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PHRONESIS: Revista do Curso de Direito da FEAD • no 5 • Janeiro/Dezembro de 2009 81

A mitezza em Norberto Bobbio

Paula Gabriela Mendes Lima1

Resumo: Busca-se demonstrar que a mitezza, no pensamento de Norberto Bobbio, é a grande virtude do mundo contemporâneo. Trata-se de uma característica necessária aos cidadãos democráticos comprometidos com o combate ao preconceito e com a prática cotidiana da alteridade. É a chave para a convivência na sociedade moderna plural e para a realização dos direitos humanos.

Palavras-chave: Mitezza. Virtude. Alteridade. Direitos humanos.

Abstract: This article is intended to demonstrate that the mitezza, in Norberto Bobbio’s thoughts, is the most important virtue nowadays. mitezza is an absolutely re-quired characteristic for a democratic citizen committed to the struggle against prejudice and the everyday practice of alterity. It is the key to the conviviality in a modern pluralist society in order to make human rights effective.

Key-words: Mitezza. Virtue. Alterity. Human rights.

1. Introdução

O alicerce deste trabalho é o texto Elogio da Mitezza, de Norberto Bobbio. A partir da sua leitura, realizada mais de uma vez, todas as reflexões aqui expostas foram grada-tivamente emergindo. Trata-se de um texto aparentemente simples e que não poderia, num primeiro momento, suscitar grandes questões. Contudo, há surpresas. Diante de um ensaio de um grande filósofo político2 da contemporaneidade, uma interpretação realizada de forma investigativa e interrogativa traz, obviamente, novos contornos ao texto e à sua interconexão com o nosso tempo.

Elogia da Mitezza é uma conferência pronunciada em milão (1983) e que, mais tarde, tornou-se parte da coletânea de ensaios de Bobbio chamada de Elogia della Mitezza e Al-

1 mestranda em Direito pelo Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da Universidade Federal de minas Gerais sob orientação da Professora Doutora miracy Barbosa de Sousa Gustin e co-orientação do Professor Doutor Newton Bignotto de Souza. Especialista em Direito Constitucional. Consultora em Direito Constitucional e Direito Administrativo da Assembleia Legislativa do Estado de minas Gerais.

2 Norberto Bobbio não se apresenta como filósofo político em todos os seus textos. muitas vezes, observamo-lo como cientista político ou como um pensador político. Contudo, sendo coerente com o título que lhe empresta seus interlocutórios no prefácio da obra Elogio da Serenidade, no corpo do presente trabalho irá se referir a Bobbio como filósofo político. Não há preocupação, portanto, com o rigor técnico de classificação entre filósofo político, cientista político ou pensador político. A reflexão em torno dessas distinções tem como base a diferenciação entre esses saberes apresentada por Leo Strauss. (STRAUSS, Leo. What Is Political Philosophy? and Other Studies. Glencoe, Ill.: The Free Press, 1959. Reissued Chicago: U of Chicago Press, 1988).

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tri Scritti Morali (1994). O objeto das conferências realizadas em milão, na oportunidade, era criar um pequeno dicionário das virtudes.

O termo mitezza, como se observará ao longo do trabalho, não possui tradução cor-respondente na língua portuguesa. O seu significado foi construído no texto do filósofo. Algumas traduções portuguesas apresentaram-no como sinônimo de serenidade, doçura, moderação, mansidão etc. mas tais significados não foram satisfatórios, sendo sensato referir-se ao termo em italiano.

Interroga-se: por que Bobbio escolheu a mitezza como virtude? Por que um cientista jurídico-político escolheu uma virtude moral? A mitezza é, realmente, uma virtude moral? Por que é a mitezza é importante na realidade jurídico-política atual?

As primeiras questões foram, inicialmente, respondidas por interlocutores de Bobbio, como Pietro Polito. Afirmava que o Elogia da Mitezza é um texto de filosofia moral e não de filosofia política ou filosofia do direito e que seria uma reflexão da maturidade. O próprio Bobbio, em 1998, responde que “efetivamente, nos últimos anos, ao perceber as primeiras mordidas da velhice, fui me envolvendo e em certa medida me dispersando na reflexão sobre o problema do mal no mundo e na história, e diminuindo minhas ligações com o universo da política.” (BOBBIO, 2002, p. 9)

O principal é perceber que, com o passar do tempo, Bobbio voltou seu olhar para a ética. Na obra Elogia della Mitezza e Altri Scritti Morali (1994) ele se abre para a impor-tância da moral para uma boa república. mais que obediência às leis, exige-se o compor-tamento dos homens conforme os valores da cidadania democrática.

Assim, Elogia da Mitezza ultrapassa a mera definição de uma virtude. Trata-se de um ponto de partida para o estudo das relações humanas e sociais, incluindo, portanto, o apro-fundamento sobre a tolerância, sociedade, a heterogeneidade, a alteridade e, em especial, aos direitos humanos.

2. A doutrina das virtudes: breves observações

Norberto Bobbio inicia o texto Elogio da Mitezza com reflexões sobre o estudo da ética na atualidade. Para ele, hoje, a abordagem da ética como virtude praticamente desa-pareceu. Principalmente no Direito e na Política, essa é uma questão distante. Trata-se de institutos estudados na esfera da religião ou dos costumes, por exemplo.

Na antiguidade, contudo, a ética exauria-se no estudo das virtudes. A obra refe-rência era a Ética a Nicômaco, de Aristóteles. Discutia-se justiça, alteridade, bem comum, igualdade etc. Bobbio cita a Metafísica dos Costumes, de Kant, como última grande obra dedicada ao tema. Referia-se a ética dos deveres, fixando regras, direitos e deveres. A virtude kantiana era a força necessária ao homem para o cumprimento do dever, uma força moral que, submissa ao cumprimento dos deveres, conseguia combater os vícios.

Ao longo do tempo, a doutrina da virtude tornou-se objeto de tratados sobre paixões (Descartes, Spinoza, Hobbes) e de estudos sobre o direito natural (Pufendorf). E, poste-riormente, encontrou suporte na obra de moralistas. Bobbio lembra que na sociedade do bem-estar social, o moralista era um estraga prazer, “um tipo ridículo que prega no deserto” (BOBBIO, 2002, p).

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O preconceito e o abandono da virtude justificam-se pela plena absorção do pensa-mento de maquiavel. Separa-se a política da moral e o direito da moral como se isso fosse naturalmente assim. Hoje, as críticas realizadas ao político são embutidas do peso da obra O Príncipe, de maquiavel.

Na modernidade, para Bobbio, macIntyre suscitou grandes debates, pois reabilitou o leitor contemporâneo à análise da virtude. Em After Virtue, macIntyre critica a separação de fatos e valores, afirmando que o racionalismo ético do Iluminismo só pode levar ao niilismo. O filósofo, assim, está na contracorrente, retomando a tradição e negando a ética dos deveres.

Norberto Bobbio admoesta macIntyre, pois não admite atitudes unilaterais. Fixar na tradição como se a ética tradicional se igualasse a ética das virtudes é discutível. Até na ética antiga o tema da virtude e das leis se entrelaçam. Lembre que boa ação era, também, submissão aos dez mandamentos.

No mesmo tom, cabe ressaltar os ensinamentos de Leo Strauss. O filósofo realiza uma (re)visita aos antigos, afastando-se das leituras cristãs. Não se atém a interpretação de Platão, por exemplo, como um filósofo apenas da contemplação. Para ele, é necessário ler a trilogia República – Política – Leis (três obras de Platão, escritas nessa sequencia) para entender a política e sua relação com a ética. A relação entre virtudes e leis, dessa forma, abre-se claramente (STRAUSS, 1988).

Strauss, assim como macIntyre, retoma a importância da doutrina das virtudes. Ela foi abandonada pela filosofia política e pela filosofia do direito porque se consubstanciava em uma democracia que era, na verdade, uma autocracia. A democracia dos modernos tinha como fundamento a liberdade, e não a virtude.

O apego a liberdade e a negação do tema da virtude, contudo, dão bases sólidas para os dois caminhos de justificação do político em que se apoiava no positivismo e no his-toricismo. O positivismo, em especial, foi objeto de ataque de Strauss, pois se trata de um pensamento político que afasta a questão dos valores como se isso fosse possível. Para Strauss, a conclusão, nesse ponto, é a mesma de macIntyre: ao tentar ser algo sem nenhum julgamento de valor, torna-se niilismo (STRAUSS, 1988).

Em suma: Leo Strauss acompanha Bobbio na sua reflexão sobre a tradição e acompa-nha macIntyre na sua crítica à modernidade. A tradição não é só a doutrina da virtude e a modernidade não pode se furtar da análise das virtudes.

Retomando o texto de Bobbio, ressalta-se uma reflexão de grande valia, qual seja, a distinção entre a ética das virtudes e a ética dos deveres. Os dois prismas do estudo sobre a moral, não são opostos. Buscam dar suporte a boa ação, a boa sociedade e ao cumpri-mento do bem.

Tem-se, na verdade, diferentes pontos de vista. Na ética das virtudes a boa ação é descrita como um modelo para o comportamento dos homens. Na ética dos deveres a boa ação é imperativa, um dever. Para Bobbio, as duas se completam no estudo da ética em geral. Uma por trazer a imagem de heróis, santos, homens especiais que são exemplos a serem seguidos. A outra orienta a pratica do bem.

Bobbio lembra que o tema das virtudes ressurge, na sociedade moderna, retornando ao na construção e compreensão do mundo. O desejo nos guia, aproximando paixão e razão. Vê-se que a doutrina da virtude não é mais uma forma de moderação e controle das paixões. mas as paixões e os desejos dirigem a ação humana.

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3. A mitezza na fenomenologia das virtudes

Após uma pequena síntese sobre os estudo da doutrina das virtudes, questiona-se qual o lugar da mitezza na fenomenologia das virtudes. Norberto Bobbio constrói esse espaço, primeiro, lembrando o uso da palavra na língua italiana e após, definindo a partir de ana-logias e contrastes.

Segundo Bobbio, somente a língua italiana herdou do latim uma palavra com tantas variações e ambiguidades. Mitezza pode significar ameno, leve, suave, moderado, tem-perado. Tal significação é mais adequada para fenômenos climáticos: um inverno suave. Também pode ser manso, dócil, domesticado, afável. A acepção, aqui, refere-se a caracte-rísticas pertencentes ao mundo animal: um cachorro manso.

Mitezza, no entanto, também pode significar sereno, tranquilo, benevolente, compla-cente, compreensivo, indulgente, paciente. Tais acepções podem, mais facilmente, serem identificadas como uma virtude humana. Aplica-se, quase exclusivamente, às ações e pai-xões humanas.

Trata-se de uma virtude mais ativa, não se aproxima a concepção de mansidão. Além disso, é uma virtude social, e não individual. Junta-se as virtudes aristotélicas como cora-gem, temperança e justiça. manifesta-se na presença do outro. O mite é um homem neces-sário ao outro. Não é, portanto, um estado da alma que independe das relações humanas.

Bobbio a inclui entre as virtudes fracas, como humildade, modéstia, pudor, inocência, meiguice, decência etc. Não por ser característica de um fracassado, mas de alguém que não se faz notar, não tem poder, não deixa vestígios. Um particular relegado na escala social. Os pobres, os humilhados, os dóceis que nunca serão soberanos. São os homens comuns e não os heróis ou fundadores do Estado. Ou seja, distancia-se do homem hege-liano de histórica universal.

Definindo-a, primeiramente, por contraste, tem-se que a mitezza diferencia-se da ar-rogância, pois não traz superestima, mas a crença em que todos são iguais; e da insolência, já que o mite não se exibe, não faz alarde de suas virtudes. Respeita o outro e deixa que ele seja ele mesmo, ainda que o outro seja um presunçoso, um arrogante, um déspota.

Aproxima-se de virtudes como a docilidade, humildade, modéstia, tolerância e respei-to. mas, não é submisso. Não renuncia as lutas por fraqueza, mas por não ter espírito de revanche, de vingança ou de represália. Quer um mundo se vencedores e vencidos, sem conflito, concorrência, rivalidade.

O mite é um precursor de um mundo melhor, volta-se para o outro. Complementando-se pela simplicidade e pela compaixão (ou misericórdia). O mite torna o mundo mais habitável.

4. Uma virtude impolíticaBobbio diz que optou por incluir a mitezza entre as virtudes fracas, como vimos, e

como “a mais impolítica das virtudes”. Não de trata de uma virtude política porque recusa a violência contra o quer que seja. É uma fortaleza não violenta. Difere, também, do grupo de virtudes fortes como bravura, fervor ou audácia, que são qualidades típicas dos que tem poder, dos que governam, dirigem, comandam. Dos que agem na política e na preservação da política (na guerra). Não lutam pela dominação ou pela manutenção do poder.

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Para esclarecer sua concepção de virtude fraca e impolítica, Bobbio (BOBBIO, 2005,) traça brevemente duas maneiras de se entender e fazer política. Por um lado, a concepção de Aristóteles, a política como busca do bem comum, como a artifício do bom governo. Pode ser entendida como ação virtuosa, orientada para o outro.

Por outro, na compreensão de maquiavel a política é uma ação estratégica do estadis-ta, a ciência dos mecanismos de conquistar e manter o poder. É amoral, não tem a ver com as regras morais, não se relaciona com a reflexão sobre o que é certo ou errado, mas com a disputa e a manutenção do poder.

Ainda que se anuncie discursivamente uma política virtuosa, na prática do jogo políti-co a concepção predominante é outra. Na modernidade, prevalece a concepção maquiavé-lica, sendo a política a disputa e a manutenção do poder que exclui a moral. Considerando isso, Bobbio afirma que a mitezza é a mais impolítica das virtudes morais porque ela é totalmente desinteressada do poder.

É muito instigante e desconcertante a afirmação de Bobbio de que a mitezza é uma virtude que recusa a violência em qualquer de suas formas e simultaneamente classificá-la como uma virtude impolítica. Há, por detrás disso, a ideia de que a política está ligada a violência, e que a não- violência é não política. Aqui, o filósofo cega-se quanto à doutrina e a história de Gandhi, por exemplo. Gandhi pregava a resistência passiva. O não-violen-to, portanto, refuta a violência sem ter por isso que se retirar da política. Ele desmente, com seu agir, a definição da política como reino exclusivo da força destrutiva e do poder violento.

Não se pode negar valor político à não-violência. É impossível distinguir a não-vio-lência passiva da não-violência ativa praticada por Gandhi, que é uma virtude eminente-mente política. Pode haver ação política com meios não violentos.

Essa crítica ao pensamento desenvolvido Bobbio não é capaz de apagar a importância da mitezza como grande virtude da modernidade. Ela apenas leva a necessidade de uma maior reflexão para os leitores desatentos.

5. Mitezza, direitos humanos e alteridade

O mais importante para o presente trabalho e para o nosso tempo é o fato de a mite-zza encontrar sua razão de ser na relação do cidadão mite com os outros. Aproxima-se das atitudes que visam aliviar, suavizar, mitigar a carga da coexistência e da convivência humana. É o compartilhamento com outro para a mitigação do peso da vida. Requer uma relação com o outro, requer ser suporte ou dar suporte para o peso que o outro carrega, para aliviar o fardo da vida.

Significa muito mais que tolerar o outro. Vai além do respeito pelas ideias e pelos mo-dos de viver dos outros. A tolerância é uma relação de recíproca: para que exista tolerância é preciso que se esteja ao menos em dois. Uma situação de tolerância existe quando um tolera o outro. Se eu o tolero e você não me tolera, não há um estado de tolerância mas, ao contrário, de prepotência.

A mitezza é, portanto, mais que tolerância e respeito. Vai além de um acordo de tole-râncias e respeitos recíprocos. É usar as lentes da alteridade. É construir uma sociedade não em face do outro, mas pressupondo o reconhecimento do outro.

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O grande obstáculo para a efetividade dos direitos do homem e para a solução dos pro-blemas sociais, políticos e econômicos da atualidade podem ser traduzidos pela ausência de mitezza no espírito humano. Falta ver o outro com os olhos dele. Trata-se de uma ca-racterística necessária aos cidadãos em uma sociedade que se diz moderna e democrática. O mite não aceita o preconceito e pratica cotidianamente a alteridade.

A alteridade, para Emmanuel Lévinas, é um estatuto que traz modelos de uma relação em que o sujeito é alguém que padece pelo outro. Sofre pelo outro sem esperar nada: sofrimento que não tem nada de heroico. Carrega implicitamente o desejo do bem. “A alteridade, antes de ser um estatuto teorético, está inscrita na relação corpo-a-corpo, na concretude existencial de cada sujeito e entre os sujeitos.” (mELO, 2003, p. 219)

Não basta afirmar a diferença entre o Eu e o Outro, é preciso colocar o Outro sobre o Eu. Assim, cria-se convivência social sem tirania, sem exploração, sem terrores, sem escravidão. A verdadeira igualdade se dá no fato de o sujeito abrir-se a responsabilidade, exigindo mais de si mesmo do que do outro.

“A reciprocidade é uma estrutura fundada sobre uma desigualdade original. Para que a igualdade possa entrar no mundo, é necessário que os seres exijam mais de si do que ao outro, que eles sintam responsáveis pelo destino da humanidade.” (mELO, 2003, p. 255)

Para Levinas, portanto, o ser é um sujeito responsável pelo outro, e é essa respon-sabilidade a base da noção dos direitos do homem. O filósofo afirma que os direitos do homem são direitos do outro homem. O outro é fonte dos meus direitos (LEVINAS, 2005, p. 263).

Ora, comemoram-se em 2008 os 60 anos da Declaração Universal dos Direitos Hu-manos. Os jornais do dia 9 de dezembro de 2008 mostram que os trajes da festa, no Rio de Janeiro, são pretos. Nas ruas da China, a festa é uma grande mobilização contra as tor-turas ainda realizadas pelo governo. O noticiário fala de homossexuais mortos e violência contra a criança e o adolescente. Acompanha-se apreensivamente o julgamento pelo STF do caso da reserva Raposa Serra do Sol, que suscita a luta dos índios pelo respeito a seus direitos e sua cultura.

Ou seja, apesar das grandes e importantes conquistas (como os estatutos protetivos de idoso, da criança e do adolescente, a lei de proteção contra a violência domestica), vivem-se, ainda, momentos de tensão. A humanidade e seus valores particulares não são respeitados e aí está a maior dificuldade para a efetividade dos direitos do homem.

Os direitos do homem se relacionam com a própria condição de ser do homem, inde-pendentemente da classe, raça, cor, idade ou cultura. Foram elevados ao nível de princípio fundamental da legislação e da ordem social como uma marca de um momento essencial da consciência ocidental. E, pós-2ª guerra mundial, veio poupar o homem dos constrangi-mentos e humilhações, da miséria, das errância, e da dor.

mas, por que a noção de direitos do homem não é uma realidade na sociedade atual? Certamente, a resposta precederá sobre uma reflexão sobre a mitezza e a alteridade. Os direitos do homem não podem ficar arraigados na ideologia individualista e liberal que inicialmente lhe fundamentou. Deve voltar-se para a formação de uma sociedade demo-crática, composta por cidadãos mite, ou seja, por homens que tenham consciência da sua responsabilidade para com o outro.

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Os direitos do homem não estão confináveis em um momento histórico de ascensão da burguesia, não têm uma função meramente histórica. Ao contrário, consubstancia-se na necessidade de reivindicá-los para mobilizar energias positivas e convertê-las em forças suscetíveis de se medir como outras forças na “arena política” (LEFORT, 1987, 61).

A efetividade dos direitos do homem contornam a tensão “entre a exigência de re-conhecimento da diferença e de redistribuição que permita a realização da igualdade” (SANTOS, 2003, p. 25). Afirmam-se, esses direitos, a partir da exigência de que o “outro” olhe o “eu” como igual e reconheça a este os mesmos direitos que são titulares.

A luta por direitos, que leva a mudança da estrutura social, política e jurídica, exige a ruptura da noção de direitos humanos como direitos individuais do homem egoísta. Na so-ciedade democrática, nenhum direito individual é individual. Ele é sempre coletivo. Não há direito individual à indiferença social, pois não a homem sujeito de direito e cidadão que não seja responsável pelo Outro.

Por fim, cabe ressaltar que, focando na virtude mitezza, Norberto Bobbio deu aos es-tudiosos do direito um presente: a possibilidade de parar por um momento e refletir sobre o papel de cada um na sociedade democrática e na efetividade dos direitos. Além de ter, mais uma vez, contribuído para a criação de condições de possibilidade para solucionar um dos grandes paradoxos da modernidade: a tensão entre o individualismo burguês e a sociedade democrática combinada com valores coletivos e plurais.

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6. Referências

BOBBIO, Norberto. O final da longa estrada: condução sobre a moral e a virtude. Tradução de Leo Novais. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2005.

BOBBIO, Norberto. Elogia da serenidade e outros escritos morais. São Paulo: Editora UNESP, 2002.b

LEFORT, Claude. A invenção democrática: os limites do totalitarismo. 2.ª ed. Trad. Isabel marva Loureiro. São Paulo: Editora Brasiliense, 1987.

LEVINAS, Emmanuel. Entre nós: ensaios sobre a alteridade. Trad. Pergentino Stefano Pivatto (coord.), Evaldo Antônio Kuiava, José Nedel, Luiz Pedro Wagner, Marcelo Luíz Pelizolli. Petrópolis: Editora Vozes, 2005.

mACINTYRE, Alasdair. After virtue. 2. ed. Notre Dame: University of Notre Dame Press, 2004.

mELO, Nélio Vieira. A ética da alteridade em Emmanuel Levinas. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2003.

SANTOS, Boaventura. Reconhecer para libertar: os caminhos do cosmopolitismo multicultural. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

STRAUSS, Leo. What is political philosophy? Chicago: University of Chicago Press, 1988.