumindo a posio do iron (), isto , de quem pratica
a eironia () (MUECKE, 1995, p. 31) ou a retrica da dissimulao
autodepreciadora e da modstia simulada.
evidente que no ser possvel partir do nada, e recorrer apenas a um
vocabulrio agora, neste momento, inventado ou imaginado. Os conceitos e as
dicotomias tradicionais da linguagem da filosofia ocidental fazem parte da metodologia
a que se submete pesquisa e da prpria concepo da crtica presente no texto. Ainda
, e por um bom tempo provavelmente continuar a ser, preciso lidar com as noes
dicotmicas, antagnicas e bipolares de literal/metafrico, racional/irracional,
cientfico/literrio, objetivo/subjetivo etc. largamente empregadas nos vocabulrios
filosficos da Modernidade. Mas, da mesma forma que a filosofia moderna foi capaz de
elaborar uma nova redescrio da prpria filosofia com o desenvolvimento da
epistemologia e o abandono ou reformulao da metafsica dos conceitos de arch,
aret, lgos, semeon, phsis, dke etc., o que se pode impor desde j o fato de que
estamos lidando com metforas e, portanto, fato, verdade, racionalidade,
igualdade, subjetividade so palavras no gostaria de escrever que so somente
palavras e que cada uma dessas palavras pode ser empregada para diferentes
propsitos retricos, ou seja, estratgicos e persuasivos mesmo no que se refere
instruo.
Quando me vejo obrigado a recorrer a outros vocabulrios com o intuito de
redescrever um determinado estado de coisas a partir de uma filosofia retrica, por
exemplo, sou levado a pensar a comunicao como um conglomerado de formas
distintas de persuaso com inmeros objetivos e no de troca de mensagens que
pressupe a linguagem como sendo apenas um meio para o intercmbio de informaes.
Portanto, retoricamente, comunicar persuadir, o que vale dizer que expressar-se
impor aos nossos interlocutores e do mesmo modo impor-se as prprias metforas,
ou seja, a prpria viso esquemtica e imagtica de mundo e de si mesmo. assim que
17
palavras que so amplamente empregadas de forma duradoura para descrever um
conceito na filosofia no-retrica, isto , uma filosofia que no se reconhece como
manifestao retrica, devem ser novamente reformuladas, estabelecendo novos usos ou
mesmo restabelecendo antigos significados j no mais em voga estratgia comum na
filosofia e no contnuo processo de reinvent-la. A reformulao de termos, ou a
redescrio do mundo por meio de novas metforas ou novos usos metafricos de
velhas palavras corresponde ao estabelecimento de novas narrativas que no s
descrevem a realidade, mas que a constituem (constroem ou inventam, a depender da
teoria que seja adotada, como ser discutido ao longo da primeira parte desta tese).
Mas uma redescrio absolutamente inovadora, radicalmente nova, seria
simplesmente incomunicvel. preciso recorrer aos conceitos, ou s metforas
literalizadas para admitir os saltos semnticos que as metforas proporcionam. preciso
reconhecer a dicotomia entre literalidade e metaforicidade para falar de metforas e at
negar a prpria literalidade das palavras. Assim, se direito metfora ou o conceito de
direito na verdade uma metfora preciso ser capaz de lidar com a linguagem
metafrica para compreend-lo em suas entranhas (para usar as metforas espaciais
tpicas da epistemologia e da metodologia do dentro e fora, ou do interno e do externo,
dos pontos de vista interior e exterior). Mas se apenas ironicamente o direito se
apresenta ou se revela (e, para sua prpria eficcia e mesmo sobrevivncia, defendo o
ponto de vista de que s poderia ser assim) como metfora, sua compreenso
necessariamente irnica. A ironia talvez o nico caminho srio capaz de lidar com os
paradoxos e contradies do discurso jurdico, o que impede que toda investigao no
mbito jurdico termine em uma aporia. Sobretudo no que se refere no tanto s ironias
de palavra ou verbais (BRAIT, 2008, p. 92), mas s ironias de situao em que as
contradies existentes em dois fatos contguos e simultneos so detectadas por um
observador.
O trabalho de construo desta tese adota ainda uma perspectiva metodolgica
necessariamente dialtica. Claro, o termo dialtica no nada bvio. Em razo de sua
hipertrofia semntica e saturao histrica possvel entend-lo em vrios sentidos,
alguns bem diferentes entre si. Cada poca, cada filosofia e cada filsofo terminam por
adequar o conceito a suas formas prprias de compreenso e a seu prprio sistema
filosfico. Emprego a expresso dialtica no sentido que empregado por Richard
Rorty (2007, p. 142), isto , num sentido mais retrico do que lgico mesmo que a
18
oposio entre lgica e retrica seja questionvel para um ironista, assim como a
distino entre filosofia e literatura, entre racional e irracional e assim por diante
(RORTY, 2007, p. 150). No quero dizer com isso que um sentido exclua
necessariamente o outro: so em vrios pontos intercambiveis at, pois h uma lgica
na retrica, como h uma retrica na lgica, pelo menos na lgica clssica e medieval,
se os lgicos modernos mo permitirem. Isso pode ser visto na prpria histria da noo
de dialtica (BARTHES, 2000, p. 30-41) ou na oposio entre dialtica antiga e
dialtica moderna (GADAMER, 2007, p. 14).
Assim, dentre os vrios sentidos possveis que se encontram nos diferentes
contextos, desde a filosofia eleata de Parmnides e Zeno, ou da filosofia jnia de
Herclito, passando pela filosofia platnica e pela lgica aristotlica e, posteriormente,
pelo desenvolvimento medieval das artes do trivium, chegando at a Modernidade na
filosofia de Kant, Hegel e Marx, o significado metodolgico que emprego aqui para a
palavra dialtica est relacionado ao carter lingustico-retrico da contraposio de
diferentes vocabulrios. Nesse sentido, dialtica no tem tanto o carter lgico de
inferncias entre proposies, mas assume um carter retrico de redescrio ou de
passagem de um vocabulrio a outro, ou ainda de transio de uma terminologia para
outra.
Essa metodologia retrico-dialtica, pois, parte da relao de oposio entre dois
vocabulrios antagnicos, tradicionalmente opostos pelo vrtice, como diferentes
formas de pensar, compreender, descrever, narrar, agir e se situar: o vocabulrio dos
metafsicos e o vocabulrio dos ironistas. Enquanto o primeiro est preso a uma posio
ontolgica ou dogmtica de procura da verdade, o segundo est ligado a um
nominalismo retrico ligado noo de verossimilhana. Entretanto, a tese no procura
receber passivamente essa tradio ou apenas compreender a relao de oposio entre
os dois vocabulrios, mas tem o objetivo de subvert-la.
patente que os metafsicos adotam como pressuposto para suas construes
filosficas o binmio aparncia/realidade, sendo a filosofia para os metafsicos a
doutrina da verdade absoluta (HEGEL, 2000b, p. 388). Estranhamente, contudo, essa
oposio entre aparncia e realidade ou entre aparncia e essncia tambm
fundamental para o sujeito irnico. O ironista no pode simplesmente desprezar esse
vocabulrio metafsico. Assim como no h metfora sem a oposio entre sentido
literal e sentido metafrico, no h ironia sem a pressuposio de que h algo aparente
19
que expressado e algo essencial que significado. Ou seja, do mesmo modo que a
noo de metfora depende da oposio entre literalidade e metaforicidade, a noo de
ironia pressupe a relao de contrariedade entre aparncia e essncia. O ironista se v
obrigado a reconhec-la.
Diante disso, difcil, mesmo para um ironista relativista, ou para uma filosofia
que se auto-intitula ctica e retrica abrir mo de um vocabulrio prprio da metafsica.
Do mesmo modo como um sentido metafrico s se justifica com base na diferenciao
em ralao a um sentido literal pressuposto, a ironia necessariamente depende do jogo
entre o aparente e o oculto ao passo que tende a fazer daquilo que est oculto a sua
essncia.
diferena do metafsico, contudo, o ironista, sem poder lev-la a srio, toma a
oposio apenas como um jogo, isto , como um jogo de oposio entre aparncia
revelada e aparncia ocultada, da mesma forma que o metafrico pode se valer do
sentido literal apenas para reforar a noo de metfora sem assumir que de fato existem
sentidos literais. Pode at mesmo tratar a prpria noo de literalidade como uma
metfora, a metfora da escrita e da letra, ou seja, a metfora da apreenso do
significado pela palavra escrita.
Ambas as noes, pois, de metfora e de ironia podem apenas se servir de suas
relaes subjacentes e fundamentais de oposio para logo em seguida simplesmente
dissolv-las, negando assim a possibilidade de um sentido literal, no caso da metfora,
ou de uma essncia, no caso da ironia. O sujeito irnico se v obrigado a assumir a
oposio entre essncia e aparncia, ao mesmo tempo em que capaz de simplesmente
refut-la e de tratar tudo o que considerado essencial como meramente aparente. Na
verdade, a ironia trata tudo o que essencial como aparente e tudo o que aparente
como essencial, subvertendo a prpria ideia de oposio.
Em tempo, todos os negritos empregados servem para destacar expresses das
referncias ipsis literis. Os destaques feitos pelos prprios autores, quando for o caso,
sero aludidos.
20
III Roteiro de exposio
O texto da tese se subdivide em duas partes: a primeira dedicada compreenso
da noo de direito como metfora e a segunda objetivando apontar o modo irnico de
pensar a metfora do direito.
A leitura do texto deve seguir a ordem dos captulos, de forma que as discusses
dos primeiros captulos servem de fundamento para os desdobramentos dos captulos
subsequentes. No entanto, existe uma circularidade do prprio texto, na medida em que
algumas ideias so retomadas com o propsito de apontar as conexes entre ideias
trabalhadas em tpicos distintos.
Nesse sentido, o Capitulo 1 tem a funo de estabelecer o ponto de partida para a
compreenso irnico-metafrica do direito. Ali procurei apontar como o a busca por um
conceito de direito parece remontar sempre a noes metafricas do direito. De modo
que a realidade do direito esquemtica e metaforicamente determinada pela linguagem
empregada na construo dos discursos que procuram se referir a fenmenos para que
sejam considerados jurdicos. A noo de juridicidade, pois, entendida como o
resultado de uma construo retrica de supostos conceitos que mais adequadamente se
comportam como metforas.
No Captulo 2, tratei das concepes tericas contemporneas acerca do estudo
da metfora com o intuito de definir, mesmo que precariamente, algum sentido para a
noo de metfora que guiou o processo de elaborao da tese. Nesse mbito, procurei
destacar o papel das metforas na produo de conhecimento, na orientao do
pensamento jurdico e na construo de uma realidade prpria do direito.
O Captulo 3 foi destinado determinao de uma epistemologia prpria da
metfora, no apenas no sentido de que a linguagem metafrica propicia alguma forma
de conhecimento, mas de que o conhecimento jurdico depende diretamente de sua
linguagem metafrica. Alm disso, procurei apontar como a noo de sentido literal
tomada por bvia nos discursos jurdicos tericos, mesmo quando os juristas no
conseguem expurgar o carter figurativo da linguagem que empregam para se referir aos
fenmenos jurdicos.
21
O Captulo 4 teve como objetivo apontar as conexes entre a noo de metfora
debatida nos dois captulos anteriores e a noo de modelo cientfico. Procurei
investigar como os modelos da cincia jurdica contribuem retoricamente para a
configurao do prprio objeto direito. Assim, o discurso cientfico dos juristas
encarado como uma forma de literatura criativa e imagtica.
No Captulo 5, procurei delimitar uma gama de sentidos para a ironia
objetivando o subsequente desenvolvimento de uma abordagem irnica do fenmeno
jurdico. Nesse mbito, procurei analisar as vrias formas de ironia suscitadas por
diferentes autores, indo desde um sentido de ironia como figura retrica at a ironia
como modo de existncia.
No Captulo 6, apresento o que entendo por fundamento do modo de pensar
irnico prprio do jurista. Recorro s ironias de Rudolf von Jhering no seu trabalho
Scherz und Ernst in der Jurisprudenz como exemplo de uma personalidade irnica que,
a despeito de seu carter jocoso, procura levar o debate jurdico muito a srio.
No Captulo 7, tratei do saber prudencial do jurista e da ironia como um
mecanismo capaz de lidar com as ambiguidades, contradies e paradoxos do prprio
raciocnio jurdico, sobretudo no que diz respeito oposio entre o saber e o querer do
jurista.
No Captulo 8, tentei aplicar o conceito de retrica analtica de Ottmar Ballweg
como forma de investigar o carter irnico do prprio fenmeno jurdico em seus planos
material, dogmtico e terico.
PARTE I A METFORA DO DIREITO
Captulo 1 Retrica da ontologia ou ontologia da retrica? Os pressupostos
fundamentais de uma concepo irnico-metafrica do direito
1.1 A noo de direito entre conceito e metfora
Sabedoria se tira das coisas que no existem.
A tarde verde no olho das garas no existia.
Mas era fonte do ser.
Era poesia.
Era o nctar do ser.
(BARROS, 2010, p. 363)
O problema da definio de um conceito de direito sempre tema presente na
construo dos modelos tericos de compreenso dos fenmenos jurdicos. Mesmo que
no seja o objetivo especfico de um trabalho terico e mesmo que o faa de maneira
indireta ou implcita, uma proposta tipicamente moderna ortodoxa de teoria do direito
carrega consigo a necessidade de definir primariamente o seu objeto. Evidentemente h
teorias que explicitamente se escusam de tal exigncia, como especialmente as
pertencentes ou derivadas da tradio hermenutica filosfica. Um exemplo
notrio o de Arthur Kaufmann (1973, p. 31-35) que afirma ser possvel compreender o
direito a despeito de uma definio peremptria de seu conceito.
A definio do conceito de direito, por conseguinte, tanto pode ser o principal
escopo de uma teoria por exemplo, nos trabalhos de filosofia jurdica analtica ,
como pode ser apenas pressuposta para o desenvolvimento terico de um tema jurdico.
como se para pensar o direito fosse sempre necessrio defini-lo previamente. O
raciocnio seria algo como: se no se tem o conceito, no se tem uma ideia clara do que
o direito . Por exemplo, quando se pretende desenvolver uma teoria da norma, uma
teoria das fontes, ou uma teoria do fato jurdico, antes de tudo, parece fundamental dizer
o que se entende por direito no contexto daquele determinado sistema terico. Se uma
teoria tem como escopo definir o que torna jurdico um costume, ou determinar a
diferena entre um mero costume social e um costume jurdico, primeiramente deve
responder pergunta o que o direito? (LOSANO, 2007, p. 382). Ou seja, para que
os outros conceitos jurdicos sejam definveis necessrio saber antes o que o direito.
23
A essa noo corresponde o postulado analtico de que compreender definir, isto , de
que entender o direito implica apreender o conceito em uma definio.
H quem chegue prximo do delrio filosfico ou do otimismo religioso e
iluminado de atrelar a cruzada da definio busca da verdade, das essncia e
existncia plenas, da forma e do contedo e ainda do substrato do conceito de direito,
sem falar de sua configurao. Aparentemente muito o que se pode conseguir com o
trabalho da definio:
Quem busca o conceito de direito, procura a verdade do direito; e,
como esta s pode encontrar-se na sua essncio-existencialidade
plena, h mister determin-la em sua integralidade, o que vale dizer,
fixar a matria e a forma do direito o seu substrato e a sua
configurao. (JACQUES, 1964, p. 90).
A presente tese procura inverter os termos no sentido de que a compreenso dos
fenmenos jurdicos algo no s distinto da definio do conceito de direito como
tambm anterior, imagtica, contingente, temporria, circunstancial, plurvoca e
fragmentria. Compreende-se uma multiplicidade de fenmenos que supostamente se
aglomeram unitariamente em torno do conceito de direito por outros meios no-
conceituais e no-unvocos, e posteriormente parte-se em busca de uma definio, que
j no mais prvia compreenso. Compreenso, em termos hermenuticos, est
diretamente relacionada ao raciocnio analgico, isto , o raciocnio por analogias, como
o raciocnio metafrico, em certo sentido, no que diz respeito relao de
comparao, substituio ou interao (BLACK, 1993, p. 27) que ocorre entre dois
termos. Quando se chega ao conceito porque j houve compreenso. Mas como esta
contingente, circunstancial e temporria, quando se tem o conceito, ele j no mais do
que a representao esttica de uma compreenso pretrita, isto , presa ao passado. O
conceito a representao do que j no mais, ou seja, no mais presente.
justamente com esse tipo de indagao com a busca por uma definio do
conceito de direito que Herbert Hart (2002) comea o texto de sua obra mais
conhecida O conceito de direito:
Poucas questes referentes sociedade humana foram postas to
insistentemente e foram resolvidas por pensadores srios de formas
to diferentes, estranhas e por fim paradoxais como a questo O
que o direito?. Mesmo limitando a nossa ateno teoria jurdica
dos ltimos cento e cinquenta anos e deixando de lado a reflexo
clssica e medieval sobre a natureza do direito, encontramo-nos
diante de uma situao que no existe do mesmo modo em nenhuma
outra matria estudada de forma sistemtica como disciplina
acadmica em si. (HART, 2002, p. 3)
24
A busca de um conceito de direito, segundo Hart, , ao mesmo tempo, algo
ordinrio no contexto do estudo dos fenmenos jurdicos, mas extraordinrio no que se
refere aos resultados obtidos, isto , em relao s definies apresentadas pelos
juristas.
Em suas palavras, especialmente nas que destaquei em negrito, parece haver um
tom irnico e at mesmo possivelmente sarcstico latente a sugerir a inquietude de
ter identificado que pensadores srios so capazes de chegar a concluses no s
diferentes, como tambm estranhas e at mesmo paradoxais. como se a
diversidade, os paradoxos e o carter estranho ou inusitado das definies do conceito
de direito propostas fossem incompatveis com a seriedade de seus autores. Mas isso
seria o mesmo que dizer os juristas so srios, mas suas concluses esto longe de s-
lo? O que torna a meno de sua seriedade pertinente? Seria a seriedade um requisito
fundamental para a compreenso do direito?
Esta tese pretende defender o seguinte ponto de vista: a seriedade dos juristas
um artifcio retrico: uma estratgia irnica. Nada h de srio na compreenso do
direito. Ao longo do texto procuro esclarecer o que pretendo dizer com isso.
O que Hart pretende dizer que os resultados tericos, por mais esdrxulos que
sejam, so o produto de um esforo de definir seriamente o direito. Essas revelaes de
verdade sobre o direito procuram apresentar a sua natureza essencial (HART, 2002,
p. 3) e mesmo que paream estranhas ou paradoxais seriam na verdade o resultado
de longas meditaes sobre o direito, feitas por homens que eram antes de tudo juristas
dedicados por profisso ao ensino ou prtica do direito (HART, 2002, p. 4).
O principal problema dessas afirmaes tericas sobre o significado de direito
que boa parte delas representa um exagero acerca de algumas verdades sobre o direito,
mas no verdadeiras definies, e por essas razes so afirmaes ao mesmo tempo
clarificadoras e perturbadoras, assim como a ironia que perturba e clarifica
contemporaneamente.
De acordo com Hart (2002, p. 5) essas verdades
lanam uma luz que nos permite ver muitos aspectos do direito que
estavam escondidos; mas a luz de tal forma fulgente que nos impede
de ver o resto e nos deixa por isso ainda sem uma viso clara do
fenmeno na sua totalidade.
No h como deixar de vislumbrar no texto de Hart uma forte carga metafrica
na sua prpria maneira de apontar as deficincias e os exageros das definies tericas
25
precedentes. Pretendia destacar com negrito as expresses figuradas, mas percebi que
seria contraproducente em razo da densidade metafrica da citao. De fato, apenas
uma ou outra preposio no seria destacada. Toda definio do conceito de direito
termina por ser mais um ponto de vista sobre o direito. E todo ponto de vista (em
consonncia com a metfora visual que representa) termina por amplificar certas
caractersticas de fenmenos enquanto olvida outras. Isso nos permitiria concluir que,
segundo Hart, boa parte das definies do direito so, contemporaneamente, flamejantes
e ofuscantes assim como as metforas. As metforas, pela novidade que representam,
criam uma sensao de estranhamento para quem se lhe coloca diante. Um
estranhamento que leva a um trabalho hermenutico complexo cuja dificuldade de
interpretao , em alguns casos, diretamente proporcional ao seu sucesso como
metfora.
Quanto mais brilhante a metfora, mais ofuscante e mais reveladora. Definies
metafricas do direito so ofuscantes porque brilhantes, como na definio de Rudolf
Stammler (1970) que perpassa toda a sua obra, o direito um querer autrquico,
inviolvel e entrelaante. Literalmente essa definio no capaz de dizer coisa
alguma. O querer (das Wollen), o carter autrquico (die Selbstherrlichkeit), a
inviolabilidade (die Unverletzbarkeit) e o carter entrelaante (das Verbinden) do direito
so, antes de literais descries conceituais acerca da essncia do direito, metforas que
impem a toda uma comunidade de leitores uma viso genrica prpria dos fenmenos
jurdicos carregada de idiossincrasias, mas tambm de preconceitos compartilhados
por um determinado grupo, de pressupostos prprios a determinadas escolas de
pensamento etc. difcil decidir onde situar a filosofia do direito nesses casos. Se por
um lado se apresenta como definio cientfica que descreve o conceito de direito, por
outro impregnada de metforas que ultrapassam os limites de uma mera descrio. A
filosofia do direito se encontra entre os limites da cincia e da literatura: ora epistme,
ora poesia. No se sabe se e at que ponto o jurista-filsofo deve agir como se fosse
cientista ou poeta.
Mesmo que se admita como nica definio possvel do direito aquela que se
restringe a apresentar apenas as caractersticas estruturais semelhantes entre os vrios
ordenamentos jurdicos, a despeito de suas importantes diferenas, isso no significa
que a definio mais autntica aquela que revela apenas a estrutura do objeto. Outros
elementos so tambm indispensveis compreenso adequada das coisas, como, por
26
exemplo, a finalidade, a funo, ou sua composio material pressupondo claro que as
distines entre fundamento e finalidade, funo e estrutura, matria e forma so
realmente pertinentes. Mas mesmo que as definies se limitem a uma anlise
estrutural, no h como incluir todas as formas de manifestao do jurdico em uma s
estrutura, ainda que extremamente generalizada. Isso s seria possvel da maneira
condenada por Hart como exagerada ou ofuscante.
Mesmo com todas as pretenses de analiticidade de sua teoria, Hart no
consegue se livrar da expresso natureza quando prope a busca por uma definio do
direito. difcil desvencilhar-se dos ontologismos e essencialismos. At os ironistas,
apesar de cientes disso, no escapam do vocabulrio metafsico da filosofia, por mais
que se esforcem em contorn-lo. certo que natureza para o jurista, ou mais
especificamente natureza do direito, algo to metafrico quanto as expresses luz
e viso clara do fenmeno utilizadas por Hart em sua crtica analtica. E muito
provavelmente Hart consciente disso, especialmente quando, no seu texto, apresenta
entre aspas a expresso antiga e medieval.
S no possvel (ainda) afirmar que esteja sendo irnico ao suspender
aparentemente a metfora da natureza no incio do trabalho, para depois tom-la como
ponto central de sua teoria, com a aceitao de um contedo mnimo de direito natural
que deve estar presente em todo direito positivo para que este seja at mesmo
concebvel. Para a teoria de Hart o adjetivo natural designa, dentre vrias concepes,
algo que intrnseco natureza humana. Fazem parte dessa natureza, as
necessidades humanas, como alimentao e repouso. Ou seja, por mais livre que seja
o ser humano, no pode este abdicar de comer ou dormir para manter seu sistema
biolgico em funcionamento adequado. A necessidade de se cumprir essas exigncias
fisiolgicas no depende de uma mera prescrio ou conveno entre os indivduos, mas
parte de algo que acontece por natureza. Segundo Hart seria possvel dizer que o
fim prprio da atividade humana a sobrevivncia e que a maior parte dos seres
humanos deseja continuar vivendo. Embora essa vontade de sobrevivncia possa ser
considerada contingente, algumas normas lhe parecem naturalmente necessrias para
a manuteno da vida. Como na concepo de Hobbes e de Hume, em que, para
continuarem a viver, devem os indivduos se associar; e uma associao de indivduos
no pode perdurar sem o respeito a certas normas de equidade e justia.
27
Assim, na concepo de Hart, o contedo mnimo do direito natural
composto de princpios de conduta universalmente reconhecidos que tm base em
algumas verdades elementares com relao aos seres humanos, ao seu ambiente
natural e aos seus objetivos. Pressuposta a sobrevivncia como um fim da natureza
humana, um contedo mnimo do direito e da moral determinado aprioristicamente
de forma especfica. Isso significa que, sem esse contedo, nem o direito, nem a moral,
poderiam favorecer o escopo mnimo de sobrevivncia que os seres humanos tm em
vista quando se associam (HART, 2002, p.225). Sem um contedo mnimo de direito
natural, o direito estaria destitudo de parte importante de sua natureza, ou seja, de sua
essncia, e poderia vir a se tornar um sem sentido (nonsense).
Um exemplo do raciocnio que faz Hart: o ser humano vulnervel, est sempre
exposto a ataques corporais. A proibio do uso da violncia, do homicdio e do dano
corporal impede que isso acontea. Se no existissem normas que proibissem esse tipo
de conduta, no haveria razo de se produzir normas de qualquer outro tipo. J se os
seres humanos perdessem a sua vulnerabilidade, desapareceria o preceito mais tpico do
direito e da moral: no matar (HART, 2002, p. 227). O raciocnio de Hart poderia ser
traduzido da seguinte forma: a) porque os seres humanos tm uma natureza vulnervel,
pretendem sobreviver e, para tanto, devem se associar e estabelecer regras que cuidem
da manuteno do grupo que os mantm vivos, b) deveria haver uma natureza tambm
no direito que estabelecesse essas regras e que protegesse essa instituio social.
Natureza a um conceito biolgico que magicamente se transporta para o
direito, a poltica e a sociologia. S h sentido na expresso se ela for compreendida
metaforicamente seja no momento de recha-la, seja para tom-la como algo pertinente
e essencial construo do raciocnio terico acerca do direito, seja para utiliz-la na
prtica argumentativa forense. Hart no diz que a conexo entre natureza e direito
seja de tipo metafrico, mas tambm no afirma que literal, diz apenas que
importante destacar a conexo precipuamente racional entre fatos naturais e o
contedo das normas jurdicas e morais neste raciocnio (HART, 2002, p. 225).
Conexo racional uma expresso que muito provavelmente lhe serve de metfora
para relao de causalidade cientificamente comprovada. Para um terico do
positivismo jurdico, o racional o cientfico. E assim, Hart continua pedindo auxlio s
cincias mesmo que ainda jovens da psicologia e da sociologia, contudo capazes de
estabelecer com o mtodo da generalizao e da teoria, baseando-se na observao e,
28
onde possvel, no experimento (HART, 2002, p. 226) para chegar a uma definio do
que ele denomina natural. No pretendo discutir aqui o lugar de Hart no debate entre
positivistas e jusnaturalistas. Alm de complexo, parece-me irrelevante para o que quero
dizer. Alguns ps-positivistas, especialmente os que rejeitam a pecha, por mais
devedores que sejam das teorias dos jusnaturalistas, diriam at que este um debate no
s anacrnico, antiquado, ultrapassado, superado, como tambm enfadonho.
Diante dos binmios natural/artificial, racional/irracional, literal/metafrico
provvel que Hart estabelea, mesmo implicitamente, uma conexo tpica (seguindo
uma linha de pensamento prpria do senso comum) entre o natural, o racional e,
portanto, o literal. Mas nada impede que exista uma racionalidade metafrica, uma
racionalidade das/nas metforas. Hart no ope o seu racional-natural prprio da
essncia do direito a um irracional-artificial em que um plo autntico e legtimo
(literal), enquanto o outro inautntico e ilegtimo porque mera metfora do direito.
Por mais que Hart rejeite, nas primeiras palavras de seu texto, a tradio
jusnaturalista antiga e medieval e mesmo a moderna que se apia na imagem da
natureza e do natural para determinar uma semntica para o naturalmente jurdico,
no quer dizer que ele abdique da metfora jusnaturalista para chegar essncia do
direito.
Este um exemplo tpico de nosso inexorvel aprisionamento em um
vocabulrio determinado. uma dvida para com a tradio. Desde um horizonte
historicamente distanciado no qual nos encontramos, parece fcil afirmar que Hart no
representa um retorno ao jusnaturalismo e que, na verdade, o que acontece que a
metfora da natureza reinserida no contexto jurdico-terico do positivismo analtico
ingls. O difcil determinar at que ponto a metfora positivista da natureza pode ser
interpretada sem que nos leve a uma teoria jusnaturalista. Se, aos olhos de um
positivista, j era metfora a dos antigos e medievais, parece ficar mais metafrica ainda
a expresso cunhada no mbito do positivismo jurdico.
Ainda com relao ao texto de Hart, podemos depreender que o problema da
definio do conceito de direito muito provavelmente apenas uma reformulao em
termos modernos de uma velha questo: a determinao da essncia (natureza) do
direito. No entanto, os compromissos modernos com a maneira positivista de encarar o
direito estatal autopoitico em uma palavra, dogmtico impedem que o problema de
sua definio seja representado numa linguagem prpria das teses jusnaturalistas (que
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atualmente devem ser no apenas rechaadas, como tambm desacreditadas ou mesmo
superadas por essa proposta sempre inconsistente de um ps-positivismo). Mesmo
assim, a questo de fundo parece ser a mesma: o que h de essencial no direito?.
Admitindo-se que a pergunta pertinente, resta saber se a resposta pode ser dada em
termos conceituais ou unicamente por meio de metforas.
Se no passado a questo era colocada em termos metafricos com o emprego da
expresso natureza, no mbito terico moderno das investigaes jurdicas, a
linguagem deve ser literalizada; da mesma forma, se as indagaes sobre o que h de
essencial no direito no contexto do pensamento jusnaturalista demandavam uma tarefa
relativamente criativa e imaginativa (potica), no contexto positivista (no oscilante e
funmbulo ps-positivista impossvel de se determinar um propsito comum) deveria
prevalecer o empenho em apenas descrever o conceito de modo analtico, a partir da
observao controlada e da experimentao sem qualquer apelo imaginao ou
intuio, j que o conceito se ope intuio (KANT, 1992, p. 109) em razo de ser
aquele uma representao universal (repraesentatio per notas communes) ou refletida
(repraesentatio discursiva) e este uma representao singular (repraesentatio
singularis). Segundo Kant, o conceito diverso da intuio justamente por ser
universal, de forma que a expresso conceito universal absolutamente tautolgica,
pois o conceito, por ser uma representao na medida em que pode estar contida em
diferentes objetos sempre universal, podendo ser particular, universal ou singular
apenas o seu uso.
Podemos afirmar, contudo, que o problema o mesmo, o que muda a pergunta,
ou simplesmente a maneira de apresent-la. A retrica juspositivista substitui a retrica
jusnaturalista, adequando o problema a um novo contexto e incitando a construo de
narrativas mais sofisticadas. A retrica jusnaturalista soa inadequada ao ouvido
moderno.
Claro que a reformulao retrica de um problema, o emprego de uma
linguagem condizente com os ideais do pensamento moderno, faz com que o velho
enigma se transforme num novo problema, o que seria aparentemente paradoxal. Seria
como afirmar que o problema o mesmo, mas no . O conceito substitui a
natureza e se apresenta como uma nova questo.
A compreenso irnico-metafrica do direito permite ao jurista lidar com esses
problemas apontados por Hart com mais tranquilidade e parcimnia. Ao invs de
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encarar a diversidade e o carter inusitado ou paradoxal das definies do conceito de
direito como uma aberrao terica, o jurista que compreende a noo de direito como
metfora e no como conceito toma os pontos de vista divergentes como narrativas
retricas possveis e muitas vezes elucidativas devido ao alto grau de variao
semntica ou de amplitude imagtica da linguagem figurada, razo pela qual o jurista
fala e se faz ouvir e compreender.
Os paradoxos e a multiplicidade de interpretaes ou construes tericas que
procuram definir o direito so parte intrnseca da compreenso dos fenmenos jurdicos:
esto diretamente conectadas a suas imagens ou figuras. Alm disso, assumir a posio
de um sujeito irnico permite ao jurista esvaziar qualquer contedo das expresses de
vocabulrios j desgastados, impregnados de sentido e abarrotados de ontologias. O
ironista simplesmente parte da negao de toda peculiaridade, de toda determinao, de
todo contedo previamente dado por uma tradio, e, em seu lugar, coloca seu prprio
eu. De acordo com a viso de Hegel (2000a, p. 89), especialmente em relao ironia
romntica2, o eu do ironistas porque sua subjetividade extremada e levada s ltimas
consequncias define todo e qualquer contedo de maneira que tudo o que , pelo
eu. Claro que esse eu s por meio de outro eu se completa, o que faz da
subjetividade um corolrio da objetividade. No por acaso as propostas filosficas
contemporneas ditas ps-modernas tendem a substituir a noo de objetividade como
critrio de validade para a produo de conhecimento pelas variegadas noes de
intersubjetividade a prpria subjetividade que se ampara na subjetividade alheia.
Da a metfora do espelho como forma de compreenso desta troca de olhares,
essencial compreenso de si mesmo, do prprio eu, pois o auto-conhecimento no
pode ser obtido apenas por introspeco, j que um olho no pode se ver sem o
auxlio de outro olho (RABENHORST, 2012, p.14). Como o olhar alheio no apenas
um reflexo, a auto-imagem sempre, de algum modo, heternoma, mesmo que
proveniente do semelhante.
O olho alheio, ao contrrio, especialmente o olho do amigo, no
apenas uma superfcie refletora, mas uma via para a autorreflexo, isto
, para a formao da prpria conscincia de si. Quando queremos
conhecer a ns mesmos, diz Aristteles, podemos faz-lo mirando o
amigo, porque este , por assim dizer, um duplo de ns mesmos.
(RABENHORST, 2012, p. 15)
2 A noo de ironia romntica tratada abaixo com mais acuidade no Captulo 5.
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No entanto, preciso ter em mente que nem sempre o olhar alheio, mesmo
aquele metafrico do mero reflexo especular inanimado foi tomado como verdadeiro ou
livre de mentiras e enganos (RABENHORST, 2012, p. 17) e eu complementaria de
dissimulaes.
Se, por um lado, o jurista entender o direito como metfora cuja determinao
sempre intersubjetiva pelo menos na reflexo entre autor e intrprete e no como
conceito, no ver problema no desacordo entre os tericos, mas diferentes esboos de
solues possveis para a representao dos diversos e variegados fenmenos jurdicos,
estes sempre contingentes. Em outras palavras, retoricamente, do ponto de vista terico
e filosfico, mais eficiente desenvolver o estudo da metfora do direito ao invs de
procurar definir um conceito de direito.
No h algo de essencialmente jurdico no que se chama de direito, seno
enquanto metfora de uma suposta natureza jurdica. E, se por outro lado, o jurista
entender a forma de compreenso do direito como ironia, no se espantar com o fato de
que pensadores srios tenham chegado a formulaes por vezes bizarras acerca do que
entendem como conceito. Se h pouca seriedade no tom solene das teorias jurdicas,
logo compreender o fenmeno jurdico compreend-lo ironicamente. A ironia, pois,
pode funcionar como chave de leitura para o jurista que pretende compreender o direito,
de forma que s ironicamente seria possvel levar o direito a srio enquanto metfora.
Assim, apresentar o direito como metfora deixar de lado qualquer tentativa de
definio conceitual. As metforas, como ser discutido ao longo do trabalho, escapam
com frequncia s tentativas de defini-las ou apresent-las em termos literais. A
metfora do direito no se submete pacificamente parfrase literal de uma definio
conceitual. Isto , a metfora do direito se ope ao conceito de direito, na medida em
que a atitude de entender o direito como metfora, exclui qualquer possibilidade
peremptria de defini-lo conceitualmente.
Talvez, portanto, o insucesso de todas as tentativas de definio do conceito de
direito se deva ao fato de que o direito no deve ser compreendido em termos
conceituais (ou literais), mas em termos metafricos. E, se as metforas no se deixam
definir com facilidade, isso equivale a dizer que a cada tentativa de parafrasear uma
metfora, surge uma nova possibilidade inaudita de interpretao ou determinao no
apenas de seu sentido, mas de um estado de coisas que lhe seja referente.
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As metforas no se definem porque no permitem que lhe sejam impostos
limites, ou que seja literalmente delimitado o seu significado. As metforas so
relutantes no que diz respeito a qualquer tentativa de estabiliz-las ou apreend-las em
uma moldura conceitual. O que pretendo mostrar a ideia de que no possvel definir
o direito, porque enquanto metfora no se deixa apreender em um conceito. Metfora
implica imprevisibilidade e surpresa.
As perspectivas tericas em torno da metfora, contudo, so as mais variadas.
possvel agrupar as teorias e dividi-las em razo da relao que estabelecem entre
metforas e conhecimento (PALMA, 2004, p. 9), desde as que negam qualquer valor
cognitivo linguagem metafrica, at as que no veem distino entre a linguagem
figurada e a linguagem literal.
A primeira v a linguagem metafrica apenas como ornamental e incapaz de
apresentar qualquer valor cognitivo. De acordo com esta perspectiva esttico-literria,
as metforas no produzem conhecimento e no pertencem ao mbito da linguagem
referencial, salvo se intermediadas ou traduzidas em uma linguagem literal. Outro
agrupamento de pontos de vista atesta o valor heurstico das metforas, inclusive no
desenvolvimento de modelos para a cincia. No entanto, as metforas, segundo essas
teorias, tm mais uma funo psicolgica de proporcionar novos insights em um
contexto de descoberta, que sero apenas temporrios e por essa razo devero ser
posteriormente adequados aos rigores da cincia e traduzidos em uma linguagem literal.
Um terceiro modo de compreender as metforas, mais recente e ainda em
construo, enxerga nelas a mesma capacidade de produo de conhecimento que tem a
linguagem da cincia. No haveria distino essencial entre a linguagem metafrica e a
linguagem literal, ou entre a linguagem da literatura e a linguagem da cincia. Por fim,
um ponto de vista mais exacerbado em relao capacidade cognitiva das metforas v
na linguagem figurada um valor referencial prprio e no secundrio ou subsidirio.
Nesse sentido, a linguagem metafrica tem um status cognitivo genuno e um valor
epistmico fundamental para o desenvolvimento do conhecimento cientfico3.
Mas afinal asseverar que o direito uma metfora no seria o mesmo que tentar
defini-lo de alguma forma? Mesmo que seja para defini-lo como indefinvel? A
conceituabilidade do direito sempre uma armadilha, uma espcie de jaula sedutora,
3 Essa discusso ser retomada com mais detalhamento no Captulo 2.
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talvez inescapvel aos propsitos de estabelecimento de qualquer teoria jurdica. Quem
sabe seja nossa prpria finitude, ou a conscincia de que a nossa existncia individual
implica a presena de um fim que nos compele a buscar uma definio em tudo que
percebemos como ser.
Mas no fundamental que se despreze simplesmente a noo de conceito.
possvel entender o conceito como uma espcie de metfora formal que representa um
conjunto de interaes e usos lingusticos de palavras que apontam para algum sentido
genrico.
Sentidos so gerados a partir de interaes e usos. Conceitos so as
formas e regularidades tomadas por nossa discusso; eles no podem
ser intudos em uma forma pura e ideal. Contra o platonismo, no h a
beleza ela mesma; do contnuo reconhecimento de coisas belas
particulares que formamos uma regra do belo. () Ns s temos
conceitos, selves e falante por meio da linguagem4. (COLEBROOK,
2006, p. 63)
Parafraseando a autora e ampliando o sentido que d linguagem, podemos
dizer que no h o direito ele mesmo, mas um contnuo reconhecimento de
fenmenos jurdicos particulares a partir dos quais formamos linguisticamente uma
metfora do jurdico. A metfora do jurdico, isto , a metfora do direito, capaz de
agrupar esses vrios sentidos particulares atribudos a cada fenmeno particular
(qualificado como jurdico de acordo com os mais variados critrios: fticos,
normativos, ideolgicos, cientficos, religiosos etc.) como se houvesse uma nica
direo ou um sentido comum, genrico e at universal transcendental de um jurdico
em si. O desejo dos juristas por conceituar tudo o que relevante para o direito, isto ,
de dar forma ao jurdico, sobrepujado pelo carter fluido e contnuo da vida, do caos e
da histria. A realidade dinmica e o conceito esttico. Na medida em que o conceito
fixado, o fluxo histrico da vida no se deixa capturar. A metfora, ao contrrio,
sempre um eterno devir e uma constante fonte de reinterpretao da realidade.
nesse sentido que procuro entender como a metfora do direito chega a ser
reificada (coisificada, tornada coisa) por meio da linguagem. A fora retrica do lgos
metafrico do direito capaz de produzir a coisa, isto , o direito como coisa. como se
das imagens que correspondem s metforas se passasse magicamente s coisas. Em
4 Meanings are generated from interaction and use. Concepts are the forms and regularities that our
discussion takes; they cannot be intuited in some pure and ideal form. Contra Platonism, there is no
beauty itself; it is from the continued recognition of particular beautiful things that we form a rule of the
beautiful. (...) We only have concepts, selves and speakers through language.
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outras palavras, como se do lgos do direito se criasse a realidade jurdica. Essa
estratgia tipicamente retrica de se transformar discursos em realidade se refora na
medida em que quanto menos se percebe que se trata de discurso, menos evidente se
torna o carter retrico da realidade.
Entender o direito como metfora e no como conceito tambm uma forma de
compreender determinados fenmenos como sendo fenmenos jurdicos sem que se
precise de uma determinao prvia conceitual do que seja o direito. O emprego
metafrico da expresso direito permite reconhecer e constituir ao mesmo tempo a
realidade semntica dos fenmenos jurdicos. Isto , cada fenmeno considerado
metaforicamente como jurdico pelos usos lingusticos em um determinado contexto
contribui para formao de uma noo genrica de juridicidade que por sua vez
contribuir para a construo de outras metforas com significado jurdico relacionadas
a fenmenos ulteriores. Isso seria o mesmo que dizer que cada expresso metafrica
particular do jurdico relativa a um fenmeno individualizado se refere a uma metfora
geral do direito, e, em sentido contrrio, a compreenso geral metafrica do direito
contribuiria para a formao de novas metforas particulares de novos fenmenos
jurdicos.
Assim, portanto, por meio de expedientes retricos de reificao (metforas
reificadoras), o direito se torna algo quase tangvel e, por conseguinte, um misterioso
tipo de objeto ou o mtico objeto normativo que assume o papel de objeto imediato
do conhecimento jurdico (CASTRO Jr., 2011, p. 66). Se no fosse essa capacidade de
transformar metaforicamente o lgos do direito em coisa, no seria possvel tampouco
falar do direito como sendo algo, muito menos transform-lo em objeto de uma
cincia.
1.2 A estratgia retrica de reificao do direito pela linguagem metafrica
Die Sprache bezeichnet sich selbst als
Wirklichkeit. (BALLWEG, 1989, p. 233)
1.2.1 O essencialismo objetivista e categrico da linguagem jurdica
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Chegamos ao ponto em que possvel dizer que a caracterizao da realidade
como realidade efetiva para os sujeitos ou utentes de uma lngua, apanhados na
imanncia dos seus sistemas lingusticos, um produto dos prprios sistemas
lingusticos. A retrica, entendida no sentido de doutrina retrica, isto , no sentido das
vrias doutrinas retricas da efetividade, no trata da realidade efetiva (ber die
Wirklichkeit), mas sustenta as prprias pretenses de efetividade ou pretenses de
realidade efetiva (Wirklichkeitsanspruch). Nesse sentido a retrica efetiva a prpria
realidade. Isto , noes como a de verdade, de texto, de discurso, de escrito, de ser, de
razo, de sistema fazem-se reconhecer por meio da linguagem (BALLWEG, 1989, p
234).
A realidade do direito, como boa parte do que a realidade para ns, termina por
ser um produto da efetividade retrica de sistemas lingusticos. A partir de sua
linguagem o direito torna-se experincia para ns, torna-se experincia real efetivada ou
concretizada. De acordo com Ottmar Ballweg (1989, p. 233), o prprio xito dos
sistemas lingusticos sociais que, de um ponto de vista interno, garante o carter de sua
realidade ou efetividade (Wirklichskeitscharakter) e que, para o utente desse sistema,
representa a sua imanncia. Nesse mesmo sentido, Ballweg (1991b, p. 177) afirma ainda
que
Essas retricas materiais do direito, da religio, da moral etc. atuam de
maneira que a imanncia lingustica dos sinais de linguagem
transcendida. Elas criam essas realidades em que vivemos. Esta
transcendncia da linguagem permite-nos ento experimentar o
direito, a religio, a moral, o amor, o dinheiro etc. como realidades.
Nada obstante, a situao de imanncia do utente em relao ao seu prprio
sistema lingustico que o faz no tomar a realidade como uma efetivao retrica de sua
linguagem. Paradoxalmente, como se a retrica fosse mais bem sucedida justamente
na medida em que no percebida como retrica. Assim, a retrica da supresso da
retrica do direito (SHERWIN, 2009, p. 88) prevalece at os dias atuais.
Com exceo de algumas concesses, como a de Neil MacCormick (2008), a re-
aproximao mesmo que, nesse caso especfico, MacCormick parea se referir
retrica apenas no ttulo do livro entre retrica e direito uma tarefa difcil de ser
executada no plano da teoria jurdica. De fato, MacCormick (2008, p. 3) parece
privilegiar os aspectos ideais em detrimento dos aspectos lingusticos na determinao
da realidade do direito quando reconhece que o direito uma construo:
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claro que um sistema jurdico no uma entidade fsica tangvel.
uma construo ideal ou um objeto mental. Um sistema jurdico
pertence ao mundo social real, no a um mundo puro de ideias, na
medida em que uma ordem legal correspondente exista, ainda que
imperfeitamente.
A noo de idealidade no retoricamente menos importante, mas do ponto de
vista filosfico de cunho retrico a prpria noo de construo ideal ou de existncia
efetiva de objetos mentais resultante da efetivao lingustica da metfora da ideia e
da metfora da mente. O sucesso da metfora platnica da ideia, do idos (), como
o ato de ver com o esprito ou, em termos modernos, ver com a mente e sua correlao
com as noes de aparncia, forma, ou modelo fazem da noo de ideia uma realidade.
A metfora cunhada por Plato vem de uma noo j literalizada na cultura grega do
verbo ido (), que significava ver, perceber ou saber. Ou seja, a realidade da noo
de ideia para ns depende diretamente do xito retrico de efetivao de uma metfora,
nesse caso, de uma metfora que tem mais de dois milnios. Ideia, portanto, uma
realizao da linguagem e de sua capacidade retrica de transbordar para fora de sua
imanncia a sua prpria realidade. A realidade da noo de ideia antes de tudo a
realidade lingustica da prpria metfora da ideia.
De qualquer forma, definio, no sentido de definio ideal de um conceito de
direito, o que nos permite desenvolver noes jurdicas e aplicar as frmulas mgicas
do dar a cada um o seu ou de estabelecer a justa medida entre a falta e o excesso e
assim por diante. Todos esses jogos definitrios, no entanto, requerem um avanado
desenvolvimento lingustico, discursivo e, segundo esta tese, irnico-metafrico.
A metfora matematizante das frmulas lgicas que se apresentam como
definio do essencialmente jurdico teve um papel crucial no desenvolvimento disso
que atualmente chamamos de cincia do direito. O positivismo jurdico, sobretudo,
esforou-se em perseguir esses fins retricos de apresentao de seu objeto como algo
cujos contornos fossem perfeitamente definidos, encobrindo, entretanto a funo
pragmtica de sua prpria metodologia positivista.
O impasse moderno em definir o direito parece ter muito a ver com
este problema metodolgico: o positivismo, como uma manifestao
nominalista, precisa reduzir a realidade ao que indivisvel,
realidade sensvel, experimental. Como esse fenmeno, o direito,
precisa de uma cincia que lhe encubra de segurana racional, ento a
questo somente como reduzir-lhe a sua natureza a um objeto
individual, dizer, a algo no-relacional. (CASTRO Jr., 2011, p. 67)
No trecho acima, Torquato Castro Jr. se refere ao conceito de norma e sua
instrumentalidade retrica no processo de construo de uma realidade positiva do
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direito, isto , de uma realidade que seja experimentvel, mensurvel, empiricamente
afervel, praticamente sensvel. A fora do direito no est apena