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A morte da Razão - Ravi Zacharias

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Deus é real ou é fruto da sua imaginação? Os cristãos tem debatido inutilmente com outras religiões em nome de um Deus inexistente?

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E d i t o r a V id a

Isidro Tinoco, 70 Tatuap CEP 03316-010 So Paulo, SP Te!.: 0 xx 11 2618 7000 Fax: 0 xx 11 2618 7030 www.editoravida.coiri.br

R ua

:>2008, de Ravi Zacharias Originlmente publicado nos EUA com o ttulo The End offeason Copyright da edio brasileira 2011, Editora Vida Traduo de Lenita Ananias do Nascimento Edio publicada com permisso de Z o n d e r v a n (Grand Rapids, Michigan)

Todos os direitos em lngua portuguesa reservados por Editora Vida.P r o ib id a a r e p r o d u o p o r q u a is q u e r m e io s , SALVO EM BREVES CITAES, COM IN DIC AO DA FONTE.

Editor responsvel: Snia Freire Lula Almeida Editor-assistente: Gisele Romo da Cruz Santiago Reviso de traduo: Marsely de Marco Martins Dantas Reviso de provas: Josemar de Souza Pinto Diagramago: Karine dos Santos Barbosa Capa: Arte Peniel

Scripture quotations taken from Bblia Sagrada, Nova Verso Internacional, NVI Copyright 1993, 2000 by International Bible Society . Used by permission IBS-STL U.S. Ali rights reserved worldwide. Edio publicada por Editora Vida, salvo indicao em contrrio.m

Todas as citaes bblicas e de terceiros foram adaptadas segundo o Acordo Ortogrfico da Lngua Portuguesa, assinado em 1990, em vigor desde janeiro de 2009.

1. edio: mar. 2011

Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP) (C m ara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Zacarias, Ravi A morte da razo: uma resposta aos neoateus / Ravi Zacarias; traduo Lenita Ananias do Nascimento. So Paulo: Editora Vida, 2011. Ttulo original: The endofreason ISBN 978-85-383-0195-0 1. Apologtica 2. Cristianismo e atesmo 3. Deus - Existncia 4. F I. Ttulo. 10-13750 ndices para catlogo sistemtico: 1. Atesmo e cristianismo : Teoria da religio 239.7 CDD-239.7

Prefcio Prlogo A morte da razo

7 11 17

I

ogo depois que Sam Harris publicou sua primeira carta provocativa contra a religio, A morte da f,1 convidei-o para

um debate em meu programa de tev. Ele entrou no estdio feito um pavo, cheio daquela mesma confiana suprema com que ridicularizara o cristianismo e outras crenas religiosas em seu livro. Durante a gravao, porm, o advogado cristo Hugh Hewitt entrou via satlite, alfinetou a retrica provocativa de Harris, expondo as incoerncias, os argumentos reciclados e as falhas na lgica do livro. Quando saiu do estdio, Harris estava plido. Seus ataques inflamados contra o cristianismo podem ter-lhe rendido aplausos no seu ambiente de atesmo, mas acho que ele jamais procurou test-los diante de um eloqente e bem informado defensor da f crist. Isso, contudo, no deteve Harris. Ele continuou e publicou uma segunda diatribe contra a religio. Carta a uma nao crist,2 que novamente encontrou um pblico pronto entre aqueles a quem falta treino para enxergar atravs de sua fachada superficial. Na onda de outros livros que promovem o atesmo militante, escritos por Richard Dawkins, Daniel Dennett, Christopher Hitchens e outros, esses livros de Harris tm confundido as pessoas que buscam a

espiritualidade e at balanado a f de alguns cristos.

1

H a r r is ,

Sam. The End of Faith,. N e w York: N orton, 2004. [A m orte da f, So Paulo: Cia. das Sam . L e tte r to a Christian N ation. N e w York: Knopf, 2 0 0 6. [C arta a um a nao

Letras, 2007.]2 H a r r is ,

crist, So Paulo: Cia. das Letras, 2 0 0 7 .]

Chegou a hora de algum abater esse drago da incredulidade e no imagino ningum melhor para manejar a espada do que o meu amigo Ravi Zacharias. As credenciais de Ravi para essa tarefa so extraordinrias. Sendo ele prprio um ex-ateu, Ravi conhece pessoalmente a runa de viver como se Deus no existisse. Portanto, impermevel ao falso encanto do atesmo promovido por essa nova cepa de iconoclastas espirituais. Como filsofo perspicaz e talentoso, Ravi capaz de desmantelar metodicamente a dbil argumentao em favor do ceticismo elaborada por Harris. Como telogo, est preparado para dissipar as falcias e interpretaes erradas das Escrituras que alimentam o desdm de Harris pelo cristianismo. Com lgica implacvel, impressionante compreenso da literatura pertinente, profundo conhecimento das religies do mundo e um infalvel senso de graa e persuaso, Ravi consegue revelar a constrangedora debilidade dos argumentos de Harris. Como Ravi conclui, o imperador do atesmo est nu e nenhuma das tentativas frenticas de Harris vo conseguir escond-lo. Diferentemente de Harris, Ravi est disposto a levar as alegaes do atesmo a suas concluses lgicas. Na verdade, o prprio desespero de Ravi por causa de seu passado atesta certa vez o levou s raias da destruio pessoal. Assim, ele capaz de escrever no simplesmente como observador distante, mas, sim, como defensor apaixonado pela verdade espiritual que o salvou de uma vida desprovida de esperana e de sentido. Eu tambm perdi muito tempo da minha vida pregressa sendo incrdulo no que diz respeito s coisas espirituais. Nesse tempo todo, tentava ser sincero em relao s implicaes de um

mundo ateu. Eu no fingia que meu atesmo levaria a uma nova era de esclarecimento e altrusmo. No alegava que um mundo sem f em Deus seria de alguma forma um lugar mais humano e mais digno. Pelo contrrio, eu sabia que meu atesmo estava me puxando para um caminho de narcisismo, hedonismo e melancolia. Contudo, eu preferia seguir esse caminho, em ltima anlise, autodestrutivo, a fabricar uma crena num deus de araque que no existia. Minha atitude era esta: se o atesmo representa a melhor definio da realidade, ento isso a. Ele no me dava muito por que viver nem esperar, mas a verdade o que . Por fim, contudo, a converso de minha agnstica esposa ao cristianismo me fez querer investigar paciente e atentamente para onde as evidncias da cincia e da Histria de fato apontam. Fiquei completamente atordoado com a avalanche de evidncias que embasam o cristianismo. A meu ver, a reao mais razovel era depositar minha confiana em Cristo. Formado em jornalismo e direito, eu no tinha outra escolha a no ser aceitar os fatos. A conseqncia foi uma srie de mudanas positivas no meu carter, nos meus valores, nas minhas prioridades, na moralidade e nos relacionamentos. Graas a minha f em Cristo, qualquer pessoa que me conhece diria que sou um marido, um pai, um cidado e uma pessoa melhor. Ravi proficiente e profundo conhecedor das evidncias a favor do cristianismo. Neste livro, ele no s rebate Harris, mas tambm elabora uma argumentao positiva a favor da existncia de Deus. No obstante os protestos de Harris, Dawkins, Hitchens e outros de seu jaez, a verdade est aqui. O atesmo no tem respostas. Se voc leu algum dos ataques de Harris f, eu o aconselho a analisar as palavras de Ravi com a mente aberta. Em Provrbios 18.17,

Prefcio #

lemos: "O primeiro a apresentar a sua causa parece ter razo, at que outro venha frente e o questione". Em outras palavras, sempre que ouvimos a apresentao de um lado do caso, as evidncias nos parecem persuasivas. Em seguida, porm, ouvimos o outro lado da histria e de repente vemos o primeiro caso esboroar luz de novos fatos e argumentos. Desconfio que isso que voc vai experimentar ao ler este livro. Por isso, leia e, quando terminara leitura, passe o livro adiante, para um amigo que tambm achou que teve a f minada por Harris e seus companheiros cticos. LEE STROBEL, autor de Em defesa de Cristo e Em defesa da f

m estudante universitrio chega em casa e informa os pais que, depois de ler um famoso livro atesta, resolveu abandonar a f da famlia. A me, principalmente, fica arrasada com a notcia. 0 pai, com dificuldade, tenta dialogar com o rapaz, mas em vo. A tristeza profunda faz que o casal se distancie do filho. Vendo que o jogo do silncio no funciona, a me mergulha ainda mais em depresso e desesperana. Os avs se envolvem, observando angustiados as convices estimadas pela famlia h vrias geraes se esboroarem. No demorou muito, essa famlia, que outrora era unida e serena, dividiu-se e se tornou hostil. Palavras insultuosas eram trocadas entre me e filho com frequncia e intensidade cada vez maiores. Os outros irmos culpavam o recente atesmo do rapaz pela ruptura que provocara na famlia. Depois de uma longa noite de discusso com o filho, pedindo-lhe sem sucesso que reconsiderasse sua posio, a me toma uma overdose de remdios e acaba com a vida, incapaz de aceitar o que ela entendia ser a destruio da sua famlia. Apesar desse enredo ser imaginrio, desconfio que em certa medida cenas semelhantes ocorreram mais de um par de vezes desde a publicao do best-seller de Sam Harris, Carta a uma nao crist. bem possvel que muitos moos e moas, movidos pela paixo e pela inteno do livro de Harris, tenham repudiado os valores intrinsecamente ligados f em Deus estimada pelos pais e antepassados muito tempo antes deles.

Em 2005, Harris, doutorando de Stanford, publicou o primeiro de dois livros3 que so absoluta e descaradamente hostis a todas as religies, mas em particular f crist. tempo de ns, americanos, declara Harris nesses livros, libertarmos-nos de nossas crenas religiosas. Seu indisfarvel dio pelas coisas religiosas enfeitado com palavras e ilustraes fortes destinadas a convencer o mundo de que os cristos, especificamente, so bufes ou imbecis por acreditar em Deus. Sempre achei fascinante como os relativistas, que se dizem defensores da ideia de tolerncia, acabam por se revelar dos mais fanticos e intolerantes. Assim, Harris dirige-se aos "Estados Unidos", mas na verdade ao mundo inteiro, dizendo-nos que a cincia tem as respostas s nossas dvidas acerca da vida e que a religio a desgraa da existncia. Por que, ento, comeo a tratar uma obra to sria quanto essa de Harris com uma cena imaginria como a que narrei anteriormente? Porque esto envolvidas nessa histria realidades muito longe de ser imaginrias, e eu gostaria de saber o que Harris diria dessa possibilidade. Talvez ele alegue que o sofrimento e a tristeza que seu livro possam ter causado a famlias como essa justificam-se e at so necessrios algumas vezes se o jovem da nossa histria e outros como ele vo deixar de crer e viver numa mentira. J ouviram algo semelhante? Ele at pode justificar o desgosto de quantas famlias forem, insistindo que o valor de sua "verdade" maior que a destruio dos laos familiares. Essa atitude, porm, levanta uma enorme questo, no levanta? Se no microcosmo desse pequeno episdio Harris explica a devastao que

3

H a r r is ,

Sam . The End of Faith. N e w York: N orton, 2 0 0 4 . [A m orte da f. So Paulo:

C om panhia das Letras, 2 0 0 7 .]; L e tte r to a C hristian IMation. N e w York: Knopf, 2 0 0 6. [C arta a um a nao crist. So Paulo: C om panhia das L etras.].

causou com a defesa do que considera ser a verdade, por que ele nega a mesma justificativa a Deus por permitir o sofrimento em todas as vicissitudes de uma vida inteira? A grande queixa de Harris contra Deus que a humanidade vive muito sofrimento em nome da soberania e autoridade de Deus. No obstante, em seu mundinho, ele faria vista grossa, imagino, para qualquer sofrimento incidental a fim de proclamar livremente a "libertao" da "mentira", Numa entrevista recente, Bethany Saltman deu a entender que Harris talvez tenha ido longe demais em algumas declaraes feitas. Ele, porm, respondeu que, se tivesse uma varinha de condo4 com a qual pudesse erradicar a religio ou o estupro, decidiria erradicar a religio. Oro para que nenhum dos que ele ama seja algum dia estuprado e o procure para obter consolo. Evidentemente, ao mesmo tempo que a crena no seu atesmo vale qualquer preo, a f religiosa tambm muito cara. O nimo dobre apenas a ponta do iceberg do invectivo ataque verbal de Harris contra a religio. Junto com Christopher Hitchens, Richard Dawkins e alguns outros, ele est exigindo o banimento de toda e qualquer f religiosa. "Fora com esse disparate" o grito de guerra deles. Em troca, prometem um mundo de novas esperanas e horizontes ilimitados assim que nos tivermos livrado dessa iluso de Deus. Tenho novidades para eles notcias sobre exatamente o contrrio. A realidade que o vazio resultante da perda do transcendente absoluto e devastador, tanto no sentido filosfico quanto existencial. No primeiro dia de uma conferncia que dei no h muito tempo na Universidade de Oxford, o jornal de Oxford trazia a notcia do4 V er B ethany S altm a n , The Tem ple o f Reason, The Sun, 3 6 9 , set. 2 0 0 6. p. 6. D isponvel e m : < h ttp ://w w w .th e s u n m a g a z in e .o rg /3 6 9 _ H a rris .p d f> . A ce ss o e m : 29 de ago. 2 0 0 7 . Prlogo # 13

suicdio do presidente do corpo discente de uma faculdade da regio. Depois de minha conferncia na prefeitura da cidade naquela manh, no d para estimar o nmero de alunos que vieram at mim para dizer que j tinham brincado com o suicdio. Nas minhas viagens pelo mundo, descobri que essa situao flagrante entre os jovens das universidades de toda parte, uma vez que essas instituies transmitem a falta de sentido em altas doses. Em campus aps campus, numa cultura depois da outra, ouvi, durante horas intelectuais, jovens e velhos, dando testemunho de um profundo vazio. As mentes jovens e sinceras procuram respostas e sentido. Nenhuma filosofia acerca de um mundo sem Deus traz esperana. Depois de trs dcadas de passar por todos os continentes e dar muitas palestras em universidades, notei que esse sentimento de alienao e falta de sentido a principal doena das mentes jovens. Os graus acadmicos todos no acabaram com o fantasma assustador da existncia sem sentido num Universo surgido por acaso. Essa doena profunda da alma no ser curada por escritos como os de Harris. A euforia momentnea que a princpio vem com a pregao da liberao logo se dissipa, e o indivduo se v nas garras da falta de esperana de uma vida sem sentido. O modelo naturalista no oferece nenhum remdio para a sufocao decorrente. Estou escrevendo A morte da razo para avisar aos moos e s moas todos quantos fazem as difceis perguntas acerca do sentido da vida que o atesmo desprovido de respostas. 0 imperador est nu, e Harris est tentando encobri-lo com sua mgica verbal. Pode parecer estranho que eu esteja escrevendo a vocs uma carta em resposta a um homem cuja carta podem at nem ter lido.

Talvez vocs no queiram perder seu tempo lendo o livro dele, mas esta resposta pretende expor as contradies sistmicas da viso de mundo de Harris e de seu conhecimento superficial de outras religies, o qual ele brandiu com arriscada autoconfiana. Seu livro, como muitos livros nos Estados Unidos, teve sucesso mais por causa do carter polmico do que por alguma consistncia real. Meu desejo tambm tentar construir uma ponte que ligue o enorme abismo que separa os ateus hostis daqueles entre ns que cremos no Cristo das Escrituras, nos preceitos da Constituio dos Estados Unidos e na cultura norte-americana, para os que queiram investigar as alegaes de qualquer grande religio e avaliar sua autenticidade ou falsidade. A verdade que a opinio de Harris rejeita a prpria viso de mundo que moldou os Estados Unidos da Amrica do Norte. Se essa ideologia dele tivesse predominado no surgimento dos Estados Unidos, jamais teria permitido a formao de uma nao como esta. Felizmente, os Estados Unidos que se formaram confirmam, implcita ou explicitamente, nossa mundividncia e ao mesmo tempo permitem que haja espao para a dele. Os Estados Unidos dele proibiriam nossa f e deixariam espao apenas para a soberania de sua viso materialista ou orientada pela matria de toda a existncia humana. Tal a demagogia do seu atesmo ruidoso. Dito isso, deixe-me dar incio a minha carta. Comeo a resposta a Harris com uma histria engraada, porque tenho quase certeza de que o tom do texto vai aumentar medida que a carta for se desenrolando.Prlogo #

Caro compatriota norte-americano, Dois marinheiros australianos cambaleavam do lado de fora de um pub londrino, numa densa neblina, e procuravam algum que os ajudasse. Quando conseguiram se sustentar em p, avistaram um homem entrando no bar, mas pelo visto no enxergaram as medalhas militares reluzindo no uniforme dele. Um dos marinheiros disparou: "Ei, cara, voc sabe onde estamos?". 0 oficial, muito ofendido, respondeu rspido: "Vocs dois sabem quem sou eu?". Os marinheiros se entreolharam, e um disse para o outro: "Agora que estamos fritos mesmo. Ns no sabemos onde estamos, e ele no sabe quem !". Essa anedota adequada para essa discusso porque, no final da Carta a uma nao crist, de Harris, no sabemos basicamente quem somos nem onde estamos no grande plano de um mundo sem Deus. Esse palavrrio todo de Harris tem todas as marcas de uma argumentao datada e desgastada (do tipo "o argumento fraco, ento fale bem alto") que se enfraquece ainda mais por um trgico uso errado da Bblia e a falta de conhecimento tanto do cristianismo quanto de outras religies. Entretanto, mesmo quando ataca Deus asperamente, negando-nos qualquer ponto de referncia transcendente, ele adota plenamente as prerrogativas divinas que determinam a vida. Suas crticas so cidas, e suas alternativas, falidas. Um dos meus professores na ps-graduao dizia de um crtico: "Ele melhor para farejar ovos podres do que

para botar ovos bons". Os ovos que Harris afirma ser podres so, na verdade, ovos bons, enquanto os ovos que ele ps, alegando serem bons, eram os podres. Quando li os livros de Sam Harris, A morte da f e Carta a uma nao crist, senti-me como se estivesse sendo tragado por um redemoinho de emoes da incredulidade, passando pela indignao, at a tristeza. Eu me perguntava se havia algo que ele considerasse sagrado a ponto de poupar de sua zombaria. Arrepiava-me com o desrespeito descarado, a distoro e a falta de lgica de suas consideraes, que se combinavam para rejeitar qualquer crena em Deus. Isso gerou dentro de mim uma guerra colossal, por um motivo bvio: ele atacara aquilo que est no mais ntimo do meu ser e, devo dizer, de milhes de outras pessoas tambm. O estilo dele do tipo veemente e agressivo que agita os punhos na tentativa de golpear toda e qualquer expresso imaginvel de religio, em particular o cristianismo. Existe um provrbio ingls que diz que, quando se atira lama nos outros, no s se fica com as mos sujas, mas tambm se perde muito terreno. bem possvel que Harris tenha feito isso no seu livro. Se ele acha que sua convico nobre, utilizou uma retrica ignbil e difamatria para comunic-la. Por que o escrnio? Por que essa zombaria desenfreada? No consigo entender seu pensamento extremista, que at mesmo causou constrangimento a outros ateus. OS ATEUS ESTO DIVIDIDOS EM RELAO A ESSE NOVO ATESMO Ao comentar o livro Deus, um delrio, de Richard Dawkins, que bate em muitas teclas que coincidem com as dos livros de Harris, seu colega ateu Michael Ruse, professor de filosofia na

Universidade Estadual da Flrida, diz: "Deus, um delrio me deixa constrangido de ser ateu".5 Reagindo apresentao de Sam Harris no Salk Institute, o ateu e professor de psicologia Scott Atran.6 empregou palavras quase idnticas: "Acho incrvel que entre os cientistas e filsofos brilhantes presentes conferncia, no houve nenhuma evidncia convincente de que eles saibam lidar com a irracionalidade fundamental da vida humana alm de insistir contra todas as evidncias e razes de que as coisas devem ser racionais e baseadas em evidncias. Isso me deixou constrangido de ser cientista e ateu". Ruse e Atran restabeleceram minha confiana nas cincias diferentemente de Harris e Dawkins, que me deixam receoso de confiar em seus achados, j que o preconceito deles to evidente e to virulento. Mesmo com todas as restries que consigo reunir, este o livro com as palavras mais fortes que j escrevi, porque estou alarmado com a devastao cultural infligida por esse tipo de mentalidade. QUEM SOU EU PARA ESCREVER ESSA RESPOSTA? Para aqueles que no me conhecem, talvez seja til apresentar-me antes de ir adiante. Pode parecer irnico que eu, de origem oriental, agora me veja pedindo a um ocidental que se lembre de suas origens.5 Essa declarao parte de um a recom endao para The D a w k in s Delusion? A th e is t F u n d am en talism and th e Denial of th e Divine. London: SPCK, 2 0 0 7 . [0 delrio de D a w k in s . So Paulo: M undo Cristo, 2 0 0 9 .] Disponvel em : c h t t p : // w w w .am azon.com /D aw kins-D elusion-A theist-Fundam entalism -D enial/dp/productd e s c rip tio n /0 8 3 0 8 3 4 4 6 X > . Acesso em: 29 de ago. 2007.6 A t r a n , Scott. 29 de novembro de 2 0 0 6, em The R eality Club, A n Edge D iscussion of

"B eyond Belief, S cie n c e , Religion, Reason and Survival", Edge. Disponvel em : < h ttp :// w w w .edge.org/discourse/bb.htm l> . Acesso em : 29 de ago. 2007. "Beyond Belief" foi uma conferncia no Salk Institute, em La Jolla, Califrnia, 5 a 7 de novembro de 2006.

Nasci numa famlia indiana e fui criado na ndia. Meus antepassados eram sacerdotes da mais alta casta do hindusmo, no extremo sul daquele pas. A religio est engastada na cultura indiana, e a ndia provavelmente produziu mais religies que qualquer outra nao da terra. S o hindusmo vangloria-se de ter 330 milhes de deuses em seu panteo. Por conseguinte, uma vida inteira de observncia de cerimnias, rituais, supersties e tudo que se refere a essa viso de mundo fizeram-me rejeitar por completo toda crena no sobrenatural. Muitas e muitas vezes eu me perguntava como as pessoas podem de fato acreditar no que dizem que acreditam; e surpreendia-me com o evidente compromisso das massas com a credulidade. Nisso concordo com Sam Harris. Jamais, porm, ocorreram-me os insultos que Harris, Dawkins e a nova gerao de ateus destilaram em seus livros e argumentaes. Francamente, em vez de serto insolentes, seria melhor eles reconsiderarem com seriedade se podem conseguir o que se puseram a fazer ao desfigurar a melhor parte da humanidade, incluindo ganhadores do Nobel, filsofos, cientistas brilhantes e outros homens e mulheres serenos que trabalharam arduamente para fazer deste planeta um mundo melhor. De pronto confesso que as realizaes desses homens no justificam suas convices para mim, mas eles so dignos, sim, da cortesia e do respeito comum. possvel, todavia, que o desrespeito de Harris se justifique porque, num mundo atesta, o amor por um colega de humanidade seja um conceito estranho? Certamente espero que no. Sei que ele procura se proteger dando uma pista de vez em quando, dizendo: "Eu restringi minha posio", mas isso um truque filosfico antigo que logo se percebe. Sua hostilidade apaixonada se revela em claro e

bom som. No pode haver nenhum perfume no atesmo se sua atitude exala esse odor. MEU CONTATO COM AS RELIGIES DO M UNDO E costume dizer que a India o pas mais religioso do mundo. Talvez seja verdade, contudo muita gente na ndia vive na prtica como ateu. Eu era uma dessas pessoas. Eu achava que a religio era uma chatice total. Ouvir a ladainha dos sacerdotes quer hindus, quer budistas, quer cristos, quer quaisquer outros , que me pareciam vacuidades, fazia-me ficar ansioso por fugir do que eles chamavam de edifcios sagrados. Eu considerava as crenas deles supersties geradoras de medo, um meio de lustrar o ego dos autores e controlar seus seguidores, pois um mantra repetido com suficiente frequncia acaba se tornando indispensvel para a existncia. 0 "gurusmo" dos dias atuais, principalmente o da espcie que chamo de "tipo exportao", viceja na ndia hoje porque o secularismo vivido na Europa e exportado para o mundo deixa o interior do indivduo arruinado e o torna vulnervel a todo tipo de crena. Em termos nietzscheanos. Deus para mim era um ser fabricado. Era isso, pura e simplesmente. Por fim, todavia, a crena num mundo surgido por acaso; numa vida sem propsito; numa moral sem nenhum ponto de referncia, exceto aqueles absolutos que foram contrabandeados e bem escondidos por trs da mscara do relativismo ; e na morte que termina no esquecimento levaram-me a preferir a possibilidade desse esquecimento ao peso do vazio de um mundo sem Deus. Contrariamente ao que concluem os ateus, o peso morto de suas convices produz uma vida sem sentido, cruel e oca. Voc talvez

se lembre de como o filsofo Friedrich Nietzsche,7 um dos precursores de Harris na promoo do atesmo em detrimento da f em Deus, definiu a existncia sem Deus. Num mundo assim, disse Nietzsche, vagueamos por um nada infinito, sem nada acima nem abaixo. preciso acender lanternas de manh e inventar jogos que assumam o lugar da cerimnia religiosa. Por fim, ele diz, uma loucura universal eclodiria quando descobrssemos a verdade de que a humanidade conseguiu matar Deus. O prprio Nietzsche passou os ltimos treze anos de sua vida nas trevas da insanidade, enquanto sua piedosa me o vigiava ao lado do leito.

O ATESMO PROVOCOU MINHA TENTATIVA DE SUICDIOAlbert Camus8 comea seu ensaio filosfico O mito de Ssifo com estas palavras: "S existe um problema filosfico realmente srio, que o suicdio. Decidir se a vida digna ou no de ser vivida responder pergunta fundamental da filosofia". E uma pergunta assustadora. Na verdade, medida que eu seguia o atesmo para a sua concluso lgica na minha prpria vida enquanto eu crescia, ela passou a ser a minha pergunta. Tragicamente, dois de meus amigos ntimos da faculdade j haviam conseguido xito na tentativa de suicdio um era herdeiro de uma empresa muitssimo bem-sucedida, o outro, algum que agia por pura falta de objetivo. Ento, chegou a minha vez uma tentativa atrapalhada que me fez parar num leito de hospital em Nova Dlhi, com os mdicos lutando para

7 V er N ietzsche , Friedrich. T h e G ay S cie n c e . N e w Y ork: V in ta g e , 1974. p. 181; para co m e n t rio s so b re isso , v e r K a u f m a n n , W a lter. N ie tzs c h e : Philosopher, P sych o lo g ist, A n tic h ris t. P rinceton, N J : P rinceton Univ. Press, 4 lh. ed. 1975. p. 9 6 -9 7 .8 C a m u s , A lb e rt. The M y th of S isyphu s and Other E ssays. N e w York: V in ta g e , 1991. p. 3.

me manter vivo. Foi nessa condio inferior que recebi uma Bblia e algum leu a histria do evangelho para mim. Tudo que posso dizer agora que sou muito grato por no ter tido Harris como conselheiro nem sua diatribe como minha inspirao, pois minha vida teria terminado l naquela poca. Pelo contrrio, confiei no Cristo das Escrituras e hoje, quatro dcadas mais tarde, depois de ter viajado pelo mundo dezenas de vezes, falando em muitos pases e lecionando em muitas universidades, descobri que Jesus mais belo e mais atraente do que nunca. Isso no significa absolutamente nada para os novos ateus. Mas para mim e para minha famlia e, eu ousaria dizer, para dezenas de milhares de outras pessoas em cuja vida Deus me deu uma pequena participao, significou a diferena entre o desespero e a esperana. Esse Jesus, que encontrei num momento de experincia, eu testei durante anos de estudo e de procura de conhecimento. Sua definio da natureza da realidade e de tudo do meu prprio corao satisfaz a toda prova de verdade a que submeti o ensino. Tenho tanta certeza de minha experincia com ele quanto tenho de minha existncia. No de admirar que as pessoas comuns do tempo de Jesus o ouviam com alegria nem que, quando os marginalizados pela sociedade eram trazidos a ele para ser julgados, ele lhes dizia palavras de consolo e condenava os seus acusadores.

MEU ESTUDO SOBRE O ATESMODurante muitos anos estudei, pesquisei e escrevi sobre as religies do mundo. Porm, s para ser fiel ao atesmo, fiz um pouco mais. Como bolsista da Universidade de Cambridge, estudava com a orientao de um ministro convertido ao atesmo, Don Cupitt,

A morte d razo a #

que na poca era reitor de uma das faculdades. Por ironia, como sacerdote anglicano ordenado, ele era mais conhecido por sua negao a Deus do que por seus servios a Deus. Decidi t-lo como meu orientador porque queria ter conhecimento da tese do atesmo de uma fonte convincente. Eu queria ouvir e entender todo o raciocnio da defesa do atesmo, caso tivesse deixado passar algo quando era mais novo. Ouvir esse iconoclasta, que, atrevo-me a dizer, teria incentivado Sam Harris, deformava a credulidade. Encontrei mais calor que luz nos seus argumentos, mais indignao que sensibilidade verdade. O uso seletivo que ele fazia de outras religies era assustador e, quando eu ousava perguntar-lhe sobre o que ele estava falando, sua reao irada denunciava sua falta de conhecimento. Mesmo os colegas de classe que tambm eram ateus ficavam aborrecidos com seu bombardeio, sentiam-se meio constrangidos. Foi ali, naquela ocasio, que descobri que era verdade o que ouvira havia anos um colega de seminrio dizer. Quando perguntei a esse colega, que se dizia ateu, por que, se ele era de fato incrdulo, estava estudando numa escola de teologia, ele fez uma pausa, abriu a lata de refrigerante, tomou um gole, inclinou-se um pouco e, com uma piscadela, disse: "Ganha-se muito dinheiro trabalhando com Deus". Surpreso, precisei dar um passo para trs e respirar fundo. Mas eu tive mesmo de lhe dar nota mxima por ser um charlato sincero. Agora, depois de ler os pares de Sam Harris, Richard Dawkins, Christopher Hitchens e Daniel Dennett, nos seus mpetos antitestas, conclu que tambm se ganha muito dinheiro com o atesmo. Todavia, devo conceder a eles o benefcio da dvida no que diz respeito a seus motivos porque, a seu favor, um ateu que ganha dinheiro atacando o sagrado no mnimo no est fingindo

ser outra coisa. E, de acordo com a cosmoviso atesta, seus motivos nem sequer precisam de muita justificativa, j que num mundo sem absolutos qualquer motivo serve e nem sequer necessrio motivo algum. TODOS COMEAMOS COM BASE EM PARADIGMAS Por onde comear a destrinchar as contradies sistmicas da viso de mundo atesta que Sam Harris adota e as hipteses que ele faz? O melhor ponto de partida talvez seja dizer a vocs por que no sou ateu. Como sabem muito bem, todo indivduo tem uma viso de mundo. A viso de mundo d respostas s quatro perguntas essenciais perguntas que dizem respeito origem, ao sentido, moralidade e esperana que garante um destino. Essas respostas devem ser verdadeiras e coerentes como um todo. Origem Vou comear pela origem, pois aqui que Sam Harris faz seu primeiro ataque. Vou economizar a discusso cientfica e filosfica mais plena para depois. Por ora, quero apenas distinguir entre Deus e acaso. Como a vida veio a existir? A cosmologia do big bang, junto com a teoria geral da relatividade de Einsten, leva a concluir que de fato existe um "no princpio".9 Todos os dados indicam um Universo que explode deA morte d razo a 9 A no ser, claro, que Harris queira filosofar, com o o fsico terico Stephen Hawking, a respeito de um Universo sem limites e v pelo caminho de uma "cosmologia de conjunto de m undos" e do te m p o imaginrio. John Polkinghorne, professor de fsica m atem tica no Queens College, Cam bridge, e colega de H awking, tinha apenas uma resposta a essa proposio, para ns, seus alunos: "Vam os reconhecer a im aginao pelo que ela # de fato". (A citao de minhas anotaes de aula, m as encontrei um a afirm ao sem elhante no seu livro One W orld: The Interaction of Science and Theology. London: 25

um ponto de densidade infinita. Sabemos muito bem que essa singularidade no um ponto de fato; um todo do espao tridimensional comprimido a um tamanho mnimo. Isso, com efeito, representa um limite em que o espao deixa de existir. At os termos pedem explicao. O ponto que quero ressaltar aqui (me perdoem o trocadilho) que no ponto de origem do Universo existe algo, e no nada um mistrio que deixa a cincia em total silncio. O nada no pode produzir algo No s existe algo, mas tambm as leis da cincia deixam de funcionar logo no incio. O prprio ponto de partida de um Universo ateu baseia-se em algo que no consegue explicar sua prpria existncia. As leis cientficas pelas quais os cientistas querem certeza comprovada nem sequer existiam como categoria no incio do Universo porque, de acordo com essas leis da cincia, pelas quais os ateus querem medir todas as coisas, a matria no pode simplesmente "passar a existir" por si s. O silncio da cincia atesta acerca da razo de, em vez do nada, existir algo gritante. O filsofo atesta Bertrand Russell1 disse 0 que o Universo "simplesmente existe". Mas isso evidentemente no uma explicao cientfica. De acordo com a cincia, nada do que existe (ou do que ) pode explicar sua prpria existncia.SPCK, 1986. p. 80: "Vam os reconhecer essas especulaes pelo que elas realm ente so. Elas no so fsica, m as m etafsica, no sentido mais estrito".) Hawking d, sim, um "incio". S lhe falta um ponto inicial. Em suas extenses, Hawking apenas se envolve em um a m etafsica pobre. 10 Particularm ente para esse dilogo entre Copleston e Russell, ver S eckel , Al [Org.]. B ertrand Russell on God and Religion. Buffalo: Prom etheus, 1986. p. 1 3 8 -3 9 . Um a transcrio desse debate est disponvel ttulo "The A rgum ent from Contingency".

on-line. Disponvel em : < h ttp://w w w .brin gyou.

to /a p o lo g etics /p 2 0 .h tm > . Acesso em : 17 de set. 2 0 0 7 . Essa conversa aparece sob o

Entretanto, de acordo com a cosmologia deles, acontece que ns existimos simplesmente. Isso significa que qualquer propsito para nossa existncia to aleatrio quanto qualquer causa para ela. O ateu Stephen Jay Gould observa: Devemos nossa existncia a um estranho grupo de peixes cuja anatomia peculiar das nadadeiras permitiu que se transformassem em pernas para criaturas terrestres; aos cometas que se chocaram com a Terra e eliminaram os dinossauros, o que deu aos mamferos uma oportunidade que no seria possvel de outra forma (por isso, agradea sua estrela da sorte, literalmente). Existimos porque a Terra nunca se congelou completamente durante a era glacial; porque uma espcie pequena e frgil, surgida na frica h 250 mil anos, conseguiu, at aqui, sobreviver de um jeito ou de outro. Podemos ansiar por uma resposta "mais elevada", mas no existe nenhuma. [...] No podemos ler passivamente o sentido da vida nos fatos da natureza. Precisamos construir essas respostas ns mesmos, com nossa prpria sabedoria e nosso sentido tico. No h outro jeito.1 1 O que voc acha disso? Num ponto de sua argumentao Gould faz o perturbador comentrio de que o fato de nos apegarmos confiabilidade dessa realidade isto , de que no existe nenhuma realidade diferente da que criamos por ns mesmos , longe de ser desanimador, bem libertador. Bem, fico feliz que ele se sinta liberto, porque milhes de outros no se sentem livres quando a vida passa a ser um ponto de interrogao. Observe, contudo, onde Gould se cala. Ele atribui a possibilidade do ser humano habitar o planeta Terra s colises entre astros que11 Citado em David Friend e os editores da revista Life, T h e M ea n in g of Life. Boston: Little Brown and Company, 1 9 9 1. p. 33.

destruram formas de vida j existentes. De onde, porm, esses astros, cometas e planetas vieram? Ser que ele no se preocupa que seu modelo se cale sobre o problema das origens? 0 melhor que conseguimos obter de pessoas como Gould e Harris que, "sim, ns sabemos que um problema e um dia teremos a soluo para ele". Essa ordem toda, tal como a conhecemos agora, no evoluiu. Nada na cincia apoia essa alegao. Tinha de existir uma explicao em si. O nada no produz nada e nunca produziu.

A estranheza da vida por acasoO vazio do enfoque atesta sobre a origem do Universo exemplificado pela resposta do ateu e ganhador do Nobel Francis Crick1 pergunta de como surgiu a vida que conhecemos: 2 "Provavelmente uma espaonave de outro planeta tenha trazido esporos que semearam a Terra".13 Carl Sagan foi para a sepultura "considerando todo o Universo nada mais que molculas em movimento". Ele acreditava que alguma entidade extraterrestre seria capaz de explicar para ns a nossa existncia e, assim, justificava os bilhes de dlares gastos para fazer escutas no espao sideral, observar e esperar algum contato. Detesto confessar, mas existe de fato um pastor numa cidade dos Estados Unidos que tem uma linha telefnica ligando o seu gabinete sepultura da esposa dele porque, antes de ela morrer, os dois combinaram que, se ela obtivesse alguma informao privilegiada de que a segunda vinda de Jesus fosse iminente, telefonaria para ele a fim de que fosse o primeiro a saber.

12 Francis Crick , junto com W atson, descobridor da estrutura da molcula de D N A . 13 Citado emBehe,

M ichael

J.

D a rw in s B lack Box: The Biochemical Challenge to Evolution.

N e w York: Free Press, edio do 10a aniversrio 2006. p. 248 [A caixa-preta de D arw in],

Esse homem para o mundo cristo o que essas pessoas que falam sobre espaonaves so para o mundo ateu promovem uma ideia fantasma, uma cosmoviso baseada em coisa alguma a no ser mistificaes e especulaes. Permita-me ir um pouco mais adiante. Donald Page, do Princetors Institute for Advanced Science, calculou que a probabilidade de nosso Universo ter adquirido uma forma apropriada para a vida por acaso de 10.000.000.000124 valor que ultrapassa nossa imaginao. Os astrnomos Fred Hoyle e N. C. Wickramasinghe descobriram que a probabilidade de uma simples enzima se formar acidentalmente de aminocidos de qualquer parte da superfcie do nosso planeta de 1020. Alm disso, assinalam: "O problema que existem cerca de 2 mil enzimas, e a possibilidade de obt-las todas por acaso apenas uma parte de(1 o20)20-0 = 00

1 04000, uma probabilidade estarrecedoramente pequena que no pode ser contemplada mesmo que todo o Universo consistisse em uma sopa orgnica".14 E isso apenas um passo na formao da vida. No se disse nada ainda sobre o DNA e de onde ele veio, nem sobre a transcrio do DNA para o RNA, e o que os cientistas reconhecem nem sequer pode ser calculado numericamente. Tambm ainda nem se falou em mitose e meiose. Deve-se concluir que a probabilidade da organizao aleatria das molculas orgnicas no essencialmente diferente de um enorme e redondo zero. Talvez seja por isso que eles a chamem de singularidade, porque no tem definio nem explicao emprica. Esse o zero a que Sam Harris atribui o crdito por tudo. Essa sua explicao para a razo de existirmos aqui. Se aceitamos14 Citado em C h aig , W illiam Lane. In Defense of Rational Theism. In: Mo r e la n d ,

A morte da razo #

J. P; N ielsen ,

Kay [Org.]. D oes God exist? The G reat D ebate. Nashville: Nelson, 1990. p. 143.

29

essa explicao, a conseqente falta de sentido da existncia devastadora para nossa sede de sentido. No de admirar que essa crena no tenha criado razes entre bilhes de pessoas, que ainda procuram Deus, por mais alto que Harris proteste. O clamor da razo impossvel de se conter, e o indivduo comum consegue enxergar atravs da falta de lgica das alegaes do atesmo e do vazio que elas produzem. Conheo todas as respostas, os argumentos que afirmam que, apesar de todas as improbabilidades estatsticas, ns ainda existimos, e isso prova que essas so nossas origens. Sei que isso razo suficiente para o ctico. Contudo, as hipteses e dedues que essas pessoas tm de fazer nos deixam admirados de que realmente elas creem nisso dedues, eu acrescentaria, que jamais poderiam ser feitas de microprocessos de laboratrio nem da vida diria, tampouco do tribunal. Na procura de inteligncia extraterrestre, Carl Sagan disse que precisamos apenas de uma mensagem com informaes do espao para podermos reconhecer a presena de inteligncia. Quando convm ao ateu, apenas a inteligncia pode explicara inteligibilidade, mas, quando ela incmoda, o caldo primordial autoexistente serve.1 Eles no 5 conseguem esconder os preconceitos. de admirar que Antony Flew, que levantou a bandeira atesta durante dcadas, agora rejeite o atesmo porque ele simplesmente no consegue explicar essa inteligibilidade?

Crer num Criador no depende necessariamente de como ele criouQuero acrescentar que nossos argumentos a favor da existncia de Deus no implicam desmentir a evoluo.

15 Citado em M

o r elan d ,

J. R; N ielsen , Kay [Org.]. D oes God Exist?. p. 3 5-36.

A evoluo um homem de palha inventado, como se tudo o que se precisasse fazer para conseguir o desmantelamento da crena em Deus fosse postular a evoluo. Intelectuais srios devem saber que nenhuma viso de mundo se confirma com um argumento do tipo nocaute, decisivo. Mais adiante nesta carta, vou investigar com detalhes mais especficos os argumentos do tesmo cristo. Por enquanto, tudo que vou afirmar que o ponto de partida atesta nos leva a uma contradio na pior das hipteses e, na melhor, a um Universo acidental. Em Milagres, C. S. Lewis censura esse tipo de raciocnio: "A razo de uma pessoa pode ser levada a ver as coisas com a ajuda da razo de outra sem ficar pior por isso. Continua aberta, portanto, a questo sobre saber se a razo de cada indivduo existe absolutamente por si mesma ou se resultante de alguma causa (racional), isto , de outra Razo. Essa outra Razo provavelmente poderia depender de uma terceira, e assim por diante. No importa at que ponto o processo se estenda, desde que se constate que a Razo se origina da Razo em cada fase. Somente quando somos chamados a crer na Razo oriunda da no razo que devemos dar um basta, porque se no o fizermos todo o pensamento ser posto em dvida.1 6 Li o que Sam Harris escreveu e gritei "Bastai". Ser mesmo que ele pode postular uma base transcendente de raciocnio se sua fonte original no ela prpria razo? Ele est preso no estrangulamento do determinismo materialista, segundo o qual o fim predeterminado pelo comeo. Se a matria amoral e no racional tudo quanto existia no princpio, o resultado s pode ser o que a matria amoral e no racional produz. Cada estgio seguinte

predeterminado para ser desprovido de moral e de significado intencional. Com efeito, Richard Dawkins afirma em sua teoria dos "memes" que assim que a religio tem sido perpetrada, predeterminada por nascimento e ancestralidade.1 7 No curioso que esse determinismo seja a maldio e a causa da f religiosa, mas que os ateus consigam sair da caixa do determinismo e pensar por eles mesmos? Ao que parece, eles no so limitados pelas mesmas restries que nos limitam. Depois de anos na universidade, aprendi um segredo do ofcio: quando se conhece o suficiente de um assunto, pode-se confundir qualquer pessoa com o uso seletivo dos fatos. 0 fato inevitvel para o ateu que a vida o produto aleatrio da equao tempo mais matria, mais probabilidade. Sentido Se a vida um acidente, ento a conseqncia inevitvel, primeira e principalmente, que no pode haver significado nem propsito superior para a existncia. Essa conseqncia o tendo de aquiles existencial do credo atesta. Individual e coletivamente, como civilizao, ns, seres humanos, almejamos por sentido. Se, porm, a vida fruto do acaso, ns subimos os degraus da escala evolucionista s para no encontrar nada no final. Esse outro tema para o qual a resposta alternativa de Sam Harris vazia. Parece que ele insiste tediosamente que Deus age tal qual um criminoso, e ns vivemos uma vida to insegura que

17 Richard Dawkins apresentou pela primeira vez o term o

memes no seu livro The Selfish

Gene. Oxford: Oxford Univ. Press, 1 9 7 6. [0 g e n e egosta. So Paulo: Edusp/ltatiaia.] Ele alega que a religio um "vrus m ental da f" no ensaio "Vrus da m ente", Free Inquiry (terceiro trim estre de 1 9 9 3), p. 3 4 -4 1 .

mesmo uma s tragdia estilhaaria nossa tranqilidade. Para ele, a experincia do sofrimento neste mundo prova a falta de sentido da vida.

O prazer no o sofrimento a sentena de morte do sentidoO famoso jornalista britnico do sculo XX Malcolm Muggeridge disse certa vez que todas as notcias so acontecimentos velhos que ocorrem a pessoas novas. Do naturalista e filsofo escocs David Hume ao existencialista Jean-Paul Sartre, a lista de ressentimentos produzidos pelo problema do sofrimento no mundo j foi declarada vrias e vrias vezes. Eu acho que eles erraram o ponto. O escritor e satirista G. K. Chesterton ressaltou que a falta de sentido no resulta de se estar cansado de sofrimento, mas de se estar cansado de prazer. O prazer, no o sofrimento, a sentena de morte do sentido. Esse o problema do planeta solitrio da cosmoviso de Sam Harris a convico de que, pelo fato de cada um de ns ser sozinho no Universo, nossas alegrias e tristezas individuais no tm efeito nem impacto sobre ningum mais. Ns todos descobrimos que nosso problema no que o sofrimento tenha produzido vazio em nossa vida; o verdadeiro problema que at o prazer em ltima anlise nos deixa vazios e insatisfeitos. Quando o boto do prazer pressionado sem parar, ficamos nos sentindo confusa e perplexamente vazios e trados. Quando li a biografia de Oscar Wilde e pesquisei sobre a vida desse rematado hedonista, surpreendi-me vrias vezes com as prolongadas passagens de desespero que brotavam do corao e da pena de um homem to completamente dedicado busca

do prazer. Veja a referncia bblica J 29.11 gravada em latim na lpide de seu tmulo, que se traduz por: "Depois que eu falava, eles nada diziam; minhas palavras caam suavemente em seus ouvidos". Reflita no epitfio escrito no sepulcro: "E lgrimas alheias preenchero a urna fendida onde a piedade fica, pois por ele choraro os prias, pessoas de sensibilidade mais rica".1 8 Essas palavras falam do silncio do sofrimento. Se fosse apenas o sofrimento que provocasse o vazio, eu pelo menos faria meia concesso ao ponto de vista dos ateus. Mas as pessoas mais solitrias que j encontrei ou sobre quem li so as que tm tudo e sentem muito pouco daquilo que em geral consideramos dor. Contudo, elas tambm sofrem o sofrimento resultante de ter-se entregado ao prazer e sado vazias. A maior decepo (e o conseqente sofrimento) que algum pode ter acabar de experimentar aquilo que achava que iria lhe proporcionar o mximo prazer e isso o deixou deprimido. O prazer sem limites gera uma vida sem propsito. Esse o verdadeiro sofrimento. Morte, tragdia, atrocidade nada na verdade importa. A vida inanidade pura, sem propsito algum.

No atesmo no h respostas absolutasUm tempo atrs em Las Vegas, a cidade do brilho e dos jogos de azar, um homem deixou o seguinte bilhete suicida: Aqui no h respostas,19 Essa a concluso inevitvel do livro de Sam Harris, por mais que ele tente embelezar sua viso de mundo, porque sua cosmoviso runa. Talvez ele tente nos convencer do contrrio,18 As palavras do epitfio so do poem a A balada da priso de R eading, de Oscar W ilde.19 G o ld m a n , A dam . The S u icid e C apital of A m e ric a , AP N e w s , 9 de fevereiro de 2 0 0 4.

Disponvel em : < h ttp ://w w w .c b s n e w s .c o m /s to rie s /2 0 0 4 /0 2 /0 9 /h e a lth /m a in 5 9 9 0 7 0 . sh tm l> . Acesso em: 17 de set. 2 0 0 7.

mas por trs dos argumentos s h notcia ruim: ns somos tudo que existe, estamos sozinhos neste mundo. Sam Harris no o primeiro a elaborar um ataque contra a f religiosa, nem ser o ltimo, tenho certeza. A religio sofreu uma leso mortal na Europa quando os poderes eclesisticos deram as mos aos poderes polticos opressores (muitos dos quais ateus) e aumentou a presso sobre o povo a Frana jamais se recuperou dessa experincia. Entretanto, os filsofos, como Voltaire, que teorizaram sobre as falcias da religio no tiveram nenhuma resposta melhor para dar s massas que eles salvaram do que consideravam a "tirania" religiosa. Eis o que Voltaire escreveu:Sou uma parte insignificante do grande todo. E verdade; mas todos os animais condenados a viver, Todas as criaturas sensveis, nascidas sob a mesma lei, Sofrem como eu e como eu tam bm vm a morrer. O abutre agarra-se sua tmida presa E fere com o bico sanguinrio os m embros trmulos: Tudo vai bem, assim parece, para ele. Mas depois Uma guia despedaa com suas garras o abutre; A guia trespassada pela seta do homem. O homem, prostrado no p dos campos de batalha, M isturando na agonia seu sangue aos dos semelhantes, Passa a ser por sua vez alim ento das aves famintas. E assim o mundo inteiro geme em cada um dos membros: Todos nascidos para o sofrim ento e a m orte comum. E com relao a este caos terrvel direis: Os males de cada um fazem o bem de todos! Que bem-aventurana! E quando, com voz trmula, M ortal e lastimosa, proclamais: 'Tudo vai bem', O Universo vos desmente, e vosso corao

Contradiz cem vezes o conceito de vossa mente... Qual o veredicto da M ente Suprema? Silncio! O livro do destino est fechado para ns. O homem um desconhecido para si prprio; No sabe de onde vem nem para onde vai. tom os atorm entados num leito de lama, Devorados pela m orte, um escrnio do destino.20

Pelo menos Voltaire, Sartre e Nietzsche foram sinceros e coerentes na viso de mundo deles. Eles confessavam o ridculo da vida, a falta de sentido de tudo num mundo atesta. Os ateus de hoje, como Richard Dawkins e Sam Harris, todavia, esto to cegos pela arrogncia da mente deles que procuram apresentar essa viso da vida como algum tipo de libertao triunfal. Sartre, como as elites intelectuais atestas sabem, mas ficam constrangidas de reconhecer, acusou em seu leito de morte o atesmo de ser impossvel de ser vivido filosoficamente.2 Alguns anos atrs, num 1 debate entre atesmo e cristianismo, Antony Flew definiu como "grotesca"22 a experincia de um filsofo cristo de conhecer a Cristo. Mas agora Flew deixou a campanha atesta. No mais capaz de justificar com honestidade suas amarras metafsicas.20 V o lta ir e , Poem on the Lisbon Disaster. A Treatise on Toleration and Other E ssays. N e w

York: Prometheus, 1 9 9 4. p. 1-7. [tradutor desconhecido] 21 Ver Molnar ,

Thomas. Jean-Paul Sartre, RIP: A Late Return, National R eview 3 4 ,1 1 de junho

de 1982. p. 677. "E suficiente mencionar s uma frase do que Sartre disse na ocasio para avaliar o seu grau de reconhecimento da graa de Deus e da condio de criatura do homem: 'Eu no acho que sou produto do acaso, uma partcula de poeira no Universo, m as algum que foi esperado, preparado e anunciado. Em suma, um ser que somente um Criador poderia ter posto aqui; e essa ideia de uma mo criadora rem ete a D e u s '". Citado em M c D ow ell , Josh; S tew art , Don. In: Existentialism. Disponvel em: < h ttp //w w w.greatcom .org/resources/ secular_religions/ch04/default.htm >. Acesso em: 1Qout. de 2007.22 F le w , Antony. The Case for God Challenged. In: D o e s God Exist?. p. 167. Flew escreve:

"O apelo de [J. R] M oreland para suas 'experincias pessoais' m e choca por ser absolutam ente grotesco".

Para todos os efeitos, Flew agora desta, algum que acredita em Deus, apesar de consider-lo um deus distante que no participa ativamente da vida dos seres humanos.

O atesmo levado s suas concluses lgicasProvavelmente o melhor exemplo de atesmo realizando suas concluses lgicas na vida de um ser humano seja Michel Foucault. No segundo trimestre de 1975, ele se sentou beira de um precipcio. Com dois jovens norte-americanos a seu lado e com a msica Kontakte, de Karlheinz Stockhausen, ao fundo, ele deliberadamente decidiu perder contato com a realidade e entregar-se a sua imaginao, induzida pelo LSD. Deitado de costas no cho, jogou as mos para o ar e gritou: "As estrelas esto chovendo sobre mim. 0 cu explodiu. Eu sei que no de verdade. Mas a Verdade".23 Foucault cunhou seu credo " proibido proibir" na mente de seus alunos. Rolando abaixo pela ladeira escorregadia do prazer, sem cercas que o protegessem nem o nus da convico moral que lhe desacelerasse a queda, ele aos poucos associava at mesmo morte com prazer. "Eu gostaria de morrer, e espero que isso ocorra, de overdose de qualquer tipo de prazer",24 dizia. Ele apostou a vida no jogo da luxria que jogava: "Morrer pelo amor de garotos [...] o que pode ser mais belo".25 Seu estilo de vida de inconseqente despreocupao terminou de modo lamentvel, com a

23 Citado em Guinness, Os. Long Jo u rn e y H om e: A Guide to Your Search for the M eaning of Life. Colorado Springs: W aterBrook, 2001. p. 3 3 -3 4 . 24 Citado em D o lu m o r e , Jonathan. D eath, D esire and Loss in W e s te rn Culture. N e w York: Routledge, 1998. p. 305. 25 Citado e m L illa , M ark. The Reckless M ind. N e w York: N e w York Review of Books, 2 0 0 1 . p.

degenerao de todas as clulas de seu ser. Devastado pela aids, ele se autodestruiu. Foucault era um produto do atesmo e dizia muitas coisas semelhantes s que Sam Harris diz. Para Harris negar que Foucault um produto do pensamento atesta significaria que teria de rever sua avaliao de todas as formas de expresso crist com o mesmo critrio. Acontece que Harris to somente tomou emprestado uma viso de mundo melhor que a sua, apesar de ao mesmo tempo a criticar severamente. A vida sem Deus em ltima anlise uma vida sem nenhum ponto de referncia de sentido que no seja a que algum lhe d na hora. Voc se lembra do que o ateu Stephen Jay Gould disse sobre o sentido? "Podemos almejar uma resposta 'mais elevada' mas no existe nenhuma". Agora veja a resposta de Foucault a um aluno:Aluno:

Devo arriscar minha vida? Claro que sim! Corra riscos, aventure-se! Mas anseio por solues. No h soluo. No existe resposta!.26 Ento, pelo menos alguma resposta.

Fo ucault: Aluno:

Fo u c a u lt: Aluno:

Foucault:

Pelo menos Foucault era sincero em relao falta de sentido da vida para os que rejeitam Deus. Isso me faz lembrar a histria da passageira de um avio que deA morte d razo a

repente entrou em uma forte turbulncia. Ela entrou em pnico e quase desmaiou. O copiloto veio acalm-la. Olhe para o lado direito do avio ele disse. A senhora est vendo aquela luzinha piscando na ponta da asa?26 Citada em G u inness , Long J o u rn e y H om e, p. 35.

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#

Sim, estou replicou gaguejando. Agora olhe para o lado esquerdo da aeronave. A senhora est vendo uma luzinha piscando na ponta da asa? Sim, estou sussurrou. Enquanto estivermos entre essas duas luzinhas, estaremos a salvo disse o copiloto, o que trouxe bastante tranqilidade passageira. Essa a nica resposta do atesmo para a busca de sentido. uma tranqilidade falsa com balizas referenciadas em si mesmas. Duas aeronaves podem entrar em rota de coliso se essas luzinhas, uma na ponta de cada asa, forem tudo o que as guia. Princpios morais A cosmoviso atesta no s leva morte do sentido, mas tambm leva morte do raciocnio moral. Para os que no leram Carta a uma nao crist, de Sam Harris, permitam-me expor o argumento dele sobre essa questo. Harris escreve que, se Deus de fato existisse e tivesse interesse nos negcios dos seres humanos, seria fcil perceber o que ele quer. A nica coisa difcil de entender para Harris o fato de "tantas pessoas racionais em outras circunstncias" negarem o horror do tipo de acontecimentos que ele relata e considerarem que Deus age de acordo com a elevada sabedoria moral [Carta, 48). Entre os exemplos que ele cita com palavras apaixonadas e dramticas destinadas a provocar as emoes do leitor esto o estupro, a tortura e o assassinato de "uma menininha", que ele diz estar ocorrendo enquanto voc est lendo a carta dele ou, se no nesse exato momento, em algumas horas ou dias. E se diz consternado com os dados estatsticos que do a entender que os

pais dessa garotinha (bem como voc, seu leitor) provavelmente acreditam que um Deus todo-poderoso e todo-amoroso est velando por eles e sua flhinha mesmo enquanto est ocorrendo essa atrocidade. Harris pergunta se certo ou bom que voc e eles acreditem nesse Deus [Carta, 50 - 51). Sua resposta breve prpria pergunta um enftico e categrico no. Atesmo isso, diz. Harris diz que, em vez de filosofia ou viso de mundo, o atesmo to somente a recusa a negar o que algum deveria perceber como evidente que no existe Deus (porque isso bvio para Harris). Desse modo, ele insiste que o termo "atesmo" no deveria existir, uma vez que "ningum precisa se identificar como, por exemplo, 'no astrlogo' ou 'no alquim ista'" [Carta, 51). Exemplos do que Harris considera falha de Deus na proteo da humanidade podem-se ver por toda parte, diz, como a destruio da cidade de Nova Orleans em 2005 pelo Katrina. O que Deus estava fazendo quando o furaco devastou Nova Orleans? Ele pergunta. Ele no ouvia as oraes daqueles que "fugiram das guas, cada vez mais altas, para a segurana de um sto e acabaram por morrer afogados lentamente ali mesmo"? Essas pessoas, insiste Harris, "morreram conversando com um amigo imaginrio" [Carta, 52). Harris afirma dura e incondicionalmente que uma vergonha para os sobreviventes de qualquer tipo de catstrofe acreditar que um Deus amoroso os poupou e ao mesmo tempo deixou outros morrerem, entre essas "criancinhas no bero" [Carta, 54). (Percebe como ele insiste em apelar para suas emoes!) Em seguida ele afirma que, s depois que voc, leitor, tiver parado de dar desculpas ou tentar explicar o sofrimento no mundo com "fantasias religiosas".

vai entender realmente quanto a vida preciosa e quo tristes so as tragdias que ocorrem, uma vez que no h na verdade nenhum motivo para sofrer a no ser interferir na busca da felicidade das pessoas (Carta, 54). Talvez esse seja o principal argumento dele, mas ele o apresenta com os ps plantados firmemente no ar. O vazio filosfico aqui to grande que eu me pergunto por onde comear a responder ao que ele diz. Mais uma vez, vemos o velho argumento probatrio do mal contra a existncia de Deus, o que acaba moralizando ao mesmo tempo que constri seu edifcio inteiro sobre o assunto. Isso me lembra a histria do velho campons irlands. Quando um turista que havia perdido o rumo lhe pediu informaes, respondeu: "Se aonde voc quer ir, no por onde eu comearia".

Os ateus deveriam ser definidos como tais?Sam Harris no acredita que o atesmo deva ser classificado como filosfico. Ele observa que ningum se define como "no alquimista" ou "no astrlogo" [Carta, 51). No entanto, se numa discusso acerca de seu futuro algum examinar a sua mo e perguntar sua data de nascimento para estudar o alinhamento planetrio desse dia, seria bom voc saber se esse algum mesmo astrlogo ou um pizzaiolo que l mos como passatempo. Se algum est com problemas graves de sade e um estranho lhe receita uma beberagem, seria bom saber se estamos lidando com um alquimista ou um farmacutico, ou at um xam. Quando se discute cada definio de vida da origem ao destino, razovel saber se adotamos uma viso de mundo atesta ou alguma outra. Isso, porm, no atpico. Os existencialistas no querem ser classificados; os ps-modernistas no querem ser

compartimentados. Querem to somente poder estigmatizar os outros sem atriburem a si mesmos nenhum rtulo. Eles evitam classificar qualquer coisa que defendem (apesar de se sentirem bem vontade para classificar os outros, Deus inclusive). A razo esta: no se sustenta. Eles procuram um solvente universal para eliminar a noo de Deus. 0 resultado previsvel: eles acabam por desmanchar sua prpria cosmoviso. curioso que esse grupo de pessoas que no querem ser classificadas tenha realizado uma conferncia em setembro de 2007 em que um dos oradores foi Sam Harris e o tema da srie de palestras era "Atesmo clarssimo". Se Harris e outros no creem que o atesmo deva ser uma categoria filosfica, a escolha do tema desconcertante.

Ser que a realidade do mal significa que Deus no existe?Ao indagar o que Deus estava fazendo quando o furaco Katrina destruiu Nova Orleans (Carta, 52) e por que Deus no impede o estupro, a tortura e o assassnio de crianas (Carta, 51), o que de fato Sam Harris est querendo dizer? Est dizendo que essas aes so ms, tm de ser ms, ou no deveriam ser permitidas por um Deus amoroso? Em qualquer uma das trs declaraes, na melhor das hipteses, ele est dizendo: "No vejo aqui a atuao de nenhuma ordem moral". Se, porm, no existe Deus, quem tem autoridade para dizer se h alguma ordem moral atuando? Sam Harris? Adolf Hitler? Queml Alm de atacar Deus pelos furaces, estupros, torturas e assassinatos, Harris pe a culpa do Holocausto no cristianismo medieval. A opinio dele basicamente que o antissemitismo semeado pelos cristos no perodo medieval produziu o Holocausto perpetrado pelos nazistas (Carta, 41-42).

Contudo, por que Harris para na Idade Mdia? Por que no vai alm na Histria? Esse argumento tem tanto mrito quanto a alegao do presidente do Ir, Mahmoud Ahmadinejad, de que o Holocausto jamais aconteceu. Para quem no acredita que houve uma causa inicial para o Universo, Harris , sem dvida, muito presto em identificar o que ele julga serem as causas de determinadas maldades. Ser que Harris leu acerca da jornada espiritual de Hitler? Ser que leu alguma coisa sobre a incurso de Hitler pelo ocultismo? Teria ele conscincia de que o prprio Hitler apresentou os escritos de Nietzsche a Stalin e Mussolini? Ignora que no judeus tambm foram assassinados por Hitler? Sam Harris leu as ltimas palavras de Adolf Eichmann, o crebro nazista, que se recusou a arrepender-se e se negou a acreditar em Deus? Ser que sabe quantos russos foram mortos pelo aparelho nazista? Ser que se lembra das palavras que Hitler mandou escrever sobre um dos fornos de gs em Auschwitz "Quero fazer nascer uma gerao de jovens desprovidos de conscincia, altiva, implacvel e cruel"?27 Sabe Harris que o conceito de Hitler era que a destruio do fraco benfica para a sobrevivncia do forte e que "a natureza pretende que assim seja", como reza o dogma da seleo natural (definida por Voltaire no poema que j citei) ensinado pela evoluo atesta "a sobrevivncia do mais apto"? Nenhum desses sinais do Holocausto remetem ao cristianismo. Para nos convencer de que Hitler estava errado em fazer o que fez, Harris tem de se valer de um arcabouo moral objetivo paraA morte d razo a

27 Citado em ROBERTS, Jason R. The Search for Absolute Truth in a Secularized Society. Think, # 9 de maio de 2007. Disponvel em: < http://wvwv.focuspress.org/blog/?p=9> . Acesso em: 5 de set. 2007. 43

sustentar seu argumento. Vou dizer de outro modo. Se a assero de Harris de que no mundo no se v nenhuma ordem moral verdadeira, podemos muito bem perguntar por que, ento, Hitler no podia introduzir sua prpria ordem. O que havia de errado no que ele fez? Com base em que parmetro Harris acusa Hitler de imoral? Ou o est chamando de imoral? de admirar a convenincia com que os ateus fazem jogos de palavras! Quando Stalin ou Pol Pot que faz a carnificina, porque se trata de idelogos enlouquecidos ou irracionais; o atesmo deles no tem nenhuma relao com seus atos. Quando, porm, o Holocausto engendrado por um idelogo, trata-se do ponto culminante de quatrocentos anos de intolerncia crist em relao aos judeus. Ser que passou pela cabea de Sam Harris que seu livro pode lanar as sementes para o morticnio de cristos? Ser que ele parou para pensar no que o motiva a escrever essas coisas contra um grupo de pessoas? O que ele diria se, daqui a duzentos anos, algum disser que o genocdio de cristos remonta aos textos anticristos de Sam Harris? Os ateus no podem ter ambas as possibilidades. Se o assassnio de inocentes errado, errado no porque a cincia diz que errado, mas porque toda vida tem dignidade intrnseca um postulado que no se pode deduzir do atesmo. No h meio de Harris, como ateu que , alegar preferncias morais a no ser seu prprio mtodo subjetivo, isto , sua preferncia individual ou seuA morte d razo a

meio. No se podem fazer declaraes absolutas sobre um assunto com base nas prprias emoes. Esse fato explica exatamente por que os escritores do seu gnero no sistema de referncia do naturalismo28 reconhecem que o raciocnio moral no faz sentido28 A hiptese do naturalism o que no existe nada alm da natureza.

44

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sem Deus. Seus jogos de palavras filosficos no so nada mais que uma tentativa de evitar o incmodo disparate a que so levados. Qual o sistema moral objetivo que Harris adota e sobre o qual elabora toda a sua crtica de Deus? Sua crtica carregada de emoo depende de um argumento que diz: "No vejo nenhum sistema moral atuando no mundo, mas o que de fato vejo moralmente condenvel". Na terminologia filosfica, isso se chama hiptese mutuamente exclusiva. Logo, o sistema moral que obrigado a adotar , na verdade, um sistema elaborado por ele mesmo. Diante disso, no de admirar que Bertrand Russell confessasse que no podia viver como se os valores ticos fossem meramente uma questo de gosto individual e que ele, portanto, achava seus prprios pontos de vista "inacreditveis". "No sei a soluo",29 dizia. Num debate anterior, com o padre jesuta Frederick Copleston, Russell havia tentado outro caminho a fim de contornar o obstculo da moralidade objetiva e acabou saindo-se mal. Quando Copleston lhe perguntou como diferenciava entre bem e mal, Russell respondeu: No tenho nenhuma explicao alm da que dou para distinguir entre azul e amarelo [...]. Eu vejo que so cores diferentes. Bem, uma explicao excelente, concordo comentou Copleston 0 senhor distingue o azul do amarelo enxergando-os; ento, distingue o bem do mal por meio de que faculdade? Pelo que eu acho foi a resposta de Russel.3029 Carta ao editor, Observer. London, 6 de outubro de 1957. 30 Particularm ente para esse dilogo entre Copleston e Russell, ver S eckel [Org ], B ertrand Russell on God and Religion, p. 1 3 8 -1 39 ; uma transcrio desse dilogo se encontra em : < http ://w w w .b rin g y o u .to /a p o lo g e tic s /p 2 0 .h tm > . Acesso em: 17 de set. 2 0 0 7 . Essa conversa aparece sob o ttulo "The A rgum ent from Contingency".

O padre Copleston foi generoso. A pergunta seguinte estava encarando Russell, mas no foi feita porque ele j parecia muito fraco nesse ponto da discusso. A pergunta que devia ter sido feita era: "Sr. Russell, em algumas culturas as pessoas amam o prximo; em outras, elas o comem. 0 senhor tem alguma preferncia? Se sim, qual?". O agnosticismo de Russell e a ambigidade a respeito de suas prprias opinies sobre valores ticos eram pelo menos mais sinceros que a moralidade de Harris, arquitetada por sua prpria cabea como se a moral fosse evidente por si mesma para todos, no importa se Deus existe ou no. O antagonismo de Harris em relao a Deus acaba por provar que ele intuitivamente acha algumas coisas condenveis. Entretanto, ele no consegue explicar sua noo inata de certo e errado a realidade da lei de Deus gravada no seu corao porque no h explicao lgica de como essa intuio relativa moralidade pode evoluir da matria e qumica puras. Falando de uma maneira mais popular, eu diria assim: Quando se afirma que existe algo chamado mal, preciso supor que existe algo chamado bem. Quando se diz que existe algo que se chama bem, preciso supor que existe uma lei moral por meio da qual se distingue entre bem e mal. Deve haver algum padro pelo qual se determina o que bom e o que mau. Quando se supe uma lei moral, preciso pressupor um legislador moral a origem da lei moral. Esse legislador moral, porm, exatamente aquele que os ateus procuram refutar.

Ser que a moralidade pode existir sem um legislador moral?Sam Harris talvez proteste: "Por que necessrio um legislador moral para se reconhecerem o bem e o mal?". Pela simples razo de que uma afirmao moral no pode ser abstrao. O indivduo que moraliza pressupe valor intrnseco em si e transfere valor intrnseco para a vida de outro e assim ele considera a vida digna de proteo (como nos exemplos que Harris d, a saber, estupro, tortura, homicdio e catstrofes naturais). Um valor transcendente deve provir de uma pessoa de valor transcendente. No entanto, num mundo em que existe somente matria no pode haver nenhum valor intrnseco. Em termos filosficos, pode-se dizer assim: Os valores morais objetivos s existem se Deus existir. Os valores morais objetivos de fato existem [uma questo que Harris reconhece em sua Carta], Logo, Deus existe. Uma anlise dessas premissas e da sua validade nos d um forte argumento para a existncia de Deus. Com efeito, J. L. Mackie, um ateu que vocifera bastante e questiona a existncia de Deus com base na realidade do mal, admite pelo menos essa relao lgica, ao dizer: "Podemos alegar [...] que caractersticas objetivas, intrinsecamente normativas, alheias s naturais, constituem um grupo de qualidades to estranhas que pouco provavelmente teriam surgido do curso normal dos acontecimentos sem um Deus todo-poderoso que as criasse".3 1 Desse modo, temos de concordar com a concluso de que nada pode ser intrnseco e normativamente bom se no houver tambm31 Citado em Mo r e la n d ,

J. R Reflections on M eaning in Life w ith out God, Trinity Journal

um Deus que tenha criado o Universo desse modo. Esse, entretanto, justamente o Ser cuja existncia Harris nega com base na existncia do mal.

Ser que a razo sozinha pode produzir um sistema moral?Postulando um mundo desprovido de qualquer sistema moral, Harris escolhe a "razo" como origem de sua convico da no existncia de Deus ao mesmo tempo que conserva a crena em um cdigo moral. Pois, ento, oua o que diz o filsofo canadense Kai Nielsen, um fecundo defensor do atesmo: "A razo aqui no resolve. O quadro que descrevi no nada agradvel. Refletir sobre ele me deprime. A pura razo prtica, mesmo com um bom conhecimento dos fatos, no o leva a inferir a moralidade".3 2 Assim, em seus prprios termos atestas, Sam Harris est se comprometendo com um raciocnio que s vlido se Deus existe, ou est fazendo declaraes ilgicas. Ainda falta ele dizer que Deus viola suas prprias leis e, portanto, mau ou contraditrio. Fazendo isso, porm, ele estaria afirmando uma capacidade inata de reconhecer a violao da prpria lei moral de algum como uma falha moral. Harris est pressupondo claramente que Deus mata pessoas inocentes (ver Carta, 52-34) e, desse modo, viola suas prprias leis. Vamos admitir isso por ora. Por que matar inocentes errado? errado porque Deus diz que ? errado porque Harris acredita que no se deve matar inocentes? Se aceitamos a primeira hiptese, a saber, que errado porque Deus diz que , ento Deus se contradiz com seus atos ao dizer que errado matar inocentes e ainda assim mat-los. Harris, todavia, no est32 W h y S hould I Be M oral?, A m e ric a n Philosophical Q uarterly 2 1 ,1 9 8 4 . p. 90.

isento da responsabilidade de provar seu argumento de que os inocentes no devem ser mortos. Para acreditar genuinamente nisso, ele precisa pressupor um sistema moral que sustente o valor intrnseco da vida inocente. Com base no seu ponto de partida atesta, entretanto, ele no tem fundamentos para esse sistema moral. Isso deixa-nos com uma terceira opo que Harris ignorou completamente ou se recusou a analisar: ele est fazendo uso seletivo da revelao bblica de justia e vingana, ao mesmo tempo que ignora a grande histria em que ela se enquadra e que lhe d sentido. Sua tese moral distorce as questes mais refinadas da Bblia e ao mesmo tempo nega seu todo. O cristianismo ensina que cada vida tem valor supremo. No secularismo, embora no haja nenhum valor essencial para a vida, o ateu escolhe subjetivamente determinados valores para aclamar. Todo dia se joga esse jogo no campo de batalha relativista. Entretanto, os relativistas recusam-se a dar ao outro lado o benefcio de jogar segundo as mesmas regras deles.

No possvel termos livre-arbtrio sem sofrerSe Sam Harris deseja falar sobre sofrimento, ele precisa falar sobre a autonomia humana em oposio histria de Deus de por que somos como somos. Embora o sagrado se nos oferea, o desejo arrogante e se recusa a submeter-se autoridade de Deus. Nenhum de ns diferente em nada de nenhum outro nem melhor em nada. Alguns apenas mascaram melhor sua verdadeira natureza. A histria do sofrimento no pode ser contada sem a histria da soberba humana e de nossa necessidade de que Deus nos transforme o corao.

Ser que Harris est exigindo que Deus crie em ns a capacidade de amar sem nos dar a opo de rejeitar esse amor, o desejo de confiar e ser confiado sem a liberdade de duvidar, o privilgio de fazer uma escolha sem a responsabilidade de aceitar as conseqncias dessa escolha? Acho lamentvel a sagacidade com que ele emprega a linguagem para varrer para debaixo do tapete a situao humana. Ele considera Deus, "se que [ele] existe, o mais produtivo dos fazedores de aborto" [Carta, 38), dizendo que mesmo uma s morte nas mos de Deus inaceitvel, enquanto ele prprio vira o rosto para o outro lado enquanto milhes de crianas no nascidas so abortadas.

Direito moral de quem? Nosso ou de Deus?Faz alguns anos, eu e o clebre astrnomo Hugh Ross estvamos participando de um programa de entrevistas de rdio na Ohio State University. Estvamos falando sobre algum tema relacionado com a origem do Universo quando uma mulher enraivecida surgiu e comeou a nos atacar com uma saraivada de palavras. A acusao dela era de que nosso dilogo na verdade no era nada mais que uma cortina de fumaa para dizer o contrrio do caso Roe versus Wade33 e tirar o direito da mulher fazer aborto. Lembre-se, estvamos falando acerca da origem do Universo. Em todo o seu discurso ela insistiu reiteradamente: " meu direito moral fazer o que eu decidir fazer com meu corpo!". Por fim, quando ela parou para tomar flego, eu disse: "Tudo bem, senhora. J que a senhora falou sobre o assunto, eu gostaria de fazer uma pergunta. Ser que a senhora pode me explicar uma coisa? Quando um avio cai, e algumas pessoas33 Caso Roe versus l/l/ar/e decidido pela Suprema Corte dos Estados Unidos em 1973. [N. do T.]

morrem enquanto outras sobrevivem, um ctico pe em questo o carter moral de Deus, dizendo que ele escolheu alguns para sobreviver e outros para morrer por mero capricho. A senhora, contudo, alega que direito moral seu decidir se a criana no seu ventre deve viver ou morrer. Isso no parece estranho? Quando Deus decide quem deve viver e quem deve morrer, ele imoral; quando a senhora decide quem deve viver ou morrer, seu direito moral". Fez-se um silncio tal que se poderia ouvir um alfinete caindo no cho. Um indivduo pode dizer com desdm que no enxerga nenhuma ordem moral. Eu, porm, desconfio veementemente de que a verdadeira questo no a ausncia de ordem moral no mundo, mas, sim, a insistncia das pessoas em decidir por si mesmas o que bom e o que ruim, a despeito do que sabemos intuitivamente ser verdadeiro. Vamos ser sinceros. Para crer que no existe nenhuma ordem moral, preciso pressupor o conhecimento de como seria uma ordem moral, se ela existisse. Por que, ento, a opinio de uma pessoa de como seria uma ordem moral deve ser mais autntica que a opinio de qualquer outra? Alm disso, se de fato no h nenhuma ordem moral, qualquer tentativa de aplicar alguma puro pragmatismo, sujeito a questionamentos por outras razes pragmticas. Por outro lado, antes de acusar o Deus da Bblia de violar sua prpria lei moral, qualquer pessoa no deveria considerar o fato de que o mesmo Deus que criou o cdigo moral tambm d os motivos por que permite a dor e o sofrimento? Por que discutir, mesmo a ttulo de argumentao, a possibilidade de Deus ter dado um cdigo moral e ignorar o raciocnio que o acompanha?

Resistimos naturalmente ordem moral de DeusPor que ns, os seres humanos, resistimos naturalmente ordem moral de Deus? Porque por trs de todos os argumentos existe um punho cerrado, como o do ex-primeiro-ministro russo Joseph Stalin, cujo ltimo gesto antes de morrer foi se levantar da cama e sacudir os punhos para o cu. Sam Harris e Richard Dawkins esto, na verdade, fazendo o mesmo, embora na plenitude da vida. Debaixo de toda a verbosidade intelectual existe o desejo dissimulado de que haja um mundo sem Deus. Por qu? Aldous Huxley respondeu em nome de todos os cticos quando escreveu que queria que o mundo no tivesse sentido para poder libertar-se de todas as exigncias morais da religio. 0 irnico, todavia, que ele denunciou a incapacidade moral da cincia: "Estamos vivendo agora no na deliciosa embriaguez induzida pelos avanos anteriores da cincia, mas, sim, num dia seguinte medonho, em que ficou bem evidente que o que a magnfica cincia fez at aqui foi melhorar os meios para se atingirem fins desperdiados ou, na verdade, deteriorados".34 Fascinante, vindo de Huxley, no ? A cincia que ele tenta vender como a salvadora do mundo no tem fora moral em si. Por que, ento, deveramos nos surpreender? No esse o papel da cincia. At Richard Dawkins, o heri de Harris, reconhece que a cincia no tem mtodos nem autoridade para decidir o que tico.35 E intelectuais como o cientista hngaro Michael Polanyi3634 H u x le y ,

Aldous. Ends a n d M e a n s . London: Chatto & W indus, 1 9 4 6. p. 310.

35 Ver D a w k in s , Richard. A D evil's C haplain. London: W eildenfield & Nicholson, 2 0 0 3 . p.34. 36 Ver P o lanyi, Michael. Science, Faith, and Society. Chicago: Univ. of Chicago Press, 1946; ver tam bm o seu Personal Knowledge: Towards a Post-Critical Philosophy. Chicago: Univ. of Chicago Press, 1962; ver tam bm L e w in , Philip. The Problem of Objectivity in Post-Critical Philosophy. Disponvel em : < http://www.missouriwestern.edu/orgs/polanyi/TAD% 20 WEB%20ARCHIVE/TAD 18-1/TA D 18-1 -fnl-pg18-26-pdf.pdf > . Acesso em: 18 de set. 2007.

passaram a vida toda como filsofos da cincia advertindo acerca dessa hegemonia que os ateus procuram. Apesar de preso no campo de extermnio de Auschwitz, Viktor Frankl no culpou Deus pelo Holocausto. Ele atribui a culpa desse horror aos homens e s mulheres que pensam como Sam Harris. Preste ateno no que Frankl diz em The Doctorand the Soul:Se damos a um indivduo um conceito inverdico de homem, podemos corromp-lo. Quando apresentamos o homem como um autmato de reflexos, uma mquina pensante, um pacote de instintos, um fantoche com impulsos e reaes, mero produto do instinto, da hereditariedade e do ambiente, alimentamos o niilismo para o qual, em todo caso, o homem moderno tende. Tive conhecim ento do ltimo estgio dessa corrupo no meu segundo campo de concentrao, Auschwitz. As cmaras de gs de Auschwitz eram a conseqncia mxima da tese de que o homem no nada mais que o produto da hereditariedade e do meio ou, como os nazistas gostavam de dizer: "do Sangue e do Solo". Estou plenam ente convencido de que as cmaras de gs de Auschwitz, Treblinka e Maidanek foram preparadas em ltim a anlise no em algum m inistrio de Berlim, mas, sim, nas mesas de trabalho e nas salas de conferncia de cientistas e filsofos niilistas.37

Numa entrevista ao The Wall Street Journal, em abril de 2007, o ex-presidente da Indonsia Abdurrahman Wahid38 foi bem claro

37 F r a n k l, Viktor E. T h e D octor and th e Soul: from Psychotherapy to Logotherapy. N e w

York: Vintage, 1 9 7 3. p. xxi. 38 Ver S tephens , Bret. The Last King of Java, W all S tre e t Journal, 7 de abril de 207, seo A9.

acerca de quem ele responsabiliza pelo fundamentalismo islmico. Ele prprio moderado e tem ideias pr-Ocidente, sendo por isso responsvel por sua vida. Ele afirma expressamente que os estudantes universitrios de seu pas protestam no contra o processo democrtico, mas contra a crena radical de que o conhecimento cientfico o nico conhecimento uma crena que elimina a alma. o estado de esprito anti-Deus forado que est levando muitos para o outro extremo. No irnico que, quando o isl est numa posio de poder, as crenas islmicas so obrigadas a todos e que, quando o atesmo est em vantagem, as crenas atestas sejam foradas a todos? Somente no cristianismo se d o privilgio tanto de crer quanto de no crer sem nenhuma coao.

Ser que os ateus so mais "morais" que os outros?Sam Harris pergunta: "Quando ocorreu o ltimo distrbio social atesta?" (Carta, 39). Ser que alguma vez ele identificou a ligao entre seu sistema de ideias e os radicais extremistas violentos? As ideias tm conseqncias, sim. 0 pensamento antecede a ao, e o incitamento do seu tipo de discurso inflamado pode gerar exatamente aquilo que ele de forma to magnnima quer negar. Ser que ele no viu a violncia que ocorreu nas greves dos sindicatos na Europa? Havia atestas presentes ali, todos sabemos. Ser que ele no ouviu falar dos tumultos na regio de Watts em Los Angeles e em outras partes? Havia ateus presentes, ns sabemos. Ser que ele no leu sobre a mquina de extermnio instituda por Stalin depois que este abandonou Deus e virou ateu? Agora eu pergunto: vocs viram algum tumulto depois do lanamento do filme baseado no romance de Nikos Kazantzakis, A ltima tentao de Cristo? Viram algum tumulto depois da

exibio da "obra de arte" de Andres Serrano -

uma fotografia

de um crucifixo imerso em urina? Viram alguma sala de cinema incendiada depois da exibio do pretensioso e mal-informado O cdigo Da Vinci ou depois da recente farsa veiculada em maro de 2007 pelo Discovery Channel: um documentrio alegando que os ossos de Jesus tinham sido encontrados numa sepultura em Jerusalm, em 1980? (Eu poderia acrescentar que, se todas essas histrias fossem verdadeiras, a pessoa seria obrigada a acreditar no sobrenatural para que Maria Madalena esteja em tantos lugares ao mesmo tempo!) Fico me perguntando o que aconteceria se um filme que expusesse prticas homossexuais, usando pesquisa mdica para analisar a prtica, fosse exibido em nossas salas de projeo. Gostaria de saber o que aconteceria se o ensino do atesmo fosse proibido em nossos campi universitrios. Talvez presencissemos tumultos sem precedentes. Os ateus no precisam fazer manifestaes de protesto. Eles aos poucos tm tomado nosso direito at de falar na academia. Eles querem nos calar. Quando estive em Oxford recentemente, falaram-me de um artigo escrito por Richard Dawkins no qual ele defendia que qualquer candidato a aluno com a viso de mundo criacionista devia ter a admisso em Oxford recusada. E ele critica a intolerncia da religio! Dawkins professor de Oxford, uma universidade cujo moto "The Lord Is My Light" [O Senhor minha luz], Ele tem privilgios para ensinar por causa da tica de tolerncia judaico-crist. E, agora que est em posio de controle, ele quer expulsar no s os docentes cristos, mas tambm at os alunos que no compartilham de seu ponto de vista ateu. Pergunte a qualquer universitrio cristo quanto os professores cristos precisam ser

cuidadosos em relao a confessar a f em sala de aula. Agora Dawkins e outros querem que tambm os alunos se calem. Por trs da perigosa correo poltica deles esconde-se um programa para reprimir todo pensamento que seja diferente do deles. N o p o dem os e lim in a r a d o r a re a lid a d e se ntida do m a l deste m undo Quero declarar aqui uma importante verdade da viso de mundo crist. Ao remover a dor da experincia humana, Sam Harris est, com efeito, tentando remover a realidade sentida do mal. Existe uma diferena fundamental entre Deus permitir que ocorra uma morte e eu tirar a vida de outra pessoa: Deus tem o poder para restituir a vida, eu no. A histria do mal parte de uma grande narrativa. Ignorar a narrativa maior continuar levantando os detalhes sem aceitar o geral. Na verdade, no resta opo a no ser dizer que o que chamamos de mal no existe e no deve haver esse negcio de dor. De fato, a psiquiatria est se debatendo com os efeitos de uma droga que elimina a dor e o remorso. Que tipo de mundo teremos quando um estuprador puder tomar uma "plula do dia seguinte"? H algum tempo, li um artigo a respeito de uma garotinha de 3 anos em Elk River, Minnesota, que sofre de uma doena rara que causa insensibilidade dor.39 Chama-se Congenital Insensitivity to Pain with Anhidrosis [Insensibilidade congnita dor com Anidrose] CIPA. As pessoas que tm essa doena no sentem

33 Ver Rare N erve Disorder Leaves Girl Pain-free, AP N e w s , 26 de abril de 2 0 0 4. Disponvel em : < h ttp ://w w w .m s n b c .m s n .c o m /id /4 7 8 8 5 2 5 /> . Acesso em: 7 de set. 20 0 7;S te rn b e rg ,

Steve. Chronic Pain: The Enemy W ithin, U S A Today, 8 de maio de 2 0 0 5 .

Disponvel em: < h ttp ://w w w .u s a to d a y .e o m /n e w s /h e a lth /2 00 5 -0 5 -0 8 -c h ro n ic -p a in cover x .h tm > . Acesso em: 7 de set. 2007.

dor alguma, tambm no transpiram nem tm lgrima. Existe apenas cerca de uma centena de casos no mundo. A pequena Gabby Gingras tem de ser vigiada constantemente. Aos 4 meses de idade, os pais notaram que ela mordia os dedos at sangrar sem nenhuma expresso de desconforto. Quando tinha 2 anos, teve de extrair os dentinhos para evitar se morder e causar algum ferimento grave. Ela podia pr a mo num prato quente e se queimar sem sentir nenhuma pontada de dor. Precisa usar constantemente culos de segurana porque certa vez arranhou a crnea gravemente. Gabby pratica esportes absolutamente sem medo, nunca hesita em bater em nada. Ela diz que s vezes sente vontade de chorar, mas no consegue. A vida dessa garotinha est em perigo constante. O perodo de vida mdio para uma pessoa com essa doena so vinte e cinco anos. Os pais de filhos com CIPA oram por uma coisa: que a criana possa sentir dor. Se em nosso mundo finito, com nosso conhecimento limitado, possvel ser capaz de valorizar apenas um benefcio da dor, no seria possvel que Deus tenha projetado essa conscincia em ns para nos lembrar do que bom para ns e o que nos destrutivo? Por mais horrendo que s vezes o exemplo parea, ser que no enxergamos o sistema moral que detecta atrocidades e resiste s tragdias? Ser que no h uma resposta melhor e mais profunda do que simplesmente afirmar que Deus no existe? Foi outro ateu, O. Hobart Mowrer,40 que entrou para a Histria dizendo que, ao negar a realidade do pecado, ns na verdade perdemos nosso rumo como seres humanos e agora estamos tateando no escuro em busca de uma definio do sentido da vida.40 VerM o w re r, 0 .

Hobart. Sin the Lesser of Two Evils, A m e ric a n P sychologist

15, 1 9 6 0 . p.

Negar a existncia de Deus nos leva a concluses absurdas e ridculas de forma tal que, por fim, o mundo amoral do ctico que no consegue explicar o bem pior que o mundo do testa que no tem explicao para o mal. A meu ver, isso est na raiz de nossas diferenas. Harris simplesmente nega a condio do corao humano, apesar da abundncia de evidncias do contrrio. Lembro-me de Malcolm Mugeridge certa vez ter observado que a depravao do corao humano a um s tempo a realidade mais resistida intelectualmente, apesar de ser a mais verificvel empiricamente. A perversidade sempre desculpada como tudo, menos como a degenerescncia moral resultante do fato de cada um de ns ser o deus de Deus.

O corao humano inclinado para o malQuer evidncias empricas de que o corao humano naturalmente inclinado para o mal? Observe as atrocidades que vemos a nossa volta neste mundo! No podemos continuar culpando este ou aquele "-ismo". As escolhas e aes de cada indivduo so determinadas pelo que importante para ele. Tome cuidado para no julgar uma filosofia por seu mau emprego. A diferena entre algum que se diz cristo e mesmo assim mata e assassina e um ateu que faz o mesmo que o cristo est violando sua convico religiosa, enquanto o ato do ateu a manifestao externa legtima de sua convico. Lembra-se do que disse Karl Marx? Ele ficaria orgulhoso das amarras metafsicas de Sam Harris sobre a religio, pois procurava o mesmo que Harris. Marx disse que a religio "o pio do povo". Claro, todo mundo que odeia religio se lembra dessa citao. Mas se esquece, deliberadamente ou por outro motivo, o que Marx

disse na continuao desse pensamento: "A religio o suspiro da criatura oprimida, o corao de um mundo sem corao, a alma das circunstncias desalmadas. o pio do povo [...]. A religio apenas o sol ilusrio que gira em torno do homem enquanto este no gira em torno de si mesmo".4 Os ateus querem que giremos 1 em torno de ns mesmos no, querem ainda mais, querem que giremos em torno de suas filosofias incertas.

Como podemos definir o amor?Com base na teoria da origem atesta, a morte do sentido e a morte do raciocnio moral esto garantidas. O que mais se descarta? O amor. Como seria a definio atesta do amor, permita-me perguntar? Ser que o amor tambm seria o produto de glndulas, assim como o mal nada mais do que danar conforme o ritmo de um DNA,42 de acordo com Richard Dawkins? Vou contar uma histria que cresci ouvindo. Na cultura indiana muitos valores so ensinados por parbolas e provrbios. Uma dessas parbolas esta: a histria de um jovem de um vilarejo que se apaixonou por uma mulher de outra vila. O amor dele por ela era verdadeiro, mas ela estava apenas brincando com ele. Um dia ela lhe insinuou que, se quisesse mesmo se casar com ela, ele deveria provar que a amava com amor maior que o que ele tinha por qualquer outra pessoa. A resposta do jovem foi: "Claro que eu a amo mais que amo qualquer outra pessoal". "Nem tanto", ela replicou, "porque voc ama sua me mais do que a mim".

41 A Contribution to th e Critique of Hegel's Philosophy of Right, Early W ritin g s , London: Penguin, 1 9 7 5. p. 2 4 4 . 42 Ver Daw kins, Richard. R iver o u t of Eden. N e w York: Basic Books, 1995. p. 133.

Achou a resposta da moa muito absurda e tentou lhe explicar que o amor dele pela me era diferente do amor que sentia por ela. Ela, porm, no aceitava essa resposta. "Se voc no estiver disposto a matar sua me e me trazer o corao dela como trofu da minha vitria, no casarei com voc", comunicou. O jovem voltou para sua vila profundamente perturbado e completamente confuso. Um dia, num acesso de desespero para conquistar a moa, ele pegou uma faca e matou a me. Arrancando-Ihe o corao do peito, ele o agarrou na mo e correu alguns quilmetros at a vila da amada para lhe entregar o trofu. Ao correr pela floresta, entretanto, ele tropeou de repente e caiu, e o corao lhe escapou da mo. Agora de quatro, afastando as moitas e procurando desesperadamente o corao, comeou a entrar em pnico. Frentico, ele rolou uma pedra, e l estava o corao atrs dela. Com enorme alvio, apanhou-o com muito cuidado com uma das mos. Enquanto se levantava, sacudindo a poe