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A moral em Hart

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REVISTA MBITO JURDICO A moral em Hart

Resumo: A relao entre direito e moral tem se mostrado como questo das mais controvertidas no estudo da Cincia do Direito, apresentando-se como verdadeiro pressuposto terico para a definio de seu objeto de estudo. Dada sua importncia, que podemos classificar de estruturante, este trabalho tem como objetivo apresentar proposies tericas acerca da conexo entre estes institutos, focando suas semelhanas e diferenas. Para tanto, elegemos como base para o estudo as formulaes apresentadas por H.L.A. Hart, em especial, atravs de sua clssica obra O conceito de Direito. Esta opo fundamenta-se no entendimento de que a formulao terica do autor a que melhor sistematiza as ntimas relaes entre estas duas espcies de regras sociais de comportamento. Palavras-chave: Direito; moral; Hart. Sumrio: 1. Introduo; 2. Semelhanas e diferenas entre Direito e Moral; 3. Mnimo de Direito Natural; 4. Concluso; 5. Referncias bibliogrficas. 1. Introduo Tema dos mais dos mais controvertidos, debatidos e relevantes no mbito da Teoria do Direito, a discusso acerca da separao entre Direito e Moral, no obstante seu carter ancilar e os reconhecidos esforos argumentativos de grandes mestres da teoria jurdica, no atingiu, at o momento, a estabilidade conceitual desejvel de temas estruturantes. Estruturante, pois tema que se encontra na base de todo o debate jurdico, constituindo-se em verdadeiro pressuposto lgico para a resposta indagao que intriga e motiva calorosos debates entre os teorizadores da cincia jurdica: o que o Direito? certo que no se poder satisfatoriamente dar uma resposta a esta indagao sem a identificao e delimitao do objeto de estudo, demonstrando-se sua dependncia (ou independncia) a outros conceitos ou institutos, em especial, relativamente ao que se pode agrupar genericamente sob a alcunha de regras de comportamento, aqui includos, a moral, o costume e os hbitos. Cientes deste pressuposto, qual seja, a definio da relao entre o Direito e a Moral, todos aqueles que se propuseram seriamente a construir uma teoria jurdica digna de ateno e debate posicionaram-se acerca do tema, aderindo, complementando ou confrontando as idias anteriores. O resultado deste processo pode ser aferido pelo observador mais atento como um pndulo entre as teorias apresentadas ao longo da histria jurdica (ao menos entre as de maior relevncia): partindo da completa integrao e indistino entre Direito e Moral, prpria das teorias jusnaturalistas, passando pela busca da cientificidade, autonomia e prevalncia do Direito sobre a Moral, caracterstica comum s doutrinas positivistas, como a de Hans Kelsen, verifica-se, posteriormente, uma reao jusnaturalista (neoconstitucionalismo), por meio da qual, novamente, defende-se uma quase identidade entre os dois institutos, como na viso exposta por Ronald Dworkin. O que temos hoje, na verdade, uma situao de intenso e vvido debate conceitual acerca do tema, que alm de fixar os parmetros de discusso e o prprio objeto de trabalho da cincia jurdica, demonstra, mais do que nunca, sua importncia prtica na resoluo das questes concretas trazidas aos Tribunais, uma vez que define a amplitude de bases e teses argumentativas que so admitidas como razo de decidir. Diante desta vvida discusso, abordaremos nas pginas que se seguem a relao entre o Direito e a Moral segundo a teoria de H.L.A. Hart. Como demonstraremos, ao discorrer com propriedade e sistematicidade acerca das semelhanas e diferenas entre estes institutos, bem como ao exigir um mnimo de Direito natural como pressuposto das normas jurdicas, Hart oferece um material doutrinrio propcio compreenso do tema e ao debate. Baseados em sua clssica obra O Conceito de Direito, estudaremos a seguir, considerados os limites metodolgicos e formais da presente espcie de trabalho, a viso de Hart acerca da separao (ou conexo) entre Direito e Moral. 2. Semelhanas e diferenas entre Direito e Moral Como afirmamos linhas acima, utilizaremos como objeto de nosso estudo, os ensinamentos de Hart acerca da relao entre Direito e Moral. Assim, importante destacar como premissa do raciocnio que ser a seguir desenvolvido, que Hart, ao elaborar sua teoria jurdica, o faz consciente dos acalorados debates entre posies jusnaturalistas e positivistas at ento existentes, que uma vez consideradas, permitem ao autor, em uma linha de natural evoluo conceitual, apresentar uma teoria completa, que aborda objetivamente semelhanas e diferenas entre os institutos, bem como desenvolve a idia de certa convergncia entre ambos, escapando com este artifcio das armadilhas das proposies que lhe precederam, cujos contedos permitiram acusaes baseadas em exposies dramatizadas e equivocadas de ambos os lados[1]. Aps se posicionar firmemente contra as teorias que defendem a conexo necessria entre o Direito e a Moral, Hart destaca a impreciso do vocbulo moral, assim como os desacordos filosficos acerca de sua relao com o resto do conhecimento humano, bem demonstrando, a complexidade e dificuldade inerentes ao tema em estudo. Ciente das dificuldades estabelecidas por estes desacordos filosficos, Hart, na tentativa de fixar o contedo da moral, prope quatro caractersticas fundamentais, que entende neutras o suficiente para serem aceitas pelas diversas correntes filosficas como critrios identificadores dos princpios, regras e padres de conduta que so mais comumente considerados morais[2]. Importante destacar, que esta clara diferenciao entre Direito e Moral tem como pressuposto terico o desenvolvimento das chamadas sociedades jurdicas, caracterizadas pelo surgimento das normas atributivas de poder ou secundrias. Ocorre que, como verdadeiro pressuposto lgico para a compreenso das diferenas entre Direito e Moral, entendemos ser adequado o estudo de seus critrios identificadores, pois somente a partir da fixao de suas semelhanas, poderemos compreender a extenso das dificuldades que encontraremos para sua diferenciao. Alm das semelhanas lingsticas, geradas pela identidade terminolgica na prtica cotidiana dos dois institutos e do fato de se enquadrarem no gnero obrigao, que servem como indcios da existncia de uma rea de interseo entre ambos, poderamos, seguindo as ponderaes de Hart, indicar quatro outros pontos de congruncia, que poderiam levar o intrprete mais afoito e desavisado a presumir uma identidade, a qual se demonstrar mais tarde, no se sustenta. Vamos a elas: I) Direito e Moral vinculam os indivduos independentemente de seu consentimento; II) As obrigaes e deveres morais e jurdicos so sustentadas por sria presso social. Em outras palavras, grande a presso social exercida sobre os que dela se desviam ou ameaam desviar-se[3]; III) No obstante a sria presso social para cumprimento das obrigaes jurdicas e morais, o fato de faz-lo no motivo de elogio ou de destaque, mas apenas tido como uma contribuio mnima para a vida social; IV) Tanto as regras jurdicas, como as morais, se ocupam mais das condutas habituais da sociedade do que de situaes especiais. So estas as semelhanas especficas entre regras jurdicas e morais, que ao lado daquelas que podemos denominar genricas, vez que se referem s caractersticas comuns imputadas s regras enquanto gnero, que sustentam afirmaes de uma suposta identidade, que entendemos equivocada. O equvoco decorre, segundo nosso entendimento, de um demasiado destaque dado aos pontos de interseo, que pela prpria origem histrica comum dos institutos, praticamente indistinguveis nas ditas sociedades pr-jurdicas, so muitos. O que no se pode tolerar que as semelhanas ofusquem as diferenas, pois a presena destas que justificam a distino de gneros em espcies. O fato de serem regras sociais de comportamento, com as semelhanas da decorrentes, no traz como conseqncia uma identidade

necessria, como aquela defendida por jusnaturalistas ou neoconstitucionalistas. exatamente da especificao das diferenas, da busca da identidade dos institutos, que passaremos a nos ocupar. Em primeiro lugar, preciso deixar claro que a busca pelos aspectos distintivos entre Moral e Direito, assim como, a afirmao de Hart no sentido de que so fenmenos sociais diferentes, no permite concluir pela sua total ciso. Relacionam-se e influenciam-se, variando no tempo, no espao e de acordo com o estgio evolutivo das normas secundrias de dado ordenamento jurdico. E exatamente ao reconhecer uma relao inerente entre direito e moral que Hart vai alm das teorias juspositivistas que o precederam, como as de John Austin e Hans Kelsen, explicitando sistematicamente sua posio e superando a armadilha metodolgica de se obter uma separao rgida entre Direito e Moral custa da desconsiderao de caractersticas fticas evidentes em sentido contrrio. Para ilustrar o que afirmamos: Em qualquer comunidade h uma sobreposio parcial de contedo entre a obrigao jurdica e a moral; embora as exigncias das regras jurdicas sejam mais especficas e estejam rodeadas por excees mais detalhadas do que as correspondentes regras morais (H.L.A. Hart CD, p. 185). Assim, conscientes do ntimo relacionamento entre Direito e Moral que devemos analisar suas diferenas, evitando-se o equvoco de posies extremadas, sejam daquelas que estabelecem a indistino entre os institutos ou daquelas que ignoram sua ligao intrnseca. Aps reconhecer a importncia e analisar as insuficincias de tradicional critrio de distino entre Direito e Moral, baseado no contraste entre a interioridade da Moral e a exterioridade do Direito[4], Hart defende que, alm das diferenas entre obrigaes jurdicas e morais decorrentes das especificidades de seu modo de produo e da existncia, nas sociedades jurdicas, do que chama de regras secundrias de modificao das normas jurdicas, existem quatro caractersticas, relacionadas entre si, que so fundamentais para distinguir a moral das demais regras sociais. Vejamos estas caractersticas a seguir[5]: I) Importncia: as regras morais se revestem de um sentimento de maior importncia para a sociedade do que as demais regras sociais. Esta caracterstica decorre da aceitao social de que, embora exijam sacrifcios de interesses privados, a sua observncia garante interesses vitais partilhados por toda a comunidade. Ao contrrio de uma regra jurdica, que mesmo tendo a importncia negada pela sociedade ostenta a mesma condio at ser revogada, a existncia das regras morais, enquanto tal, est atrelada importncia social que lhe reconhecida, pois contraditrio falar-se na vigncia de determinada regra moral diante de uma sociedade que a repudia, uma vez que a aceitao desta sociedade que a sustenta. II) Imunidade alterao deliberada: as regras morais no podem ser diretamente criadas, alteradas ou eliminadas por ato legislativo deliberado, ao contrrio do que ocorre com as regras jurdicas. Como aduz Hart, a moral algo que existe para ser reconhecido e no feito por uma opo humana intencional[6]. preciso ressaltar que apesar do fato de no estarem sujeitas alterao diretamente por ato legislativo deliberado, as regras morais no esto imunes alterao por outros meios, dentre os quais se incluem o prprio efeito indireto de promulgao e obedincia reiterada e contnua de uma lei, que pode criar ou modificar um padro moral. Esta impossibilidade de criao/alterao das regras morais diretamente por ato legislativo deliberado no se confunde com a imunidade conferida a certas leis em determinado sistema jurdico; esta imunidade meramente contingente, no sendo caracterstica essencial das normas jurdicas, ao contrrio do que ocorre com as normas morais, que so incompatveis com toda e qualquer alterao deliberada imediata. III) Carter voluntrio dos delitos morais: para que se configure a responsabilidade moral de um indivduo condio necessria que tenha o domnio de seus pensamentos e aes, em outras palavras, voluntariedade. A prova da no-intencionalidade e da diligncia necessria afastam a reprovao moral, sendo mesmo moralmente ilegtimo reprovar indivduo nestas circunstncias. Com relao as regras jurdicas, em que pese esta ser uma caracterstica desejvel, no inerente a sua natureza, constatando-se exemplos de responsabilizao sem culpa, como a responsabilidade objetiva, cada vez mais difundida nos ordenamentos jurdicos modernos. IV) Forma de presso moral: ao contrrio das regras jurdicas, que baseiam tipicamente a presso social para seu cumprimento na ameaa de castigo fsico, a presso pela observncia das regras morais fundamenta-se na conscientizao de sua importncia, partilhada pelos membros da sociedade, ou seja, seus destinatrios. Ao lado deste apelo conscincia, a observncia das normas morais garantida, em regra, pelos sentimentos de culpa e remorso esperados do indivduo que as inobserva. Conforme explicitado alhures, na viso de Hart, estas quatro caractersticas, quando conjuntamente consideradas, permitiriam identificar as regras morais dentre as demais regras sociais. Tais critrios seriam, em certo sentido, formais, pois no se referem a nenhum contedo ou finalidade inerente das regras morais, que variariam no tempo e no espao, chegando a ser antagnicas quando observadas diversas bases de estudo. Em que pese admitir um contedo mnimo da moral (proibio do uso da violncia, exigncia de verdade, de comportamento correto e de respeito aos compromissos), o estudo de Hart permite concluir pela suficincia dos critrios ditos formais acima expostos. Assim o faz, certamente, pela pretenso de generalidade de sua teoria em fornecer critrios para identificao de normas morais em qualquer ordenamento jurdico, a qual seria abalada pela busca de contedos morais caractersticos, que como se viu, so variveis, no servindo como critrio seguro de distino. 3. Mnimo de Direito Natural Como afirmamos alhures, Hart defende uma conexo entre direito e moral, em que pese sua autonomia. Assim, desenvolvendo esta proposio, discute as diversas formas pelas quais esta conexo pode apresentar-se. Porm, um alerta inicial faz-se necessrio: a constatao de que o desenvolvimento do direito tem sido profundamente influenciado pela moral no permite concluir, precipitadamente, que o sistema jurdico deve se adequar necessariamente moral ou justia, ou mesmo, que h uma obrigao moral de lhe obedecer. Os critrios de validade jurdica de leis concretas de um sistema jurdico no necessariamente devem incluir uma referncia moral ou justia. Aps discorrer sobre a doutrina do Direito Natural, destacando a concepo de que cada espcie de coisa existente, humana ou no humana, pensada no apenas como tendendo a manter sua prpria existncia, mas dirigindo-se a um estado definido timo que o bem especfico, Hart conclui que parte considervel deste ponto de vista teleolgico sobrevive em alguns dos modos pelos quais pensamos os seres humanos, como por exemplo, ao identificarmos certas coisas como necessidades humanas boas ou ruins. E o que fundamenta este modo de pensar? a aceitao de que o fim adequado do ser humano sua sobrevivncia; isso que o motiva e o guia em suas relaes sociais e com a natureza, sendo esta caracterstica elemento central e indiscutvel da terminologia Direito Natural[7]. Diante desta finalidade humana ltima, qual seja, a sobrevivncia, pode-se concluir que existem regras de conduta exigveis para a viabilidade de qualquer organizao social, sendo estas regras um ncleo comum do direito e da moral de qualquer sociedade em que haja a distino entre estas diversas formas de controle social. Hart chama a este ncleo comum, ou seja, aos princpios de conduta reconhecidos universalmente, de contedo mnimo do Direito Natural. Assim, para obtermos acesso a este ncleo mnimo de interao entre o direito e a moral, devemos analisar as caractersticas salientes da natureza humana sobre as quais este mnimo se baseia, o fazendo atravs da anlise de trusmos ou verdades bvias que as revelam. Estes trusmos fornecem uma razo, admitida a sobrevivncia humana como finalidade, pela qual direito e moral devem apresentar um contedo especfico e comum, sem o qual, os homens, em geral, no teriam razo para obedecer voluntariamente a quaisquer regras, gerando uma instabilidade incompatvel com a prpria conservao da vida em sociedade. Vamos a eles: I) Liberdade[8]: todos os homens tm o igual direito de serem livres. Disto no se infere que cada indivduo tenha o absoluto ou incondicional direito de agir de determinada maneira, pois, a convivncia em sociedade, sob regras jurdicas, exige igual respeito ao direito de liberdade dos outros. II) Vulnerabilidade humana: decorrncia da frgil constituio fsica humana, que a faz vulnervel ao ataque de outros homens, surge a necessidade de regras protetivas, que se manifestam, em sua maior parte, como abstenes sob a forma de proibies. Dentre estas se destacam as que restringem o uso da violncia para matar ou causar ofensas corporais. Pode-se dizer que sem regras desta espcie, que garantam a vida humana, os demais tipos de regras seriam inteis.

III) Igualdade aproximada: em que pese as diferenas fsicas e intelectuais entre os seres humanos, estas no atingem um patamar que permita a um indivduo dominar e subjulgar por sua fora individual, sem cooperao, os demais. Esta igualdade aproximada entre os homens exige, para o funcionamento e manuteno da sociedade, um sistema de abstenes mtuas e de compromissos, que est na base das obrigaes jurdicas e morais, sem o qual a vida seria demasiado penosa. IV) Altrusmo limitado: os seres humanos no pretendem apenas o mal de seus semelhantes; lado outro, no so seres perfeitos e angelicais, que agem sempre em busca do bem, respeitando o prximo. Por no seres anjos, nem demnios[9] que se torna necessrio, e possvel, um sistema de abstenes recprocas, sem o qual a vida social estaria seriamente ameaada. V) Recursos limitados: os recursos naturais necessrios sobrevivncia humana, como alimentos, abrigo e roupas, tm sua existncia limitada. Tal situao, potencial geradora de conflitos entre os seres humanos, exige regras mnimas de propriedade e sua proteo, de modo a fomentar a produo e em ltima anlise garantir a prpria manuteno da vida em sociedade. A necessria diviso do trabalho exige por outro lado regras dinmicas, no sentido de que permitem aos indivduos criar obrigaes e fazer modificar a sua incidncia[10]. VI) Compreenso e fora de vontade limitadas: em que pese a maioria dos homens vislumbrar as vantagens da obedincia s regras sociais bsicas, sacrificando seus interesses pessoais imediatos em prol da convivncia social pacfica, este comportamento no uniforme. A tentao em optar por seus prprios interesses real e a forma encontrada para garantir ou estimular a obedincia s regras por meio da sano. Na viso de Hart, a sano no deve ser o motivo normal de obedincia (vez que a maioria da sociedade obedeceria independente de sua existncia), mas uma garantia de que aqueles que obedeceriam voluntariamente no sero sacrificados pelos que no obedeceriam. Assim, o esperado e recomendvel em uma sociedade sadia o cumprimento voluntrio das regras, sendo prevista (e aplicada) sano apenas em caso de descumprimento. No se pode descurar que cada um destes trusmos est intimamente relacionado com os demais. Assim, por exemplo, a eficcia das sanes apenas tem lugar diante da igualdade aproximada dos homens, ao mesmo tempo em que permite a regulao do convvio humano diante da escassez de recursos. So estas verdades bvias ou trusmos acerca da condio humana que motivam a existncia de um ncleo jurdico e moral mnimo, sem o qual as regras sociais confrontariam de tal modo com a natureza e objetivos humanos, que seriam de quase impossvel aceitao ou obedincia. verdade que poderamos colacionar diversos exemplos de sociedades jurdicas concretas nas quais seria de extrema dificuldade identificar a aplicao integral deste ncleo comum mnimo da moral e do direito, ao menos no que diz respeito a parte da populao, como seria o caso dos escravos em Roma, dos negros no Brasil colonial, dos judeus na Alemanha nazista e dos miserveis. Estas classes de indivduos, cujo contingente pode atingir propores considerveis da populao local, encontram-se alijados da proteo e benefcios conferidos pelo sistema de abstenes recprocas, prprio da moral e do direito, permitindo concluir que, para uma sociedade ser vivel suficiente que este sistema de abstenes se aplique a parte de seus membros e no a todos. Basta a aceitao e cumprimento voluntrio das regras por parcela da populao, exigindo-se dos demais a mera obedincia, sendo certo que a estabilidade deste sistema variar conforme a proporo entre estas duas parcelas. exatamente esta caracterstica que permite concluir que o mnimo de Direito natural defendido por Hart, seria um mnimo recomendvel e no necessrio. De modo a exaurir o estudo acerca do que pretende ser a comprovao da conexo entre o direito e a moral, Hart aponta seis outras formas pelas quais esta relao pode se fazer presente e ser demonstrada, no obstante estarem um nvel abaixo das verdades bvias ou trusmos, ao menos em termos de preciso e certeza, caractersticas ostentadas pelo que Hart chamou de contedo mnimo do Direito Natural, acima estudadas. I) Poder e autoridade: um sistema jurdico padeceria de extrema instabilidade caso se baseasse apenas num sistema coercitivo que garantisse sua obrigatoriedade. Alm da fora coercitiva a ele inerente, recomendvel que ostente lealdade pela populao, que pode decorrer de vrios fatores, dentre os quais se destaca e ganha importncia, dado o objeto de estudo, a aceitao moral do ordenamento jurdico. Segundo Hart[11], h uma presuno de que a aceitao voluntria das obrigaes jurdicas traz consigo uma concordncia moral do indivduo, em que pese esta presuno comportar excees, nas quais um indivduo aceita uma regra como juridicamente obrigatria, em que pese entender que no h qualquer razo moral para seu cumprimento. II) Influncia da moral sobre o direito: a moral social e os ideais morais influenciam o direito de todas as sociedades, variando na forma, contedo e amplitude. III) Interpretao: recorrendo ao conceito de textura aberta do direito, desenvolvido como uma dos pilares de sua teoria jurdica, Hart defende que diante da necessidade de interpretao das leis, quando de sua aplicao concreta, os juzes possuem grande campo de discricionariedade, que exercida, frequentemente, pela considerao de que a finalidade das regras que esto a interpretar razovel, de tal forma que no se pretende com as regras criar injustias ou ofender princpios morais assentes[12]. Em outras palavras, quando interpreta, o juiz pondera e aplica valores morais da sociedade. IV) Crtica do direito: as crticas ao direito de dada sociedade se concentram no fato de que a integralidade dos seres humanos no so tratados como titulares das protees e liberdades fundamentais, caractersticas estas atreladas moral social. Ideais de justia e moral, em que pese variveis, fundamentam crticas ao direito. V) Princpios de legalidade e justia: sempre que o comportamento humano controlado por regras gerais enunciadas publicamente e aplicadas por via judi-cial pode-se afirmar haver um mnimo de justia, uma vez que garante a imparcialidade. VI) Validade jurdica e resistncia ao direito: Hart defende um conceito de direito amplo, no qual se incluem regras jurdicas contrrias moral social, desde que ultrapassem os testes formais estabelecidos pelas regras primrias e secundrios do ordenamento. No se pode confundir a invalidade jurdica com a iniquidade moral do direito, a qual justifica a resistncia ao ordenamento jurdico. 4. Concluso: Ao concentrarmos os estudos acerca da relao entre direito e moral nos escritos de Hart, pudemos obter um conhecimento mais profundo daquela teoria que entendemos ser a que melhor identificou e explicitou as peculiaridades e conexes entre estas importantes espcies de normas de comportamento. Ao defender a independncia dos institutos, na linha j adotada pelas teorias positivistas que o precederam, Hart reconhece a importncia metodolgica da distino, ao mesmo tempo em que no se coloca em choque contra dados fticos objetivos, de onde se podem extrair exemplos de ordenamentos jurdicos amorais ou imorais. Por outro lado, ao expor a ntima relao entre direito e moral, a ponto de defender a existncia de um mnimo de direito natural nos ordenamentos jurdicos, evolui frente aos seus antecessores, reconhecendo a necessidade de uma mnima convergncia moral do ordenamento jurdico, sem a qual este tenderia a no aceitao de parte to considervel da populao, que sua aplicao e estabilidade estariam para sempre comprometidas. Deve-se destacar, entretanto, que a conexo defendida por Hart entre direito e moral apenas contingente, no vislumbrando conexes conceituais necessrias entre os contedos de ambos os institutos. Admite, portanto, a existncia de normas jurdicas moralmente inquas. E exatamente neste ponto que sua posio se afasta e supera construes como a de Dworkin[13], que vincula os institutos ao inadmitir um direito amoral ou imoral, ao mesmo tempo em que desqualifica a interpretao daqueles que reconhecem como jurdico sistemas amorais ou imorais, atribuindo-lhe a pecha de pr-jurdico, numa construo que entendemos de engenhosa qualificao semntica, no obstante, tangenciar os problemas reais da conexo necessria. Mesmo longe de encerrar a polmica acerca das relaes entre o direito e a moral, que se arrasta por sculos, entendemos que a contribuio de Hart continua sendo aquela que melhor interpretou o fenmeno debatido, razo pela qual foi escolhida como objeto de nosso estudo. Sua concluso, no sentido de confirmar a distino entre direito e moral, ao mesmo tempo em que defende seu ntimo relacionamento, em especial, atravs de um ncleo mnimo necessrio (ou recomendvel), , segundo nosso entendimento, uma das maiores contribuies para a resposta ao primeiro e grande

objeto de estudo e questionamento da cincia jurdica: o que o direito? Certo que, apenas com a adequada definio do objeto de estudo, o cientista jurdico poder alcanar sucesso no desenvolvimento de uma teoria jurdica adequada. E para esta definio, conclumos que a teoria de Hart acerca da relao entre direito e moral fornece um princpio terico suficiente. Referncias bibliogrficas DWORKIN, Ronald. O imprio do direito. Traduo Jefferson Luiz Camargo. 1. ed. So Paulo: Martins Fontes, 1999. Ttulo original: Laws empire. HART, Herbert L. A. Are there any natural rights? The Philosophical Review, v. 64, p. 175-191, 1955. __. O conceito de Direito. Traduo A. Ribeiro Mendes. 5. ed. Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian, 2007. Ttulo original: The concept of law. SGARBI, Adrian.

Clssicos de teoria do direito. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. __. Teoria do direito: primeiras lies. 1. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. Notas: [1] SGARBI, Adrian, Teoria do direito: primeiras lies, pp. 718-722 [2] HART, Herbert L. A., O conceito de Direito, p. 183. [3] Ibid., p. 96. [4] Ibid., pp. 187-188. [5] Ibid., pp. 188-195. [6] Ibid., p. 191. [7] Ibid., p. 207. [8] HART, Herbert L. A., Are there any natural rights, pp. 175-176. [9] HART, Herbert L. A., O conceito de Direito, p. 212. [10] Ibid., p. 213. [11] Ibid., pp. 219-220. [12] Ibid., p. 220. [13] DWORKIN, Ronald, O imprio do direito, pp. 126-129.