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A miséria do direito Ordem jurídica, Dominação e Pensamento Crítico Francisco Pereira

A miséria do direito - Ordem jurídica, Dominação e Pensamento Crítico

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A miséria do direitoOrdem jurídica, Dominação e Pensamento Crítico

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  • A misria dodireito

    Ordem jurdica, Dominao e Pensamento Crtico

    Francisco Pereira

  • Francisco Pereira

    Mestre em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade Federal do CearMembro do Laboratrio de Estudos e Pesquisas Marxistas (LeMarx)

    A misria do direitoOrdem jurdica, Dominao e Pensamento Crtico

    LeMarx

    Salvador-BA, 2015

  • PEREIRA, Francisco. A Misria do Direito:

    Ordem jurdica, Dominao e Pensamento crtico.

    Salvador-BA: LeMarx, 2015.

    Capa: Operrios (1933), de Tarsila do Amaral.

    1 Edio (2003)

    2 Edio revisada (2015)

  • Dedico esse trabalho

    Aos meus pais, Antnio e Leonice, e aos meus irmos, Socorro e Jlio,pelo esforo monumental e pela coragem de lutar por dias melhores,

    num mundo onde o lucro est acima da felicidade humana.

    Sandra Siqueira, companheira de vida e de luta, e a Victor Bruno eHanna Lara, nossos filhos queridos, pela compreenso nos momentos

    mais difceis, pelo carinho e grandeza de sempre. Neles, o futuro se fazpresente, ansiosos por construir uma sociedade nova, humana e justa.

  • SUMRIO

    PREFCIO

    INTRODUO

    CAPTULO I DIREITO E PENSAMENTO CRTICO[a construo da crtica social]

    1.1.Tecendo o fio 1.2. Referencial terico 1.2.1. Nas trilhas de Karl Marx 1.2.2. Conhecer a partir do marxismo 1.2.3. Marxismo e direito burgus 1.3. Concepes conflitantes de direito

    CAPTULO II LIBERALISMO, MARXISMO E KEYNESIANISMO[um olhar crtico sobre o passado]

    2.1. Inicialmente 2.2. A teoria do liberalismo 2.3. As repercusses no campo do direito 2.4. A crtica marxista sociedade e ao direito burgus 2.5. Transformaes do capitalismo liberal 2.6. A perspectiva keynesiana

    CAPTULO III ESTADO, DIREITO E BEM-ESTAR SOCIAL [a crise monumental do capitalismo]

    3.1. O Estado de Bem-Estar (Welfare State) 3.2. Emergncia dos direitos sociais 3.3. A constitucionalizao dos direitos sociais no Brasil 3.4. Os movimentos sociais como fator de mudanas

    CAPTULO IV A REALIDADE SCIO-JURDICA DO NEOLIBERALISMO[um futuro incerto]

    4.1. As transformaes contemporneas 4.2. (Des) razes tericas do neoliberalismo 4.3. A crise de um modelo social ou do capital? 4.3.1. Flexibilizao e destruio de direitos sociais 4.3.2. Desmobilizao da crtica ou postulao de uma nova crtica?

    CONCLUSESBIBLIOGRAFIA

  • PREFCIOPREFCIO

    O presente texto foi publicado em 2003, sob o ttulo A Misria do Direito: ordem jurdica, dominao

    e pensamento crtico. Era produto de uma dissertao de mestrado, defendida na Faculdade de Direito da

    Universidade Federal do Cear. A verso anterior era praticamente uma reproduo da referida dissertao.

    Essa nova edio, que ora se publica, contm algumas modificaes, acrscimos e correes de estilo, alm

    de dados mais atualizados sobre as condies socioeconmicas e as reformas neoliberais, flexibilizadoras e

    destruidoras de direitos sociais, de modo a tornar o texto mais condizente com o propsito da obra, qual

    seja, fomentar a discusso crtica sobre a relao entre direito e a realidade social, desigual e contraditria,

    do capitalismo.

    O texto procura estabelecer uma conexo entre as transformaes socioeconmicas atuais e o direito,

    particularmente no Brasil. Ao contrrio das teorias dominantes, o autor concebe o direito no como um

    produto de uma ideia a priori ou fora da histria (Justia, Razo ou Esprito), nem como algo explicvel por

    si mesmo, por padres puramente normativos, sem qualquer relao com o mundo real, mas como um

    fenmeno social, uma relao social, cuja historicidade marcada pelas relaes socioeconmicas

    dominantes. Portanto, a anlise levou o autor, necessariamente, a contextualizar a ordem e as ideias

    jurdicas nas relaes sociais dominantes, baseadas na explorao do trabalho pelo capital.

    Por isso, aduz, em sua sntese, que o direito, seja como concepo terica mais ou menos

    sistematizada, seja como ordenamento jurdico, est envolto em uma crise sem precedentes. Sua relao

    intrnseca com a ordem do capital, marcada pela explorao do homem pelo homem e pelos mtodos mais

    sofisticados de alienao humana, torna-o um mecanismo indispensvel na manuteno das atuais formas

    de organizao econmica, social e poltica, isto , o capitalismo decadente. Esse, por meio do Estado, dos

    governos e dos prprios capitalistas age no sentido de destruir ou restringir o acesso s conquistas e direitos

    sociais pelos trabalhadores. H uma verdadeira frente nica dos representantes da burguesia no sentido de

    adequar as relaes de trabalho e os direitos sociais s exigncias do capitalismo em crise.

    Por mais que se procure timbrar o discurso jurdico de expresses como cidadania, democracia,

    acesso justia e ao devido processo legal e Estado de Direito, o que se observa cotidianamente a negao

    maioria dos indivduos de exercer dignamente os seus direitos. No faltam intelectuais e polticos que

    consideram o desenvolvimento da democracia burguesa (declarada universal) e a democratizao do

    Estado como uma via para a superao do capitalismo e construo do socialismo. No extremo, uma parte

    considervel da esquerda se rendeu ao projeto de crtica e luta contra o Estado neoliberal (no contra o

    capitalismo e a explorao do homem pelo homem), com a tarefa de reconvert-lo em Estado de Bem-Estar

    social. No cerne dessa perspectiva, encontra-se a tese de que possvel, via Estado burgus, criar as

  • condies para uma sociedade mais justa sem, necessariamente, como defendiam Marx e Engels,

    transformar revolucionariamente a sociedade atual.

    No obstante, por mais boa vontade que muitos aplicadores do direito, em sentido amplo, possam

    manifestar de dar uma conotao social e democrtica sua atividade, e de crer que o direito possa ser uma

    ponte para o exerccio da cidadania, e, do aprofundamento desta para uma sociedade mais humana, um

    sentimento de no concretude do discurso jurdico e adaptao s necessidades do capitalismo paira no ar.

    Mesmo sem terem uma pretenso clara e consciente, muitos colaboram dia a dia com essa grande

    organizao jurdica, econmica e social do capital.

    No toa, dizamos na primeira edio, a ordem jurdica do capitalismo necessita de um corpo de

    ideias que a justifique teoricamente e de pessoas dispostas a desenvolver uma multiplicidade de tcnicas

    para movimentar os processos, os institutos, os princpios, as regras, enfim para garantir que os conflitos

    sejam direcionados para a seara dos tribunais, freando as possibilidades de transformao das relaes

    sociais existentes. Portanto, o direito remete s concepes de mundo, de sociedade, de regulao das

    relaes entre os homens. neste sentido que esta pesquisa pretende situar o direito, em sua relao

    dialtica com as principais concepes socioeconmicas, como tem ajudado a sedimentar, formalizar e

    institucionalizar as condies econmicas e polticas para a hegemonia dos interesses do capital.

    O marxismo revolucionrio precisa tomar o devido cuidado para no cair no reformismo (que

    transforma a reforma, as reivindicaes parciais e o direitos sociais num fim em si mesmos) ou no

    esquerdismo (negao da necessidade de defender as reivindicaes e direitos conquistados pela luta dos

    trabalhadores com um discurso abstrato de socialismo). O mtodo correto consiste em fazer uma ponte

    entre a luta pelas reivindicaes parciais e imediatas com a luta pela superao do capitalismo, isto , pelo

    socialismo, como via para o comunismo (a sociedade sem classes sociais). No h como desenvolver a

    conscincia de classe do proletariado sem partir das lutas concretas. O reformismo reduz a luta defesa de

    reformas, de reivindicaes rebaixadas. Para os marxistas, a luta por reformas, por reivindicaes e direitos

    (que correspondam s necessidades reais das massas), por meio da luta de classes, parte (e no fim em si

    mesmo) da luta revolucionria pela superao da sociedade de classes.

    No fundamental, as anlises empreendidas neste livro procuram analisar as condies materiais da

    conformao atual do direito burgus, sua relao com as transformaes socioeconmicas e como a ordem

    jurdica (as instituies e a ideologia jurdicas) comparece para justificar, sedimentar e regular as novas

    condies e necessidades colocadas pela sociedade capitalista. Pois, no temos como transformar a

    realidade social, econmica, poltica e jurdica, sem a conhecermos. Afinal de contas, como assevera Marx,

    em sua obra O 18 de Brumrio de Lus Bonaparte (de 1852), os homens fazem a sua histria, mas em

    determinadas condies histricas, que temos o dever de compreender.

    No poderia deixar de agradecer aos membros do Laboratrio de Estudos e Pesquisas Marxistas

    (LeMarx), coordenado pela Professora Sandra M. M. Siqueira, pelos momentos de discusso da teoria

  • marxista e das aes junto aos movimentos sociais, no quadro histrico, em que, contraditoriamente,

    convivemos com uma crise estrutural do capital, com consequncias drsticas para a humanidade, e as

    formas mais idealizadas de justificao da impotncia humana. Agradecer tambm aos companheiros de

    militncia socialista, com os quais temos aprendido o verdadeiro sentido da nossa vida.

    Salvador, maro de 2015.

    Francisco Pereira

  • INTRODUO

    Esse livro quase na ntegra a publicao de uma dissertao defendida junto ao Mestrado em Direito

    da Universidade Federal do Cear, intitulada Capitalismo e Direito: uma abordagem sobre o novo

    liberalismo econmico e suas implicaes no campo scio-jurdico. A pesquisa resultou de uma reflexo

    crtica da ordem jurdica do capitalismo, iniciada h algum tempo na graduao, quando o autor principiou

    um estudo sobre o pensamento jurdico crtico, avanando passo a passo, a partir da experincia da

    militncia estudantil, para a concepo marxista do direito, na forma tomada pelas anlises de vrios

    pensadores marxistas ao longo do sculo XX.1

    O propsito original deste texto era investigar as transformaes econmico-sociais na sociedade

    capitalista, de meados da dcada de 1970 atualidade, e seus reflexos no mbito jurdico, particularmente

    os retrocessos (restries e destruio) e obstculos concretizao dos direitos sociais e o reforo, em

    todas as direes, dos interesses econmicos do capital, atravs dos instrumentos jurdicos correspondentes

    (direito de propriedade, livre iniciativa) em nosso pas, bem como as lacunas entre previso legal e

    realidade concreta, tendo em vista as opes que a Constituio Federal de 1988 assentou nessa rea. No

    fundo, trata-se da relao entre direito, como ordem jurdica e expresso terica dominantes, e o nvel

    socioeconmico, com suas mais variadas concepes tericas conflitantes, desde o liberalismo at a crtica

    marxista.

    Frente articulao entre direito e relaes socioeconmicas no restavam dvidas quanto justeza

    da Concepo Materialista da Histria, sintetizada por Marx no Prefcio obra Contribuio crtica da

    economia poltica, de 1859, de que a compreenso do direito burgus deve partir das condies materiais de

    existncia dos homens, portanto, da anlise da sociabilidade capitalista. Qualquer tentativa de

    contemporizar com propostas de anlise da norma pela norma (normativismo, positivismo jurdico) ou por

    fundamentos idealistas (jusnaturalismo) constituiria, no fundo, um passo atrs nos avanos alcanados pela

    teoria marxista da histria e das relaes de produo burguesas.

    Nesse sentido, o aprofundamento dos estudos nos mostrou que o marxismo, como alicerce terico-

    metodolgico crtico e transformador, no havia esgotado sua capacidade de anlise da sociedade

    contempornea e, em particular, do fenmeno jurdico, como propugnaram at recentemente idelogos da

    1Estudo que abrange no s as passagens sobre o direito e o pensamento jurdico do conjunto da obra de Marx e Engels, emconsonncia com o desenvolvimento de sua concepo materialista da histria, mas tambm as tentativas de elaborao de umateoria crtica do direito ao longo do sculo XX, particularmente as anlises de tericos como Pasukanis (1989), Stucka (1988,2009), Edelman (1976), Miaille (1994), Stoyanovitch (1981), Cerroni (1975; 1976), Poulantzas (1978), Sarotte (1969), Naves(2000a, 200b), Arruda Jr. (2001), Campos (1990), Moreira (1978), Guastini (1980). Para outras anlises tambm crticas dodireito, podem consultar: Marques Neto (1982), Sousa Jr. (1984), Arruda Jr. (1989, 1993, 1997, 2001), Wolkmer (2001), Aguiar(1980, 1982, 1988), Azevedo (1989, 1998), Coelho (1983, 1986), Faria (1984), Portanova (1992), Rocha (1995).

  • classe dominante, nem muito menos, as expresses tericas hegemnicas eram capazes de fornecer uma

    compreenso historicamente correta das relaes jurdicas.

    Marx e Engels, com suas contribuies monumentais, plasmadas em obras como A situao da classe

    trabalhadora na Inglaterra (1845), A ideologia alem (1845-46), A misria da filosofia (1847), Manifesto

    Comunista (1848), Trabalho assalariado e capital (1849), As lutas de classes na Frana (1850), O 18 de

    Brumrio de Lus Bonaparte (1852), Grundrisse (1857-58), Para a crtica da Economia Poltica (1859),

    Salrio, Preo e Lucro (1867), O Capital (1867), Crtica ao programa de Gotha (1875), A origem da

    famlia, da propriedade privada e do Estado (1884), entre outras, tm, indubitavelmente, muito a dizer

    sobre a sociedade contempornea e o campo jurdico.

    O livro foi publicado mais de uma dcada depois do colapso da Unio das Repblicas Socialistas

    Soviticas (ex-URSS) e do Leste Europeu, cujo episdio mais difundido foi a queda do Muro de Berlim.

    Esses acontecimentos tiveram um impacto profundo nas esquerdas em todos os pases e continentes, o que

    levaram muitos militantes e socialistas a abandonarem o marxismo e se refugiarem em outros referenciais

    terico-polticos, muitas vezes, completamente avessos luta de classes e ao socialismo. Alm disso, o

    Estado, governos burgueses e a prpria burguesia levaram a cabo nos pases e internacionalmente uma

    campanha de ataques ao marxismo, apoiando-se frequentemente em ex-marxistas desiludidos, o confundido

    com a deformao estalinista presente na ex-URSS e com as anlises mecnicas de seus representantes

    tericos.

    Com a desagregao Unio Sovitica e do Leste Europeu passou-se, ento, a propagar que o

    marxismo teria definitivamente se tornado uma pgina virada da histria da humanidade e que no teria

    mais sentido se defender tal teoria. O aprofundamento da crise estrutural do capitalismo e sua irrupo

    peridica demonstram exatamente o contrrio. O marxismo est mais vivo do que nunca.

    H, portanto, um amplo espao para uma anlise crtica das relaes jurdicas e das ideias em voga,

    sem qualquer compromisso com processos de dominao ou de controle jurdicos, mas com o nico e

    sincero objetivo de fomentar o debate aberto sobre as perspectivas predominantes, ao longo do

    desenvolvimento da ordem do capital, as possibilidades inauguradas pelo marxismo para a elaborao de

    uma teoria crtica do mundo jurdico, em seus vnculos com as condies materiais da vida social, e a

    aproximao a uma perspectiva transformadora das relaes sociais. Com isso queremos afirmar, como

    ficar patente ao longo do livro, que a crtica indispensvel, mas no suficiente, do ponto de vista

    marxista. necessrio estreitar os laos entre uma anlise crtica do direito e a prxis social de superao

    do capitalismo.

    A ordem jurdica vigente, nas condies socioeconmicas da sociedade burguesa, uma ordem

    jurdica do capitalismo, portanto, o tecido social em que se assenta o pensamento, as normas e as

    instituies de direito marcado por relaes entre classes, tem como base a propriedade privada dos meios

    de produo, a explorao do trabalho assalariado e a apropriao privada das riquezas socialmente

  • produzidas pelos trabalhadores. O vnculo entre o direito e as relaes de produo no se d de forma

    unilateral, nem mecnica, como veremos, mas por mltiplas mediaes e de forma dialtica. No h, pois,

    no campo do marxismo, espao para conciliao ou idealizao com o direito vigente e a ideologia jurdica,

    como ocorreu com teorias crticas, que objetivavam o aperfeioamento da ordem jurdica burguesa como

    ponte para uma sociedade mais humana ou mesmo para o socialismo. Toda idealizao do direito

    dominante uma forma indireta de reforo do Estado, das instituies e do pensamento burgus.

    o caso do chamado socialismo jurdico e das suas diversas expresses terico-prticas que, no

    fundo, representam a defesa, na rea do direito, da concepo poltica reformista, da iluso de que

    possvel um direito justo nos marcos do domnio do capital. Trata-se, portanto, da viso idealizada de que,

    por meio da conquista progressiva de uma ordem jurdica justa, no interior do capitalismo, chegar-se-ia,

    sem traumas ou rupturas, a uma sociedade justa ou mesmo ao socialismo. Tudo isso, sem transformar

    profundamente as bases da ordem capitalista, qual seja a propriedade e a apropriao privadas dos meios de

    produo e da riqueza socialmente produzida. Como veremos, Engels criticou o socialismo jurdico em

    seu nascedouro, no final do sculo XIX e, em linhas gerais, sua crtica permanece atual.2

    A sociedade moderna, ao tornar-se ainda mais complexa, tambm desenvolveu de forma

    multifacetria e diversificada as relaes jurdicas, numa cadeia complexa, com um corpo de especialistas,

    normas e instituies, responsveis por pensar o direito em suas vrias especialidades (direito penal, civil,

    administrativo, econmico, comercial, trabalhista, das relaes de consumo, internacional etc.) e construir

    procedimentos e tcnicas processuais e extraprocessuais de resoluo dos conflitos. Certamente, no h

    como compreender com profundidade esses traos do desenvolvimento marcante do direito sob o domnio

    do capital, sem o tratamento histrico (diferentemente dos positivistas e jusnaturalistas), essencialmente, em

    bases reais, ligado s condies em que se organiza a sociedade, marcada por contradies, lutas e

    interesses.

    Quando iniciamos a investigao, atravs da assimilao crtica das ideias e relaes jurdicas, a

    pesquisa se confrontou com uma questo crucial: o direito burgus passava por modificaes, que refletiam

    as transformaes gerais ocorridas na poltica, na economia e no social, no plano mundial, sob inspirao da

    ideia da inexorabilidade do processo econmico em curso, protagonizado pelo novo liberalismo

    econmico (ou neoliberalismo), perspectiva terica dominante que contribua para o aprofundamento do

    fosso entre a legislao sobre a condio do trabalhador e a realidade social, cotidianamente vivenciada

    pelas camadas mais afetadas pelas atuais polticas econmicas.

    Uma vez mais, sentimos que a explicao para a conformao atual da ordem e das ideias jurdicas

    estava na relao entre direito e o processo socioeconmico, cujas modificaes e necessidades, impunham

    reformas no ordenamento jurdico, a fim de adequ-lo s exigncias da reproduo do capital, nas

    condies de crise estrutural do capitalismo. A pesquisa findou se constituindo em momento de reflexo

    2Especialmente no livro de Engels e Kautsky (1991) e Naves (2000). O primeiro uma fonte segura de crtica do idealismojurdico no campo da teoria socialista; o segundo, por sintetizar as principais crticas marxistas s teorias idealistas e positivistas.

  • crtica da ordem jurdica existente. Ao mesmo tempo, ressoam da investigao elementos para uma crtica

    de ideias cristalizadas na teoria geral do direito.

    H que se fazer algumas observaes iniciais para afastar controvrsias em torno da utilizao, no

    corpo do trabalho, da expresso novo liberalismo econmico ou neoliberalismo. Esta expresso carrega

    em si uma inconsistncia semntica e histrica:

    1) porque as teses centrais do neoliberalismo no so to novas como supem alguns. Em verdade,

    representam uma tentativa de revitalizao, no plano atual, das prticas econmico-financeiras

    liberalizantes e das ideias do liberalismo, fundadas nas anlises de autores como Adam Smith e John Locke,

    em torno da justificao da propriedade privada, da superioridade e perenidade do capitalismo;

    2) pois o velho liberalismo econmico do sculo XIX supunha um capitalismo baseado na livre

    concorrncia e na competio entre capitalistas individuais, realidade que j sofreu mutaes pelo

    desenvolvimento posterior do modo de produo capitalista, que deu lugar ao advento da fase monopolista

    da produo; a concorrncia acirrada, a constante absoro de novas tecnologias e formas de organizao

    do trabalho, enfim, os processos de acumulao de capitais em mos de poucos capitalistas lograram formar

    organizaes tendentes cada vez mais ao monoplio;

    3) porque o velho liberalismo baseava-se supostamente na autonomia da vontade e na igualdade das

    partes na relao contratual, clula jurdica da atividade econmica, princpios negados efetivamente pela

    realidade econmica do capitalismo, particularmente nas relaes entre capital e trabalho. O uso da

    expresso novo liberalismo econmico se d apenas para preservar a denominao veiculada pela obra dos

    seus defensores, entre os quais, Milton Friedman (1980), que usou reiteradamente a expresso em seus

    escritos, inclusive assim intitulando um de seus livros, Liberdade de escolher: o novo liberalismo

    econmico.

    Esclarecida essa questo, pode-se perceber que, na dimenso propriamente jurdica, essas

    modificaes, que se constituem, em seu conjunto, uma resposta de um ponto de vista capitalista crise

    econmico-social, manifestam-se da seguinte forma:

    a) um movimento ideolgico de desregulao (princpio formal liberal da autonomia da vontade) e

    flexibilizao (atingindo, inclusive, a Constituio) de direitos sociais, conquistas histricas e demais

    obstculos jurdicos prevalncia mais completa do interesse econmico;

    b) atrelamento do campo social do direito regulamentao futura, a depender da correlao de fora

    poltica, o que reflete indiretamente a pouca ou nenhuma importncia da esfera social (condies de vida e

    trabalho) para a vertente neoliberal, como de resto para a classe dominante.

    Evidentemente, a destruio e flexibilizao de direitos requerem uma atuao legislativa,

    constitucional ou infraconstitucional, e, mesmo, de uma readaptao gradativa da superestrutura jurdica

    (inclusive das posies de magistrados, tribunais e sua expresso jurisprudencial), tendo como foco novas

    acomodaes exigidas pelo capital em crise estrutural. Quanto mais a crise se expressa nas peridicas e

  • cada vez mais profundas conturbaes econmico-financeiras, aprofundando os elementos da crise

    estrutural do capitalismo, como a que estamos vivenciando, desde a sua ecloso e 2007-2008 at o presente,

    maiores as presses para que sejam modificadas as normas jurdicas e criados os instrumentos aptos

    retomada da acumulao capitalista em condies mais plausveis para o capital.

    A partir dessa anlise, tomou-se ento conscincia da importncia adquirida pelo tema,

    particularmente quando inserido no campo das transformaes sociais. Nesse sentido, o neoliberalismo a

    tentativa de vivificar, no plano da especulao filosfica e da prtica econmico-social, as teorias do

    liberalismo clssico, dentro do contexto histrico atual e de forma destrutiva para os trabalhadores em geral,

    o que levam os neoliberais a fazer uma crtica do chamado Estado de bem-estar social capitalista do ps-

    guerra e sua matriz terica keynesiana, cujas ideias e prticas socioeconmicas baseavam-se nas

    concepes de John Maynard Keynes, sintetizadas na sua obra mais importante a Teoria Geral do Emprego,

    do Juro e da Moeda (The General Theory), e dos seus discpulos, os keynesianos.

    Com a crise estrutural do capital, iniciada por volta de meados dos anos 1970, as polticas

    keynesianas, em geral identificadas com as polticas de bem-estar social e de interveno estatal nos

    processos econmicos, vigentes particularmente nos EUA e Europa, entraram em franco declnio, sob

    intensa crtica dos adeptos do neoliberalismo. Seguindo a matriz liberal do sculo XIX, a reedio das

    ideias liberais trouxe consigo a defesa da absteno do Estado no que se refere interveno nas foras

    econmicas e nas relaes de trabalho, bem como se apresenta avessa atuao estatal, que tenha como

    desiderato minimizar os problemas sociais, no sentido dado pelos keynesianos.

    Na verdade, como se ver, o discurso neoliberal de no interveno do Estado no domnio econmico

    e nas relaes entre capital e trabalho no tem qualquer fundamento na etapa atual do capitalismo e nem nas

    etapas anteriores, tal como o liberalismo sempre propugnou. A economia de mercado nunca necessitou tanto

    da presena do Estado como no contexto atual, no exatamente gerindo ramos de atividades econmicas,

    muitas vezes conjunturalmente desinteressante para o capital, mas no salvamento do capital em crise, com

    iseno, subsdios, proteo, na instituio de barreiras alfandegrias, na reserva de mercados, enfim, no

    controle das tendncias contestatrias dos movimentos sociais e da efevercncia da luta de classes contra os

    pilares da ordem scio-jurdica vigente. o que ocorre atualmente com o advento de mais uma crise

    econmico-financeira, em que o Estado socorre os capitalistas em estado de falncia ou semifalncia.

    Assim sendo, o neoliberalismo teorizado por Friedrich von Hayek em O caminho da servido e Os

    fundamentos da liberdade (1946, 1983), Milton Friedman, em Capitalismo e liberdade e Liberdade de

    escolher: o novo liberalismo econmico (1980, 1985), dentre outros, cria as condies tericas e prticas

    favorveis ao capital e, tomando conta das polticas econmicas de governos, aceleraram a crise do modelo

    welfare state, configurao do Estado burgus, com todas as implicaes no campo jurdico.

    Em lugar da regulao econmico-social, a desregulamentao e flexibilizao; em vez da tendncia

    constitucionalizao dos direitos sociais, a defesa de um processo de reverso constitucional ou

  • desconstitucionalizao das conquistas sociais e demais obstculos s pretenses economicistas. o

    preldio da reformulao superestrutural do Estado capitalista, para compatibilizar as instituies e o direito

    dinmica do capital, em sua crise estrutural.

    No momento, possvel precisar com extrema segurana os efeitos danosos do mpeto neoliberal,

    mas no at quando resistir, pois ainda h muito da instncia jurdica a ser removido (estruturas criadas

    pelo welfare state), sendo que vrias das reformas institucionais realizadas pululam as arestas sociais do

    constitucionalismo moderno, como uma guia que se prepara para dominar a sua presa. Significa dizer que

    o processo de flexibilizao dos direitos sociais e da legislao sobre o trabalho est apenas iniciando. H

    uma pugna em curso, que se refletir diretamente no ordenamento jurdico erguido no perodo anterior. As

    reformas trabalhista, sindical e educacional, bem como o processo de privatizao em curso so produtos,

    com as necessrias mediaes, da crise mais aguda do sistema do capital, cujas graves consequncias

    danosas recaem sobre a classe operria e demais setores populao explorada, como os camponeses e os

    setores mdios arruinados.

    Procurou-se utilizar, ao longo da anlise terica e das experincias, o mtodo dialtico, no sentido de

    que a investigao do direito se d no contexto do desenvolvimento histrico e, sempre, em relao com a

    realidade concreta em constante mudana, numa tentativa de compreenso crtica do fenmeno jurdico, no

    seio da sociedade capitalista, na busca de elementos para a discusso do carter mediador da explorao

    do homem pelo homem protagonizado pelo direito, o que constitui o bsilis, sua misria propriamente dita.

    A pesquisa, pois, contextualizando historicamente o direito e as ideias jurdicas, nada mais faz que tornar

    patente a recproca e indissocivel relao entre o jurdico e as relaes materiais de existncia, como Marx

    o fez.

    O trabalho encontra-se dividido em quatro partes, cada qual abordando um aspecto da questo. O

    Captulo I da investigao compe-se de trs pontos, que cuidam, respectivamente, de uma reflexo sobre o

    direito na ordem capitalista, da importncia do marxismo como referencial terico e do conflito de

    perspectivas no campo jurdico. Essa primeira parte objetiva propor elementos iniciais para

    problematizarmos os referenciais tradicionais dominantes no campo jurdico, em particular o Positivismo

    Jurdico e o Jusnaturalismo, e introduzir o leitor na abordagem marxista, que, de resto, perpassa toda a

    anlise.

    No Captulo II, faz-se uma anlise de trs perspectivas tericas consideradas fundamentais para a

    compreenso da teoria do neoliberalismo e de nossa poca, quais sejam: o liberalismo clssico, o marxismo

    e a perspectiva keynesiana. Para tanto, analisam-se tambm as repercusses dessas posies tericas no

    nvel jurdico. O Captulo III procura dimensionar o sentido e a relevncia do welfare state, como

    manifestao do Estado burgus, os aspectos sociais do direito e o chamado bem-estar da sociedade, ao

    tempo em que se pesquisa a constitucionalizao dos direitos sociais no Brasil, ou seja, a incorporao

    Constituio de regras sobre a economia de mercado e as condies sociais de explorao da fora de

  • trabalho. Evidenciam-se, tambm, os limites histricos do perodo em que se aplicaram polticas de bem-

    estar e as finalidades a que se destinavam em ltima instncia.

    Por ltimo, o Captulo IV trata das ideias propriamente ditas do neoliberalismo, a partir de

    contribuies de outros autores e das razes dos prprios idealizadores desse modelo poltico e econmico,

    confrontando-as com a realidade concreta das polticas econmico-jurdicas neoliberais. Dessa forma, falar-

    se- das transformaes contemporneas, da crise do modelo social (na verdade, como veremos, a crise

    do capitalismo) criado pelo ps-guerra, dos efeitos do ideal e da prtica econmica liberal no campo da

    legislao sobre a condio social do trabalhador, no que se refere flexibilizao, informalizao, tendo

    em vista identificar as principais mudanas propostas pelas ideias neoliberais, e a forma, por vezes cruel e

    sutil, como essas posies se institucionalizam.

    No quadro exposto, oportuna a indagao de Fbio K. Comparato, em tom de desabafo: quantos

    professores de direito, hoje no Brasil, tero a coragem de protestar de pblico contra o esvaziamento da

    Constituio de 1988? (1999, p.23). O desabafo do reconhecido professor de direito expressa o modo

    como a Constituio vem sendo adaptada, pelas reformas, s exigncias mais vorazes do capital. Nesse

    sentido, no esforo de anlise do tema proposto, est em jogo a desmistificao da ideologia preterida pelos

    tericos da legitimao do neoliberalismo, mas no apenas isso, constitui tambm uma busca de crtica

    social, de reelaborao de certas posies jurdico-polticas, de crtica das ideias dominantes no campo do

    direito.

    O problema bsico a relao entre as condies materiais de existncia, os referenciais

    socioeconmicos e o campo jurdico, principalmente quanto dimenso mais crtica e problemtica da

    atualidade de desapego s conquistas sociais, patrocinada terica e praticamente pelo neoliberalismo,

    procurando identificar as acomodaes e mudanas do mundo jurdico s necessidades do capital. Saber

    quais as transformaes operadas na forma de Estado do ps-guerra, das polticas sociais implementadas,

    para, a seguir, avaliar-se como essas polticas, designadas em seu conjunto como neoliberalismo, afetaram a

    legislao sobre a condio social do trabalhador, eis a questo essencial, que perpassa e expressa a relao

    entre o jurdico e as condies econmico-sociais.

    Nesse processo de anlise, discorrer-se- sobre os principais referenciais socioeconmicos,

    observando a emergncia e crise dos direitos sociais em condies de hegemonia das ideias neoliberais,

    alm de problematizar a concepo de Estado e de economia, que esteve na base de afirmao terica dessa

    legislao sobre a condio social do trabalhador na sociedade capitalista, portanto trata-se de uma crtica

    viso dominante de direito e sua relao com o contexto socioeconmico.

    Para tanto, pretende-se destacar a importncia fundamental dos movimentos sociais como fator de

    mudanas, suas potencialidades, os obstculos interpostos pelo modelo corporativista de organizao

    sindical, que historicamente se forjou em nosso pas, a sujeitar os sindicatos e associaes ao controle

    estatal. As teorias do direito, geralmente, relegam os movimentos sociais condio secundria dentro da

  • realidade scio-jurdica. Realam a atividade da estrutura judiciria e das instituies jurdicas como campo

    de concreo de direitos, por meio da atividade interpretativa e operacional de magistrados, procuradores,

    advogados e tribunais. Toda a dinmica do direito leva a crer, no obstante, que a maior efetivao e o

    avano de conquistas sociais se concretizam, de forma complexa e contraditria, sofrendo as determinaes

    da luta de classes.

    A emergncia dos direitos sociais est indissoluvelmente ligada ao surgimento, organizao e reforo

    dos movimentos sociais na defesa de melhores condies de vida e trabalho, o que significa, em ltima

    instncia, a limitao da sanha mais aguda do capital. Mas, ao se institucionalizarem, as reivindicaes

    operrias, absorvidas e legalizadas pelo sistema jurdico burgus, sofreram, ao mesmo tempo, as limitaes

    prprias do horizonte estreito da sociedade burguesa. Por isso, nossa tese de que a ordem jurdica do capital,

    em determinadas condies histricas, reconhece e limita os direitos sociais, criando mecanismos para que

    esses direitos se ajustem s necessidades da classe dominante. Nossa pesquisa aponta para a perspectiva de

    que os movimentos sociais devem defender intransigentemente suas conquistas e avanar, cada vez mais, na

    defesa de suas reivindicaes.

    Significa dizer: sem torn-los fim em si mesmo, mas parte da luta em defesa das reivindicaes dos

    trabalhadores, por meio da luta de classes, a conquista de direitos sociais, dentro da ordem jurdica do

    capital, no pode se constituir em limite para a luta dos trabalhadores, nem o objetivo final dos movimentos

    sociais, o que significaria um apego cidadania nos limites do capital. Por isso, coloca-se a necessidade de

    vincular a defesa dos direitos sociais e demais reivindicaes dos movimentos sociais busca de uma

    sociedade no mais estruturada na explorao do homem pelo homem. que a conquista e ampliao de

    direitos, ainda que seja um avano, no elimina as bases da explorao do capital sobre o trabalho, que

    permanecem seguras na Constituio, nas leis, nas instituies e na ideologia jurdicas. Dessa forma, a

    defesa pelos movimentos sociais de conquistas e direitos ganha um novo sentido ao se constituir parte de

    um projeto mais geral pela emancipao de toda forma de opresso.

    No ltimo Captulo, debater-se- o resgate da perspectiva marxista de anlise do direito como crtica

    social, consequncia, alis, da manuteno da base do capitalismo e do incremento da misria e da

    explorao em todo o globo. Neste ponto, o presente trabalho se distancia da tendncia dominante na teoria

    social, poltica, econmica e jurdica, que, de todas as formas ideolgicas e discursivas, procura

    negligenciar a importncia e a contribuio terica central do marxismo para as lutas atuais, tentando

    inventar a roda, ao invs de compreender as razes da opresso, s quais esto submetidos os trabalhadores

    e demais explorados.

    No processo atual de esgotamento das potencialidades tericas e prticas do neoliberalismo, no

    campo poltico e social, e de perspectivas de legitimao terica da ordem capitalista (como o ps-

    modernismo), por conta da prpria crise do capital, reala-se o debate em torno das perspectivas da

    sociedade e, portanto, do direito e da imprescindibilidade de nos debruarmos nas contribuies decisivas

  • de Marx. notria a negligncia de setores da academia, particularmente nos cursos jurdicos, em relao

    ao pensamento marxista. So vrios os motivos, como analisaremos no decorrer do trabalho, em especial, o

    carter radicalmente crtico das ideias marxistas (no sentido de ir raiz dos problemas) e seu compromisso

    histrico com a luta pela emancipao de toda forma de explorao. Esperamos contribuir humildemente

    para o debate. Se isso ocorrer, o texto ter cumprido o seu objetivo.

  • CAPTULO IDIREITO E PENSAMENTO CRTICO

    [a construo da crtica social]

    Os filsofos s interpretaram o mundo de diferentes maneiras; doque se trata de transform-lo (Marx, Teses sobre Feuerbach).

    1.1.Tecendo o fio

    O direito, como concepo terica mais ou menos sistematizada, ordem ou instituies jurdicas est

    envolto em uma crise sem precedentes. Sua relao intrnseca com a ordem do capital, marcada pela

    explorao do homem pelo homem e pelos mtodos mais sofisticados de alienao humana, torna-o um

    mecanismo indispensvel na manuteno das atuais formas de organizao econmica, social e poltica. Por

    mais que se procure timbrar o discurso jurdico com expresses como cidadania, democracia, acesso

    justia e ao devido processo legal e Estado de Direito, o que se observa, cotidianamente, a profunda e

    indisfarvel negao do exerccio digno dos seus direitos mais elementares maioria dos indivduos,

    classe operria e demais explorados.

    Por mais boa vontade que muitos aplicadores do direito, em sentido amplo, possam manifestar, de dar

    uma conotao social e democrtica sua atividade, e de crer que o direito possa ser uma ponte para o

    exerccio da cidadania e da dignidade humana, um sentimento de no concretude do discurso jurdico e de

    adaptao s necessidades do capitalismo paira no ar, particularmente no contexto da crise estrutural do

    capitalismo. Mesmo sem terem uma pretenso clara e consciente, muitos colaboram dia a dia com essa

    grande organizao jurdica, econmica e social do capital.

    A ordem jurdica do capitalismo necessita de um corpo de ideias que a justifique teoricamente e de

    pessoas aptas a desenvolver uma multiplicidade de tcnicas para movimentar os processos, institutos,

    princpios, regras, enfim, para garantir que os conflitos sejam direcionados para a seara dos tribunais, no

    desbordando para a luta de classes aberta e profunda, condicionando-os aos estreitos horizontes da

    sociedade burguesa, freando, temporariamente, as possibilidades de transformao das relaes sociais

    existentes.

    No atual contexto de crise econmico-financeira, que expressa uma crise do capital, de fundo

    estrutural3, explodem as contradies da sociedade burguesa, com consequncias marcantes nas relaes

    3 A crise atual, que aprofunda os elementos da crise estrutural do capitalismo, explodiu entre 2007 e 2008 no setor daconstruo civil e imobilirio norte-americano, espalhando-se rapidamente para o sistema bancrio e de crdito do pas, que seencontra profundamente interligado ao sistema de crdito e bancrio mundial. No casual que a crise atingisse a Europa edemais continentes do globo. O Estado e governos, em todos os pases, por meio dos bancos centrais e dos organismosinternacionais (Fundo Monetrio Internacional FMI, Organizao Mundial do Comrcio OMC, entre outros), tentam debelaros efeitos desastrosos da crise (falncia e semifalncia de empresas e bancos, desemprego, ou seja, destruio de forasprodutivas em massa) e proteger os interesses dos grandes capitalistas e financistas, injetando recursos, estatizando bancos. Por

  • econmicas, polticas, sociais e jurdicas. Como deixaremos claro no ltimo captulo, o capital, em sua crise

    estrutural, vem, desde a dcada de 1970, criando as condies para a retomada da acumulao capitalista

    em novo patamar, vez que o equilbrio garantido pelos acordos e a retomada do crescimento econmico do

    ps-guerra, em meio ao processo de destruio em grande escala de foras produtivas (meios de produo e

    fora de trabalho) por meio do fechamento de empresas e do desemprego, entrou em franca decadncia.

    No respondem mais aos anseios do capital, nem s tendncias de sua crise.

    Essas transformaes se expressam no campo do direito sob a forma da flexibilizao das relaes

    entre capital e trabalho, de mecanismos de liberalizao da movimentao de capitais, das reformas da

    legislao constitucional e infraconstitucional, para adapt-las aos novos ditames socioeconmicos, enfim,

    das decises crescentes dos tribunais no sentido de aprofundar o processo de flexibilizao e desregulao

    social. Ao mesmo tempo em que impelido a mudanas para conformar-se aos interesses gerais da classe

    dominante, o direito age reciprocamente sobre a estrutura econmico-social para organizar, sedimentar e

    regular essas relaes.

    Portanto, o direito remete s concepes de mundo, de sociedade e de regulao das relaes entre os

    homens, em sociedades marcadas por conflitos em torno das condies materiais de existncia. neste

    sentido que esta pesquisa pretende situar o direito, em sua relao dialtica com as principais concepes

    socioeconmicas, analisando como o campo jurdico tem ajudado a sedimentar, formalizar e

    institucionalizar as condies econmicas e polticas para a hegemonia dos interesses do capital.

    Considerando a crtica de Marx, o presente trabalho tem como propsito esboar elementos sobre a

    relao intrnseca do direito com a ordem do capital, no s por sua natureza mediadora dos processos

    sociais, econmicos e polticos, cumprindo uma determinada funo social, mas por se constituir em

    horizonte a ser ultrapassado, terica e praticamente, no processo de emancipao dos explorados.

    Quando iniciamos nosso estudo, pretendamos analisar especificamente as consequncias marcantes

    das ideias e das polticas neoliberais no campo do direito, em seu aspecto de ordenamento jurdico

    dominante e em seus contornos ideolgicos. Entretanto, fomos obrigados a discorrer sobre o nascimento e

    evoluo das principais ideias de dois referenciais econmico-sociais, quais sejam, o liberalismo e o

    marxismo, a fim de poder situar historicamente as determinaes desse novo liberalismo econmico, que

    se fez dominante na teoria e prtica institucional. Nesse ponto, a problemtica tem singular importncia na

    atualidade, no s por se tratar de questo terica de enorme transcendncia para a realidade social, e,

    outro lado, o mesmo Estado e governos burgueses agem no sentido de impor aos trabalhadores reformas antipopulares, aschamadas medidas de austeridade, limitando ou simplesmente extinguindo direitos e conquistas sociais, arrancadas h dcadaspelos explorados no campo das relaes trabalhistas e da previdncia social. O Brasil tem sido atingido gravemente pelos efeitosda crise mundial, com grandes repercusses na vida da classe operria e demais explorados. Sobre as crises do capitalismo, verMarx (1987, 2006, 2002), Lnin (2005), Trotsky (2008), Mandel (1985), Coggiola (2002) e Lessa (2007). Sobre a precarizaodas condies de trabalho, o incremento da informalidade e desemprego, ver os livros de Antunes (2000, 2001), Petras (1999a,1999b, 2001), Netto e Braz (2006), Marcelino (2004), Frana (2007), Pinto (2007), Navarro (2006), Nogueira (2006), Linhart(2007), Organista (2006), Gounet (1999), Davis (2006), Salama (2002), Silver (2005) e Rosso (2008). Quanto s repercusses nocampo do direito: Arruda Jr. (1993), Azevedo (1999), Comparato (1999), Faria (1996, 1999), Grau (1995, 2000), Maciel (1998).

  • portanto, jurdica, mas por estar ligada, tambm, ao direito historicamente existente, como processo de

    regulao das relaes sociais indispensveis organizao da sociedade capitalista.

    Em que sentido as vertentes tericas contemporneas, em particular as tendncias de pensamento a

    serem analisadas, relacionam-se de forma contundente com fenmeno jurdico? A resposta preliminar para

    essa questo est nas mudanas operadas no plano internacional e nacional, as quais tm provocado

    profundas mutaes no ordenamento jurdico e nas concepes reinantes do direito, principalmente nas

    posies tericas que pretendem transformar o fenmeno jurdico numa realidade estanque e afastada de

    outras dimenses da vida social, como a economia e a poltica. Procura-se, no decorrer do trabalho, criticar

    essas perspectivas jurdicas que desejam construir uma cincia do direito a partir de seu isolamento artificial

    em relao aos demais nveis da vida social, ou mediante artifcios tericos sofisticados, que no fundo so

    modelos de justificao velada ou aberta da dominao do capital sobre o trabalho.

    Na essncia da presente compreenso do direito, como realizao de homens concretos e reais,

    envoltos em relaes sociais de produo, profundamente relacionado aos fatos fundamentais da sociedade,

    esto o referencial terico com o qual se trabalha no decorrer da exposio e tambm a convivncia com a

    realidade social e jurdica do pas. H autores que se esforam em analisar o direito relegando sua relao

    crucial com outros setores da vida social (economia, poltica etc.), construindo esquemas que, se

    sobrevivem do ponto de vista da lgica formal, desmancham-se frente a uma crtica rigorosa e cientfica do

    fenmeno jurdico.

    Nesse aspecto, o marxismo diverge plenamente das teorias dominantes do direito. Para o marxismo, o

    estudo do direito deve ser realizado no contexto histrico em que se originou e desenvolveu-se, contexto,

    alis, imprescindvel para uma compreenso cientfica do direito. Por outro lado, para as teorias

    dominantes, sejam normativistas ou jusnaturalistas, das quais o exemplo mais importante o positivismo de

    Hans Kelsen, a compreenso do direito deve se ancorar ora em procedimentos lgico-formais, ora em

    pressupostos idealistas e fora da histria dos homens. Para eles, portanto, a explicao do direito deve-se

    dar a partir do prprio direito, seja pela relao das normas entre si, hierarquizadas (normativistas), ou no

    direito supra-histrico, que deve servir de modelo ao direito historicamente positivado.

    A predominncia de ideias economicistas na realidade atual (por ironia da histria, entre autores

    claramente defensores da economia capitalista, os mesmos que outrora acusavam Marx de realar em sua

    abordagem o fator econmico), tanto na viso poltica estatal quanto nas diretrizes jurdicas, demonstra,

    sobretudo, quo ntima a relao entre direito e os demais nveis da sociedade, e como o pensamento

    econmico vem influenciando as aes governamentais na escolha dos meios a serem aplicados na

    ordenao da economia, na apropriao privada e na distribuio dos bens produzidos socialmente, apesar

    de se pretender, em teoria do direito, preterir essa relao, numa atitude subjetivista. Tanto que muitas das

  • revises operadas no nvel propriamente constitucional, e do ordenamento jurdico estatal, procuram

    institucionalizar os processos econmicos em curso e seus desdobramentos sociais.4

    O direito mantm, portanto, um vnculo intrnseco com os processos econmico-sociais. No se trata

    de uma mera relao gnosiolgica, relativa ao conhecimento jurdico, que, com certeza deve levar em

    considerao as complexas interaes do mundo jurdico com a organizao social, mas uma relao real,

    concreta e histrica. Marx expe de maneira clara uma sntese de sua Concepo Materialista da Histria5,

    fundamentando os vnculos entre as condies econmico-sociais e as relaes jurdicas. Continua Marx,

    na produo social da prrpia existncia, os homens entram em relaes determinadas, necessrias,independentes de sua vontade; essas relaes de produo correspondem a um grau determinado dedesenvolvimento de suas foras produtivas materiais. A totalidade dessas relaes de produo constitui aestrutura econmica da sociedade, a base real sobre a qual se eleva uma superestrutura jurdica e poltica e qual correspondem formas sociais determinadas de conscincia. O modo de produo da vida materialcondiciona o processo de vida social, poltica e intelectual. No a conscincia dos homens que determina oseu ser; ao contrrio, o ser social que determina sua conscincia (...) do mesmo modo que no se julga oindivduo pela idia que de si mesmo diz, tampouco se pode julgar uma tal poca de transformaes pelaconscincia que ela tem de si mesma. preciso, ao contrrio, explicar essa conscincia pelas contradies davida material, pelo conflito que existe entre as foras produtivas sociais e as relaes de produo (1982,p.46).

    Nesse trecho, fica evidente a recproca influncia entre a ordem econmico-social da sociedade

    capitalista e a superestrutura jurdico-poltica (o direito enquanto realidade concreta, como relaes

    jurdicas, enfim, as tcnicas, procedimentos e as instituies que movimentam o direito), bem como as

    formas de conscincias correspondentes (inclusive o pensamento jurdico). No se trata de uma

    determinao unilateral e mecnica, mas eminentemente dialtica. Da a imprescindibilidade, para

    compreendermos o fenmeno jurdico, da apropriao das relaes sociais de produo, da forma como a

    ordem do capital se desenvolve e se reproduz.

    4Para se ter uma ideia a que ponto chegou a teoria na atualidade, em particular a chamada Cincia Econmica, Fusfeld alerta parao fato de que os economistas nem todos, diga-se, tornaram-se os sumos sacerdotes de um mundo de dinheiro, riqueza easpiraes por bens materiais. Como os escolsticos da Idade Mdia, eles definiram, para um mundo laico, as relaesinterpessoais, as relaes entre os indivduos e a natureza e aquelas entre as pessoas e a sociedade. Suas teorias, em geralhermticas e altamente complexas, foram popularizadas de modo a serem adotadas pelas naes. Embora essas teoriasfrequentemente tenham sido criadas no ambiente relativamente resguardado das universidades, alguns economistas de destaqueocuparam, nos ltimos anos, posies de primeiros-ministros em pases como Inglaterra, Frana, Itlia e Grcia e tambm o cargode secretrio-geral da ONU. Seria difcil apontar outra disciplina que tenha exercido tanta influncia no mundo moderno (2001,p.03). Que diriam os incontveis operadores de direito, socilogos etc., que, na sociedade burguesa, cumprem um papel deverdadeiros idelogos do capitalismo contemporneo? 5 Sobre a Concepo Materialista da Histria, alm das obras de Marx e Engels, tais como a Ideologia Alem, o Prefcio Para a crtica da economia polticas, Misria da Filosofia, Manifesto Comunista, O Capital, Ludwig Feuerbach e o Fim daFilosofia Clssica Alem, Do socialismo utpico ao socialismo cientfico, Anti-Dhring e Dialtica da Natureza, nas quaisfundaram e desenvolveram a nova concepo de histria e de sociedade, ver tambm: Riazanov (1984), Mehring (1976, 1977),Mandel (1968, 1978, 2001), Bottigelli (1974), Naves (2000), Netto e Braz (2006), Lessa e Tonet (2007). So valiosas tambm asobras de Lnin (1979, 1982, 2011), Plekhanov (1980), Bukharin (s/d).

  • O direito, como um dos fenmenos sociais, s pode ser apreendido, em sua plenitude e complexidade,

    contextualizado nas relaes de produo capitalistas.6 Engels esclarece a concepo materialista da histria

    numa carta a Carta a Joseph Bloch, datada de 21 de setembro de 1890, advertindo que,

    Segundo a concepo materialista da histria, o elemento determinante da histria , em ltima instncia, aproduo e a reproduo da vida real. Nem Marx, nem eu dissemos outra coisa a no ser isto. Portanto, sealgum distorce esta afirmao para dizer que o elemento econmico o nico determinante, transforma-anuma frase sem sentido, abstrata e absurda. A situao econmica a base, mas os diversos elementos dasuperestrutura as formas polticas da luta de classes e seus resultados, a saber, as constituies estabelecidasuma vez ganha a batalha pela classe vitoriosa; as formas jurdicas e mesmo os reflexos de todas essas lutasreais no crebro dos participantes, as teorias polticas, jurdicas, filosficas, as concepes religiosas e seudesenvolvimento ulterior em sistemas dogmticos exercem igualmente sua ao sobre o curso das lutashistricas e, em muitos casos, determinam de maneira preponderante sua forma. H ao e reao de todosesses fatores, no seio das quais o movimento econmico acaba por se impor como uma necessidade atravs dainfinita multido de acidentes (ou seja, de coisas e acontecimentos cujo vnculo interno to tnue ou todifcil de demonstrar que podemos consider-lo como inexistente e negligenci-lo). Se assim no fosse, aaplicao da teoria a qualquer perodo histrico determinado seria, creio, mais fcil do que a resoluo de umasimples equao de primeiro grau (1977, p. 34).

    Essas influncias recprocas entre as relaes socioeconmicas e o direito so uma das justificativas

    do carter autnomo relativo (mas no absoluto!) da ordem jurdica frente aos demais nveis da vida social

    (a produo das condies de existncia, por meio do trabalho humano, a estrutura de classes sociais e as

    instituies jurdico-polticas), uma relao que dialtica e eivada de conflitos determinantes na

    sociedade.7 Parte-se da compreenso, no presente trabalho, de que o direito um fenmeno social e

    histrico, que se liga tanto s condies materiais da existncia humana, no caso atual, sociedade

    capitalista, quanto dimenso propriamente subjetiva, no sentido de modo de pensar, refletir, interpretar a

    realidade, e de traduzi-la por meio de teorias, concepes de mundo dos grupos sociais, das classes e formas

    de dominao por meio de instituies jurdico-polticas. Isso porque os grupos humanos no se limitam a

    produzir apenas a sua vida material, mas, no bojo desse processo, elaboram ideias e representaes que se

    vinculam realidade social na qual interagem.8

    As ideias jurdicas, por vrias mediaes, esto vinculadas s classes sociais em pugna e s formas de

    dominao por meio de instituies jurdicas. Isso porque os homens, no processo de produo de sua vida

    6Sobre a relao entre direito e as condies socioeconmicas da sociedade capitalista, analisar as obra de Pasukanis (1989),Stucka (1988, 2009), Edelman (1976), Miaille (1994) e Stoyanovitch (1981). Entre esses juristas, h consenso quanto necessidade de se analisar o direito no contexto das relaes de produo capitalistas, em oposio s teorias que tentam de todasas formas sacrificar o carter histrico do direito, fundando-o em ideias abstratas de justia, esprito ou razo, dissociadas darealidade concreta do mundo dos homens.7Por isso, na avaliao de Faria, as mutaes ocorridas nos sistemas normativos e nas concepes reinantes de direito soproduto de conflito hegemnico entre grupos e classes que procuram adaptar os mecanismos institucionais de controle, direo,regulao e arbitragem a seus fins, impondo, mantendo e assegurando um padro especfico de relaes sociais (1988, p.13).8Do ponto de vista do marxismo, no h dvida de que o vnculo entre as ideias e as condies sociais um ponto fundamental,para se compreender qualquer concepo de mundo. Para o marxismo a anlise crtica da sociedade e, neste mbito, do direito,em suas razes mais concretas com o modo de vida social, pode contribuir decisivamente para a transformao da situaoobjetiva em que se vive, desde que a teoria se converta em fora viva. Neste sentido, a teoria, para Marx, tem a incumbncia dedesvelar o real. Mas no s isso: a teoria pode cumprir um importante papel como fora material, capaz de transformar, pelasmos e cabeas de homens, a realidade. o que expe Marx, em sua XI Tese sobre Feuerbach: Os filsofos apenasinterpretaram o mundo de diferentes maneiras; porm, o que importa transform-lo (2009, p.103).

  • material, elaboram ideias e representaes que se vinculam realidade na qual interagem. Essa realidade

    social no seno a da sociedade burguesa, que se desenvolve e se torna mais complexa a partir das

    relaes sociais de produo capitalistas. Assim, o objetivo prtico fundamental, mas no exclusivo, da

    instncia jurdica , na viso de Pasukanis, o de dar garantias

    marcha, mais ou menos livre, da produo e da reproduo social que, na sociedade de produo mercantil,se operam formalmente atravs de vrios contratos jurdicos privados. No se pode atingir este objetivobuscando unicamente o auxlio de formas de conscincia, isto , atravs de momentos puramente subjetivos: necessrio, ento, recorrer a critrios precisos, a leis e a rigorosas interpretaes de leis, a uma casustica, atribunais e execuo coativa das decises judiciais (1989, p. 08-09).

    As transformaes operadas ultimamente no campo do direito para conform-lo s exigncias do

    capital, em crise estrutural, repem novamente a necessidade de compreender a relao entre as condies

    materiais de existncia, em suas contradies e mudanas, e as relaes jurdicas da sociedade burguesa. A

    chamada reestruturao produtiva, a ideologia da globalizao, as novas formas de explorao do trabalho

    pelo capital, enfim, a concorrncia acirrada dos grandes conglomerados econmicos pelos mercados

    existentes requer uma anlise consistente, levando em conta os conhecimentos historicamente produzidos.

    A propsito, h 160 anos, Marx e Engels descreveram o movimento histrico do sistema capitalista,

    em documento que causou assombro sociedade burguesa, intitulado O manifesto comunista, editado em

    1848, s vsperas dos conturbados acontecimentos revolucionrios da Europa. Nele, os dois autores, com a

    atualidade que lhes peculiar, afirmam:

    Impelida pela necessidade de mercados sempre novos, seguem Marx e Engels, a burguesia invade todo o globoterrestre. Necessita estabelecer-se em toda parte, explorar em toda parte, criar vnculos em toda parte. Pelaexplorao do mercado mundial, a burguesia imprime um carter cosmopolita produo e ao consumo emtodos os pases (...). No lugar do antigo isolamento de regies e naes auto-suficientes, desenvolvem-se umintercmbio universal e uma universal interdependncia das naes (1998, p. 43).

    O capitalismo livre-concorrencial, poca do liberalismo econmico do sculo XIX, como um

    sistema de relaes sociais de produo, necessitava de uma organizao mais ou menos racional, que se

    faria possvel por meio de um arcabouo jurdico a lhe dar segurana e estabilidade imprescindveis

    reproduo socioeconmica. Para tanto, as teorias polticas, econmicas e jurdicas do liberalismo cumpriu

    a funo de base ideolgica do capitalismo em sua fase de sedimentao, sua teoria fundante.

    Para tanto, o Estado, governos e os prprios capitalistas encontraram na obra dos principais expoentes

    do pensamento burgus, em todas as suas matizes, como Locke, Enciclopedistas, Jusnaturalistas, Adam

    Smith, David Ricardo etc.), os conceitos econmicos, polticos e jurdicos tais como mercado, contrato,

    valor, liberdade, autonomia da vontade, livre iniciativa etc., que vo ganhando contornos definidos, numa

    sntese terica, a partir de uma perspectiva de justificao racional das novas relaes de produo,

    baseadas na propriedade e apropriao privadas dos produtos do trabalho humano.

  • O direito, no contexto do sculo XIX, cumpre um papel singular de asseguramento da ordem

    burguesa em processo de sedimentao, aps o processo revolucionrio que garantiu a vitria da burguesia

    na Europa. Com o conjunto da organizao social, econmica e poltica, o direito evolui para

    condicionamentos tcnicos cada vez mais sofisticados, com todo um amlgama de produo terica a

    sistematizar, fundamentar e justific-la como necessria, natural e indispensvel vida social, mesmo que

    esta vida se desenvolva em relaes societrias de explorao do homem pelo homem, situao das mais

    indignas e miserveis. O direito sacramentaliza, cristaliza e eterniza (ideologicamente) as relaes sociais

    dominantes, como se fossem algo fora da histria. Quanto ao papel de mediao da explorao do homem

    pelo homem cumprido pelo direito nesse perodo acordam diferentes teorias sociais, mesmo que, da

    retirarem concluses absolutamente opostas.

    O marxismo analisou com profundidade e em vrias dimenses a estrutura do capitalismo liberal-

    concorrencial e tirou da a concluso de que ele no correspondia s expectativas histricas de realizao

    das potencialidades humanas, nem de um projeto de emancipao plena. Ao contrrio, representava a

    aniquilao das condies para o desenvolvimento dessas potencialidades, produzindo, de um lado, a

    misria de amplas camadas da populao e, de outro, a concentrao da riqueza nas mos de uma minoria.

    Outras doutrinas, como o chamado liberalismo social e, mesmo, o keynesianismo reconheceram as

    deficincias e lacunas do liberalismo, concluindo, diversamente da teoria de Marx, que era possvel

    solucionar os problemas mais graves, de carter estrutural, na direo de um capitalismo regulado, em que

    se garantissem ao mesmo tempo direitos sociais e a propriedade privada. Este debate conflituoso permeia a

    evoluo das ideias, como bem demonstra Fusfeld:

    As ideias apresentadas por Adam Smith no sculo XVIII constituram um desses sistemas, e a teoria dosmercados desenvolvida por ele e por seus seguidores representou o primeiro conjunto difundido de princpiostericos da Cincia Econmica moderna. Desafiado por Marx e outros tericos em meados do sculo XIX, estesistema clssico e sua ideologia de laissez-faire foram remodelados no ltimo quartel do sculo, criando umanova ortodoxia que prevaleceria at os anos 1930, quando John Maynard Keynes, praticamente sozinho,construiu a moderna teoria de determinao da renda nacional e justificou polticas de interveno do Estadona economia (2001, p.05).

    Enquanto os defensores do capitalismo, como forma societria, tentavam demonstrar seu carter

    perene e natural, como se fosse uma sociabilidade profundamente estvel, solidamente constituda, sob

    bases permanentes e inafastveis, supostamente correspondente natureza egosta dos homens, a economia

    de mercado, cada vez mais, desenvolveu-se atravs de crises cclicas. Estas retornavam mais intensas e

    profundas, de modo que, mesmo com toda a segurana e racionalidade impostas pelo Estado e pela

    normatizao das relaes socioeconmicas, no seria possvel, sem uma luta mordaz, superar

    momentaneamente as crises do processo produtivo.

    Coube ao marxismo expor teoricamente as condies de emergncia e desenvolvimento do

    capitalismo e as possibilidades abertas pelo desenvolvimento das foras produtivas materiais para a

    construo de uma sociedade em bases completamente diferentes. A crtica marxista denunciou as relaes

  • de explorao a qual os trabalhadores eram submetidos pelo capital e contribui decisivamente para a

    organizao poltica da classe operria no sculo XIX e XX.9

    Ao contrrio dos tericos do capital, que, de forma consciente ou inconsciente, contribuem para a

    legitimao e manuteno das relaes de domnio capitalista, o marxismo constitui sua antpoda, na

    medida em que expressa uma crtica sistemtica, profunda e radical da ordem do capital.

    1.2.Referencial terico

    1.2.1.Nas trilhas de Karl Marx

    Quando se fala de conhecimento, Marx talvez um dos autores mais frteis na elaborao terica.

    Marx foi um pensador em constante ebulio e transformao. O pensar em Marx algo dialtico, na

    medida em que no se petrificou, acompanhando a trajetria da histria e suas mutaes ao longo de sua

    vida.10 verdade, porm, que assistimos, hodiernamente, uma tentativa de decretao de seu anacronismo,

    de sua superao frente s transformaes que ocorreram ao longo do sculo XX.

    Da alguns filsofos, socilogos, economistas e juristas inferirem, apressadamente, que a luta de

    classes e a possibilidade histrica de superao do sistema econmico vigente entraram em franca

    decadncia, relegando para os anais da histria as aquisies de Marx e Engels para a teoria social. E apesar

    disso, a realidade social, poltica e econmica tem rebaixado a nveis insuportveis, de forma monumental,

    as condies de vida da classe operria e demais explorados da sociedade, submetidos s maiores privaes

    que a histria j registrou.

    Marx comea a produzir num ambiente inspirado pelo Iluminismo e pelas ideias democrtico-

    burguesas, que se propagavam da Frana para o restante dos pases do Ocidente. Em sua primeira obra,

    precisamente a tese de doutoramento intitulada a Diferena da Filosofia da Natureza em Demcrito e

    Epicuro, concluda em 1841, sente-se a profunda influncia da filosofia idealista de Hegel e das ideias

    liberais. As transformaes liberais burguesas comeavam a se sedimentar na Alemanha, vindas da

    Inglaterra e Frana, onde h tempo se debatiam com os resqucios do ancien rgime.

    Na Frana, havia ocorrido uma revoluo democrtico-burguesa e a classe economicamente

    dominante lutava para manter o poderio poltico conquistado pelas armas. certo que a reao por parte da

    aristocracia feudal e da Igreja era constante e, volta e meia, seus partidrios ameaavam retornar ao poder e

    reconstituir as bases polticas do anterior sistema, baseado nos privilgios da nobreza e regimes

    9 Veremos mais adiante as contribuies marxistas no sculo XX para a compreenso das transformaes operadas nocapitalismo do final do sculo XIX s primeiras dcadas do sculo XX, que abriram a fase do capitalismo de monoplios, oImperialismo, que Lnin (2005) caracterizou a fase ltima, de decomposio da sociedade capitalista, uma fase de guerras,revolues e contrarrevolues.10 Sobre o mtodo dialtico materialista de Marx e Engels, alm das obras dos prprios fundadores do marxismo, ver:Lnin (1979, 1982, 2011), Trotsky (1981, 2008), Mandel (1968, 1978, 2001), Lefebvre (1975), Netto e Braz (2006), Lessa eTonet (2007). Consultar de um ponto de vista crtico os seguintes autores: Kosik (1969), Kopnin (1978), Cheptulin (1982),Thalheimer (1934) e Politzer (2007).

  • monrquicos. Mas o capitalismo estava se consolidando, particularmente com o processo da Revoluo

    Industrial, para reagir s incurses da nobreza, tanto que, depois de 1848, no havia na Europa mais campo

    intelectual e prtico para a constituio de ideologias feudais, apenas as lembranas continuavam presentes.

    Abria-se, com os processos revolucionrios da Europa de 1848, uma nova etapa de desenvolvimento

    econmico capitalista.

    O absolutismo na Alemanha, ainda profundamente dividida em numerosas provncias, das quais a

    mais importante era a Prssia, lutava para se manter no poder, utilizando todos os artifcios tericos e

    prticos para obstar os setores mais esclarecidos, principalmente os jovens intelectuais influenciados pelo

    racionalismo da Revoluo Francesa e defensores da modernizao do Estado, em harmonia com as novas

    relaes de produo capitalistas em desenvolvimento na Europa. Hegel foi, por assim dizer, o exemplo

    claro da presso, a qual os intelectuais estavam submetidos.

    O pensamento hegeliano reflete as contradies e a luta de classes naquele pas: entre a continuidade

    e a ruptura histrica, entre o passado e o futuro, entre as velhas instituies e as novas . Hegel at mais

    diligente e teoriza uma espcie de hbrido poltico que mantm traos do antigo sistema a monarquia

    com novas configuraes liberais o constitucionalismo liberal: a monarquia constitucional. Com essa

    posio terica, Hegel agradava evidentemente a gregos e troianos, criando uma confuso entre os jovens

    discpulos, que ora se apegavam s suas inovadoras ideias, ora o aproximavam da reao.

    No texto A Ideologia Alem, Marx e Engels sintetizaram a influncia das ideias de Hegel poca e as

    discusses que se travavam no seio da jovem intelectualidade hegeliana:

    Mesmo em seus mais recentes esforos, a crtica alem no deixou o terreno da filosofia. Longe de examinarsuas bases filosficas gerais, todas as questes, sem exceo, que ela formulou para si brotaram do solo de umsistema filosfico determinado, o sistema hegeliano. No s em suas respostas, mas tambm nas prpriasquestes, havia uma mistificao. Essa dependncia de Hegel a razo pela qual no encontraremos um scrtico moderno que tenha sequer tentado fazer uma crtica de conjunto ao sistema hegeliano, embora cada umjure ter ultrapassado Hegel. A polmica que travam contra Hegel e entre si mesmos limita-se ao seguinte: cadaum isola um aspecto do sistema hegeliano e o faz voltar-se ao mesmo tempo contra todo o sistema e contra osaspectos isolados pelos outros (1998, p.7).

    nesse ambiente histrico de influncia democrtico-liberal, que Marx principia sua trajetria

    intelectual. Inicialmente, com profundos traos hegelianos, expressos nas categorias e no mtodo de anlise.

    Depois sob a influncia do materialismo humanista de Ludwig Feuerbach, terico que deu, em A Essncia

    do Cristianismo, uma abordagem prpria categoria de alienao, instituindo um materialismo

    antropolgico, em contraposio ao idealismo de Hegel. A crtica dos Jovens Hegelianos de esquerda

    (Bruno e Edgar Bauer, Max Stirner etc.), dos quais Marx fez parte, direcionava-se religio. Era atravs da

    crtica religio e ao pensamento teolgico da Igreja, que, indiretamente, procurava-se atingir o Estado e o

    governo absolutista, alm dos privilgios sociais, econmicos e polticos do clero e da nobreza. A obra Vida

    de Jesus, de David Friedrich Strauss, representa bem essa linha de crtica filosfica.

  • Marx, numa leitura singular do pensamento de Hegel, enfatizou o mtodo dialtico de pensamento,

    como instrumento de anlise da realidade e do movimento e conexes das relaes histrico-sociais. Em

    Hegel, o trabalho de resgate da dialtica se d a partir de sua sistematizao e problematizao consciente,

    com um toque de sua arguta criatividade intelectual. A dialtica hegeliana colocou o germe de uma nova

    viso da histria e das relaes entre os homens na sociedade e significou um avano para a elaborao

    filosfica, ao buscar assimilar as coisas e fenmenos histricos em sua constante e ininterrupta

    movimentao, transformaes e contradies, sem os preconceitos metafsicos de sua poca. Entretanto, o

    pensamento de Hegel era marcado pela contradio e, em determinados pontos, convergia para a

    legitimao das ideias racionalistas na Alemanha, e, em outros, era usado para justificar a dominao

    poltica, principalmente quanto questo do Estado, que, para ele, era a encarnao do esprito absoluto.

    Engels destacou que a obra de Hegel dava margem para que nela

    se abrigassem as mais diversas ideias partidrias prticas. E na Alemanha terica daquela poca duas coisas,sobretudo, revestiam-se de carter prtico: a religio e a poltica. Quem fizesse finca-p no sistema de Hegelpodia ser bastante conservador em qualquer desses domnios; aquele que considerasse essencial o mtododialtico podia figurar, tanto no plano religioso como no poltico, na oposio extrema. No conjunto, Hegelparecia pessoalmente inclinar-se mais para o lado conservador, apesar das exploses de clera revolucionriabastante frequentes em sua obra. No sem razo, seu sistema lhe havia custado um mais duro trabalho mentalque seu mtodo. A ciso da escola hegeliana foi tornando-se, no finda dcada de 30, cada vez mais patente. Aala esquerda, os chamados jovens hegelianos, abandonava pouco a pouco, na luta contra os ortodoxos pietistase os reacionrios feudais, aquela atitude filosfico-distinta de retraimento diante das questes candentes daatualidade, que valera at ento s suas doutrinas a tolerncia e inclusive a proteo do Estado (In: Marx eEngels,1975b, p.86).

    O pensamento de Hegel era marcado, tambm, pela excessiva especulao e abstrao, a ponto de dar

    vida ideia, ao esprito, como algo que se desenvolve alheio realidade concreta. A realidade mesma

    (Estado, por exemplo) passa a ser obra do esprito e seara da razo. Em Hegel, o mtodo toma um carter

    especulativo, na medida em que sua filosofia consiste no desenvolvimento da esfera idealista da filosofia

    clssica alem, sendo o esprito o centro do pensamento hegeliano. Essa construo extremamente

    complexa, que retira da ideia o real e o faz manifestao do esprito, de certa forma, dificulta a

    compreenso das relaes sociais, polticas e econmicas, ainda que realce o movimento das coisas e

    exponha as contradies que o pensamento carrega.

    Engels sintetizou a revolucionria dialtica hegeliana como

    o autodesenvolvimento do conceito. O conceito absoluto no somente existe desde toda a eternidade sem quesaibamos onde mas, alm disso, a verdadeira alma viva de todo o mundo existente. Ele se desenvolve atchegar a ser o que , atravs de todas as etapas preliminares que so longamente estudadas na Lgica e queesto contidas nele; em seguida, se exterioriza ao converter-se na natureza, onde, sem a conscincia de simesmo, disfarado de necessidade natural, passa por um novo desenvolvimento at que, finalmente, recuperano homem a conscincia de si mesmo. Na histria, essa conscincia volta a elaborar-se, partindo de seu estadotosco e primitivo, at que afinal o conceito absoluto recupera, novamente, personalidade integral na filosofiahegeliana (Idem, p.104).

  • Marx, com extrema sensibilidade, percebeu as nuances que o pensamento de seu mestre carregava, e

    ao longo de sua juventude vai se deslocando a pouco e pouco da defesa intransigente do idealismo

    hegeliano, para sua crtica mais profunda. possvel vislumbrar a influncia das categorias hegelianas nas

    primeiras obras de Marx. Posteriormente, o autor vai se desvencilhando do mestre para construir sua teoria

    social e filosfica (materialismo histrico), dando um novo impulso ao conhecimento cientfico-filosfico

    da sociedade, com toda a sua complexidade. Nunca relegou, porm, a decisiva influncia de Hegel no

    desenvolvimento de seu pensamento.

    Marx situou a filosofia dialtica no seu verdadeiro lugar: a terra, as relaes concretas entre os

    homens. No admite que o real seja explicado pelo esprito, pela ideia, por um ser imaginrio, por algo

    acima da capacidade cognoscitiva do homem, enfim, pela entidade divina, como o fazia a teologia e, como

    continuava a fazer, de outras formas, o idealismo, apesar de no o confessar diretamente. O mundo da

    natureza e da sociedade permissvel explicar-se por si mesmo, sem recorrer-se a qualquer outra entidade

    sem base histrica real.

    A chave do entendimento do homem, das relaes sociais, do papel das classes sociais e das

    contradies polticas e econmicas est na anlise da forma de organizao social e econmica e no no

    geist, como pretendia Hegel. Por seu carter profundamente idealista, o pensamento hegeliano se tornou

    frgil frente as crticas reacionrias, que nada mais queriam que ofuscar o que o pensamento de Hegel tinha

    de mais autntico e revolucionrio, qual seja, a dialtica. Marx situa suas relaes com Hegel, em O

    Capital, da seguinte forma:

    Critiquei a dialtica hegeliana, no que ela tem de mistificao, h quase 30 anos, quando estava em plenamoda. Ao tempo em que elaborava o primeiro volume de O Capital, era costume dos epgonos impertinentes,arrogantes e medocres que pontificavam nos meios cultos alemes, comprazerem-se em tratar Hegel tal e qualo bravo Moses Mendellssohn, contemporneo de Lessing, tratava Spinoza, isto , como um co morto.Confessei-me, ento, abertamente discpulo daquele grande pensador e, no captulo sobre a teoria do valor,joguei, vrias vezes, com seus modos de expresso peculiares. A mistificao por que passa a dialtica nasmos de Hegel no o impediu de ser o primeiro a apresentar suas formas gerais de movimento, de maneiraampla e consciente. Em Hegel, a dialtica est de cabea para baixo. necessrio p-la de cabea para cima, afim de descobrir a substncia racional dentro do invlucro mstico (2002, p.28-29).

    O importante saber como Marx e Engels superaram o idealismo e avanaram em direo

    concepo materialista de mundo, a partir da qual conceberam a Concepo Materialista da Histria, de

    base dialtica.11 Aps uma trajetria acadmica, Marx se dedicou ao jornalismo, como colaborador, depois

    redator, do jornal A Gazeta Renana (Rheinische Zeitung), de 1842 a 1843, de carter democrtico-liberal.

    Nesse perodo, o jovem alemo tomou contato com questes concretas da vida poltica de seu pas e das

    atividades do governo, da forma como as pessoas mais simples eram tratadas pelo Estado. O tratamento de

    questes sociais abriu perspectivas de estudo para Marx, na medida em que passou a perceber quo idealista

    11 Sobre a vida e a obra de Marx e Engels, so importantes as seguintes obras: Lnin (1979), Riazanov (1984a, 1984b),Mehring (1976), McLellan (1990), Mandel (1968, 1978, 2001), Lwy (2002), Bottigelli (1974), Naves (2000), Lapine (1983),Frederico (1995), Abendroth (1977).

  • e desprovida de base histrica real era a filosofia especulativa, e como estava verdadeiramente distante de

    um compromisso social pela emancipao humana total.

    interessante a observao de Gorender:

    Em 1843, aps numerosos atritos com a censura, a Gazeta Renana teve a circulao proibida. No entretempo,seu redator-chefe passou por um curso prtico de poltica. Defrontou-se com o Estado no cotidiano de sua aoperante a sociedade e tomou conhecimento de fatos demonstrativos da ntima relao ente economia, direito epoltica. Impressionou-se, por exemplo, que a livre coleta de lenha pelos camponeses nos antigos bosquescomunais, segundo a lei consuetudinria feudal, se convertesse em crime de furto pela nova legislaoinspirada no princpio burgus da propriedade privada, sob a proteo dos agentes do Estado (1998, p.10).

    Nessa fase, Marx, manejando ainda os conceitos assimilados do hegelianismo, esboa uma crtica aos

    debates e leis aprovadas pela Dieta renana (parlamento), que atacavam a vida e costumes tradicionais de

    camponeses. Tambm se manifesta contra as medidas do governo e do parlamento no sentido de aumentar a

    censura contra a liberdade de imprensa. Na Gazeta Renana, foram publicados textos chaves na

    compreenso da trajetria terico-poltica de Marx, como O Manifesto Filosfico da Escola Histrica do

    Direito, Debates acerca da Lei sobre o Furto de Madeira e Sobre a Liberdade de Imprensa. Marx, no texto

    Sobre a Liberdade de Imprensa, contrape sempre um direito justo (costumes dos camponeses, o direito

    liberdade de imprensa) ao direito injusto (do Estado e do governo).

    Obrigado a abandonar a Gazeta Renana, em razo da censura e da perseguio governamental, Marx

    retomou, em meados de 1843, o estudo crtico das obras de Hegel, do qual resulta os chamados

    Manuscritos de Kreuznach, publicados apenas no sculo XX, na extinta Unio Sovitica, sob o ttulo de

    Crtica Filosofia do Direito de Hegel. Nesse texto, Marx finalmente encontra o seu objeto de estudo, a

    sociedade, como a base de explicao das ideias existentes. Nesse perodo, estava sob a influncia do

    materialismo humanista de Ludwig Feuerbach, autor de A essncia do cristianismo. De qualquer maneira,

    Marx, aplicando o patamar de conhecimentos ento conquistado, promoveu uma primeira crtica profunda

    do pensamento de Hegel e, por conseqncia, dos jovens hegelianos, invertendo, no sentido da filosofia

    materialista, a relao entre a vida social e a conscincia social.

    O prprio Marx, no Prefcio Crtica da economia poltica (de 1859) explicou essa questo:

    O primeiro trabalho que empreendi para resolver a dvida que me assediava foi uma reviso crtica dafilosofia do direito de Hegel, trabalho este cuja introduo apareceu nos Anais Franco-Alemes (Deutsch-Franzsische Jahrbcher), editados em Paris em 1844. Minha investigao desembocou no seguinte resultado:relaes jurdicas, tais como formas de Estado, no podem ser compreendidas nem a partir de si mesmas, nema partir do assim chamado desenvolvimento geral do esprito humano, mas, pelo contrrio, elas se enrazam nasrelaes materiais de vida, cuja totalidade foi resumida por Hegel sob o nome de sociedade civil (brgelicheGesellschaft), segundo os ingleses e franceses do sculo XVIII; mas que a anatomia da sociedade burguesa(brgeliche Gesellschaft) deve ser procurada na Economia Poltica (1982, p. 24-25).

    No final de 1843 e incio de 1844, Marx estava em Paris, com o objetivo de fundar uma revista terica

    intitulada Anais franco-alemes, juntamente com Arnold Ruge, momento em que toma contato com

  • correntes de pensamento, antes fora de seu horizonte intelectual, quais sejam, os tericos socialistas

    franceses e alemes. Em Paris, Marx conheceu Proudhon, um dos mais importantes socialistas franceses.

    Algum tempo depois, encontrava-se envolto s correntes socialistas que expunham, ainda que de forma um

    tanto utpica,12 as contradies do capitalismo e buscavam opes de organizao social. Por caminhos

    diferentes, Marx e Engels chegaram a concluses muito prximas.

    Nos Anais franco-alemes, Marx publicou A questo judaica e Introduo crtica da filosofia do

    direito de Hegel, em que, avanando na sua crtica ao pensamento hegeliano, colocava claramente a

    necessidade das ideias se tornarem fora material. Para ele,

    Assim como a filosofia encontra as armas materiais no proletariado, assim o proletariado tem as suasarmas intelectuais na filosofia. (...) A filosofia a cabea desta emancipao e o proletariado o seu corao.A filosofia no pode realizar-se sem a suprasuno do proletariado, o proletariado no pode supra-sumir-se sema realizao da filosofia. (...) a teoria converte-se em fora material quando penetra nas massas. A teoria capaz de se apossar da massas ao demonstrar-se ad hominem, e demonstrar-se ad hominem logo que se tornaradical. Ser radical aguarrar as coisas pela raiz. Mas, para o homem, a raiz o prprio homem (2005, p. 156).

    Engels tambm publicou na mesma revista um texto intitulado Esboo de Crtica Economia

    Poltica, que teve enorme influncia sobre Marx. Ao longo do ano de 1844, Marx publicou ainda dois

    textos fundamentais, os Manuscritos Econmico-filosficos e Glosas crticas marginais ao artigo O rei da

    Prssia e a reforma social de um prussiano. No final de 1844 e incio de 1845, Engels finalizou e

    publicou o seu estudo sobre as condies de vida e trabalho do proletariado ingls, a partir do contato com

    os bairros populares no pas da Revoluo Industrial. O estudo foi intitulado A situao da classe

    trabalhadora na Inglaterra, que representou uma anlise mais sistemtica da sociedade burguesa, das suas

    contradies e das conseqncias na vida dos trabalhadores e de suas famlias.

    Em 1845, Marx e Engels publicaram a sua primeira obra conjunta, um texto de crtica aos jovens

    hegelianos chamado A Sagrada Famlia, defendendo a concepo materialista contra o idealismo filosfico.

    No mesmo ano, Marx escreveu um documento, publicado posteriormente por Engels, denominado Teses

    sobre Feuerbach, no qual sintetizou a sua concepo materialista e estabeleceu as diferenas em relao ao

    materialismo mecnico do sculo XVIII e das primeiras dcadas do sculo XIX, inclusive o de Feuerbach.

    A nova concepo materialista rompia com a especulao e o carter metafsico do materialismo anterior e

    se colocava claramente no campo da prtica revolucionria.

    12 Chamavam-se socialistas utpicos porque os seus representantes formulavam projetos de sociedades futuras a seremconcretizadas por meio de experincias localizadas ou recorrendo, inclusive, a apoio de bem intencionados elementos da nobrezae da burguesia. Evidentemente, esses projetos no ameaavam, nem arranhavam a estrutura da sociedade burguesa. Os socialistasutpicos tiveram uma intuio genial sobre as contradies e problemas sociais da sociedade burguesa. Entretanto, as suas teoriasno conseguiam, como fez depois Marx e Engels, explicar o mecanismo da explorao capitalista do trabalho assalariado e aextrao de mais-valia, a fonte do lucro e da acumulao do capital. Tambm no consideravam a classe operria como umaclasse verdadeiramente revolucionria, nem que a sua fora social e seu papel nas relaes de produo pudessem ser um fatorimportante na transformao da sociedade e na construo do socialismo. Os seus principais representantes no final do sculoXIX e primeiras dcadas do sculo XX foram Sant-Simon, Charles Fourier, tienne Cabet e Robert Owen. Apesar de maisdesenvolvidos na dcada de 1840, inclusive quanto insero no movimento operrio, alguns socialistas mantiveram certosaspectos utpicos em suas elaboraes como era o caso de Proudhon.

  • Mas com A Ideologia Alem (1845-46), que Marx e Engels promoveram uma crtica sistemtica e

    profunda ao idealismo hegeliano e elaboraram os traos gerais de sua Concepo Materialista da Histria,

    por meio de uma anlise dialtica. A teoria deixa o pedestal da especulao idealista, que tentava enquadrar

    a realidade concreta nos esquemas filosficos e passa a ter uma relao estreita com o real, com a complexa

    trama das relaes econmico-sociais. A Concepo Materialista da Histria

    Parte dos pressupostos reais e nem por um momento os abandona. Os seus pressupostos so os homens, nonum qualquer isolamento e fixidez fantsticos, mas no seu processo, perceptvel empiricamente, dedesenvolvimento real e sob determinadas condies. Assim que esse processo de vida ativo apresentado, ahistria deixa de ser uma coleo de fatos mortos como para os empiristas, eles prprios ainda abstratos -,ou uma ao imaginada de sujeitos imaginados, como para os idealistas (2009, p.32).

    O pensamento, as representaes, as ideias devem partir da vida social, da forma como os homens

    produzem e organizam a vida material, das condies materiais de existncia. Compreendendo a forma

    como a sociedade se organiza possvel entender as instituies jurdico-polticas (Estado, partidos,

    instituies) existentes em cada poca e as formas de conscincia social presentes (cincia, filosofi