12
Psicologia e mística* A mística dos psicólogos Autor: Dr. Martín Federico Echavarría Tradução: Rafael de Abreu Ferreira www.psicologiadinamica.com.br Parece, talvez, que com estes temas teológicos deixamos afastados o que buscamos compreender, a práxis da psicologia. Porém, apesar das aparências, a conexão entre mís- tica e psicologia é muito profunda. 1 Já entre os estudiosos da psicologia experimental, como William James 2 , e da psiquiatria francesa do início do século XX (Janet 3 e Dumas 4 ), o interesse pelos «fenômenos místicos» foi muito acentuado, e os levaram a estudar e escrever abundantemente sobre o tema. Na psicologia pós-freudiana, no entanto, a relação se aprofunda, pois toda a tarefa psicanalítica às vezes toma a forma de um trabalho ascé- tico ordenado a uma espécie de «experiência» oculta à maioria das pessoas, a experiências do «profundo», do «inconsciente». Não se trata, pois, simplesmente de um estudo descri- tivo científico dos fenômenos místicos «carismáticos» (êxtases, estigmas, visões, etc.), senão de algo inseparavelmente unido a tarefa do descobrimento de si. Se este aspecto «místico» está presente em quase todos os autores importantes, de Freud em diante, e em alguns deles aparece evidentemente acentuado (C. G. Jung, E. Fromm, A. Maslow, V. E. Frankl, etc.). Nós nos centraremos em alguns deles, nos que consideramos mais relevan- tes. Recordemos, antes, que o termo «mística» tem muitos significados análogos (e ainda equívocos). Teologia mística é o título de uma importantíssima obra de Dionísio Areopa- gita, no que se desenvolve o tema do conhecimento de Deus através da negação. Este tema da «teologia negativa», presente nos grandes autores medievais, também no Aqui- nate, é retomado pelos psicólogos contemporâneos e absolutizado em um sentindo que, logicamente, leva ao ateísmo. Assim, por exemplo, Viktor E. Frankl cita inclusive Santo Tomás, no Comentário ao Livro dos Nomes Divinos, de Dionisio: «Hoc ipsum este Deum cognoscere, quod nos scimus nos ignorare de Deo quid sit » («Isto é conhecer a Deus *Este texto faz parte do livro do professor Martin F. Echavarría, “La praxis de la Psicología y sus niveles epistemoló- gicos según Santo Tomás de Aquino. Girona: Documenta Universitaria. 2005, p. 382. 1 Cf. I. ANDEREGGEN, «Psicología posmoderna y mística», en I. ANDEREGGEN - Z. SELIGMANN, La psicología ante la gracia, 269-283 [anteriormente publicado en Teología, 61 (1993) 67-72]. 2 Cf. W. JAMES, The Varieties of Religious Experience: A Study on Human Nature, Longmans Green and Co., New York 1902. El padre de James fue seguidor del vidente E. Swedenborg. 3 Cf. P. JANET, De l’angoise a l’extase, Alcan, Paris 1926. 4 Cf. G. DUMAS, Le surnaturel et les dieux d’apres les maladies mentales, Presses Universitaires de France, Paris 1946. Na linha positivista desses autores se moveream também muitos estudos de catolicos sobre a psicologia dos místicos, como os do filósofo jesuíta J. Marechal, e do famoso P. Agostino Gemelli (talvez os abusos deste tipo de estudo «ex- perimental» da mística tenham produzido as incompreenssões deste último acerca do caso do santo P. Pio.). Cf., sobre todo, A. GEMELLI, L’origine subcosciente dei fatti mistici , Libreria Editrice Fiorentina, Firenze 1913.

A mística dos psicólogospsicologiadinamica.com.br/wp-content/uploads/2015/03/9-P... · 2018-01-17 · Frankl, etc.). Nós nos centraremos ... logicamente, leva ao ateísmo. Assim,

  • Upload
    ngoque

  • View
    215

  • Download
    1

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: A mística dos psicólogospsicologiadinamica.com.br/wp-content/uploads/2015/03/9-P... · 2018-01-17 · Frankl, etc.). Nós nos centraremos ... logicamente, leva ao ateísmo. Assim,

Psicologia e mística* A mística dos psicólogos

Autor: Dr. Martín Federico Echavarría

Tradução: Rafael de Abreu Ferreira – www.psicologiadinamica.com.br

Parece, talvez, que com estes temas teológicos deixamos afastados o que buscamos

compreender, a práxis da psicologia. Porém, apesar das aparências, a conexão entre mís-

tica e psicologia é muito profunda.1 Já entre os estudiosos da psicologia experimental,

como William James2, e da psiquiatria francesa do início do século XX (Janet3 e Dumas4),

o interesse pelos «fenômenos místicos» foi muito acentuado, e os levaram a estudar e

escrever abundantemente sobre o tema. Na psicologia pós-freudiana, no entanto, a relação

se aprofunda, pois toda a tarefa psicanalítica às vezes toma a forma de um trabalho ascé-

tico ordenado a uma espécie de «experiência» oculta à maioria das pessoas, a experiências

do «profundo», do «inconsciente». Não se trata, pois, simplesmente de um estudo descri-

tivo científico dos fenômenos místicos «carismáticos» (êxtases, estigmas, visões, etc.),

senão de algo inseparavelmente unido a tarefa do descobrimento de si. Se este aspecto

«místico» está presente em quase todos os autores importantes, de Freud em diante, e em

alguns deles aparece evidentemente acentuado (C. G. Jung, E. Fromm, A. Maslow, V. E.

Frankl, etc.). Nós nos centraremos em alguns deles, nos que consideramos mais relevan-

tes.

Recordemos, antes, que o termo «mística» tem muitos significados análogos (e ainda

equívocos). Teologia mística é o título de uma importantíssima obra de Dionísio Areopa-

gita, no que se desenvolve o tema do conhecimento de Deus através da negação. Este

tema da «teologia negativa», presente nos grandes autores medievais, também no Aqui-

nate, é retomado pelos psicólogos contemporâneos e absolutizado em um sentindo que,

logicamente, leva ao ateísmo. Assim, por exemplo, Viktor E. Frankl cita inclusive Santo

Tomás, no Comentário ao Livro dos Nomes Divinos, de Dionisio: «Hoc ipsum este Deum

cognoscere, quod nos scimus nos ignorare de Deo quid sit» («Isto é conhecer a Deus

*Este texto faz parte do livro do professor Martin F. Echavarría, “La praxis de la Psicología y sus niveles epistemoló-

gicos según Santo Tomás de Aquino. Girona: Documenta Universitaria. 2005, p. 382.

1Cf. I. ANDEREGGEN, «Psicología posmoderna y mística», en I. ANDEREGGEN - Z. SELIGMANN, La psicología ante la

gracia, 269-283 [anteriormente publicado en Teología, 61 (1993) 67-72].

2Cf. W. JAMES, The Varieties of Religious Experience: A Study on Human Nature, Longmans Green and Co., New

York 1902. El padre de James fue seguidor del vidente E. Swedenborg. 3Cf. P. JANET, De l’angoise a l’extase, Alcan, Paris 1926.

4 Cf. G. DUMAS, Le surnaturel et les dieux d’apres les maladies mentales, Presses Universitaires de France, Paris 1946.

Na linha positivista desses autores se moveream também muitos estudos de catolicos sobre a psicologia dos místicos,

como os do filósofo jesuíta J. Marechal, e do famoso P. Agostino Gemelli (talvez os abusos deste tipo de estudo «ex-

perimental» da mística tenham produzido as incompreenssões deste último acerca do caso do santo P. Pio.). Cf., sobre

todo, A. GEMELLI, L’origine subcosciente dei fatti mistici, Libreria Editrice Fiorentina, Firenze 1913.

Page 2: A mística dos psicólogospsicologiadinamica.com.br/wp-content/uploads/2015/03/9-P... · 2018-01-17 · Frankl, etc.). Nós nos centraremos ... logicamente, leva ao ateísmo. Assim,

mesmo, saber que ignoramos o que Deus é»).5 Não se devem dar provas da existência de

Deus, pois seria rebaixar a Deus ao nível «ôntico». A criação não pode ser um ponto de

apoio adequado para falar de Deus. Isto implicaria a aplicação do princípio de causalidade

fora do âmbito empírico, coisa inaceitável depois de Kant. Pelo qual dar provas da exis-

tência de Deus é blasfemo.6

É minha opinião, ou melhor, minha maneira particular de sentir que, em geral, as chamadas provas

da existência de Deus não são outra coisa que blasfêmia, profanação de Deus. Porque, perguntemo-

nos: o que pode ser provado? Somente algo ôntico, isto é: pertencente ao mundo, coisas de algum

modo pertencentes ao âmago da natureza. [...] Compreender minha existência como algo «criado»,

não constituiria uma genuína auto-compreenssão ontológica, pois levaria uma categoria válida so-

mente no ôntico -ou seja, a da causalidade- do campo natural ao sobrenatural, para o ontológico.

Somente o intelecto pode tirar conclusões. O entendimento, porém, e suas conclusões necessaria-

mente fracassam diante de tudo que não seja deste mundo. Mas não só fracassam frente ao metafi-

sico, senão também diante o microfísico.7

Para Frankl isto significa que de Deus não se pode dizer nada (e «do que não se pode

falar, é melhor calar» dizia Wittgenstein, por ele citado). Não se poderia falar de Deus,

senão somente a Deus, através da oração.8 Do que se trata Deus? Segundo Frankl, do

«interlocutor de nossos mais íntimos monólogos». Como não se pode saber o que é Deus,

esta não é uma definição essencial, senão «operacional». Neste sentido, pode ser religioso

tanto um teísta como um ateu. Só que o teísta se nega a aceitar a hipótese de que este

interlocutor seja ele mesmo, coisa aceitada pelo ateu.9

Neste contexto particular, gostaria de oferecer a vocês uma definição peculiar de Deus a que eu

cheguei, se temos de ser honestos, aos quinze anos de idade. Em certo sentido, se trata de uma

definição operativa. Afirma-se o seguinte: Deus é o interlocutor de nossos mais íntimos monólogos.

Isto é, sempre que você fala para si mesmo com total sinceridade e solidão, aquele a quem você

está se dirigindo pode ser chamado com toda a razão de Deus. Como vocês observaram, esta defi-

nição burla a bifurcação entre cosmovisão ateísta e cosmovisão teísta. A diferença entre elas emerge

unicamente depois, quando a pessoa não religiosa insiste em que seus monólogos são apenas isso,

monólogos consigo mesmo, enquanto que a pessoa religiosa interpreta os seus como autênticos

diálogos com alguém distinto dela mesma. Bem, pessoalmente creio que o que aqui deve ser avali-

ado por cima de tudo é a retidão e a «sinceridade suprema». Eu estou seguro de que, se Deus existe

realmente, ele não vai censurar aqueles que se dizem ateus pelo fato de terem confundido com seu

próprio eu e haver dado, como consequência, um nome equivocado.10

5 In de divinis nominibus, c. VII, l. 4, n. 731. Cf. V. E. FRANKL, «Homo Patiens. Ensayo de una patodicea», en El

hombre doliente, 286. Citados por I. ANDEREGGEN, «Psicología posmoderna y mística». 6Nesta linha se move a rejeição da analogia do teólogo protestante K. Barth.

7V. E. FRANKL, La voluntad de sentido, Herder, Barcelona 1988, 66-67.

8Ibidem, 69: «Deus – o Deus pessoal da intenção humana – finalmente não é outra que o eu original, primitivo. É, em

tal medida e tão concretamente, que não pode se falar Dele na terceira pessoa e sim sempre a Ele na segunda pessoa.»

9V. E. FRANKL, «Homo Patiens. Ensayo de una patodicea», 271: «O teísta difere do ateu apenas no sentido de não

admitir a hipótese de que o interlocutor seja ele mesmo, mas considera este interlocutor como alguém que não é ele

mesmo.» 10V. E. FRANKL, «El hombre en busca del sentido último», en Logoterapia y análisis existencial, Herder, Barcelona

1994, 296-297. Por isso, a fé, embora seja uma fé inconsciente, é parte integrante da natureza de todo homem; segundo

Frankl, não haveria verdadeiros ateus; ibidem.

Page 3: A mística dos psicólogospsicologiadinamica.com.br/wp-content/uploads/2015/03/9-P... · 2018-01-17 · Frankl, etc.). Nós nos centraremos ... logicamente, leva ao ateísmo. Assim,

Porém, mais profundamente, afirma Frankl, o autêntico interlocutor é o nada. O nível

mais profundo seria de chegar a Deus como «nada», que é o transcendente inexpressável.

Esta conclusão não é estranha em um autor influenciado por Heidegger.

Cabem duas possibilidade de interpretação: A primeira é que o homem em seus monólogos mais

íntimos -em situações limites- fala realmente consigo mesmo; contra esta interpretação há que ob-

jetar que é uma tautologia. A segunda interpretação propõe que esse homem fala na realidade com

Deus, que tem a Deus como interlocutor; cabe alegar contra essa interpretação que é teológica e,

por isso, descartável.

Somente restaria uma terceira possibilidade: esse homem está só em sua situação limite e dialoga

com o nada. Porém esse nada resulta ser algo extremamente positivo: vem a ser «o todo». Na ver-

dade, no fundo, não existe tanta diferença entre ambos os extremos.

Deus é tudo e nada [...]11

É fácil demonstrar que o positivismo é na realidade um niilismo encoberto. E também é fácil de-

monstrar que o suposto niilismo é em última instância, uma teologia inconsequente, uma teologia

«negativa» [aqui cita a nota de rodapé, em latim, o texto nomeado de Santo Tomás]. [...]

O homem «desprevenido», «pressentindo o nada», pressupõe a Deus.

Esse nada é o negativo, o inverso do ser. «poderás ver minhas costas, mas não verás o meu rosto»

(Éx 33,23).12

Esta experiência do nada, que é o inverso do todo inalcançável, e que não é senão o

sentimento do próprio caráter fragmentado13, não poderia ser conceitualizada, senão so-

mente expressada em símbolos. A religião seria um sistema de símbolos. Cada ser hu-

mano elaboraria estes símbolos em modo particular.

Depois de discutir o tema da necessidade dos símbolos, podemos definir a religião como um sistema

de símbolos, isto é, símbolos que os seres humanos não estão capacitados para captar em termos

conceituais. Mas, não é a necessidade de símbolos, a capacidade de criá-los e de servir-se deles

uma característica fundamental do ser humano como tal? Não se reconhece na capacidade de falar

e de compreender a fala uma característica distintiva da humanidade? Bem, também é legitimo

definir as línguas particulares desenvolvidas pelo gênero humano como «sistema de símbolos».

Porém, ao comparar a religião com a linguagem, deveria ter muito presente também que nada está

autorizado a afirmar que a linguagem particular que eu falo é superior a qualquer outro.14

Isto quer dizer que a religião é pessoal, no sentido de que cada um tem a sua. Uma

autêntica religião universal é, para Frankl, impossível, pois seria a imposição da lingua-

gem de um sobre a do outro: «E, mais um vez, uma confissão não pode pretender ser

superior as outras. Em todo caso, não é concebível que, mais cedo ou mais tarde, se supere

o pluralismo religioso dando lugar ao universalismo de uma religião? Não creio que isso

aconteça. Na minha opinião não é provável que uma espécie de esperanto religioso possa

servir alguma vez como substituto das confissões individuais. O que neste momento cons-

titui uma miragem não é uma religião universal, mas sim o oposto: para sobreviver, a

11Estes «tudo e nada», nada tem de semelhante com o «tudo e nada» de São João da Cruz na Subida do Monte Carmelo.

12V. E. FRANKL, «Homo Patiens. Ensayo de una patodicea», 285-286. 13Cf. V. E. FRANKL, Psicoanálisis y existencialismo, 347 (nota 347): «A religiosidade é, talvez, em última instância, e,

essencialmente, a experiência do próprio caráter fragmentário e relativo do homem, por referência a um fundo que seria

inconcebível caracterizar como "o absoluto". [...] Deus é sempre, para o homem religioso, aquele que sempre cala e,

mesmo assim, a que sempre chama. Aquele com quem não se pode falar e que, no entanto, sempre se interpela.» 14V. E. FRANKL, «El hombre en busca del sentido último», 294.

Page 4: A mística dos psicólogospsicologiadinamica.com.br/wp-content/uploads/2015/03/9-P... · 2018-01-17 · Frankl, etc.). Nós nos centraremos ... logicamente, leva ao ateísmo. Assim,

religião tem que fazer-se algo profundamente personalizado, que cada ser humano se per-

mita falar uma linguagem própria quando se dirige ao ser último.»15

Por isso, enquanto para Frankl o «sentido último» da vida não é totalmente inventado pela

pessoa, como nas outras linhas de psicologia existencialista, senão dado, porém, o doador

não é o Deus cristão, mas o sentido é, como em Heidegger, um «evento» do ser. O que

explica porque «as pessoas que se consideram ateus não sejam menos capazes de encon-

trar um sentido para suas vidas do que aquelas outras que se consideram crentes.»16

Em uma linha similar, embora mais explicitamente ateu, se encontra Erich Fromm. Para

Fromm, a questão da mística é essencial. «O problema de conhecer o homem, diz o psi-

cólogo alemão, vai acompanhado com o de conhecer a Deus.»17

Este autor contrapõe o esforço teológico de conhecer a Deus com a atitude dos místicos,

de unir-se com Deus e não de conhecê-lo.

Na teologia convencional ocidental há um esforço de conhecer a Deus com o pensamento, de fazer

afirmações sobre Deus. No misticismo, que é a consequência do monoteísmo (como em seguida

tratarei de demonstrar) o esforço de conhecer a Deus com o pensamento é abandonado e substituído

pela experiência da união com Deus, na qual não há lugar -nem necessidade- de saber de Deus.18

Fromm, como Frankl, faz uma aplicação unilateral da teologia negativa, que termina

transformando-se na negação de Deus, no ateísmo. «Quanto mais eu sei que Deus não é,

maior conhecimento que tenho dele», diz Fromm, citando Moisés Maimónides.19

A teoria do conhecimento de Deus, como foi expressada por Freud é mais que correta. O erro,

porém, encontra-se no fato de que ele ignorou o outro aspecto da religião monoteísta, seu núcleo

verdadeiro, a lógica que conduz exatamente a negação do conceito de Deus. A pessoa verdadeira-

mente religiosa, se segue a essência da idéia monoteísta, não reza por algo, não se espera nada de

Deus; não ama a Deus como um filho ama o pai ou a mãe; ele adquiriu a humildade de saber os

seus próprios limites ao ponto de perceber que ele não sabe nada de Deus. Deus se transforma para

ele no símbolo que todo homem, num estágio anterior de sua evolução, manifestou integralmente

aquilo pelo qual o homem luta, o reino espiritual de amor e justiça.20

Na perspectiva do «humanismo ateu» de Fromm, Deus se identifica com a humanidade,

ou com o todo.

Então Deus se transforma no que é potencialmente na teologia monoteísta, o Um sem nome, uma

essência inexpressável, que se refere a unidade que domina o universo, o chão de toda a existência;

Deus se transforma na verdade, amor, justiça. Deus sou eu, enquanto sou humano.21

15Ibidem,294-295. 16 Ibidem,297. 17 E. FROMM, L’arte di amare, 42. 18 Ibidem.

19 Ibidem, 77. Cf. I. ANDEREGGEN, «Psicología posmoderna y mística», 270. Cf. Há críticas do Aquinate à postura de

Maimónides na Summa Theologiae I q. 13 a. 2.

20 E. FROMM, L’arte di amare, 78.

21 Ibidem, 77.

Page 5: A mística dos psicólogospsicologiadinamica.com.br/wp-content/uploads/2015/03/9-P... · 2018-01-17 · Frankl, etc.). Nós nos centraremos ... logicamente, leva ao ateísmo. Assim,

A experiência mística se transforma por ele em uma espécie de obscura intuição de si

mesmo. Nisto Fromm se mostra explicitamente influenciado pelo budismo. Esta experi-

ência de si através do vazio seria o centro de todo o desdobramento humano, e ele o

identifica com a contemplação.

A concentração é bem mais difícil de praticar na nossa civilização onde tudo parece funcionar con-

tra ela. O passo mais importante para se concentrar é aprender a ficar sozinho sem ler, escutar rádio,

fumar ou beber. Na verdade, ser capaz de se concentrar significa ser capaz de estar sozinho com

nós mesmos, e esta capacidade é uma condição precisa da arte de amar. [...] quem experimenta estar

sozinho consigo mesmo descobrirá quão difícil é. Começará a se sentir inquieto, nervoso, experi-

mentará uma ânsia incontrolável. Se dará conta de não poder ir adiante nesta prática, convencido

de não ter utilidade, ser tola, que necessita de muito tempo, etc. perceberá também de que todo tipo

de pensamento virá a mente, procurando prendê-lo. Será pego fazendo planos para o resto do dia,

ou refletindo sobre certas dificuldades encontradas no trabalho, ou se perguntando o que fará a

noite, e a pensar qualquer coisa que ocupará sua mente, em vez de permitir esvaziar-se. Seria útil a

prática de alguns exercícios simples, como por exemplo, sentar-se em uma posição relax (nem

folgado, nem rígida), fechar os olhos e tentar ver uma tela em branco diante de si rejeitando as

figuras e pensamentos que possam obscurecê-la; em seguida, tente ter um sentimento do «eu»; eu,

eu mesmo, como o centro dos meu poderes, como o criador do meu mundo.22

Além do mais, isto seria acompanhado do sentimento do um como parte do todo, ao

menos como parte da humanidade, o que geraria o altruísmo. «Na essência, diz Fromm,

todos os seres humanos são idênticos. Somos parte do Um; somos Um.»23 Para Fromm

não há nada por cima da humanidade considerada como unidade: «Em um sistema não

teísta não existe reinos espirituais fora do homem, ou superiores a ele. [...] Desde este

ponto de vista a vida não tem nenhum sentido, salvo o significado que o homem mesmo

dá; o homem está completamente só se não ajuda o próximo.»24

Em Freud, no entanto, se dá um passo para uma mística também ateísta, mas que não é

«humanista». Não se trata da experiência do próprio ego, que não é senão uma realização

tardia e periférica, um simples complexo intermediário entre o id e a realidade, senão da

experiência de algo que está mais além do eu. Tampouco é uma simples experiência do

todo, nem do nada, nem da própria limitação. «Porém o diabinho que levamos dentro é o

melhor que temos. É o próprio eu», dizia já em sua juventude (carta a Martha Bernays,

Viena, 31-III-1885).25 E lemos em umas anotações póstumas: «Mística, a obscura per-

cepção de si do reino que está fora do ego, do id.»26 Um início desta experiência do in-

consciente, através da análise pessoal, é um requisito indispensável, segundo Freud, para

ser psicanalista.

Em Jung se vê com mais clareza uma espécie de experiência mística que vai mais além

da individualidade empírica do «ego», a experiência do inconsciente coletivo. Se trata do

que ele chama de «experiência imediata». Neste tipo de mística parecia chegar-se a uma

experiência do inferno («o profundo») e uma aceitação do mesmo como estado definitivo.

Isto corresponderia a «descida de Cristo ao inferno», pois cada indivíduo repete a vida

22 Ibidem, 120.

23 Ibidem, 64.

24 Ibidem, 79.

25 Sobre este tema, pode se ler com proveito o capítulo IV, «Freud and the Devil: Literature and cocaine» da obra de

P. C. VITZ, Sigmund Freud's Christian Unconscious, The Guilford Press, New York 1988, 101-128 26 S. FREUD, «Conclusiones, ideas, problemas» (1941), en Obras completas, vol. XXIII, Amorrortu, Buenos Aires

1996, 302.

Page 6: A mística dos psicólogospsicologiadinamica.com.br/wp-content/uploads/2015/03/9-P... · 2018-01-17 · Frankl, etc.). Nós nos centraremos ... logicamente, leva ao ateísmo. Assim,

arquetípica de Cristo.27 Se trata de superar o próprio sentimento de divindade, isto é, o de

crer perfeito (bem), descendo para as profundezas do inconsciente (o mal), para ressurgir

divinizados de uma maneira nova, assumindo em si a totalidade da realidade, o bem e o

mal, colocando-se «além» deles.

A descida ao inferno que efetua durante os três dias da morte, descreve o naufrágio do valor ausente

no inconsciente, donde -com a vitória sobre o poder das trevas- estabelece uma nova ordem e de

onde volta a emergir até elevar-se as alturas do céu, ou seja, a suma clareza da consciência.28

Na nossa opinião isto corresponde ao «eterno retorno» de Nietzsche:

O que ocorreria se dia e noite um demônio te perseguisse na mais solitária das solidões dizendo:

«Esta vida, tal como atualmente vive, tal como tem vivido, terás que vivê-la outra vez e outras

inumeráveis vezes, e nela nada fará de novo; ao contrário, cada dor, cada alegria, cada pensamento

e cada suspiro, o infinitamente grande e o infinitamente pequeno de sua vida, se reproduzirão para

ti, pela mesma ordem e na mesma sucessão; também aquela aranha e aquele raio da lua, também

este instante; eu também. O eterno relógio da arena da existência será voltado novamente e com ele

você, poeira do pó?» não se jogaria ao chão rangendo os dentes e amaldiçoando o demônio que

assim te falava? Ou você terá o prodigioso instante em que poderá responder-lhe: «Você é um deus!

Jamais ouvi falar uma linguagem mais divina!». Se este pensamento arraigasse em você, tal como

está, talvez te transformaria, mas possivelmente te aniquilaria: a pergunta «quer que isto se repita

uma e inumeráveis vezes?» pesaria como formidável peso sobre teus atos, em todos e por tudo!

Quanto necessitarias amar então a vida e amar a si mesmo para não desejar outra coisa que esta

suprema e eterna confirmação!29

Assim, nesta experiência do inferno se encontraria um novo salvador. Como afirma

Jung, seguindo os filósofos alquimistas, trata-se «de um “salvador” que não provem do

27 C. G. JUNG, Psicología y religión, 143: «Em última análise todos os acontecimentos psíquicos se fundam no arquétipo

e se acham de tal modo entrelaçados que é necessário um esforço crítico considerável para distinguir com segurança o

singular do tipo. Disso resulta que toda vida individual é, ao mesmo tempo, a vida do éon da espécie. O individual é

sempre "histórico", por se achar rigorosamente vinculado ao tempo. Inversamente, a relação entre o tipo e o tempo é

indiferente. Ora, sendo a vida do Cristo, em alto grau, arquetípica, em igual medida representa a vida do arquétipo. Mas

como este último constitui o pressuposto inconsciente de toda vida humana, sua vida manifesta mostra também a vida

secreta e inconsciente do indivíduo, ou melhor, tudo o que acontece na vida de Cristo ocorre também sempre e em toda

parte. Isto equivale a dizer que toda vida desse tipo se acha prefigurada no arquétipo cristão, ou volta a expressar-se

nele, ou já se expressou de uma vez por todas. Assim, antecipa-se também nesse arquétipo, de modo perfeito, a questão

da morte de Deus que aqui nos ocupa. O próprio Cristo representa o tipo do Deus que morre e se transforma.»

28 C. G. JUNG, Psicología y religión, 145. Cf. NOLL Jung. Il profeta ariano, 238-239: «Quando o indivíduo (eu) moderno

sofre uma transformação e começa a identificar-se com o inconsciente coletivo, torna-se Cristo (autodeificação). [...]

O problema é, então, de como superar, no sentido nietzscheano, a experiência de ser Deus. Se uma pessoa se transforma

em Cristo, contudo, deve reviver a história de Cristo. Tendo atravessado a agonia da morte psicológica (como Cristo

na cruz) e, em seguida, enquanto deus moribundo e sofrente, tendo vivido até o fundo representa a humanidade dessa

divindade de Cristo, também deve reviver a katábasis ou descida ao inferno (o reino das Mães, ou o inconsciente

coletivo). Após a experiência inicial da deificação, e depois de sua feliz superação (por meio da análise, como Jung

sugere), "todo inferno do passado superado se abre" e inicia o confronto com o inconsciente coletivo»; 239-240: «Com

estas afirmações Jung nos diz que o seu é um movimento baseado nas metáforas do nietzscheanismo. Os homens que

querem são aqueles que já viveram a experiência de ser "obrigados por suas próprias leis individuais a recorrer seus

próprios caminhos e vão entrando por isso em conflito com as tradições vigentes". Tais tradições pré-valentes são, é

claro, as várias fé judaico-cristãs organizadas. Não há lugar com ele, em última análise, para quem todavia aderem

semelhantes ideais. É assim que muitos sentem um mal-estar espiritual que o psiquiatra dá ao invés do bem-vindo,

especialmente a análise, de onde eles podem esculpir sua religião pessoal e, portanto, refletindo as palavras de Nietzs-

che, obedecer a sua própria lei.» 29 F. NIETZSCHE, La gaya ciencia, Sarpe, Madrid 1984, 166. É admirável a proximidade deste texto de Nietzsche com

a alucinação diabólica de Ivan Karamazov na famosa obra de Dostoievski (IV Parte, Libro 11, capítulo 9).

Page 7: A mística dos psicólogospsicologiadinamica.com.br/wp-content/uploads/2015/03/9-P... · 2018-01-17 · Frankl, etc.). Nós nos centraremos ... logicamente, leva ao ateísmo. Assim,

céu, senão das profundezas da terra, quer dizer, daquilo que está por debaixo da consci-

ência. Estes “filósofos” sabiam que ali havia um “espirito” trancado no recipiente da ma-

téria, uma “pomba branca”, comparável ao nous divino na cratera de Hermes».30 O obje-

tivo seria transformar-se interiormente, liberando as forças do inconsciente coletivo.

Gerardus Dorneus exclama: “Transmutemini in vivos lapides philosophicos!” (Transformai-vos em

pedras filosofais vivas!). Praticamente não há dúvida de que não poucos dentre os que buscavam,

se convenceram de que a natureza secreta da pedra é o "Si-mesmo" humano. É evidente que este

"Si mesmo" jamais foi concebido como uma essência idêntica ao eu; por isso mesmo foi descrito

no começo como uma "natureza oculta" até mesmo na matéria inanimada, como um espírito, um

demônio ou uma centelha. Mediante a operação filosófica, concebida em sua maior parte como

operação mental, esse ser foi libertado das trevas e do cativeiro para celebrar finalmente uma res-

surreição, frequentemente representada por uma apoteose e em analogia com a ressurreição de

Cristo. Daí se depreende que em tais representações não se trata de um ser identificável com o eu

empírico, mas sim de uma natureza divina, diversa dele ou, em termos psicológicos, de um conte-

údo que se origina no inconsciente e transcende os limites da consciência.31

Seria, pois, de fazer morrer o sujeito humano (“empírico”), para que este seja possuído

pelo “espírito” fechado na matéria. Na nossa opinião, nos encontramos, como temos já

mostrado, não somente diante da auto percepção do sujeito, mas antes de uma mística de

origem preternatural. Portanto, a atividade analítica para Jung, tem uma conexão misteri-

osa com a magia, coisa já notada pelo próprio Freud32: “O estudo cientifico dos sonhos,

diz o psiquiatra suíço, é a velha oniromancia com uma nova roupagem, portanto, talvez

seja tão condenável como as outras artes ‘ocultas’.”33 Por isso a importância da interpre-

tação e manejo dos símbolos, de uma maneira diferente dos símbolos sacramentais.34 Ele

termina na liberação das potências espirituais trancadas no inconsciente, que atua como

“mistagogos”.35

Destes “deuses” que desde o inconsciente dominam o homem, teria somente um conhe-

cimento negativo, pelo qual a noção “psicológica” de arquétipo não os explica totalmente.

30 C. G. JUNG, Psicología y religión, 146. 31Ibidem, 151-152.

32Cf. S. FREUD, «Psicoterapia (Tratamiento por el espíritu)», en Obras, vol. 1, Biblioteca Nueva, Madrid 19733, 1014:

«O profano certamente encontrará dificuldade de entender que os transtornos patológicos do corpo e da alma podem

ser eliminados por meio de "meras" palavras do médico. É, sem dúvida, que se espera dele uma fé cega no poder da

magia, e não estará completamente errado, porque as palavras que usamos todos os dias não são outra coisa que magia

atenuada.» 33Ibidem, 102-103; cf. p. 149: « O exemplo do sonho que temos argumentado nos mostra até que ponto tais imagens

não são sofismas do entendimento, mas revelações naturais.»

34Jung identificou, erradamente, os sacramentos com rituais mágicos; ibidem, 22-23: «Grande número de práticas ritu-

ais são executadas unicamente com a finalidade de provocar deliberadamente o efeito do numinoso, mediante certos

artifícios mágicos como p. ex. a invocação, a encantação, o sacrifício, a meditação, a prática do ioga, mortificações

voluntárias de diversos tipos, etc. Mas certa crença religiosa numa causa exterior e objetiva divina precede essas

práticas rituais. A Igreja Católica, p. ex., administra os sacramentos aos crentes, com a finalidade de conferir-lhes os

benefícios espirituais que comportam. Mas como tal ato terminaria por forçar a presença da graça divina, mediante um

procedimento sem dúvida mágico, pode-se assim argüir logicamente: ninguém conseguiria forçar a graça divina a estar

presente no ato sacramental, mas ela se encontra inevitavelmente presente nele, pois o sacramento é uma instituição

divina que Deus não teria estabelecido, se não tivesse a intenção de mantê-la.»

35Ibidem ,56, nota 24: «A anima e o animus não se manifestam unicamente de forma negativa. Às vezes aparecem

também como fonte de iluminação, como mensageiros () e como mistagogos.» Nisto se vê a influência do

espiritismo, a que aludimos anteriormente.

Page 8: A mística dos psicólogospsicologiadinamica.com.br/wp-content/uploads/2015/03/9-P... · 2018-01-17 · Frankl, etc.). Nós nos centraremos ... logicamente, leva ao ateísmo. Assim,

Nossa escolha designa e define “Deus”. Mas nossa escolha é obra humana, e por isso a definição

que a acompanha é finita e imperfeita. (Nem a idéia de perfeição estabelece alguma perfeição). A

definição é uma imagem que não eleva a realidade desconhecida indicada pela imagem na esfera

da compreensibilidade. De outro modo seria lícito dizer que foi criado um deus. O “senhor” que

nós temos escolhido não é idêntico a imagem dele esboçada por nós no tempo e no espaço. Como

sempre, atua dentro das profundezas anímicas como uma magnitude não cognoscível.36

Para o psiquiatra suíço, «os “domínios” e os “poderes” sempre existirão; não é possível

para nós produzi-los e nem é preciso que o façamos. Somente é de nossa incumbência a

eleição do “senhor” ao que desejamos servir para assim nos proteger contra o domínio

dos “outros”, ao qual não escolhemos. “Deus” não é produzido, mas eleito.»37 A cura não

pode ser outra coisa que a eleição entre os espíritos encontrados na profundidade, de um

deus, que o protege dos outros, mas ao mesmo tempo subjuga: «Conheço um número

bastante grande de pessoas que se querem viver deve levar a sério sua experiência íntima.

Para expressar de forma pessimista, somente podem escolher entre o diabo e Belzebu. O

diabo é a mandala38 ou algo equivalente, e Belzebu suas neuroses.»39 E diz mais adiante:

«O que cura uma neurose deve ser tão convincente como a neurose».40

Resposta a essas teorias e interpretação tomista

destes fenômenos

Tentaremos agora, brevemente, interpretar à luz da concepção tradicional da vida mís-

tica, estes fenômenos alegadamente místicos, tão central na teoria e prática desses autores.

De fato, como temos notado não se trata de simples divagações recreativas a margem dos

interesses principais desses psicólogos, senão que tocam os pontos mais centrais de suas

teorias e práticas.

Parece que as «experiências místicas» em que esses psicólogos fazem referência encon-

tram-se em dois níveis: no nível de uma espécie de «mística natural», e de uma mística

preternatural, embora ambas em conexão entre si. Em nenhum caso, encontramos a ver-

dadeira mística sobrenatural, que consiste na contemplação que brota da caridade.

36 Ibidem, 141.

37 Ibidem, 141. Cf. p. 131: « A religião é uma relação com valor supremo ou mais poderoso, seja ele positivo ou

negativo, relação esta que pode ser voluntária ou involuntária; isto Unifica que alguém pode estar possuído inconsci-

entemente por um "valor", ou seja, por um fator psíquico cheio de energia, ou que pode adotá-lo conscientemente.»

38 Ibidem, 145: «o inconsciente produz um símbolo natural, que designei tecnicamente pelo nome de mandala e cujo

significado funcional é da conciliação dos contrários, isto é, a mediação.» Cf. p. 153: «Assim, o mandala designa e

apóia uma concentração exclusiva em torno do centro, isto é, em torno do "Si-mesmo". Este estado de coisas não é,

absolutamente, egocentrista. Pelo contrário, representa uma autolimitação sumamente necessária, cuja finalidade é a

de evitar a inflação e dissociação.» 165-166: « À luz de tais paralelos históricos, o mandala simboliza, que o ser divino

que dormitava até então oculto no corpo, sendo agora extraído e vivificado, quer o recipiente ou lugar no qual se realiza

a transformação do homem no ser "divino".»

39 Ibidem, 167.

40 Ibidem.

Page 9: A mística dos psicólogospsicologiadinamica.com.br/wp-content/uploads/2015/03/9-P... · 2018-01-17 · Frankl, etc.). Nós nos centraremos ... logicamente, leva ao ateísmo. Assim,

Em primeiro lugar, digamos algo sobre o problema da teologia negativa. É verdade que,

como diz Santo Tomás, seguindo Dionísio, «quia de Deo scire non possumus quid sit,

sed quid non sit, non possumus considerare de Deo quomodo non sit» («como não pode-

mos saber o que é Deus, mas o que não é, não podemos considerar como é, mas, como

não é»).41 Santo Tomás, não atenua a transcendência de Deus a respeito do conhecimento

humano. Deus é o Criador de todas as coisas e as transcende infinitamente. Nosso inte-

lecto criado não tem luz suficiente para compreender a essência divina. Nisto Santo To-

más é um fiel discípulo de Dioniso, e um místico pleno. O conhecimento de Deus nesta

vida é obscuro. A contemplação nesta vida não é clara e distinta, mas obscura. Dionísio

fala inclusive de um «raio de escuridão».

Isso não significa, no entanto, que nada se pode exortar com verdade de Deus, que não

há uma conexão das criaturas com o Criador, e que a partir disso não possa elevar de certo

modo o pensamento a Deus, mesmo através de afirmações. Pois «Não podemos, nesta

vida, conhecer a essência de Deus, tal como ela é em si mesma; mas, a conhecemos en-

quanto representada nas perfeições das criaturas»42 O discurso teológico é possível, para

qualquer um que não segue Kant. O que Frankl e Fromm chamam «teologia negativa» é,

no fundo, a negação de Deus e, consequentemente, da própria teologia.43

A postura de Frankl não se compreende senão no contexto da filosofia alemã pós-kan-

tiana. Para esta, a aplicação das «categorias» (a priori) limita-se ao mundo físico, e elas

são impotentes para transcender. Deus, a alma e todo o mundo estão além da capacidade

humana de conceitualizar. Isto é ainda mais inserido na concepção heideggeriana do ser

como evento, e da impugnação da metafísica tradicional.44 Tentar combinar isso com a

postura de Santo Tomás é impossível, e leva a grandes mal-entendidos. Para o Aquinate,

o homem tem uma capacidade natural para a metafísica, embora esta seja, em certo sen-

tido, uma ciência «própria de um deus», como diria Aristóteles. O intelecto humano pode

também elevar-se desde as criaturas à sua causa, e ainda atribuir-lhe as perfeições encon-

tradas nas criaturas, sem com isso necessariamente desenvolver um «conceito» humano

de Deus, que seria um ídolo. Porque você pode conhecer naturalmente a Deus, você pode

falar, sobrenaturalmente, com Ele, através da oração. O conhecimento de Deus é um dos

preambula fidei. Se parte da negação do conhecimento natural de Deus, logo não se sabe

para quem está falando, e acaba por não falar com ninguém.

41 Summa Theologiae I q. 3 (introd.).

42 Cf. Summa Theologiae I q. 13 a. 2 ad 3; Ibidem in c y a. 12.

43 Cf. I. ANDEREGGEN, «Psicología posmoderna y mística», 277: «O fundo desse pensamento é assim o de ser uma

consciência mística cristã negativa, não no sentido clássico, mas na negação da verdade da mística./ Enquanto Viktor

Frankl e Erich Fromm combinam niilismo com a mística cristã, Foucault, com mais coerência, nega o, e faz aflorar o

ateísmo implícito em Frankl e coexistente com a teologia negativa em Fromm, que nada mais é que a oposição ao Deus

trinitário do cristianismo. Quem nega este Deus, tendo alcançado, nega Deus absolutamente.»

44 Cf. M. E. SACCHI, «La impugnación de la metafísica mediante el recurso al conocimiento apofático de Dios»,

Sapientia, 54 (1999) 513-537; M. E. Sacchi, El apocalipsis del ser. La gnosis esotérica de Martin Heidegger, Basileia,

Buenos Aires 1999.

Page 10: A mística dos psicólogospsicologiadinamica.com.br/wp-content/uploads/2015/03/9-P... · 2018-01-17 · Frankl, etc.). Nós nos centraremos ... logicamente, leva ao ateísmo. Assim,

Fromm, entretanto, é inserido na tradição do humanismo ateu da esquerda hegeliana,

especialmente de Feuerbach e Marx, que combina com o ateísmo de Freud, também in-

fluenciada pela concepção feuerbachiana de Deus como projeção do homem. Se trata do

velho mecanismo da «reapropriação» do homem dos atributos divinos, característica da

«virada antropológica». Portanto, Deus é nada, e Fromm cita muitíssimas vezes em suas

obras, para reforçar estar idéia, Meister Eckhart, o famoso místico dominicano, seguidor

de Santo Alberto e Santo Tomás, porém condenado pela heterodoxia justamente de teses

como esta.

Também, em união com isso, Fromm deixou-se influenciar fortemente pela religiosi-

dade budista. Neste contexto, localiza-se a experiência de si através do vazio e da própria

fusão no Um. O tema da experiência mística de si mesmo através do vazio foi estudado

por Jacques Maritain em um agudo ensaio de psicologia religiosa, «A experiência mística

natural e o vazio». Esta experiência do eu no vazio, segundo Maritain, quando não é im-

pulsionada pela graça, é extremamente perigosa, e conduz a resultados desastrosos para

o espírito humano. Se trataria de uma vivência análoga ao da noite escura do espírito, mas

fora da fé e da contemplação purgativa.45

Na ordem natural, há noites do espírito que também são morte e desespero e, no sentido de que

pouco tem o que precisávamos, a "destruição" do espírito, mesmo em seu desejo natural e no seu

gosto consubstancial para os seus próprios fins operativos, horror radical frente a sua própria vida.

Esta espécie de horrorosa e suicida separação entre a inalterável estrutura ontológica do espírito,

com o qual se identifica seu apetite natural, e esse mesmo apetite natural enquanto é tomado e

assumido pelo movimento de toda a apetitividade elícita e da vontade, atesta, em todo caso, na linha

do anormal, como a reflexibilidade na linha do normal, a liberdade do espírito frente a si mesmo e

o que poderia chamar de a quarta dimensão das coisas da espiritualidade. São devidas ao grande

abuso dessas noites que faz passar a essas regiões malditas? Em todo caso são, em sua ordem par-

ticular, como um inferno.

Poderiam apresentar muitos exemplos dessas noites do espírito da ordem natural. Aviso que pode

ser encontrado no campo do puro conhecimento intelectual, metafísico ou moral (é o caso de Fausto,

drum hab’ich mich der Magie ergeben), na experiência poética (penso em Rimbaud), no cruza-

mento desses dois campos (penso em Nietzsche e nessas palavras tão surpreendentes quando são

escritas por ele: Crux mea lux, lux mea crux); [...] Nessas noites não há ajuda. Então o desespero as

alcança, como na noite sobrenatural, na conjuntura da alma e do espírito; mas como pertencem a

ordem natural, e não trazem no fundo de si mesmos a virtude secreta de um socorro sobre-humano,

acaba-se em uma catástrofe do espírito (aniquilação no sentido, magia, demência, suicídio moral

ou físico). A noite sobrenatural do espírito é a única que pode sair vivo o espírito.46

Por outro lado, embora ligadas a este primeiro tipo de noite escura natural, temos as

experiências do inconsciente que, especialmente em Jung, parecem poder reconduzir a

influxos preternaturais, mais especificamente, diabólicos. Como diz Andereggen, porém

em referência a Foucault: «Se trata de uma verdadeira “mística”, a que corresponde uma

certa passividade, a do “Príncipe deste mundo”, que o tem escravizado. Isto inclui, talvez,

uma visão de inferno, e ainda do diabo como rosto, na contraposição ao Céu e a visão

beatífica “Cara a cara”.»47 Se trata de uma deformação espiritual muito profunda, que se

45 Cf. I. ANDEREGGEN, «Psicología posmoderna y mística», 278: «Esta noite não é a “noite escura” da fé (São João da

Cruz); ou melhor, é, dessa noite, somente a aparição do mal.» 46 J. MARITAIN, «La experiencia mística natural y el vacío», Comunicación al Cuarto Congreso de Psicología Religiosa,

Avon-Fontainbleau, 21-23 de septiembre de 1938, publicado en Études Carmélitaines, Noche Mística, octubre de 1938;

publicado en español en Cuatro ensayos sobre el espíritu en su condición carnal, Desclée de Brouwer, Buenos Aires

1943, 135-136. 47 I. ANDEREGGEN, «Psicología posmoderna y mística», 279.

Page 11: A mística dos psicólogospsicologiadinamica.com.br/wp-content/uploads/2015/03/9-P... · 2018-01-17 · Frankl, etc.). Nós nos centraremos ... logicamente, leva ao ateísmo. Assim,

dá de diversas maneiras ao longo da história (gnosticismo, hermetismo, alquimia, ocul-

tismo, espiritismo, etc.), contra o qual todos os grandes autores espirituais colocam em

guarda.

Pelo contrário, é claro, depois de tudo o que dissemos, que o desenvolvimento mais

profundo e autêntico da personalidade humana atravessa a verdadeira contemplação mís-

tica. Além disso, de acordo com o grande Doutor místico, São João da Cruz, não há outro

modo de superar defeitos estruturais que aprisionam nosso crescimento pessoal, que a

dupla purificação sobrenatural da noite escura do sentido - ou seja, de todas as potências

da parte sensitiva, para ordená-las à razão- e do espírito – isto é, da razão e da vontade,

na ordem da moção divina-. Então, todos os esforços humanos, de distintas ordens, não

faz (ou não deveria fazer) outra coisa senão quitar os impedimentos para endossar a ini-

ciativa interior divina.

PARA CITAR ESTA TRADUÇÃO: Martín Federico Echavarría, “Psicologia e mística: a mística dos psi-

cólogos”, 2018, trad. br. por Rafael de Abreu Ferreira, Itaboraí, Rio de Janeiro, Brasil, janeiro 2018.

Page 12: A mística dos psicólogospsicologiadinamica.com.br/wp-content/uploads/2015/03/9-P... · 2018-01-17 · Frankl, etc.). Nós nos centraremos ... logicamente, leva ao ateísmo. Assim,