Elogio Da Serenidade e Outros Escritos Morais - Norberto Bobbio

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A abrangncia dos estudos do intelectual italiano Norberto Bobbio contempla a filosofia do direito, a tica, a filosofia poltica e a histria das idias

A abrangncia dos estudos do intelectual italiano Norberto Bobbio contempla a filosofia do direito, a tica, a filosofia poltica e a histria das idias. Nos textos reunidos neste livro, essas temticas se entrelaam, especialmente no primeiro texto do volume, voltado para a anlise da serenidade. Escrito para uma conferncia em 1983, o ensaio trata dessa virtude, analisada do prisma do rico dilogo entre a moral, o direito e a poltica.Esse raciocnio interdisciplinar tambm se faz presente nos outros dez textos da obra, todos permeados pela discusso de dois conceitos muito caros ao pensador italiano, a tica e a democracia. Assim, o preconceito, de modo geral, e o racismo, especificamente, so analisados. Neste contexto, o autor mostra por que afirmaes como "todos os homens so iguais" e "todos so diversos" so igualmente falaciosas. A soluo apontada est num caminho intermedirio, aquele que preconiza a harmonizao entre vises opostas e excessivamentegeneralistas de mundo e procura evitar os preconceitos que normalmente sustentam as generalizaes.Essas consideraes ensejam o tratamento de outro dos tpicos centrais deste livro: a tolerncia. Dois ensaios estudam a sua justificao moral e a sua relao com a liberdade, indicando ainda o renascimento das discusses sobre tica em todo o mundo e nas mais diversas reas do conhecimento. A temtica enfatizada por Bobbio nos ltimos textos do livro, que enfocam o Mal de dois pontos de vista diferentes: o de uma tica laica e o de uma religiosa, que contraporiam, respectivamente, na viso do intelectual, a discusso entre o homem de razo e o de f.capa Rex DesignJCDIGO I AUTORTTULOEDITORALOCAL FSICOElogio da serenidadeFUNDAO EDITORA DA UNESPPresidente c/o Conselho Curador Jos Carlos Souza TrindadeD/retor-Pres/denfeJos Castilho Marques NetoEditor ExecutivoJzio Hernani Bomfim GutierreConselho Editorial AcadmicoAlberto IkedaAntnio Carlos Carrera de SouzaAntnio de Pdua Pithon CyrinoBenedito AntunesIsabel Maria F. R. LoureiroLgia M. Vettorato TrevisanLourdes A. M. dos Santos PintoRaul Borges GuimaresRuben AldrovandiTnia Regina de LucawNorberto BobbioElogio da serenidadee outros escritos moraisTraduo Marco Aurlio NogueiraNNESP 1998 Nuova Pratiche EditriceTtulo original em italiano: Elogio delia mitezzae altri scritti morali. 2000 da traduo brasileira:Fundao Editora da UNESP (FEU)Praa da S, 10801001-900-So Paulo-SPTel.: (Oxxll) 3242-7171Fax: (Oxxll) 3242-7172Home page: www.editora.unesp.brE-mail: [email protected] Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP) (Cmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)Bobbio, Norberto, 1909Elogio da serenidade e outros escritos morais / Norberto Bobbio; traduo Marco Aurlio Nogueira. - So Paulo: Editora UNESP, 2002.Ttulo original: Elogio delia mitezza e altri scritti morali.Bibliografia.ISBN 85-7139-429-61. tica 2. tica poltica 3. tica social 4. Religio e tica 5. Serenidade 6. Tolerncia I. Ttulo.02-5548CDD-172ndices para catlogo sistemtico:1. Bobbio: Moral poltica: Filosofia 1 722. tica e poltica 172Editora afiliada:Asociacin de Kditoriales Universitrias de Amrica Latina y ei Caribe1111Associao Brasileira de Editoras Universitriasp-u^Sl\ASSOO*lO BAOSICK* D DIREITOS ISumrioSobre a traduo 7Introduo 9Elogio da serenidade 29Parte I1 tica e poltica 492 Razo de Estado e democracia 85Parte II3 A natureza do preconceito 1034 Racismo hoje 119Parte III5 Verdade e liberdade 1376 Tolerncia e verdade 149Parte IV7 Prs e contras de uma tica laica 1598 Os deuses que fracassaram (Algumas questes sobre o problema do mal) 179ApndiceCompreender antes de julgar 195 Salvar-se por si s 199Nota sobre os textos 205Sobre a traduoA palavra mitezza, em italiano, rica de sentidos e significados. O adjetivo mite, usado em referncia ao clima ou temperatura, corresponde a ameno, tpido, temperado, como em inverno mite (inverno ameno). Aplicado a animais, pode corresponder a manso, domesticado, dcil, como em il mite agnello (o dcil cordeiro). E empregado para designar pessoas boas, benvolas, clementes, como em "beati i miti perch erediteranno Ia terra" ("bem-aventurados os mansos, porque deles ser a terra"), conforme o texto das bem-aventuranas do Evangelho Segundo Mateus, da Bblia. Neste caso, recobre diversas qualificaes: calmo, paciente, sereno, suave, delicado, moderado, propenso benevolncia, indulgente, como em un'uomo mite (um homem sereno), ou em un bambino mite (um garoto tranqilo). Em sentido figurado, remete a leve, suave, moderado, como em una condanna ou una pena mite (uma condenao ou uma pena leve, suave).De mite, vem o verbo mitigar (em italiano, mitigare): suavizar, arrefecer, diminuir, atenuar, abrandar, aliviar. E tambm o substantivo abstrato mitezza. No entender de Bobbio, mite e mitezza so "palavras que somente a lngua italiana herdou dolatim". Alguns tradutores franceses e ingleses preferem mant-las sempre em italiano, provavelmente por entenderem que sua traduo acarretaria alguma perda quanto ao significado. Como o prprio Norberto Bobbio informa na "Nota sobre os textos", includa no Apndice da presente edio, enquanto um dos tradutores ingleses optou por grafar In praise ofmeekness, aceitando o menor refinamento do termo meekness (de meek: manso, submisso), outros preferiram In praise ofla mitezza, a mesma opo feita pelo tradutor francs: Eloge de Ia mitezza. Em espanhol, a escolha recaiu sobre templanza, correspondente em portugus a temperana, moderao, sobriedade.Na presente traduo, optou-se por serenidade, que se configurou, no decorrer do trabalho, como mais identificada com a idia bobbiana de mitezza. Mansido, mansuetude ou docilidade no teriam muito cabimento e contrariariam o pensamento de Bobbio, que considera tais termos aplicveis com maior propriedade aos animais. Como o leitor poder acompanhar no texto que empresta ttulo ao volume, o prprio Bobbio registra as nuanas e mincias de detalhe que cercam a palavra italiana. Sem nenhum prejuzo quanto compreenso ou fidelidade ao texto, ela poderia ser aproximada de "moderao" ou "suavidade", como seria bem razovel, por exemplo, na passagem em que Bobbio se refere a mitezza como uma "virtude feminina": as mulheres so miti por sua doura, gentileza e suavidade, no s por sua eventual serenidade. Mas moderao e suavidade, em portugus do Brasil, so palavras carregadas demais de significado.De resto, como em outras situaes tpicas do trabalho de traduo, a opo aqui feita reflete uma leitura e uma interpretao do texto. Como tal, est sujeita a alguma controvrsia.So Paulo, junho de 2002 Marco Aurlio NogueiraIntroduoNas ltimas pginas do Dilogo sobre uma vida de estudos, meu interlocutor, Pietro Polito, convida-me a falar da primeira edio italiana de Elogio da serenidade (1994), que eu definira como "extravagante"; para ele, o livro deixa entrever o filsofo da moral ao lado e por sobre o filsofo do direito e da poltica.1 Respondo que, efetivamente, nos ltimos anos, ao perceber as primeiras mordidas da velhice, fui me envolvendo e em certa medida me dispersando na reflexo sobre o problema do mal no mundo e na histria, e diminuindo minhas ligaes com o universo da poltica. No foi um acaso, portanto, e talvez tenha sido at mesmo uma premonio, que eu, anos atrs, ao ser convidado para participar de um ciclo de conferncias sobre as virtudes, tenha escolhido a serenidade, que optei por incluir entre as virtudes fracas, contrapostas s virtudes fortes do estadista, defi-nindo-a como "a mais impoltica das virtudes".1 Norberto Bobbio, Pietro Polito, "Dialogo su una vita di studi", Nuova Antologia, ano 131, v.577, fase. 2200, p.160, outubro-dezembro 1996.Recentemente, um de meus mais benvolos leitores e crticos tomou como base os dois ltimos livros que publiquei, De senectute (1996) e Autobiografia (1997), para observar que, com o passar dos anos, eu havia promovido uma "curvatura tica" em meus escritos, exaltando as "foras morais" que impedem as instituies de degenerar e afirmando que "o fundamento de uma boa repblica, mais at do que as boas leis, a virtude dos cidados".2 Para dizer a verdade, a idia de que a democracia necessita de cidados virtuosamente democrticos uma velha idia minha, ainda que no muito rara. Jamais esqueci a advertncia de Croce, nos chamando para contrapor poltica "a fora no poltica com que a boa poltica deve sempre se entender".3A definio da serenidade como virtude no poltica no agrada a meu velho amigo Giuliano Pontara, o maior estudioso italiano de Gandhi, apaixonado e douto terico da no-violn-cia. Num comentrio que escreveu sobre meu ensaio - publicado na mesma revista que o havia difundido -, depois de fazer algumas observaes pertinentes sobre minhas premissas tericas e sobre a considerao que fao da serenidade como virtude passiva, Pontara refutou a identificao que estabeleo entre serenidade e no-violncia, da qual seria necessrio deduzir logicamente a negao de qualquer valor poltico no-violn-cia e, portanto, a impossibilidade de distinguir a no-violncia passiva, prpria dos pacifistas tradicionais, da no-violncia ativa teorizada e praticada por Gandhi, que uma virtude eminentemente poltica. Escreve Pontara:A no-violncia est dentro da poltica, e isto de modo bem eficaz, tanto quanto dentro da poltica e de modo eficaz estava2 C. Ocone, "Qual il vero Bobbio", Critica Liberale, v.IV, n.35, p.143, novembro 1997. Ocone retoma uma afirmao minha, includa na Autobiografia, aos cuidados de A. Papuzzi, Roma-Bari: Laterza, 1997, p.257.3 Benedetto Croce, Indagini su Hegel e schiarimentifilosofia, Bari: Laterza, 1952, p.159-60.10Gandhi. Mas est dentro da poltica de um modo totalmente especial, e nisto que repousa a grande novidade e atualidade da mensagem gandhiana. Na medida em que sereno, tambm o no violento no estabelece relaes de conflito com os demais com o objetivo de competir, de lutar, de destruir, de vencer; ele no um vingativo, no guarda rancor, no tem averso a ningum, no odeia ningum; e no vido pelo poder. certo que ele jamais abre fogo; mas no teme dar incio a um conflito, ou melhor, no teme que conflitos latentes se evidenciem, nem teme a luta. Porm, como refuta a violncia ... refuta tambm aquela lgica do poder segundo a qual sempre deve haver um vencedor e um perdedor; e maneja os conflitos de modo a fazer com que a soluo no seja uma soluo com soma zero, mas uma soluo em que todas as partes ganhem e possa ser por isso aceita por todos. Tendo em mente este objetivo, o indivduo sereno conduz a luta usando mtodos que no ameaam os interesses vitais do opositor, que apelam aos melhores traos do opositor e aos grupos mais abertos e sensveis no interior do grupo adversrio; usa mtodos de luta que tendem a humanizar o opositor, em vez de desumaniz-lo ... A no-violncia , portanto, o canal atravs do qual a serenidade se converte em fora, uma fora distinta e que opera de modo distinto da violncia. O no violento refuta a violncia sem ter por isso que se retirar da poltica; desmente, com seu agir, a definio da poltica como reino exclusivo da raposa e do leo.4Respondi de modo breve e, reconheo, um pouco ressentido, reduzindo o dissenso a uma questo de palavras em torno4 O ensaio de Pontara, "II mite e il nonviolento: su um saggio di Norberto Bobbio", apareceu primeiramente, acompanhado de uma resposta minha, in Linea D'Ombra, n.93, p.67-70, maro 1994. Na mesma revista saiu tambm a rplica de Pontara, Sulla nonviolenza: risposta a Bobbio, idem, n.94, p.71-3, maio-junho 1994. O ensaio de Pontara, a minha resposta e a sua rplica foram includos na primeira edio deste livro, Roma, Linea D'Ombra Edizioni, 1994, p.33-41. Mais recentemente, Pontara recolheu sua interveno, com o ttulo "Virt, mitezza e nonviolenza", ao volume Guerre, disobbedienza rvile, nonvioleraa, Torino: Edizioni Gruppo Abele, 1996, p.83-95. A propsito da minha resposta e da rplica de Pontara, ver mais adiante.11do significado de "poltica", que eu havia claramente entendido e explicitado no sentido maquiaveliano da palavra, ainda que conhecesse muito bem - como Pontara sabia - a doutrina e a prtica no violentas de Gandhi. Na amigvel rplica que me dirigiu, encerrando o dilogo, Pontara me fez compreender que sua perturbao derivava do fato de que eu, ao no levar em conta a distino entre no-violncia ativa e no-violncia passiva, acabara por aderir a uma identificao muito simplista entre serenidade e no-violncia, reforando assim o preconceito comum que identifica a poltica com a violncia e nega que se possa desenvolver uma ao poltica com meios no violentos.No foi muito distinto o comentrio de Enrico Peyretti, diretor da revista mensal li Foglio (no confundir com o dirio li Foglio de Giuliano Ferrara), que leio assiduamente. Tomando como ponto de partida o ditado evanglico "Bem-aventurados os mansos, porque deles ser a terra" (Mateus, 5, 5), Peyretti se pergunta: "Qual dos dois tipos humanos, o poderoso ou o manso, governa verdadeiramente a terra? Quem a protege, a conserva e a cultiva para que possa ser lugar e corpo da histria, do longo caminho humano?". Definindo-se, moda de Aldo Capitini, como um "convencido da no-violncia", Peyretti observa que a poltica de fato exclui a serenidade. Todavia, pe-se o problema de saber se no existe "uma outra poltica" alm daquela que "considera como critrio principal a conquista do poder, mas no capaz de garantir uma paz estvel, finalidade superior da poltica". Conclui pondo em discusso a teoria "amoral" da poltica, que exclui a serenidade.5Houve tambm quem fez uma avaliao distinta. Entre as vrias cartas recebidas, houve a de um grupo de alunos de uma escola secundria para quem a professora leu algumas pginas do meu elogio da serenidade, que ficara conhecendo a partir da resenha feita por Arturo Colombo no Corriere delia Ser (1- de5 E. Peyretti, "Elogio delia mitezza esiliata: note sugli scritti morali di Norberto Bobbio", II, // Foglio, ano XXV, n.2, p.3, fevereiro 1995.12maro de 1995), intitulada "Arrogantes e prepotentes, a serenidade os sepultar". Os garotos haviam se convencido de que estavam errados os que acreditavam que "serenidade fraqueza". Agradeo muito a estes garotos, a sua professora e a seu inspirador, por terem compreendido que a serenidade, tal como eu havia descrito, sim uma virtude fraca, mas no a virtude dos fracos. Eu deixara bem claro que a serenidade no deve ser confundida nem com a submisso nem com a concesso.A afirmao de que a teoria amoral da poltica exclui a serenidade levanta mais uma vez a velha e sempre atual questo da relao entre moral e poltica, qual dediquei os dois primeiros ensaios deste volume. Quando Peyretti escreve que "a poltica violenta, que pe a poltica no ostracismo, no poltica",6 acredita j ter resolvido o problema ao incluir na definio de poltica - que eu no hesitaria em chamar de persuasiva - a conformidade da ao poltica aos princpios da moral. E bem conhecido que, na histria do pensamento poltico, se encontram lado a lado dois conceitos de poltica contrastantes entre si: o aristotlico e depois cristo, por um lado, segundo o qual por "agir poltico" se entende o agir visando ao bem da cidade ou ao bem comum, e, por outro lado, o realista, que se afirma por intermdio de Maquiavel, de Guicciardini e dos tericos da razo de Estado, segundo o qual a esfera da poltica autnoma com respeito esfera da moral e a ao do estadista no pode ser julgada com base nas normas que regem e com as quais se julga a ao do homem comum.7 O problema, que a prevalncia da teoria da razo de Estado, especialmente na cultura6 Ibidem.7 Trata-se de um fato to conhecido que, no verbete Politik, in Geschichtliche Grundbegriffe, Stuttgart, Ernst Klett Verlag, 1975, o autor Volker Sellin dedica um pargrafo s "razes do conceito de poltica na Idade Moderna, a herana aristotlica e a idia de poder em Maquiavel". Ver a edio italiana, Poltica, prefcio de L. Ornaghi, Venezia: Marslio, 1993, p.49-57.13italiana de Benedetto Croce a Rodolfo De Mattei e a Luigi Firpo, dava por resolvido, sustentando, seno a imoralidade, ao menos a amoralidade da poltica - ainda que sem muita concordncia sobre os motivos que justificariam esta amoralidade - foi, nestes ltimos anos, reproposto pelo movimento da chamada "reabilitao da filosofia prtica", que retorna a Aristteles, e, na cultura italiana, pela obra de Maurizio Viroli, que reavalia esta tradio percorrendo de novo sua histria no pensamento poltico medieval italiano e dando destaque particular "transformao da linguagem da poltica" na passagem da concepo clssica da poltica teoria da razo de Estado.8No creio que os dois conceitos de poltica possam ser separados, nem analiticamente nem em termos histricos. Viso positiva e viso negativa da poltica se reencontram e se contrapem em todas as pocas. A distino entre bom governo e mau governo, que Viroli vincula contraposio entre arte de governo e cincia do Estado, um topos clssico do pensamento poltico que remonta distino aristotlica entre formas de governo puras e corruptas,M. Viroli, Dalla poltica alia ragion di stato. La scienza dei governo tra XIII e XVIII secolo, Roma: Donzelli, 1994. Entre os historiadores do pensamento poltico, italianos mas no s italianos, o tema da razo de Estado foi objeto de amplos estudos e debates nos ltimos anos. Algumas indicaes: Botem e Ia ragion di stato, Atti Del Convegno in memria di L. Firpo, 8-10 maro 1990, aos cuidados de A. E. Baldini, Firenze: Leo S. Olschki Editore, 1992; G. Borrelli, Ragion di stato e Leviatano: conservazione e scambio alie origini delia modernit politica, Bologna: II Mulino, 1993; o fascculo da revista Trimestre (Universit di Teramo) dedicado a Rodolfo De Mattei, v.XXVI, n.2-3, 1993; Aristotelismo e ragion di stato, Atti dei Convegno Internazionale. Torino, 11-13 fevereiro 1993, aos cuidados de A. E. Baldini, Firenze: Leo S. Olschki Editore, 1995; Ragion di stato: 1'arte italiana delia prudenza politica, Mostra bibliogrfica, Istituto Italiano per gli Studi Filosofici, Napoli: 4-30 julho 1994, aos cuidados de G. Borrelli; Yves Charles Zarka (org.), Raison et draison d'Etat: thoriciens et thories de Ia raison d'Etat aux XVI et XVII sicle, Paris: Presses Universitaires de France, 1994. A partir de 1993, comea a ser publicado o Archivio delia Ragion di Stato, dirigido por G. Borrelli, com artigos originais, notcias e bibliografia.14segundo a qual so boas as formas em que o governante exerce o poder visando ao bem comum e ruins as do governante que exerce o poder visando ao prprio interesse. Essa distino se transmite de uma poca a outra, tanto que pode ser encontrada at mesmo na distino entre uma boa e uma m razo de Estado naqueles mesmos escritores que haviam repudiado a doutrina clssica da poltica. Precisamente no perodo em que teria ocorrido a grande reviravolta, um insigne historiador como Gerhard Ritter escreveu o fascinante livro O rosto demonaco do poder,9 no qual sustenta a tese de que, do incio do sculo XVI, partem as duas correntes antagonsticas do poder que chegam at ns, a realista de Maquiavel e a utpica de Thomas Morus.Do mesmo modo, eu no me sentiria muito seguro em considerar que a teoria da razo de Estado, interpretada como a forma perversa da poltica, no tem precedentes histricos. O ncleo dessa doutrina est todo na famosa mxima, de origem ciceroniana, Salus reipublicae suprema lex [O bem de todos a lei suprema], que o prprio Maquiavel - precisamente o Maquiavel que estaria, segundo Viroli, fora da teoria da razo de Estado - faz na sua famosa passagem dos Discursos (e no do famigerado O prncipe), em que afirma que quando a salvao da ptria est em questo "no se deve fazer qualquer considerao a respeito do que justo ou injusto".De resto, entre as vrias interpretaes da dissociao entre tica e poltica, no desconhecida de Viroli aquela dada por Scipione Ammirato, segundo a qual lcita a "contraveno de leis ordinrias cometida em nome do benefcio pblico". Trata-se de um princpio geral do direito e da tica que admite a derrogao de uma lei em casos excepcionais.10 Entre esses casos, o mais freqentemente lembrado e o mais preeminente o estado de necessidade, que tambm serve de justificativa, como todos sabem,9 G. Ritter, II volto demonaco dei potere (1948), Bologna: II Mulino, 1997. 10 M. Viroli, Dalla poltica alia ragion di stato. La scienza dei governo tra XIII e XVIII secolo, op. cit., p. 179-80.15para os simples indivduos. Felix Oppenheim escreveu recentemente um livro para sustentar que o Estado est justificado - e portanto no pode ser submetido a julgamento moral - quando age em estado de necessidade para defender o interesse nacional.11 E o que o interesse nacional seno a salus rei publicae dos antigos?Estreitamente ligados entre si so os dois captulos que dedico natureza do preconceito e ao racismo. A raiz do racismo no apenas o preconceito, mas o preconceito refora o racismo. difcil pensar num indivduo que esteja animado por uma forte averso aos indivduos de uma outra raa e que no procure justificar essa averso recorrendo a juzos no sustentados por alguma prova de fato. preciso, porm, distinguir entre o racismo como comportamento, como atitude habitual, irrefletida, emotiva, e o racismo como doutrina que pretende ser cientfica, ideologicamente inspirada e direcionada. Por sua vez, o racismo como ideologia deve ser distin-guido do estudo cientfico das raas humanas, que mesmo quando considera ser possvel afirmar a existncia de grupos humanos diversos aos quais se pode dar corretamente o nome de "raas", no oferece qualquer apoio ideologia racista, que no apenas sustenta que raas diversas existem e existem raas superiores e inferiores, mas tambm sustenta que a raa superior como tal tem o direito de dominar a inferior. Tambm a relao entre pais e filhos, entre professores e alunos, de fato, e quase sempre de direito, uma relao entre um superior e um inferior. Mas uma relao na qual o superior, ainda que pretenda ter o direito de dominar o inferior, atribui-se o dever de ajud-lo, socorr-lo e redimi-lo da sua inferioridade. Desde a Antigidade, de algumas pginas famosas de Aristteles, o poder do superior sobre o inferior assume duas formas bem diversas: o poder do pai sobre o filho, que exercido em benefcio dos filhos, e o poder do patro sobre os escravos, que exercido11 F. Oppenheim, // ruolo delia moralit in politica estera, Milano: Angeli, 1993, trad. it. de Anna Caffarena (Centro Studi di Scienza Politica Paolo Farneti, 6). Ed. orig. The Place ofMorality in Foreign Policy, 1991.16em favor do patro. Desses dois tipos de poder do superior e do inferior dentro do grupo familiar, nascem as duas bem conhecidas formas de Estado autoritrio, o Estado paternal ou paternalista ou, com outra expresso derivada no da tradio clssica mas da tradio do Velho Testamento, patriarcal, e o governo desptico no qual o detentor do poder trata seus sditos como escravos. De tudo o que foi dito, deduz-se que se pode muito bem ser racista sem que se aceite a teoria, cientfica ou pseudocientfica, da diviso da humanidade em raas. Assim como se pode ser poligenista, isto , considerar que os grupos humanos no nasceram de um nico tronco, sem que se seja racista, e vice-versa, pode-se ser racista e ao mesmo tempo refutar o poligenismo.J que os homens so tanto iguais como diversos - iguais porque, diferentemente dos outros animais, falam, e diversos porque falam lnguas diversas -, uma falsa generalizao tanto afirmar que todos so iguais como que todos so diversos. Dessas duas falsas generalizaes derivam, respectivamente, duas polticas contrapostas em relao emigrao. Num extremo, a assimilao, segundo a qual quem entra num pas deve pouco a pouco se identificar com seus habitantes, aceitar suas regras, seus costumes, sua lngua, sua mentalidade, para assim se converter numa outra pessoa distinta da que sempre foi, perder a prpria identidade, aquilo que constitui a sua "diferena", por intermdio da gradual aquisio dos direitos de cidadania, primeiro aqueles pessoais, depois os civis, os polticos, e por fim tambm os sociais. No outro extremo, exatamente como reao poltica da assimilao, surgiu com fora crescente, nos ltimos tempos, a exigncia do respeito s diferenas, exigncia esta que deveria permitir, pessoa que diversa, a conservao mais ampla possvel daquilo que a faz ser diversa, seus prprios costumes, a prpria lngua e portanto o direito de ter seus prprios locais de culto, as prprias escolas, os prprios feriados, at mesmo o prprio modo de vestir (apenas para dar um exemplo, pense-se no debate de alguns anos atrs em torno do uso do chador pelas alunas muulmanas nas escolas francesas).17Pois bem: estas duas polticas so a expresso de duas formas de preconceito, ou seja, de crena no crtica mas aceita como absoluta: "Todos os homens so iguais, todos os homens so diversos". Se so todos iguais, por que diferenci-los? Se so todos diversos, por que igual-los?Hoje, o contraste entre estas duas solues extremas est mais vivo do que nunca. Mas, precisamente como solues extremas, ambas talvez sejam igualmente incorretas, j que, contra os dois preconceitos opostos, os homens so tanto iguais quanto diversos. Numa viso liberal da convivncia - segundo a qual existem direitos fundamentais dos indivduos, que o Estado deve reconhecer -, ningum pode ser to igualitrio a ponto de no reconhecer o direito diversidade religiosa, isto , o direito que cada um tem de adorar o prprio Deus ou de no adorar deus algum. Em decorrncia, ningum pode ser to diferencialista a ponto de desconhecer a igualdade de todos - provenientes de onde quer que seja, at mesmo das regies mais longnquas em termos espaciais ou culturais -com respeito aos direitos do homem, e sobretudo, antes de quaisquer outros, aos direitos pessoais, que precedem os direitos dos cidados e so mesmo o pressuposto deles.Na civilizao democrtica, no h por que temer o reconhecimento de que a soluo do problema est na harmonizao das duas exigncias opostas. Cada uma delas tem uma boa dose de razo, desde que sejam reconhecidos os preconceitos que as sustentam, quais sejam, que cada homem igual ao outro e que cada homem diverso do outro.As mesmas razes que foraram alguns Estados, entre os quais o italiano, a enfrentar o problema dos novos fluxos de imigrao, dos quais nascem perversos e perigosos comportamentos e atitudes racistas, reabriram e reanimaram no plano terico o velho tema da tolerncia. preciso desde logo advertir, porm, que, quando se fala de tolerncia em seu significado histrico prevalecente - como no texto includo no presente volume, "Tolerncia e verdade" -,18estamos nos referindo ao problema da convivncia de crenas diversas, primeiro das religiosas e depois tambm das polticas. Hoje, o conceito de tolerncia se estendeu ao problema da convivncia com as minorias tnicas, lingsticas, raciais, geralmente com aqueles que so considerados "diversos", como os homossexuais, os doentes mentais ou os incapacitados. Os problemas a que se referem esses dois modos de entender e praticar a tolerncia no so os mesmos. Uma coisa o problema da tolerncia de crenas ou opinies diversas, que exige uma reflexo sobre a compatibilidade terica e sobretudo prtica entre verdades contrapostas; outra coisa o problema da tolerncia diante daquele que diverso por razes fsicas ou sociais, que pe em primeiro plano o tema do preconceito e da conseqente discriminao. As razes que se podem apresentar em defesa da tolerncia no primeiro significado no so as mesmas que se apresentam para defend-la no segundo. Em decorrncia, so distintas as razes das duas formas de intolerncia. A primeira deriva da convico de possuir a verdade; a segunda se funda geralmente num preconceito, como dissemos. verdade que tambm a convico de possuir a verdade pode ser falsa, e assumir a forma de preconceito. Mas se trata de um preconceito que se combate de modo completamente diverso: no se podem colocar no mesmo plano os argumentos usados para convencer fiis de uma igreja ou seguidores de um partido a conviverem com outras igrejas ou com outros partidos e os argumentos empregados para convencer um branco a conviver pacificamente com um negro. A questo fundamental que os defensores da tolerncia poltica ou religiosa sempre se fizeram pode ser assim formulada: "Como podem ser terica e praticamente compatveis duas verdades contrapostas?". O defensor da tolerncia diante dos diversos pe-se esta outra questo: "Como se pode demonstrar que certas impacincias com respeito a uma minoria de pessoas diversas derivam de preconceitos inveterados, de formas irracionais, puramente emotivas, de julgar homens e eventos?". A melhor prova dessa diferena est no fato de que, no segundo caso, o termo habitual19com que se designa aquilo que se deve combater no intolerncia, mas discriminao.Nos dois textos aqui includos, que esto em estreita conexo um com o outro - "Verdade e liberdade" e "Tolerncia e verdade" -, a tolerncia abordada no tanto do ponto de vista da sua justificao jurdica quanto do ponto de vista da sua justificao moral, com o objetivo de defend-la da acusao de ser a expresso de uma moral relativista e de indiferentismo ou ceticismo moral.O tema foi amplamente discutido nos ltimos anos, por ocasio de um artigo de Ernesto Galli delia Loggia, que punha sob acusao, em minha opinio com argumentos bem persuasivos, a serem levados a srio, o "laicismo liberal-progressista", que, pretendendo se defender com uma "certa irritada suficincia" da acusao de deslegitimar a demanda por valores que percorrem a nossa sociedade, voltou a dar fora tica religiosa.12 Eu12 E. Galli delia Loggia, "Mea culpa di un laico", La Stampa, 28 set. 1988. Deste artigo nasce um debate sobre a cultura laica, do qual a primeira interveno foi a de S. Quinzio, "Gli antichi valori perduti", La Stampa, 19 set. 1988. A ele se seguiu A. Galante Garrone, "Non ha tramonto Ia regola delia liberta", La Stampa, 30 set. 1988. Depois, R Bonetti, "Laico chi non concede indebiti privilegi", La Stampa, 1 out. 1988; D. Cofrancesco, " il prezzo delia liberta", // Secolo XIX, 5 out. 1988; G. Vattimo, "Per essere dawero individui", La Stampa, 6 out. 1988; U. Scarpelli, "Laicismo e morale", // Sole-24 ore, 7 out. 1988. Em 9 de outubro sai no La Stampa a minha resposta com o ttulo Lode delia tolleranza, e em 12 de outubro o debate encerrado com o artigo de Galli delia Loggia, Ansie senza risposta, que lamenta a concepo limitada do liberalismo como mtodo que se apoia em dois valores, os quais demonstram ser sempre mais insuficientes diante dos problemas de hoje, o individualismo e o racionalismo, com o resultado de oferecer um plpito para todos estes discursos de carter moral e, portanto, de conceder a faculdade de transmitir valores apenas aos centros tradicionais, como as igrejas. Uma continuao do debate, com vrios participantes, ocorreu no LEspresso de 30 outubro 1988, sob o ttulo "Laici addio?", por iniciativa de F. Adornato, que interroga Galli delia Loggia, E. Scalfari e L. Colletti. Em 30 de outubro 1988, aparece no // Tempo um artigo de G. Pasquarelli, "Metamorfosi delia cultura laica", no qual a cultura laica acusada de fechar-se em si mesma, de no ter uma alma e de encorajar o imoralismo contemporneo.20mesmo intervim neste debate, escrevendo uma "Exaltao da tolerncia", na qual retomava tanto o tema da relao entre tolerncia e liberdade quanto o das razes pelas quais podemos ser tolerantes sem ser cticos. Manifestei-me de acordo com Delia Loggia na deplorao das atitudes dedicadas a entender por tolerncia "o contrrio no da intolerncia, mas do rigor moral, da firmeza em defender as prprias idias, do justo rigor de julgamento". Mas conclu acenando para o reflorescimento, especialmente no mundo anglo-saxo, dos estudos de tica racional, a respeito dos quais estranhamente no se falava no artigo em questo nem se falou no debate que a ele se seguiu.Recentemente, o tema da fraqueza, fragilidade ou inconsistncia da tica laica com respeito tica catlica foi recuperado, mais ou menos nos mesmos termos, por Giuliano Amato numa entrevista concedida ao jornal // Mondo, reproduzida por La Stampa em 30 de agosto de 1997. Refutada a aceitao do mercado sem limites, Amato declara sua admirao pela Comunidade de Santo Egdio e por suas obras de caridade, e se pergunta, preocupado, quase assustado, por que "os laicos no conseguem traduzir seus valores ticos numa ao organizada", confessando viver uma contradio, uma dvida da qual no encontra a soluo.13No mesmo nmero, o jornal publicava um severo comentrio crtico de Gianni Vattimo, que terminava, a partir da aceitao do valor da liberdade tanto pelos laicos quanto pelos catlicos, com o elogio da sociedade aberta e com a afirmao de que a poca de Popper - o autor mais lembrado como ilustre propositor de uma tica laica - no havia de modo algum chegado ao fim. Sua poca estaria ainda por vir, desde que os laicos no renunciassem s suas responsabilidades. "A realizao de condies mnimas de liberdade - econmica, espiritual - pode13 G. Amato, "tica. La forza dei papa", entrevista realizada por A. Satta, La Stampa, 30 ago. 1997.21abrir espao para programas de trabalho bem precisos, muito mais do que as lamentaes em torno dos Valores perdidos."14Nos dois ltimos captulos - "Prs e contras de uma tica laica" e "Os deuses que fracassaram" -, procurei enfrentar diretamente, no primeiro, o problema fundamental que havia aflorado em todas as pginas precedentes, qual seja, o problema da relao de compatibilidade ou incompatibilidade, de indiferena recproca ou de recproca integrabilidade, conforme os pontos de vista, entre tica laica e tica religiosa. No segundo, procurei examinar o tema principal sobre o qual, em minha opinio, estabelecem-se a diferena e a dificuldade de dilogo entre laicos e religiosos: o problema do Mal.Para dizer a verdade, mais que de uma tica laica, deveramos falar de uma viso laica do mundo e da histria, distinta de uma viso religiosa. Pode-se tambm falar, com uma linguagem compreensvel por todos, de distino entre uma concepo sagrada ou sacra e uma concepo profana ou desconsagrada, ou ainda, como se prefere dizer hoje, dessacralizada, do mundo e da histria, distino que teria tido sua origem no incio da era moderna, no perodo weberianamente chamado de "desencan-tamento". Segundo o cristo, ao lado da histria profana existe uma histria sagrada, da qual o nico guia seguro a Igreja ou as diversas igrejas que retiram sua inspirao das Sagradas Escrituras. Para o laico, a histria uma s, e a histria em que estamos imersos, com nossas dvidas no resolvidas e com nossas questes ineliminveis, cujo guia a nossa razo, de modo algum infalvel, que extrai da experincia os dados a partir dos quais se pode refletir. Esta uma histria por detrs da qual e acima da qual no h nenhuma outra histria da qual esta nossa histria seria apenas uma prefigurao imperfeita, um reflexo infiel ou at mesmo enganoso. Na viso do laico, falta a dimenso

14 G. Vattimo, "Le paure dei laici", La Stampa, 30 ago. 1997.22 da esperana em um resgate final, em uma redeno, em uma palingnese, numa palavra, na salvao. No pode haver salvao numa viso do mundo em que no existe sequer a idia de uma culpa originria, que teria maculado para sempre toda a humanidade desde a origem e ao longo dos sculos. Para o laico, a histria no se desenrola segundo um percurso predeterminado, e j traado desde o incio, entre uma culpa original e uma redeno final. uma histria de eventos de que se pode, ainda que nem sempre, encontrar a concatenao das causas, mas em que no se pode chegar atribuio de culpas. E uma histria da qual intil procurar um sentido ltimo, porque um sentido ltimo no existe ou ainda no se revelou de modo claro o suficiente para nos levar aprovao. Qual o sentido do impressionante ciclone que h alguns anos arrasou uma regio como Bangladesh e dizimou milhares de pessoas? Ou, para citar um evento, como o terremoto em Messina, ocorrido bem no incio do trgico sculo XX, que destruiu uma cidade inteira, clebre na histria do Ocidente, e matou grande parte de seus habitantes? Sei muito bem que propor questes deste gnero pode criar um certo mal-estar, alm de poder ser tambm objeto de fceis acusaes da parte de um crente, para quem "nada se move ou acontece que no seja por vontade de Deus",15 e tudo deve ter um sentido, at mesmo a matana de inocentes provocada por um dilvio ou por um terremoto. Mas o laico no pode renunciar a exprimir suas prprias dvidas, a pr-se e repor-se questes com as quais busca abrir uma passagem nas trevas que o circundam, sem renunciar conscincia, que pouco a pouco pde ir conquistando ao refletir sobre a vida e a morte, da sua limitada e atormentada humanidade. Para o homem de razo, no h nenhum sentido - se me permitirem o jogo de palavras - em se15 Em italiano: "non muove foglia che Dio non voglia", ditado popular de sentido bem evidente mas que, numa traduo literal para o portugus, perde bastante de seu ritmo. (N. T.)23pr o problema do sentido de um evento como um cataclisma ou um terremoto, imprevisvel, inesperado e angustiante, no apenas em suas conseqncias mas tambm por sua incompreen-sibilidade.A contraposio, que me parece ser dificilmente sanvel (mas peo luzes a quem ou acredita ser mais iluminado do que eu), entre o homem de razo e o homem de f, revela-se em toda a sua dramaticidade na discusso sobre o tema do Mal, ao qual so dedicados o ltimo ensaio e o Apndice, em que respondo a dois ilustres interlocutores.16Meu objetivo foi sobretudo o de distinguir, mais claramente do que se costuma fazer, o mal ativo, a maldade, do mal passivo, o sofrimento, ou, com outras palavras, o mal infligido do mal sofrido. At mesmo no livro de Albert Grres e Karl Rahner,17 que de 1982, o problema apresentado com a velha distino, absolutamente incongruente, entre mal moral e mal fsico: in-congruente, porque considera os dois males como duas espcies do mesmo gnero e, portanto, ofusca a exigncia de manter completamente distintos os dois problemas que s esto relacionados entre si numa viso da histria humana e do universo em que o sofrimento, o mal fsico, seria a conseqncia direta ou indireta do mal moral, como de resto aparece habitualmente em certos textos de devoo religiosa, nos quais o doente tambm um pecador e a libertao do pecado coincide com a libertao da doena.18 Trata-se de uma viso da histria e do universo que deixa completamente sem explicao tanto o sofrimento deriva16 No menos ilustres e amigveis interlocutores so Enrico Peyretti, "Sul male regnante, sulla mitezza esiliata", // Foglio, ano XXV, n.l, p.1-2, janeiro 1995, Vittorio Possenti, "Dio e il male", Vv. Aa., Letica e il suo altro, Milano: Angeli, p.41-68, 1994.17 A. Grres & K. Rahner, // male. Le risposte delia psicoterapia e dei cristia-nesimo, Torino: Edizioni Paoline, 1987.18 U. Bonate, Nascita di una religione. Le origini dei cristianesimo, Torino: Bollati Boringhieri, 1994, p.21.24do das catstrofes naturais quanto a impiedade que prevalece no mundo animal, no qual se pode efetivamente falar de um mal fsico, mas no teria qualquer sentido falar de um mal moral. A maior parte dos sofrimentos de que so vtimas os homens, neste vale de lgrimas em que tantas vezes se ouve o lamento "Melhor teria sido no ter nascido", nada tem a ver com a culpa dos outros, nem com a prpria culpa de cada um, nem com o mal-entendido como ao malvada. O mal infligido pode ser explicado miticamente com o pecado original; o mal sofrido, freqentemente inculpvel, no.Numa viso laica da vida no existe o Mal absoluto. Existem muitas formas de mal, mais precisamente muitos acontecimentos diversos que inclumos numa categoria onicompreensiva do Mal - genrica demais para ser pragmaticamente til - e que deveriam ser bem diferenciados em termos analticos. Uma reflexo sobre o mal deveria comear pela fenomenologia das vrias formas do mal, como faz Paul Ricoeur, por exemplo, ainda que de modo no totalmente satisfatrio.19No interior desta grande dicotomia, seria preciso introduzir muitas outras distines antes de enfrentar o problema das causas e dos remdios. Nem todo mal infringido pode ser inserido na categoria do Mal absoluto, ou que se define como absoluto unicamente porque no se consegue alcanar uma explicao possvel. Auschwitz o exemplo sempre presente nos debates atuais. H uma infinidade de gradaes na dimenso da ao m, que os telogos morais e os juristas conhecem muito bem, e sobre as quais no o caso de gastar outras palavras. Tanto o homicdio premeditado quanto o homicdio preterintencional podem ser includos na categoria do mal infringido, mas no podem ser tratados do mesmo modo. At mesmo no interior da outra face do mal, a do sofrimento, evidente a diferena entre

19 R Ricoeur, // male. Una sfida alia filosofia e alia teologia, Brescia: Morcelliana, 1993.25sofrimento fsico e sofrimento psquico, entre sofrimento psquico e sofrimento moral. No se pode comparar uma dor de dente com a dor pela perda de um ente querido ou pelo remorso diante de um ato que cometemos infringindo uma regra ou causando dano aos demais. A diferena se torna relevante quando se reflete sobre os possveis remdios para uma ou outra fonte de dor. A dor fsica pode ser controlada ou limitada com um medicamento. Pense-se na importncia que teve a anestesia para o desenvolvimento da cirurgia. Hoje, mesmo quem se coloca num ponto de vista religioso no contesta o uso desses remdios.Bem distinta a situao que se refere ao sofrimento psquico ou ao sofrimento moral. Com respeito dor pela morte de uma pessoa querida, ou no h remdio algum ou o nico remdio o natural e inevitvel passar do tempo. No h nenhum remdio fcil tambm para o sofrimento causado pelo mal praticado, em que consiste o remorso. No existe outro remdio seno na expiao, na verdade, no autocastigo, ou no perdo, que um ato gratuito do ofendido.Estas e outras observaes que se poderiam fazer so o -b-c de um tratado sobre o problema do mal que queira enfrentar a questo prescindindo da existncia de Deus. A dificuldade hoje bem clara mesmo para aqueles que se pem o problema a partir de um ponto de vista religioso, que nos ltimos tempos tm-se esforado para encontrar solues mais satisfatrias que as tradicionais, que haviam dado origem s vrias teodicias. Uma soluo possvel foi buscada, por exemplo, na redefinio do conceito de Deus, de modo a tornar compatvel a existncia de Deus com a existncia do Mal.2020 A propsito da filosofia do mal de Pareyson, que mereceria um maior aprofundamento, ver V. Possenti, Dio e male, Torino: SEI, 1995, p.ll ss. Sobre a histria do problema do mal a partir de Leibniz, remeto obra recente de E. Spedicato, La strana creatura dei caos. Idee e figure dei male nel pensiero delia modernit, Roma: Donzelli, 1997.26A resoluo do insolvel mistrio do Mal no problema dos muitos males que afligem o homem no um ato de insolncia racionalista. , ao contrrio, muito modestamente, a primeira condio para que se possa consentir ao homem de razo e de cincia, ainda que consciente de seus prprios limites, o encontro de algum remdio eficaz para tornar o mal mais suportvel.Turim, fevereiro de 1998 N. B.27Entre os antigos, boa parte da tica se resolvia num tratado sobre as virtudes. Basta recordar a tica a Nicmacos, de Aristteles, que por sculos foi um modelo inquestionvel. Em nossa poca, semelhante tipo de tratado desapareceu quase que por completo. Hoje, seja no plano analtico, seja no propositivo, os filsofos morais discutem a respeito de valores e opes, e de sua maior ou menor racionalidade, bem como a respeito de regras ou normas e, conseqentemente, de direitos e deveres. Uma das ltimas grandes obras dedicadas ao tema clssico da virtude foi a segunda parte da Metafsica dos costumes (Die Metaphysik der Sitten) de Kant, intitulada "Doutrina da virtude" (Die Tugendlehre), que se segue primeira parte, dedicada "Doutrina do direito" (Die Rechtslehre). Mas a tica de Kant eminentemente uma tica do dever, e de modo especfico do dever interno distinto do dever externo, de que se ocupa a doutrina do direito. A virtude a definida como a fora de vontade necessria para o cumprimento do prprio dever, como a fora moral de que o homem necessita para combater os vcios que se opem, como obstculos, ao cumprimento do dever. Como o prprio Kant deixou 29claro por meio de explcitas e repetidas declaraes, sua doutrina da virtude no tem nada a ver com a tica aristotlica. parte integrante da tica do dever.Nos sculos da grande filosofia europia, o tema tradicional das virtudes e, respectivamente, dos vcios, transformou-se em objeto dos tratados sobre as paixes (de affectibus). Pense-se em Les passions de Vme, de Descartes, na parte da tica de Espinosa intitulada "De origine et natura affectuum", nos captulos introdutrios das obras polticas de Hobbes, Elements ofLaw Natural and Politic e Leviat. A doutrina tica, em vez disso, encontrou seu lugar, e no o perdeu mais por alguns sculos, na doutrina do direito natural, na qual prevaleceu, no tratamento dos elementos da moral, o ponto de vista das leis ou das regras (morais, jurdicas, do costume), donde a resoluo da tica na doutrina dos deveres e, respectivamente, dos direitos. No tratado clssico e bastante conhecido, Di iure naturae et gentium, de Pufendorf, dedicado um pequeno espao ao tema das virtudes no sentido tradicional da palavra, num captulo sobre a vontade humana.A anlise das virtudes continuou a ter sua expresso natural na obra dos moralistas, de que hoje praticamente se perderam as pistas. Mais ainda, na sociedade do bem-estar, o moralista considerado no melhor dos casos um desmancha-prazeres, algum que no sabe se divertir, no sabe viver. Moralista virou sinnimo de choro, de algum que se lamenta sempre, de pedagogo que ningum escuta e meio ridculo, de algum que prega ao vento e fustiga os costumes, uma pessoa to cansativa quanto, felizmente, incua. Se desejares silenciar o cidado que protesta e ainda tem capacidade de se indignar, digas que ele no passa de um moralista. um expediente fulminante. Tivemos inmeras ocasies para constatar, nos ltimos anos, que quem quer que tenha criticado a corrupo geral, o mau uso do poder econmico ou poltico, foi obrigado a levantar as mos e dizer: "Fao isso no por moralismo". Como se precisasse deixar bem claro que no queria ter nenhum contato com aquela gente, geralmente levada em pouqussima conta.30Porm, quando pronunciei meu discurso sobre a "serenidade", ainda no havia sido publicada, ou eu ainda no tivera notcia dela, a obra - que suscitou amplo debate logo aps seu lanamento - After Vutue. A Study in Moral Theory, do filsofo Alasdair Maclntyre, que foi traduzida em italiano e se tornou bem conhecida entre ns.1 Tal obra uma tentativa de atualizar e recuperar o prestgio do tema da virtude, que teria sido injusta e prejudicialmente abandonado, retomando assim um caminho interrompido, a partir de Aristteles. O pensamento do autor procede por meio de uma contnua polmica, que a mim no parece ser sempre de boa qualidade e nem mesmo muito original, contra o emotivismo, a separao entre fatos e valores, contra o individualismo, que ele chama de "burocrtico", contra todos os males do mundo moderno, dos quais o principal responsvel teria sido o Iluminismo, por meio da prevalncia do racionalismo tico, que inevitavelmente desembocou no niilismo. Por certo, este no o lugar para nos ocuparmos com uma anlise crtica do livro. Ele me interessa, nesta oportunidade, como uma prova a mais do abandono em que havia cado a doutrina da virtude. De fato, o autor apresenta e prope sua prpria obra como uma obra contra a corrente, como um retorno tradio, como um desafio "modernidade". Um de seus alvos preferidos a tica das regras. A tica das virtudes contrapor-se-ia tica das regras, que estaria prevalecendo na tica moderna e contempornea. A tica das regras aquela dos direitos e dos deveres.Sempre tive certa hesitao em aceitar contraposies to drsticas, porque elas favorecem atitudes unilaterais diante de temas to obscuros como so os temas filosficos, nos quais a verdade no est peremptria, definitiva, indiscutivelmente de um lado ou de outro, e tambm diante de uma possvel interpretao da histria, enorme recipiente que contm mil coisas1 A. Maclntyre, Dopo Ia virt. Saggio di teoria morale, Milano: Feltrinelli, 1998. Ver tambm S. Natoli, Dizionario dei vizi e delle virt, Milano: Feltrinelli, 1996.31misturadas sem qualquer ordem, das quais perigoso e pouco conclusivo isolar apenas uma. muito discutvel que a tica tradicional tenha sido predominantemente uma tica das virtudes contraposta tica das regras (digamos melhor: das leis). Seria preciso esquecer as Nomoi (as Leis), uma das grandes obras de Plato. Na prpria tica a Nkmacos, de Aristteles, uma parte da virtude da justia consiste no hbito de obedecer s leis. Os temas da virtude e das leis esto continuamente entrelaados, mesmo na tica antiga. Nas razes da nossa tradio moral, e como fundamento da nossa educao cvica, esto tanto a ostentao das virtudes como tipos ou modelos de aes boas, quanto a pregao dos Dez Mandamentos, nos quais a boa ao no indicada mas prescrita. No importante que os Dez Mandamentos geralmente probam aes viciosas em vez de ordenar aes virtuosas. O mandamento "Honrai pai e me" ordena a virtude do respeito.Em vez de agitar conflitos artificiais entre dois modos de considerar a moral, entre a tica das virtudes e a tica dos deveres, bem mais til e razovel comear a se dar conta de que estas duas morais representam dois pontos de vista diversos mas no opostos, a partir dos quais se pode julgar o que bom e o que mau na conduta dos homens considerados em si mesmos e em suas relaes recprocas. A clara contraposio entre elas, como se uma tica exclusse a outra, depende unicamente de um erro de perspectiva do observador. Tanto uma quanto a outra tm por objeto a ao boa, entendida como ao que tem por motivo a busca do Bem e por fim a sua obteno. Com a seguinte diferena: a primeira descreve, indica e prope a ao boa como exemplo; a segunda a prescreve como um comportamento que se deve ter, como um dever. Os tratados sobre as virtudes e os tratados De officiis se integram reciprocamente, seja na reflexo terica sobre a moral, seja no ensinamento moral, assim como se integram, e no se contrapem, no ensinamento escolar da moral, do qual somos destinatrios desde a infncia, o catlogo das virtudes cardeais e32o catlogo das obras de misericrdia, propostas, como recordamos bem, em forma de preceitos. Da tradio da tica das virtudes nascem as vidas dos homens ilustres, dos heris, dos santos, que induzem ao bem-fazer indicando exemplos de homens virtuosos; da tica das regras nasce o gnero do catecismo que induz ao bem-fazer propondo modelos de ao boa. Sua eficcia diversa, cumulativamente, no alternativamente. Em vez de contrapor virtudes a regras, seria bem mais sbio analisar a relao entre elas, as diversas e no opostas exigncias prticas de que nascem e s quais obedecem.Do mesmo modo e ao mesmo tempo que foi exumado o tema das virtudes, que parecia ter sumido do debate filosfico, tambm foi retomado - mas com um vigor de pensamento bem distinto, outra vastido de erudio histrica e maior originalidade de resultados, ainda que com uma mesma inteno de polmica anti-racionalista - o tema das paixes, por obra de Remo Bodei no monumental volume Geometria das paixes.2 Com respeito revalorizao da tica das virtudes, a obra de Bodei um pouco o reverso da medalha. Ao passo que a tica das virtudes ensinava a moderao, e portanto a disciplina das paixes ("a pleonaxia, brama insacivel de posse, representava o pecado moral da tica clssica", p.17), Bodei se pe o problema de saber se no se deve rever a anttese paixo versus razo e restituir s paixes o posto que lhes compete na reconstruo e na compreenso do mundo histrico, especialmente da sociedade contempornea, em que os "desejos" ocupam um espao sempre mais amplo, vistos como "paixes de espera dirigidas a bens e a satisfaes imaginadas no futuro" (p. 20). Entre outras coisas, Bodei chama nossa ateno para a distino humana entre paixes calmas ou frias e paixes agitadas ou quentes. Como se ver, para definir a "serenidade", introduzo a distino entre virtudes fortes e fracas, que simtrica distino de Bodei.2 R. Bodei, Geometria delle passioni, Milano: Feltrinelli, 1991.33Gostaria ainda de acrescentar que uma razo a mais para que se reflita sobre o tema foi o uso recente, no habitual, da categoria da "serenidade" aplicada ao "direito", uso com o qual eu, velho leitor de livros jurdicos, jamais me havia deparado. Refiro-me ao livro de Gustavo Zagrebelsky, // diritto mite,3 diante do qual seria necessrio pr-se preliminarmente a questo: "Sereno, por qu?".Os amigos que me haviam convidado sabiam que eu no hesitaria em escolher a "minha" virtude. Tive alguma incerteza apenas entre "serenidade" [mitezza] e "mansuetude" [mansuetudine]. Escolhi enfim "serenidade" por duas razes. No versculo das bem-aventuranas (Mateus, 5, 5), que em italiano aparece como "Beati i miti perch erediteranno Ia terra" ["Bem-aventurados os mansos, porque deles ser a terra"], o texto latino da vulgata fala em mites e no em mansueti. No sei por que se decidiu adotar esta traduo: um dos vrios problemas que deixo em suspenso e de que est repleto este meu discurso meio despretensioso. A segunda razo que "manso" [mansueto], ao menos originariamente, aplicado a animais e no a pessoas, mesmo que depois, como uma analogia, tambm tenha passado a ser aplicado a pessoas. (Mas o mesmo vale para mite:4 mite como um cordeiro. O animal, porm, manso porque domesticado, ao passo que o cordeiro smbolo da serenidade por sua prpria natureza.) O argumento decisivo vem dos verbos respectivos: amansar, amestrar ou do-mesticar referem-se quase exclusivamente aos animais, e de fato se diz "amansar um tigre" e s para fazer piada se diz "amansar (mansuafare) a sogra". Em Dante, Orfeu domesticava as feras. "Mitigar", que vem de mite, refere-se, ao contrrio, quase exclusivamente a atos, atitudes, aes e paixes humanas: mitigar o rigor de uma lei, a severidade de uma condenao, a dor fsica ou3 G. Zagrebelsky, // diritto mite. Torino: Einaudi, 1992.4 No sentido de inclinado doura, suavidade, serenidade. (N. T.)34moral, a ira, a clera, o desdm, o ressentimento, o ardor da paixo. Pego esta frase de um dicionrio: "Com o tempo, o dio entre as duas naes se mitigou". No se poderia dizer "se aman-sou": seria risvel.Quanto aos dois substantivos abstratos que designam as respectivas virtudes, "mansuetude" e "serenidade", eu diria (mas mais uma impresso que uma convico, pois no estou fazendo um discurso rigoroso) que a serenidade alcana maior profundidade. A mansuetude est mais na superfcie. Ou melhor, a serenidade ativa; a mansuetude, passiva. Ainda: a mansuetude mais uma virtude individual; a serenidade, mais uma virtude social. Social precisamente no sentido em que Aristteles distinguia as virtudes individuais, como a coragem e a temperana, da virtude social por excelncia, a justia, que disposio boa dirigida aos outros (ao passo que a coragem e a temperana so disposies boas somente no que diz respeito prpria pessoa). Explico-me: a mansuetude uma disposio de esprito do indivduo, que pode ser apreciada como virtude independentemente da relao com os outros. O manso o homem calmo, tranqilo, que no se ofende por pouca coisa, que vive e deixa viver, que no reage maldade gratuita, no por fraqueza, mas por aceitao consciente do mal cotidiano. A serenidade , ao contrrio, uma disposio de esprito que somente resplandece na presena do outro: o sereno o homem de que o outro necessita para vencer o mal dentro de si.Num filsofo turinense, Cario Mazzantini, pouco conhecido hoje em dia e pertencente a uma gerao anterior minha, e que eu aprendi a admirar por sua profunda vocao filosfica, no obstante a diferenciao no modo de entender a tarefa do filsofo, encontrei um elogio e uma definio da serenidade que me sensibilizou: a serenidade a nica suprema "potncia" [vejam bem: a palavra "potncia" usada para designar a virtude que faz pensar no contrrio da potncia, na impotncia, ainda que no resignada] que consiste em "deixar o outro ser aquilo que ".35Acrescentava: "o violento no predomina porque retira dos que violenta o poder de se doar. Predomina, porm, aquele que possui a vontade, a qual no se rende violncia, mas serenidade". Portanto: "deixar o outro ser aquilo que " virtude social no sentido prprio, originrio, da palavra.Ainda uma observao lingstica. Mite e mitezza so palavras que somente a lngua italiana herdou do latim. No o francs, que tem porm "mansuetude". O francs tem doux (e douceur) para quase todos os casos em que os italianos usam mite: um caractre doux, um hiver doux. Quando Montesquieu contrape o povo japons, de carter atroz, ao povo indiano de carter doux, ns traduzimos doux por mite, e a palavra nos parece bastante precisa, menos genrica. Se dissssemos "dcil" ou "suave" - e podemos faz-lo sem cometer nenhum delito de lesa-lngua ptria -, sentiramos como se estivssemos cometendo um fran-cesismo; o que acontece, por exemplo, com o clebre livro de Beccaria, Dos delitos e das penas, cujo captulo intitulado "A doura das penas" no nos soa muito familiar e que traduzimos pre-ferivelmente por mitezza.5Para alm destas notas lexicais, apenas esboadas, mas suficientes para dar uma idia do tipo de problema que temos pela frente, o tema fundamental a ser desenvolvido o da colocao da virtude da serenidade na fenomenologia das virtudes.Alm da distino entre virtudes individuais e virtudes sociais, que uma distino clssica, existem outras distines que no tomei em considerao, como aquela, igualmente clssica, entre virtudes ticas e dianoticas (a serenidade certamente uma virtude tica), ou como aquela, introduzida pela tica crist, entre virtudes teologais e virtudes cardeais (a serenidade certamente uma virtude cardeal). Parece-me, porm, oportuno introduzir uma distino, que no sei se chegou a ser feita por outras pessoas: entre virtudes fortes e virtudes fracas.5 Aqui, no sentido de suavidade, moderao, brandura. (N. T.)36Entendamo-nos: "forte" e "fraco" no devem ter de modo algum, neste contexto, uma conotao respectivamente positiva ou negativa. A distino analtica, no axiolgica. Melhor que com uma definio, procuro deixar claro o que entendo por "virtudes fortes" e "virtudes fracas" com exemplos. De um lado, existem virtudes como a coragem, a firmeza, a bravura, a ousadia, a audcia, o descortino, a generosidade, a liberalidade, a clemncia, que so tpicas dos potentes (poderemos tambm cham-las de "virtudes reais" ou "senhoriais", e mesmo, sem malcia, de "virtudes aristocrticas"), isto , daqueles que tm o ofcio de governar, dirigir, comandar, guiar, e a responsabilidade de fundar e manter os Estados. Tanto verdade que essas virtudes tm a oportunidade de se manifestar sobretudo na vida poltica, e nesta sublimao ou perverso da poltica (segundo contrastantes pontos de vista) que a guerra.De outro lado, existem virtudes - como a humildade, a modstia, a moderao, o recato, a pudiccia, a castidade, a continncia, a sobriedade, a temperana, a decncia, a inocncia, a ingenuidade, a simplicidade, e entre estas a mansuetude, a doura e a serenidade - que so prprias do homem privado, do insignificante, do que no deseja aparecer, daquele que na hierarquia social est embaixo, no tem poder algum, s vezes nem sequer sobre si mesmo, daquele de que ningum se d conta, que no deixa traos nos arquivos em que devem ser conservados apenas os dados dos personagens e dos fatos memorveis. Chamo de "fracas" estas virtudes no porque as considere inferiores ou menos teis e nobres, e portanto menos apreciveis, mas porque caracterizam aquela outra parte da sociedade onde esto os humilhados e os ofendidos, os pobres, os sditos que jamais sero soberanos, aqueles que morrem sem deixar outra pista de sua passagem pela terra que no uma cruz com nome e data num cemitrio, aqueles de quem os historiadores no se ocupam porque no fazem histria, porque so uma histria diversa, com h minsculo, a histria submersa, ou melhor, a no-histria (mas h muito tempo j se fala de uma37micro-histria contraposta macro-histria, e quem sabe tambm exista um lugar para eles na micro-histria). Penso nas magnficas pginas escritas por Hegel sobre os homens da histria universal, como ele os chama, os fundadores de Estados, os "heris": so aqueles a quem lcito aquilo que no lcito ao homem comum, at mesmo o uso da violncia. No h lugar entre eles para os serenos. Azar dos serenos: no ser dado a eles o reino da Terra. Penso nos eptetos mais comuns que a fama atribui aos poderosos: magnnimo, grande, vitorioso, temerrio, ousado, mas tambm terrvel e sanguinrio. Nesta galeria de poderosos, alguma vez foi visto o sereno? Algum poderia me sugerir Ludovico, o Afvel. Mas este um ttulo que concede pouca glria.Para completar estas anotaes, seria til um exame dos livros pertencentes ao gnero literrio dos Specula principis. Com isto, teramos um elenco completo das virtudes que foram consideradas qualidades e prerrogativas do bom governante. Consultemos por exemplo A educao do prncipe cristo, de Erasmo (o anti-Maquiavel, a outra face do "rosto demonaco do poder"). Eis as virtudes mais elevadas do prncipe ideal: a clemncia, a gentileza, a eqidade, a civilidade, a benignidade, e ainda a prudncia, a integridade, a sobriedade, a temperana, a vigilncia, a beneficncia, a honestidade. Observem bem: so quase todas virtudes que chamei de "fracas". O prncipe cristo o contrrio do prncipe de Maquiavel e do heri de Hegel (grande admirador de Maquiavel). E, no entanto, no encontrei entre elas a mitezza, a no ser quando Erasmo se refere s penas, que deveriam ser "suaves" (mas no est excluda a pena de morte, com base no velho e sempre novo argumento de que preciso amputar o membro infectado para que a parte s no fique contaminada). Desde que toda virtude se define melhor quando se tem presente o vcio contrrio, o contrrio de serenidade, quando se diz que uma pena deve ser "suave", severidade, rigor, donde "serenidade", nesta acepo, poder ser aproximada de "indulgncia". E, por certo, no este o significado que assumi nesta minha apologia.38Opostas serenidade, como eu a entendo, so a arrogncia, a insolncia, a prepotncia, que so virtudes ou vcios, segundo as diversas interpretaes, do homem poltico. A serenidade no uma virtude poltica, antes a mais impoltica das virtudes. Numa acepo forte de poltica, na acepo maquiavlica ou, para ser mais atual, schmittiana, a serenidade chega a ser mesmo a outra face da poltica. Precisamente por isso (talvez seja uma deformao profissional), ela me interessa de modo particular. No se pode cultivar a filosofia poltica sem que se procure compreender aquilo que existe alm da poltica, sem que se ingresse, em suma, na esfera do no poltico, sem que se estabeleam os limites entre o poltico e o no poltico. A poltica no tudo. A idia de que tudo seja poltica simplesmente monstruosa. Posso afirmar ter descoberto a serenidade na longa viagem de explorao alm da poltica. Na luta poltica, mesmo na democrtica, e aqui entendo por luta democrtica a luta pelo poder que no recorre violncia, os homens serenos ou suaves no tm como participar. Os dois animais-smbolo do homem poltico so - recordemos o captulo XVIII de O prncipe - o leo e a raposa. O cordeiro, o "suave" cordeiro, no um animal poltico: quando muito, a vtima predestinada, cujo sacrifcio serve ao poderoso para aplacar os demnios da histria. Uma mxima da sabedoria popular diz: "O lobo devora quem se finge de cordeiro". Tambm o lobo um animal poltico: o homo homini lpus de Hobbes no estado de natureza o incio da poltica; o princeps principi lpus nas relaes internacionais uma continuao dele.Acima de tudo, a serenidade o contrrio da arrogncia, entendida como opinio exagerada sobre os prprios mritos, que justifica a prepotncia. O indivduo sereno no tem grande opinio sobre si mesmo, no porque se desestime, mas porque mais propenso a acreditar nas misrias que na grandeza do homem, e se v como um homem igual a todos os demais. Com maior razo, a serenidade contrria insolncia, que a arrogncia ostentada. O indivduo sereno no ostenta nada, nem sequer a prpria serenidade:

39a ostentao, ou seja, o exibir vistosamente, descaradamente, as prprias alegadas virtudes, por si s um vcio. A virtude ostentada converte-se em seu contrrio. Quem ostenta a prpria caridade ressente-se da falta de caridade. Quem ostenta a prpria inteligncia geralmente um estpido. Com mais razo ainda, a serenidade o contrrio da prepotncia. Digo "com mais razo" porque a prepotncia ainda pior do que a insolnda. A prepotncia abuso de potncia no s ostentada, mas concretamente exercida. O in-solente exibe sua potncia, o poder que tem de te esmagar do mesmo modo que se esmaga uma mosca com o dedo ou um verme com o p. O prepotente pratica esta potncia, por meio de todo tipo de abusos e excessos, de atos de domnio arbitrrio e, quando necessrio, cruel. O sereno , ao contrrio, aquele que "deixa o outro ser o que ", ainda quando o outro o arrogante, o insolente, o prepotente. No entra em contato com os outros com o propsito de competir, de criar conflito, e ao final de vencer. Est completamente fora do esprito da competio, da concorrncia, da rivalidade, e portanto tambm da vitria. Na luta pela vida, ele de fato o eterno perdedor. A imagem que tem do mundo e da histria, do nico mundo e da nica histria em que desejaria viver, a de um mundo e de uma histria em que no h nem vencidos nem vencedores, e isto porque no existem disputas pelo primado, nem lutas pelo poder, nem competies pela riqueza, em suma, faltam as prprias condies que permitem a diviso dos homens em vencedores e vencidos.Com isso, no gostaria que se confundisse a serenidade com a submisso. Quando se deseja delimitar e definir um conceito, pode-se usar tanto o da oposio (por exemplo, a paz o contrrio da guerra), quanto o da analogia (a paz anloga trgua, mas algo diverso da trgua). Emprego este mesmo expediente para chegar a uma identificao da serenidade como virtude: depois de t-la definida por contraposio, agora busco aperfeioar a definio com base na analogia com as virtudes assim chamadas afins (mas diversas).40O submisso aquele que renuncia luta por fraqueza, por medo, por resignao. O sereno, no: refuta o destrutivo confronto da vida por senso de averso, pela inutilidade dos fins a que tende este confronto, por um sentimento profundo de distanciamento dos bens que estimulam a cupidez dos demais, por falta daquela paixo que, segundo Hobbes, era uma das razes da guerra de todos contra todos, a vaidade ou a vangloria, que impele os homens a quererem ser os primeiros; enfim, por uma total ausncia daquela obstinao ou teimosia que perpetua as brigas, e at mesmo as brigas por pouca coisa, numa sucesso de golpes e retaliaes, de "voc me fez isto, eu te fao aquilo", do esprito de revanche ou vingana que conduz inevitavelmente ao triunfo de um sobre o outro ou morte de ambos. No nem submisso nem concessivo, porque a con-cessividade a disposio daquele que aceitou a lgica da disputa, a regra de um jogo no qual, ao trmino, h um que vence e um que perde (um jogo de soma zero, como se diz na teoria dos jogos). O sereno no guarda rancor, no vingativo, no sente averso por ningum. No continua a remoer as ofensas recebidas, a alimentar o dio, a reabrir as feridas. Para ficar em paz consigo mesmo, deve estar antes de tudo em paz com os outros. Jamais ele quem abre fogo; e se os outros o abrem, no se deixa por ele queimar, mesmo quando no consegue apag-lo. Atravessa o fogo sem se queimar, a tempestade dos sentimentos sem se alterar, mantendo os prprios critrios, a prpria compostura, a prpria disponibilidade.O homem sereno tranqilo, mas no submisso, repito, e nem mesmo afvel: na afabilidade h uma certa grosseria ou falta de refinamento na avaliao dos outros. O afvel um crdulo, ou ao menos algum que no tem tanta malcia para suspeitar da possvel malcia dos outros. No tenho dvidas de que a serenidade uma virtude. Mas duvido que a afabilidade tambm o seja, porque o afvel no tem uma relao justa com os outros (e por isso, admi-tindo-se que seja uma virtude, uma virtude passiva).41No se deve confundir a serenidade com a humildade (a humildade elevada a virtude pelo cristianismo). Espinosa define a humildade como "tristitia orta ex eo quod homo suam impotentiatn sive imberllitatem contemplatur" ("tristeza nascida do fato de que o homem contempla sua impotncia ou fraqueza"), com a tristitia sendo, por sua vez, entendida como "transitio a maiore ad minorem perfectionem" ("passagem de uma perfeio maior para uma perfeio menor"). Em meu entendimento, a diferena entre serenidade e humildade est naquela tristitia: a serenidade no uma forma de tristitia, porque bem mais uma forma do seu oposto, a laetitia, entendida precisamente como a passagem de uma perfeio menor para uma perfeio maior. O sereno hlare porque est intimamente convencido de que o mundo por ele imaginado ser melhor que o mundo em que ele obrigado a viver, e o prefigura na sua ao cotidiana, exercitando precisamente a virtude da serenidade, ainda que saiba que este mundo no existe aqui e agora e talvez no venha a existir jamais. Alm disso, o contrrio da humildade a excessiva aprovao de si mesmo, numa palavra, a vaidade. O contrrio da serenidade, como j disse, o abuso do poder, no sentido literal da palavra, o excesso, a pretenso. O sereno pode ser configurado como o antecipador de um mundo melhor; o humilde apenas uma testemunha, nobre mas sem esperana, deste mundo.Muito menos a serenidade pode ser confundida com a modstia. A modstia caracterizada por uma subavaliao, nem sempre sincera e muitas vezes hipcrita, de si mesmo. A serenidade no nem subavaliao nem sobreavaliao de si, porque no uma disposio para consigo mesmo mas, como j disse, sempre uma atitude em relao aos outros e somente se justifica no "ser em relao ao outro". No se deve excluir que o sereno possa ser humilde e modesto. Mas as trs caractersticas no coincidem. Sejamos humildes e modestos para ns mesmos. Sejamos serenos diante do nosso prximo.Como modo de ser em relao ao outro, a serenidade resvala o territrio da tolerncia e do respeito pelas idias e pelos modos42de viver dos outros. No entanto, se o indivduo sereno tolerante e respeitoso, no apenas isto. A tolerncia recproca: para que exista tolerncia preciso que se esteja ao menos em dois. Uma situao de tolerncia existe quando um tolera o outro. Se eu o tolero e voc no me tolera, no h um estado de tolerncia mas, ao contrrio, prepotncia. Passa-se o mesmo com o respeito. Cito Kant: "Todo homem tem o direito de exigir o respeito dos prprios semelhantes e reciprocamente est obrigado ele prprio a respeitar os demais". O sereno no pede, no pretende qualquer reciprocidade: a serenidade uma disposio em relao aos outros que no precisa ser correspondida para se revelar em toda a sua dimenso. Como de resto a benignidade, a benevolncia, a generosidade, a bienfaisance, que so todas virtudes sociais mas so ao mesmo tempo unilaterais. Que no parea uma contradio: unilaterais no sentido de que direo de um em relao ao outro no corresponde uma igual direo, igual e contrria, do segundo em relao ao primeiro. "Eu o tolero se voc me tolera". Em vez disso: "Eu protejo e exalto minha serenidade - ou minha generosidade, ou minha benevolncia - com relao a voc independentemente do fato de que voc tambm seja sereno - ou generoso, ou benevolente - comigo". A tolerncia nasce de um acordo e dura enquanto dura o acordo. A serenidade um dom sem limites preestabelecidos e obrigatrios.Para completar o quadro, preciso considerar que, ao lado das virtudes afins, existem as virtudes complementares, aquelas que podem estar juntas e que, estando juntas, se reforam e se completam reciprocamente. Em relao serenidade, vem-me mente duas: a simplicidade e a misericrdia (ou a compaixo) . Com esta advertncia: que a simplicidade o pressuposto necessrio ou quase necessrio da serenidade e a serenidade um pressuposto possvel da compaixo. Em outras palavras, para que algum seja suave preciso que seja simples, e apenas a pessoa serena pode ser bem-disposta compaixo. Por "simplicidade" entendo a capacidade de fugir intelectualmente das complicaes

43inteis e praticamente das posies ambguas. Se vocs preferirem, ela pode ser pensada como estando unida limpidez, clareza, recusa da simulao. Assim entendida, a simplicidade parece-me ser uma precondio, ou melhor, uma predisposio da serenidade. Dificilmente o homem complicado pode estar disposto serenidade: v intrigas, tramas e insdias por toda parte, e conseqentemente tanto desconfiado em relao aos outros quanto inseguro em relao a si mesmo.Com respeito relao entre serenidade e compaixo, porei o problema da relao entre elas como relao no de necessidade, mas somente de possibilidade: a serenidade pode (no deve) ser uma predisposio misericrdia. Mas a misericrdia , como diria Aldo Capitini, um "acrscimo", um "ganho". Assim, visivelmente um acrscimo que entre todos os seres da natureza somente o homem conhea a virtude da misericrdia. A misericrdia faz parte da sua excelncia, da sua dignidade, da sua unicidade. Quantas so as virtudes que foram simbolizadas com um animal! Dentre tantas outras, algumas daquelas aqui evocadas: simples como uma pomba, suave como um cordeiro, o nobre corcel e a gentil gazela, o leo corajoso e generoso, o co fiel. Vocs j tentaram representar a misericrdia com um animal? Se tentarem, no tero sucesso. Vio dizia que o mundo civil dos homens nasce do sentimento do pudor, do momento em que os homens, aterrorizados pelo raio de Jpiter, abandonaram a Vnus errante e levaram suas mulheres para as cavernas. Tambm podemos admitir que o mundo civil comeou do sentimento do pudor. Mas apenas a misericrdia distingue o mundo humano do mundo animal, do reino da natureza no humana. No mundo humano, acontece algumas vezes que "a piedade morreu" (para lembrar uma cano dos partigiani, familiar aos .que pertencem minha gerao). No mundo animal, a piedade no pode morrer, porque desconhecida.Sinto-me obrigado a terminar estas rpidas observaes expondo as razes que me levaram, diante do riqussimo catlogo das virtudes, a escolher precisamente a serenidade.44 bem provvel que muitos leitores pensem que a escolhi porque a considero particularmente consoante a mim mesmo. No, confesso isto candidamente. Gostaria muito de ter a natureza do homem sereno. Mas no assim. Enfureo-me com freqncia excessiva (tenho acessos de "fria" e no "hericos furores") para me considerar um homem sereno. Amo as pessoas serenas, isto sim, porque so elas que tornam mais habitvel este nosso "cercado" , a ponto de fazerem com que eu pense que a cidade ideal no aquela fantasiada e descrita nos mais minuciosos detalhes pelos utpicos, onde reinaria uma justia to rgida e severa que se tornaria insuportvel, mas aquela em que a gentileza dos costumes converteu-se numa prtica universal (como a China idealizada pelos escritores do sculo XVIII). Assim como eu a apresentei, provvel que a serenidade tenha adquirido a qualidade de uma virtude feminina. No tenho qualquer dificuldade em admitir isso. Sei que causo um desprazer s mulheres que lutam contra o secular domnio do homem se digo que a serenidade sempre me pareceu desejvel justamente por sua feminilidade. Creio que estaria destinada a triunfar no dia em que se realizasse a cidade das mulheres (no a de Fellini, naturalmente). Por isso, nunca encontrei nada mais tedioso que o grito das feministas mais intransigentes: "Recuem, recuem, as bruxas esto voltando!".6 Posso compreender o sentido polmico de uma expresso como esta, mas ela bastante desagradvel.A escolha da serenidade no , portanto, biogrfica. Por si mesma, trata-se de uma escolha metafsica, porque afunda suas razes numa concepo do mundo que eu no saberia justificar. Mas do ponto de vista das circunstncias que a provocaram, trata-se de uma escolha histrica: considerem-na como uma reao contra a sociedade violenta em que estamos forados a viver.

6 "Tremate, tremate, le streghe son tomate!": um dos slogans usados nos anos 1960 pelas feministas italianas, que viam as bruxas como smbolo da luta contra a sociedade patriarcal e machista. (N. T.)45No que eu tenha sido to desprendido a ponto de acreditar que a histria humana tenha sido sempre um idlio: Hegel uma vez a apresentou como "um imenso matadouro". Mas agora existem os "megatons", e estes so uma novidade absoluta no "destino da terra" (para repetir o ttulo do livro de Jonathan Schell). Agora, dizem os especialistas, com as armas acumuladas nos arsenais das grandes potncias, possvel destruir vrias vezes a Terra. Que isto seja possvel no significa que deva necessariamente acontecer. Ainda que a guerra atmica eclodisse, dizem os especialistas, a Terra no seria de fato completamente destruda. Mas pensem um pouco: que cansao, comear tudo de novo, desde o incio! O que me aterroriza so estes malditos megatons unidos vontade de potncia que no se reduziu e que, ao contrrio, no sculo XX, no sculo das duas guerras mundiais e da guerra latente entre os dois grandes que durou quarenta anos, parece ter aumentado e sido sublimada. Mas no h apenas a vontade de potncia dos grandes. H tambm uma vontade de potncia dos pequenos, a do criminoso isolado, do minsculo grupo terrorista, daquele que joga uma bomba onde h multides para que morra o maior nmero possvel de gente inocente, num banco, num trem lotado, na sala de espera de uma estao ferroviria. vontade de potncia daqueles que se reconhecem nesta auto-apologia: "Eu, pequeno homem insignificante e obscuro, assassino o homem importante, um protagonista do nosso tempo, e ao mat-lo me torno mais potente do que ele; ou mato num s golpe muitos homens insignificantes e obscuros como eu, mas absolutamente inocentes; assassinar um culpado um ato de justia, matar um inocente a suprema manifestao da vontade de potncia".Vocs compreenderam: identifico o sereno com o no violento, a serenidade com a recusa a exercer a violncia contra quem quer que seja. A serenidade , portanto, uma virtude no poltica. Ou mesmo, neste nosso mundo ensangentado pelo dio provocado por grandes e pequenos potentes, a anttese da poltica.46Parte I1tica e polticaComo se pe o problemaDe uns anos para c, na Itlia, os discursos sempre mais freqentes sobre a questo moral tm voltado a propor o velho tema da relao entre moral e poltica. Velho mas sempre novo tema, pois nenhuma questo moral - proposta em qualquer campo - encontrou at hoje soluo definitiva. Ainda que mais clebre pela antigidade do debate, pela autoridade dos escritores que dele participaram, pela variedade dos argumentos empregados e pela importncia do tema, o problema da relao entre moral e poltica no distinto daquele entre a moral e todas as demais atividades do homem. Isso nos induz a falar habitualmente de uma tica das relaes econmicas, ou, como tem sido o caso nos ltimos anos, de uma tica do mercado, de uma tica sexual, de uma tica mdica, de uma tica esportiva, e assim por diante. Em todas essas diferentes esferas da atividade humana, trata-se sempre do mesmo problema: a distino entre aquilo que moralmente lcito e aquilo que moralmente ilcito.49O problema das relaes entre tica e poltica mais grave porque a experincia histrica mostrou, ao menos desde o contraste que contraps Antgona a Creonte, e o senso comum parece ter pacificamente aceitado, que o homem poltico pode se comportar de modo dissonante da moral comum, que um ato ilcito em moral pode ser considerado e apreciado como lcito em poltica, em suma, que a poltica obedece a um cdigo de regras, ou sistema normativo, que no se coaduna e em parte incompatvel com o cdigo de regras, ou sistema normativo, da conduta moral. Quando Maquiavel atribui a Cosmo de Mediei (e parece aprovar) a mxima de que os Estados no se governam com os pater noster nas mos, demonstra considerar, e dar por admitido, que o homem poltico no pode desenvolver a prpria ao seguindo os preceitos da moral dominante, que numa sociedade crist coincide com a moral evanglica. Para chegar a dias mais atuais, num drama bem conhecido, As mos sujas, Jean-Paul Sartre sustenta - ou melhor, faz com que um de seus personagens sustente - a tese de que quem desenvolve uma atividade poltica no pode deixar de sujar as mos (de lama ou mesmo de sangue).Portanto, por mais que a questo moral esteja presente em todos os campos da conduta humana, quando aparece na esfera da poltica acaba por assumir um carter particularssimo. Em todos os outros campos, a questo moral consiste em discutir qual a conduta moralmente lcita e, vice-versa, qual a ilcita, e se for o caso, numa moral no rigorista, qual a indiferente, nas relaes econmicas, sexuais, esportivas, entre mdico e paciente, entre professor e aluno, e assim por diante. A discusso versa sobre quais seriam os princpios ou as regras que respectivamente os empresrios ou os comerciantes, os amantes ou os cnjuges, os jogadores de pquer ou de futebol, os mdicos e os cirurgies, os educadores devem seguir no exerccio de suas atividades. O que no est geralmente em discusso a prpria questo moral, ou melhor, se existe ou no uma questo moral, se em50outras palavras ou no plausvel pr-se o problema da moralidade das respectivas condutas. Tomemos, por exemplo, o campo da tica mdica e mais em geral da biotica, no qual h anos ferve um debate particularmente vigoroso entre os filsofos morais: a discusso animadssima quanto licitude ou ilicitude de certos atos, mas ningum cogita de negar o problema mesmo, isto , que no exerccio da atividade mdica surgem problemas que todos os que com eles lidam esto acostumados a considerar morais, e ao assim consider-los entendem-se perfeitamente entre si, ainda que no se entendam quanto a quais so os princpios ou as regras a serem observados e aplicados. Passa-se o mesmo na disputa corrente sobre a moralidade do mercado.1 Apenas onde se sustente que o mercado como tal, na medida em que um mecanismo racionalmente perfeito, embora de uma racionalidade espontnea e no refletida, no pode ser submetido a qualquer avaliao de ordem moral, que o problema acaba por ser posto de modo semelhante quele em que se ps tradicionalmente o problema moral em poltica. E ainda assim com esta diferena: mesmo nas avaliaes do mercado mais despreconceituosas em termos morais, jamais se chegar a sustentar consciente e raciocinadamente a imoralidade do mercado, mas no mximo a sua pr-moralidade, ou amoralidade, ou seja, no tanto a sua incompatibilidade com a moral quanto a sua exterioridade a qualquer avaliao de ordem moral. O amigo intransigente do mercado no tem qualquer necessidade de afirmar que o mercado no se governa com os pater noster. Quando muito, afirma que ele no se governa de modo algum.Naturalmente, o problema das relaes entre moral e poltica apenas tem sentido se se est de acordo em considerar que exista uma moral e se se aceitam em geral alguns preceitos que a caracterizam. Para se estar de acordo sobre a existncia da moral e sobre alguns preceitos bem gerais, negativos como "neminem laedere" ("No1 Ver A. K. Sen, Mercato e liberta, Biblioteca delia liberta, n.94, p.8-27, 1986.51lesar ningum"), positivos como "suutn cuique tribuere" ("Dar a cada um o que seu"), no preciso estar de acordo sobre seu fundamento, que o tema filosfico por excelncia em torno do qual as escolas filosficas sempre se dividiram e continuaro a se dividir. A relao entre ticas e teorias da tica bastante complexa, e podemos nos limitar aqui a dizer que o desacordo sobre os fundamentos no prejudica o acordo sobre as regras fundamentais.Na melhor das hipteses, pode-se esclarecer que, quando falamos de moral em relao poltica, estamos nos referindo moral social e no individual, isto , moral que diz respeito s aes de um indivduo que interferem na esfera de atividade de outros indivduos e no moral que diz respeito s aes relativas, por exemplo, ao aperfeioamento da prpria personalidade, independentemente das conseqncias que a busca deste ideal de perfeio possa ter para os outros. A tica tradicional sempre distinguiu os deveres para com os demais dos deveres para consigo prprio. No debate sobre o problema da moral em poltica, vm tona exclusivamente os deveres para com os outros.A ao poltica pode ser submetida ao julgamento moral?Diferentemente do que ocorre em outros campos da conduta humana, na esfera da poltica o problema posto tradicionalmente no diz respeito a quais so as aes moralmente lcitas ou ilcitas, mas sim questo de saber se haveria sentido em se propor o problema da licitude ou ilicitude moral das aes polticas. Para dar um exemplo que ajuda a compreender melhor: no h sistema moral que no contenha preceitos voltados a impedir o uso da violncia e da fraude. As duas principais categorias de crimes previstas em nossos cdigos penais so os crimes de violncia e de fraude. Num clebre captulo de O prncipe, Maquiavel sustenta que o bom poltico deve conhecer bem as artes do leo e da raposa. Mas o leo e a raposa so o smbolo da fora e da astcia.52Nos tempos modernos, o mais maquiavlico dos escritores polticos, Vilfredo Pareto, que, nesta condio, foi includo entre os maquiavlicos num livro bem conhecido, recentemente reeditado,2 sustenta tranqilamente que os polticos so de duas categorias: aqueles em que prevalece o instinto da persistncia dos agregados, e estes so os maquiavlicos lees, e aqueles em que prevalece o instinto das combinaes, e estes so os maquiavlicos raposas. Numa clebre pgina, Croce, que era admirador de Maquiavel e de Marx por sua concepo realista da poltica, desenvolve o tema da "honestidade poltica", comeando o discurso com as seguintes palavras, que no necessitam de comentrio: "Outra manifestao da vulgar ininteligncia acerca das coisas da poltica a petulante exigncia que se faz de honestidade na vida poltica". Depois de esclarecer que se trata de um ideal que canta na alma de todos os imbecis, explica que "a honestidade poltica nada mais que a capacidade poltica".3 A qual, acrescentamos ns, aquela que Maquiavel chamava de virt, que, como todos sabem, nada tem a ver com a virtude de que se fala nos tratados de moral, a comear da tica a Nicmacos, de Aristteles.Destes exemplos, que poderiam ser multiplicados, parece ficar evidente que no se poderia tirar outra concluso que no a da impossibilidade de se pr o problema das relaes entre moral e poltica nos mesmos termos em que se pe o problema da moral nas outras esferas da conduta humana. No que no tenham existido teorias que sustentaram a tese contrria, qual seja, a tese de que tambm a poltica subjaz, ou melhor, deveRefiro-me a J. Burnham, The Machiavellians Defenders ofFreedom, New York: Putnam & C, 1943. Ver a traduo italiana organizada por Ernesto Mari, / difensori delia liberta, Milano: Mondadori, 1947. A mesma traduo, revista e corrigida por Gaetano Pecora com a colaborao de Vittorio Ghinelli, foi recentemente reeditada com o ttulo / machiavelliani. Critica delia mentalit ideolgica, prefcio de Luciano Pellicani, Milano, Dunod, 1997. B. Croce, Lonest poltica, tica e poltica, Bari: Laterza, 1945, p.165.53subjazer, lei moral, mas elas jamais conseguiram se afirmar com argumentos muito convincentes e acabaram por ser consideradas to nobres quanto inteis.O tema da justificaoMais que argumentao acerca da moralidade da poltica, destinada a ter escassa fora persuasiva, a maior parte dos autores que se ocuparam da questo deu mais importncia s lies da histria e da experincia comum, das quais se extrai o aprendizado da separao entre moral comum e conduta poltica, e concentrou sua ateno em tentar compreender e, em ltima instncia, justificar esta divergncia. Penso que toda a histria do pensamento poltico moderno, ou ao menos grande parte dela, pode ser resumida na busca de uma soluo do problema moral em poltica, interpretando-a como uma srie de tentativas de dar uma justificao para o fato, em si mesmo escandaloso, de que existe um evidente contraste entre moral comum e moral poltica. Quando os escritores polticos assumem tal atitude diante do problema, no se propem a prescrever o que o poltico deve fazer. Abandonam o campo preceptista e se pem num terreno diverso, o da compreenso do fenmeno. Acolhendo a distino hoje corrente entre tica e metatica, a maior parte das minuciosas indagaes sobre a moralidade da poltica, de que rica a filosofia poltica da era moderna, predominantemente de metatica, ainda que no se possam excluir reflexes secund-rias, nem sempre intencionais, sobre tica.Falo em "justificao" depois de ter avaliado bem a situao. A conduta que precisa ser justificada a que no est conforme s regras. No se justifica a observncia da norma, isto , a conduta moral. A exigncia da justificao nasce quando o ato viola ou parece violar as regras sociais geralmente aceitas, no importa se morais, jurdicas ou do costume. No se justifica a obedincia mas a desobedincia, e isto se se considera que ela54tenha algum valor moral. No se justifica a presena numa reunio obrigatria, mas a ausncia. Em geral, no h nenhuma necessidade de se justificar o ato regular ou normal, mas necessrio dar uma justificao ao ato que peca por excesso ou por falha, sobretudo se se deseja salv-lo. Ningum pede uma justificao para o ato da me que se atira no rio para salvar o filho que est para se afogar. Mas pretende-se obter uma justificao se ela no faz isso. Um dos maiores problemas teolgicos e metafsicos, o problema da teodicia, nasce da constatao do mal no mundo e na histria. Cndido no se preocupa em justificar a existncia do melhor dos mundos possvel: sua tarefa , eventualmente, a de explicar ou demonstrar o fato de que o mundo assim e no de outro modo.Reconheo que, diante da vastido do tema, estou me propondo uma tarefa muito modesta. Penso que talvez possa ser de alguma utilidade apresentar, guisa de introduo, um "mapa" das diversas