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1 A MULHER NOS JOGOS RIO-2016: A REPRESENTAÇÃO DISCURSIVA DAS ATLETAS E PARATLETAS NA MÍDIA BRASILEIRA Cláudia Nandi Formentin Vanessa Wendhausen Lima Resumo: Com a realização dos Jogos Olímpicos e Paralímpicos, em 2016, no Rio de Janeiro, os olhares do mundo se voltaram para o contexto esportivo que envolveu o Brasil no período pré, durante e pós-evento. A expectativa era que a imprensa realizasse uma ampla cobertura sobre os jogos em si e sobre as/os atletas e as/os paratletas participantes. Apesar de esperarmos uma cobertura exclusivamente técnica, sabíamos, de antemão, que há fatores que poderiam impedi-la, como o apagamento social que tem sido conferido à mulher ao longo dos séculos e que a tem impedido de alcançar uma posição de equidade em relação ao homem, por exemplo. Também já tínhamos ciência de que as paratletas enfrentam a mesma ou mais dificuldade em encontrar e manter esse lugar social que lhe é negado e, sendo assim, a imprensa não demonstraria uma realidade diferente daquela já conhecida. Entretanto, entendemos que a cada vez que um texto apresenta um tema relacionado às questões de gênero, nesse caso, a mulher, acreditamos que o tema se torna motivo de debate permitindo uma reflexão sobre o assunto e cremos ser apenas isso, uma razão importante para esse tipo de estudo. Assim, estabelecemos como objetivo para este artigo, o de analisar a representação discursiva sobre as mulheres atletas e paratletas competidoras nos Jogos Rio-2016 apresentada pelas revistas Veja e IstoÉ em suas publicações nas semanas de abertura desses Jogos, respectivamente. Para isso, utilizaremos da Análise do Discurso a fim de analisar não somente os textos publicados, como também as imagens/fotografias apresentadas nas matérias sobre o tema. Esperamos encontrar nessas revistas, especificamente, uma representação técnica e esportista de atletas e paratletas tanto quanto encontramos, facilmente, esse tipo de representação sobre os homens competidores nesses Jogos. Palavras-chave: Mulher; Representação Discursiva; Mídia. Introdução Exatamente por conta de uma insistente desigualdade social entre homens e mulheres, que faz com que as mulheres precisem conquistar um espaço que lhe é negado recorrentemente e, que permite que aspectos da vida em sociedade continuem levando essa desigualdade adiante é que reflexões ainda se fazem necessárias. Em um tempo em que a mídia, detentora de uma alta voz, também insiste em perpetuar discursos que inflam essa desigualdade entre os gêneros, debates se fazem urgentes. Neste ano aconteceram os Jogos Olímpicos e Paralímpicos, na cidade do Rio de Janeiro, no Brasil. Diante da atualidade do tema, nosso objetivo é analisar como a mídia retratou as atletas e paratletas competidoras desses mesmos jogos nos períodos de abertura destes e de que forma a mídia se portou diante da desigualdade entre os gêneros, se combatendo ou mantendo os discursos que influenciam esse comportamento social que impede a equidade.

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A MULHER NOS JOGOS RIO-2016: A REPRESENTAÇÃO DISCURSIVA DAS ATLETAS E

PARATLETAS NA MÍDIA BRASILEIRA

Cláudia Nandi Formentin

Vanessa Wendhausen Lima

Resumo: Com a realização dos Jogos Olímpicos e Paralímpicos, em 2016, no Rio de Janeiro, os olhares do mundo se voltaram para o contexto esportivo que envolveu o Brasil no período pré, durante e pós-evento. A expectativa era que a imprensa realizasse uma ampla cobertura sobre os jogos em si e sobre as/os atletas e as/os paratletas participantes. Apesar de esperarmos uma cobertura exclusivamente técnica, sabíamos, de antemão, que há fatores que poderiam impedi-la, como o apagamento social que tem sido conferido à mulher ao longo dos séculos e que a tem impedido de alcançar uma posição de equidade em relação ao homem, por exemplo. Também já tínhamos ciência de que as paratletas enfrentam a mesma ou mais dificuldade em encontrar e manter esse lugar social que lhe é negado e, sendo assim, a imprensa não demonstraria uma realidade diferente daquela já conhecida. Entretanto, entendemos que a cada vez que um texto apresenta um tema relacionado às questões de gênero, nesse caso, a mulher, acreditamos que o tema se torna motivo de debate permitindo uma reflexão sobre o assunto e cremos ser apenas isso, uma razão importante para esse tipo de estudo. Assim, estabelecemos como objetivo para este artigo, o de analisar a representação discursiva sobre as mulheres atletas e paratletas competidoras nos Jogos Rio-2016 apresentada pelas revistas Veja e IstoÉ em suas publicações nas semanas de abertura desses Jogos, respectivamente. Para isso, utilizaremos da Análise do Discurso a fim de analisar não somente os textos publicados, como também as imagens/fotografias apresentadas nas matérias sobre o tema. Esperamos encontrar nessas revistas, especificamente, uma representação técnica e esportista de atletas e paratletas tanto quanto encontramos, facilmente, esse tipo de representação sobre os homens competidores nesses Jogos.

Palavras-chave: Mulher; Representação Discursiva; Mídia.

Introdução

Exatamente por conta de uma insistente desigualdade social entre homens e

mulheres, que faz com que as mulheres precisem conquistar um espaço que lhe é negado

recorrentemente e, que permite que aspectos da vida em sociedade continuem levando essa

desigualdade adiante é que reflexões ainda se fazem necessárias. Em um tempo em que a mídia,

detentora de uma alta voz, também insiste em perpetuar discursos que inflam essa desigualdade

entre os gêneros, debates se fazem urgentes.

Neste ano aconteceram os Jogos Olímpicos e Paralímpicos, na cidade do Rio de

Janeiro, no Brasil. Diante da atualidade do tema, nosso objetivo é analisar como a mídia retratou

as atletas e paratletas competidoras desses mesmos jogos nos períodos de abertura destes e de

que forma a mídia se portou diante da desigualdade entre os gêneros, se combatendo ou

mantendo os discursos que influenciam esse comportamento social que impede a equidade.

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Um contexto prejudicial

As mulheres vêm lutando por seu espaço há algum tempo e obtiveram algumas

conquistas, é verdade. Algumas dessas conquistas já podem ser consideradas corriqueiras para

algumas de nós: o direito à voto, a utilização da pílula anticoncepcional, a independência paterna

ou conjugal, o direito à fala e ao trabalho. Dizemos algumas de nós, porque sabemos que muitas

mulheres ainda enfrentam o controle de seus pais ou maridos e estes, por sua vez, não as

permitem ser independentes.

Não é preciso muito esforço para reconhecer a importância e o significado dessas

conquistas que, apesar de importantes, estão longe de serem as últimas. Ainda hoje, nós mulheres

temos muito pelo que lutar, tendo em vista que muitas de nós ainda morremos nas mãos violentas

de nossos parceiros e/ou sofremos violência emocional e moral vindas destas mesmas mãos. Para

além disso, sofremos com os abusos vindos de homens que nem conhecemos, de uma sociedade

que insiste em limitar o caráter feminino (para não dizer, a qualificação pessoal) ao número de

parceiros sexuais que tivemos ao longo da vida. Esse é apenas um retrato superficial de uma

sociedade patriarcal que, apesar de se dizer atualizada, ainda nos enxerga como inferiores.

As conquistas femininas, nossas conquistas, ainda estão longe de terminar, muito

longe de terem chegado ao seu apogeu e, sabemos como tem sido essa luta em muitas das práticas

sociais que são mais recorrentes e nos chegam diariamente. No entanto, ainda nos falta conhecer

e refletir sobre a área esportiva, tendo em vista que, muitos dos esportes oficiais são

predominantemente masculinos.

Em 2016 aconteceram os tradicionais jogos olímpicos e paralímpicos e, este ano, as

competições foram sediadas pela cidade brasileira do Rio de Janeiro (RJ). O número de atletas que

compõem o quadro de competidores olímpicos é grande: mais de onze mil atletas, conforme a

organização do evento. Destes atletas, 45% são mulheres, um número expressivo que chega perto

da equidade, mesmo que sejamos 52% da população mundial1.

Já os Jogos Paralímpicos aconteceram de 07 a 18 de setembro, nas mesmas instalações

preparadas para os jogos olímpicos, como de costume. O número de competidores também é

expressivo: segundo informações do governo federal2 foram mais de 4.300 atletas paralímpicos

vindos de 160 países e participando de 22 categorias. Dos paratletas competidores, 37,93% 3 são

mulheres, proporção ainda menor que os competidores olímpicos.

Diante de tal desigualdade – e não só a social – nosso objetivo é analisar de que forma

a mídia impressa fez a cobertura dos Jogos Olímpicos e Paralímpicos em suas respectivas semanas

de abertura, para assim identificar a forma como as mulheres foram representadas

discursivamente pela mídia brasileira. É fato que não seria uma novidade perceber a ausência do

feminino e do deficiente no mainstream midiático brasileiro, entretanto são tais análises que

fazem com que as atenções se voltem ao tema a cada vez que se publica algo sobre o assunto.

Também não nos é novidade que, quando dois pontos de invisibilidade se unem, como

o feminino e a deficiência, sua presença é ainda mais ignorada e isso não tem a ver apenas com a

mídia, mas com uma sociedade inteira. Cabe lembrar que a mídia é apenas um reflexo da sociedade

1 BURIGO, J. Rio 2016: a Olimpíada das mulheres. Disponível em:

http://www.cartacapital.com.br/sociedade/rio-2016-a-olimpiada-das-mulheres 2 Fonte: http://www.brasil.gov.br/esporte/2016/09/brasil-tera-atletas-em-22-modalidades-da-paralimpiada 3 Fonte: https://www.rio2016.com/paralimpiadas/noticias/comite-paralimpico-internacional-anuncia-total-de-

medalhas-e-participacao-recorde-de-mulheres-no-rio-2016

3

que a abriga, mas que também exerce influência sobre esta. Este ponto de influência é que nos

permite aos analistas do discurso algum eixo de trabalho, pois se a mídia exerce tal influência

social, devemos agir de forma a transformar seus discursos para transformar, assim, a visão social

sobre alguns aspectos, ou vários. Dentre eles, estabelecendo a igualdade entre os gêneros.

Sabemos que o discurso circula subliminarmente, assim como sabemos que este se

constrói na linguagem e se efetiva através das práticas sociais. Segundo Fairclough (2008/1992,

p. 90-91), para considerar o discurso como um aspecto intrínseco à vida social, deve-se entender

o termo discurso como prática social e isso significa a) “ser o discurso um modo de ação, uma

forma em que as pessoas podem agir sobre o mundo e especialmente sobre os outros, como

também um modo de representação”; e b) “numa relação dialética entre o discurso e a estrutura

social, existindo mais geralmente tal relação entre a prática social e a estrutura social”. Assim, ao

passo que se entende a conexão entre discurso e sociedade, entende-se também que, modificando

um deles, atinge-se, consequentemente, o outro.

Diante desse processo de recorrente influência entre a prática social e o discurso,

nosso objetivo é analisar a maneira como as atletas e paratletas competidoras nos jogos Rio-2016

foram representadas discursivamente nas revistas Veja e IstoÉ para que assim possamos não só

reafirmar um notório apagamento da mulher na sociedade, mas muito mais para reacender

sempre as reflexões sobre as questões de gênero em âmbitos extra acadêmicos. Para a ciência, as

discussões sobre esse tema têm sido ampliadas cada vez mais, mas para o público em geral, em

especial os leitores de semanários, essa discussão ainda é “mimimi”.

A fim de alcançar esse objetivo, nosso corpus é composto pelas edições 2489 e 2494

da revista Veja e, 2434 e 2439 da IstoÉ, publicadas nas semanas de abertura dos Jogos Olímpicos

– 05 de agosto de 2016 – e Paralímpicos – 07 de setembro de 2016.

Os jogos olímpicos

As Olimpíadas faziam parte da cultura da Grécia Antiga, sendo um evento que

costumava parar conflitos. Naquela época, os jogos aconteciam na cidade de Olímpia em

homenagem aos deuses que compunham o panteão do Olimpo.

Os Jogos Olímpicos da Era Moderna começam a ser organizados em 1894, por Pierre

de Coubertin. Esse período, conforme Rubio (2001), coincidiu com a formação de uma atmosfera

fortalecida por organizações internacionais empenhadas em promover a paz. Isso acontecia,

segundo a autora, “porque, embora durante o século XIX tivesse ocorrido um grande

desenvolvimento das ciências humanas e da produção de ideias, os conflitos ainda eram

resolvidos de forma brutal por meio da guerra” (RUBIO, 2001, p. 56).

O primeiro evento acontece em Atenas, em 1896. Tal e qual na Antiguidade, nos mais

de 100 anos em que as competições olímpicas foram realizadas na Era Moderna, estas também já

foram interrompidas por causa das duas Guerras Mundiais bem como por conta de “boicotes

promovidos por países de várias partes do continente, sob diversas alegações, indicando que o

Movimento Olímpico não está alheio às questões sociais e políticas do mundo contemporâneo

como desejava Barão de Coubertin” (RUBIO, 2001, p. 57).

Na primeira edição dos Jogos Olímpicos da Era Moderna não houve participação

feminina. No entanto, segundo Rubio (2001, p. 58), o movimento de emancipação feminina

pressionava a inclusão da mulher “nas várias esferas da vida social, inclusive no esporte”. Quatro

anos depois, em Paris, de vestido de anágua e cinta liga, as mulheres participaram de modalidades

como tênis e croquet e representavam 2,2% do total de atletas, cerca de 1500 participantes (RIO

4

2016, 2016). Conforme Oliveira (2006, p. 6), “até 1924 era, ainda, irrelevante a representação

feminina nos Jogos enquanto os homens compunham um total de 2956 participantes, as mulheres

eram somente 136”. Aos poucos, as mulheres passaram a ocupar quadras, pistas e ringues. Na

Olimpíada de 1928, por exemplo, elas participaram de algumas provas de atletismo (RIO 2016,

2016). Na Europa, da década de 1930, o movimento pelo direito de participar do cenário esportivo

prosseguiu, conforme Firmino (2014), concomitantemente às lutas sociais desse grupo e das

posições conquistadas (como direito ao voto, por exemplo). Conforme Firmino (2014, p. 20) “os

Jogos de Los Angeles, em 1932, continuaram permitindo a presença feminina. No entanto, o

número de atletas caiu para 127, em decorrência da crise econômica mundial que estourou em

1929, com a quebra da Bolsa de Nova York”.

Cem anos depois da primeira edição, nos Jogos de 1996, realizados em Atenas, o

número de mulheres havia aumentado de maneira significativa. No entanto, conforme indica

Oliveira (2006, p. 7) o total de mulheres (3523 atletas) não correspondia ainda a 50% do total de

homens (6797 atletas). Oliveira (2006, p. 7) ressalta que a pequena participação feminina,

especialmente até o fim do século XX, pode ser explicado por “uma auto-exclusão, além dos valores

morais da época”. A autora destaca, ainda, que “o papel cultural diferenciado na sociedade entre

as mulheres e homens também contribuiu para restringir a participação feminina em

competições, diminuindo, desta forma, as chances de aparecimento de talentos” (OLIVEIRA, 2006,

p. 7). A autora acrescenta o desconhecimento do organismo feminino e seus limites, como o medo

da masculinização do corpo. Nesse sentido, para a autora, o aumento na participação feminina

indica que as mulheres estão tendo cada vez mais acesso a treinamento especializado, que os

tabus apresentados vêm sendo eliminados, bem como tem havido a comprovação científica dos

benefícios da prática esportiva para a saúde feminina.

Segundo Oliveira (2006), observa-se que a diferença observada entre os resultados

de atletas homens e atletas mulheres vem diminuindo em várias provas. Ela destaca a natação

como sendo a prova em que se verifica uma menor diferença de resultados. Para a autora isso é

explicado

pois na água, o fato das mulheres terem maior quantidade de gordura subcutânea que os homens, favorece a nadadora, de maneira significativa, sobretudo nos componentes horizontais e de arranque durante a prova. Elas têm melhor deslize na água além de uma melhor manutenção da temperatura interna visto a característica isolante do tecido gorduroso. O mesmo não ocorrendo em terra, quando as diferenças sexuais relativas à composição corporal, ou seja, mulheres com maior quantidade de gordura subcutânea e homens com maior quantidade de massa muscular, determinam em grande parte a diferença entre os resultados masculinos e femininos (OLIVEIRA, 2006, p. 8).

Jogos Paralímpicos

Ludwig Guttmann nasceu em 1899, em Tost, Alemanha (hoje território polonês). Foi

enfermeiro voluntário no Hospital para Acidentes com Mineiros, aos 18 anos. Um ano depois

começou a estudar medicina e se especializou em neurologia e neurocirurgia. Em 1939, a convite

do governo britânico, Guttmann foi para Oxford para a realização de pesquisas. Em 1943 assumiu

5

a direção de uma ala hospitalar que estava sendo preparada para receber soldados que feridos na

Segunda Guerra Mundial4.

Com base em estudos realizados nessa unidade hospitalar Guttmann começou a usar

na reabilitação dos soldados, juntamente com a fisioterapia, o esporte começando com exercícios

que movimentavam os membros superiores como arremesso de bola.

Com o crescimento do número de praticantes começou a se cogitar a organização de

um campeonato envolvendo os ex-soldados. Assim, em 1948, segundo Machado (2012, p. 379),

aconteceu em Stoke Mandeville a primeira competição para atletas com deficiência, a qual coincidiu com as Olimpíadas, que estavam ocorrendo em Londres. Quatro anos depois, os jogos para atletas com deficiência aconteceram novamente na cidade de Stoke Mandeville na época das Olimpíadas.

Nessa primeira edição eram 16 atletas (14 homens e duas mulheres). Em 1960 os

jogos passaram a ser realizados na mesma sede escolhida para os jogos olímpicos (MACHADO,

2012) e teve a participação de 140 atletas. Os esportes praticados nesses eventos não são aqueles conhecidos socialmente. Depois de criados e adaptados a modalidade deve ser legitimada pelo

Comitê Paralímpico Internacional, que, por sua vez, conforme afirma Machado (2012, p. 379),

designa “cada um deles para um ‘tipo’ de atleta diferente, ‘encaixando’ os participantes de acordo

com suas possibilidades ou limitações de movimento”.

Segundo a autora apresenta o número de participantes passou aumentar a cada

edição o que pode ser percebido em Pequim, em 2008, com 4000 participantes aumentando para

4200 atletas em Londres, em 2012.

O discurso como prática social

O discurso está presente nas diversas instâncias de atuação social e seu papel na

formação, manutenção ou mesmo exclusão social tem sido amplamente discutido nas últimas

décadas, especialmente depois que algumas áreas perceberam que assim como a linguagem se

constrói socialmente, ela também é altamente influente nos aspectos sociais. Trata-se de algo que

evidencia uma relação intrínseca entre ações linguísticas e sociais, revelando-os como

intervenientes um no/do outro. Localizado nesse entremeio está o ser humano, sabidamente

social, que vive sob as circunstâncias criadas e controladas pelos próprios humanos. Essa relação

entre discurso e sociedade, assim como as transformações e os efeitos causados por essa mesma

relação, é central em estudos críticos discursivos.

Nesse sentido, é possível pensar que quaisquer formas de criação, controle/gestão e

manutenção sociais podem estabelecer também um conjunto de aspectos decisivos e

intervenientes no uso da linguagem, assim como podem influenciar amplamente na realidade.

Através da linguagem, relacionam-se, constituem-se, criam-se e recriam-se; naturalizam-se,

manipulam-se, dominam-se, modificam-se ou se mantém significados. A linguagem funciona como

aquela que produz, pela ação dos sujeitos, sentidos capazes de manter ou modificar a forma como

esses sujeitos se representam no mundo e agem sobre ele.

4 Dados retirados do Portal Oficial do Governo Federal sobre os Jogos Olímpicos e Paralímpicos de 2016.

Disponível em: http://www.brasil2016.gov.br/pt-br/paraolimpiadas/historia. Acesso em: 09 nov. 2016.

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De modo geral, o discurso é pensado como qualquer interação comunicativa. De modo

restrito, o discurso é visto como um dos momentos dessas interações: um momento que envolve

falantes/ouvintes, escritores/leitores situados em determinado tempo e em determinado espaço

e pertencentes a alguma comunidade. O discurso, por sua vez, carrega sentidos que expressam

(intencionalmente ou não; declaradamente ou não) posições sociais, culturais, ideológicas dos

sujeitos e é capaz de refletir pensamentos, valores, crenças e ações de grupos estabelecidos

através de relações sociais que fundamentam e mantém a sociedade como um todo. Refletir sobre

o funcionamento do discurso é uma forma de se entender a sociedade, pois, para Fairclough (2008,

p. 91), o discurso

contribui para a constituição de todas as dimensões da estrutura social que, direta ou indiretamente, o moldam e o restringem: suas próprias normas e convenções, como também relações, identidades e instituições que lhe são subjacentes. O discurso é uma prática, não apenas de representação do mundo, mas de significação do mundo, constituindo e construindo o mundo em significado.

O discurso pode ser encontrado tanto na base das estruturas e relações sociais e dos

sistemas de conhecimento e crença, quanto nas construções de identidades sociais e, por sua vez,

dos eventos e práticas discursivas. Através do discurso é possível criar alguns padrões de ação, de

produção e de representação social que permitem estabelecer o senso comum: aqueles padrões

partilhados que definem a prática social cotidiana, ou seja, aquilo que as pessoas entendem como

adequado e que produzem ativamente. Segundo Fairclough (2003)5, o discurso faz parte desses

padrões partilhados.

Ainda segundo o autor, relações sociais também são criações discursivas e a

sociedade utiliza-se disso a fim de influenciar e transformar essas relações em relações de poder

e de dominação. Os interesses das classes dominantes e sua vontade de manter as relações sociais

em seu “devido lugar” – na tentativa de manter a hegemonia – são expressos e dispersos pelos

discursos. A forma como se vive nesse mundo economicamente elitista e, sobretudo, a forma como

se trabalha para mantê-lo exatamente assim é criada e mantida através dessas relações

ideológicas de poder que só podem se efetivar discursivamente. Eis o cerne das lutas sociais:

transformar o mundo em que se vive identificando ideologias, mudando pensamentos e criando

outras formas de se ver e de, sobretudo, se viver nesse mundo.

Análise

Tendo em vista o acontecimento dos Jogos Olímpicos e Paralímpicos no Brasil em

2016, nosso objetivo foi o de analisar como as mulheres, competidoras nesses jogos, foram

retratadas pela mídia no período pré-evento. O corpus foi formado pelas revistas Veja e IstoÉ

publicadas nas semanas de abertura dos eventos. A metodologia de análise do corpus segue a linha

estabelecida pela Análise Crítica do Discurso.

5 É importante salientar que, apesar da utilização de diversas obras de Fairclough (2008/1992, 2003), o modelo

que fundamenta essa pesquisa é o de 2003.

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As revistas Veja e IstoÉ

A Veja é uma revista de distribuição semanal brasileira publicada pela Editora Abril

às quartas-feiras. Criada em 1968 pelos jornalistas Roberto Civita e Mino Carta, a revista trata de

temas diversos de abrangência nacional e global. Entre os temas tratados com frequência estão

questões políticas, econômicas e culturais. Apesar de não ser o foco da revista, assuntos como

tecnologia, ciência, ecologia e religião também podem ser abordados. Com uma tiragem superior

a um milhão de cópias, sendo a maioria de assinaturas, a revista Veja é uma das revistas de maior

circulação nacional.

A IstoÉ é uma revista também semanal de informações gerais e foi criada em 1976.

Mino Carta, criador da Veja, foi o primeiro diretor de redação e o principal autor do projeto

editorial. Distribuída às sextas-feiras, a revista é publicada pela Editora Três e nasceu de um

encontro entre o empresário Domingo Alzugaray, proprietário da editora e os jornalistas Luís

Carta e Mino Carta.

Veja: a edição pré-Olimpíadas

A editora Abril publicou uma edição especial de Veja sobre as Olimpíadas, na semana

de abertura dos Jogos, em 3 de agosto deste ano. Para começar, ao chegar à banca, o leitor poderia

escolher a capa da revista conforme desejasse, sendo que o conteúdo interno seria o mesmo para

todas as versões. Abaixo, seguem os quatro tipos de capas possíveis:

Figura 1 – Capas da revista Veja, edição especial de Olímpiadas.

Fonte: Revista Veja, possibilidades de capa da edição de 3 de agosto de 2016.

Os atletas que contemplaram as capas foram o corredor Usain Bolt, o tenista Novak Djokovic, a nadadora Katie Ledecky e a saltadora Fabiana Murer. A editora dedicou quase todo o

exemplar para o tema das Olimpíadas. A edição contou com um total de 162 páginas. Destas, 67

páginas foram dedicadas a textos, 41 páginas, a imagens e, 11 delas foram dedicadas a anúncios

relacionados aos Jogos. O restante, 43 páginas, foram divididas entre temas, anúncios e imagens

não relacionados aos Jogos Rio-2016.

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Com esses atletas contemplados nas capas foram feitas matérias exclusivas com seu

perfil pessoal e profissional. No guia, ao todo, foram dedicadas 25 páginas às matérias com os

respectivos atletas com a exceção de Michael Phelps que, apesar de não estar em nenhuma das

capas, teve 3 páginas dedicadas à sua história. Usain Bolt recebeu o maior número de páginas

levando 8 páginas da revista, assim como Djokovic que também teve 6 páginas do guia destinadas

a ele. Somadas às três de Phelps, esses atletas receberam 17 páginas de atenção. Já as atletas Katie

Ledecky e Fabiana Murer receberam apenas dez páginas na edição para seus perfis.

Além dessas matérias exclusivas, uma reportagem sobre outros atletas brasileiros

que, na época, eram esperança de medalha, foram publicados. Intitulada “A praia é nossa”, fazendo

uma referência à sede brasileira dos Jogos, Rio de Janeiro, os atletas estavam na praia, logo em

roupas de banho. Entre esses atletas estavam os medalhistas: as velejadoras Kahena Kunze e

Martine Grael; os tenistas Marcelo Melo e Bruno Soares; o judoca Rafael Silva; a maratonista

aquática Ana Marcela Cunha; a lutadora Aline Silva; o jogador de futebol Gabriel Jesus; o jogador

de basquete Marcelinho Huertas; o jogador de vôlei Bruninho; os ginastas Diego e Daniele

Hypolito; a judoca Mayra Aguiar; a jogadora de vôlei Larissa; a atleta de pentatlo moderno Yane

Marques; e a jogadora de vôlei Thaysa.

É sabido que o local que sedia os Jogos levou ao tema da matéria e induziu a revista a

realizar essa montagem de imagens à beira da praia como uma referência à ensolarada Rio de

Janeiro. No entanto, a representação de homens e mulheres é bem diferente e faz com que as

atletas sejam mostradas com certa sensualidade – característica comumente atribuída às

mulheres, independentemente de sua atuação no mundo. Se compararmos a forma como homens

e mulheres são representados, veremos que esta sensualidade predomina nas fotos femininas e

que, as mulheres que não se encaixam em um padrão corporal socialmente criado (e inatingível

para muitas de nós) aparecem com seus corpos tapados por um maiô ou uma prancha de surf.

Além disso, homens e mulheres são apresentados de maneira diferente, pois os

homens, apesar de seus corpos definidos (ao menos, a maioria deles), são representados quase

sempre cobertos, mesmo que estivessem em um ambiente praiano e que saibamos que os homens

podem até usar sungas, por exemplo. Já as mulheres, mantiveram o estilo brasileiro de ir à praia,

ou seja, com corpos totalmente à mostra foi mantido pela edição de imagens da revista, conforme

podemos perceber nas figuras 2 e 3 abaixo.

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Figura 2 – Atletas homens apresentados na reportagem “A Praia é Nossa”, Veja ed 2489.

Fonte: Revista Veja

Figura 3 – Atletas mulheres apresentadas na reportagem “A Praia é Nossa”, Veja ed 2489.

Fonte: Revista Veja.

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Ainda é possível citar a utilização da imagem de um salva-vidas carioca quando falam

da maratonista aquática Ana Marcela Cunha (figura 4) que, além de não aparecer na reportagem,

ainda é representada pela fala de seu treinador, Marcio Latuf que diz haver “três motivos para

acreditar no ouro de sua protegida”, entre eles o fato de ela conhecer “o local da prova, ao lado do

Forte de Copacabana, tão bem quanto os melhores salva-vidas do Rio”, justificativa para a

utilização da imagem de um salva-vidas em vez da imagem da própria atleta. Algo que poderia ser

facilmente com uma rápida pesquisa no Google, que apresenta “apenas” 47.000 resultados para a

busca “Ana Marcela Cunha – maratonista aquática”. No entanto, conforme é perceptível na

imagem abaixo, a maratonista também não se encaixa no padrão feminino que temos hoje:

Figura 4 – Ana Marcela Cunha, maratonista aquática.

Fonte: Banco de Imagens Google.

Podemos utilizar aqui a ideia de Fairclough (2008, p. 91), quando diz que o discurso

“contribui para a constituição de todas as dimensões da estrutura social que, direta ou

indiretamente, o moldam e o restringem”, tendo em vista que uma revista de grande circulação

nacional continua fazendo diferenciações entre a representação masculina e feminina, ela está

contribuindo para a construção de uma estrutura social que destina à mulher papeis sociais

relacionados à sua forma física ou à sua sensualidade, independentemente de sua atuação social.

Sabemos que esta é uma construção enraizada socialmente e difícil de quebrar, mas

se a mídia não for capaz de começar a quebrar esses discursos, quem de nós será?

Revista IstoÉ pré-olimpíadas

A Editora Três também publicou uma edição especial de IstoÉ na semana de abertura

dos Jogos Rio-2016. A edição, intitulada “especial”, de número 2434, foi publicada em 3 de agosto de 2016. Esta edição especial apresenta um total de 90 páginas, no entanto, apenas 19 delas são

dedicadas às Olimpíadas.

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A revista divide seu “Especial Olimpíada” em dois grandes temas: “a Olimpíada da

redenção: nunca os valores olímpicos foram tão necessários para apaziguar um País que enfrenta

a maior crise de sua história e um mundo que se depara com a ameaça do terrorismo” e “o melhor

do velho e do novo Rio”. A primeira reportagem, com dez páginas de imagens e quatro de textos,

apresenta um guia sobre os jogos, mas também faz uma crítica política e econômica ao país sede

dos Jogos. Já o segundo texto, com apenas três páginas, é um guia turístico com dicas de famosos

como Fernanda Abreu, Martinho da Vila e Zeca Pagodinho, entre outros, de lugares e programas

“imperdíveis” no Rio de Janeiro.

O restante das páginas é dedicado a anúncios e ao editorial da revista que, atribuído

ao tema, levanta a possibilidade de “confraternização e de disputa saudável” que os Jogos devem

trazer à cidade-sede.

Com a análise da Revista IstoÉ é possível perceber que sua representação dos atletas

de maneira geral demonstra um desinteresse pelos jogos olímpicos porque apesar de chamar sua

edição de “especial”, ela trata de muitos outros assuntos junto com o tema e, ao fazê-lo, o trata

com superficialidade, inclusive pondo em dúvida a atuação do país como sede desses jogos. Esta

publicação demonstra facilmente que a revista não “põe fé” tanto nos jogos quanto na cidade-sede,

o Rio de Janeiro.

As edições pré-Paralimpíadas

As edições de Veja e IstoÉ publicadas nas semanas de abertura dos Jogos Paralímpicos

(semana de 07/setembro) não fazem qualquer menção à abertura desses jogos naquela semana.

Não há qualquer referência ao assunto, mesmo que em breves notas.

Um dos fatores que levou a essa ausência é o evento do Impeachment, tendo em vista

que a presidenta Dilma Rousseff foi afastada definitivamente do cargo na semana anterior, dia

31/agosto, quarta-feira. Como nesta data as edições das revistas já estavam nas ruas, a semana

seguinte foi dedicada à cobertura do acontecimento, impedindo que houvesse sequer uma citação

aos Jogos.

Considerações Finais

Quando começamos este trabalho, sabíamos que não encontraríamos nenhuma

novidade no que se refere às representações discursivas sobre as mulheres, especialmente as

atletas e paratletas, nas revistas analisadas. No entanto, também sabíamos, e reiteramos essa

ideia, que falar sobre o assunto é importante e necessário para que mudanças aconteçam.

Ainda é preciso refletir muito sobre as questões de gênero e de empoderamento

feminino, pois a sociedade ainda se manifesta de maneira preconceituosa e misógina em muitos

aspectos, especialmente quando se trata de direitos femininos. Se destinamos nossos esforços de

análise à linguagem, estamos direcionando nossos olhares também ao funcionamento da prática

social e, sobretudo, à sua relação com o discurso.

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Referências

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