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Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
A NATURALIZAÇÃO DOS CRIMES CONTRA MULHERES TRANS E
TRAVESTIS NOS PORTAIS DE NOTÍCIAS DA PARAÍBA
Ana Beatriz Caldas1
Resumo: O presente artigo busca explorar como as páginas policiais locais retratam os crimes cometidos contra
mulheres trans e travestis na Paraíba, a partir de uma breve análise de notícias relacionadas ao assassinato da travesti
Cicarelli, ocorrido em João Pessoa, no ano de 2016. Dentre os objetivos desse trabalho também está o de traçar um
panorama dos avanços realizados nas políticas públicas estaduais para essa parcela da população após a criação da
Gerência LGBT na Secretaria da Mulher e da Diversidade Humana (SEMDH), já que a ausência dessas políticas é parte
salutar do cenário de violência vivenciado pelas travestis.
Palavras-chave: Violência de gênero. Travestis. Jornalismo. Políticas públicas.
Introdução
A travesti é considerada uma identidade latinoamericana do gênero feminino que, apesar de
performar feminilidade, nem sempre se coloca como mulher perante a sociedade. No dicionário, no
entanto, ainda lê-se a explicação simplória e pouco atualizada que a define como um “homossexual
que se veste com roupas do sexo oposto ao seu”. Mesmo com um movimento atuante e crescente
que luta pela visibilidade e dignidade das travestis brasileiras, essa visão pouco fiel que as coloca na
mesma categoria de outras minorias políticas desconsidera agressões específicas e distorce a
realidade particular em que vive esse grupo, inclusive a violência simbólica a que ele está sujeito,
suas consequências em um quadro maior e seus porquês.
As estatísticas, porém, são incisivas: o Brasil, de acordo com a organização Transgender
Europe, é o país que mais mata transexuais e travestis em todo o mundo2, com larga “vantagem”
sobre o segundo colocado. Entre janeiro de 2008 e dezembro de 2015, foram registradas 802 mortes
de pessoas trans em território brasileiro – um número subnotificado, principalmente pelo
desconhecimento da diferença entre identidade de gênero e orientação sexual pelas autoridades e até
pelos familiares das vítimas, o que torna os dados imprecisos3.
1 Jornalista e mestranda em Comunicação e Culturas Midiáticas no PPGC/UFPB (João Pessoa - PB, Brasil).
2 Transgender Day of Visibility 2016 – Trans Murder Monitoring Update. Disponível em:
http://transrespect.org/en/tdov-2016-tmm-update/. Acesso em: 06 jul. 2017.
3 Além da recusa ou ausência familiar no momento de reconhecer o corpo das vítimas, muitas vezes travestis são
colocadas como “homens afeminados” e, até pelos próprios grupos que registram assassinatos de LGBTs, categorizadas
como homossexuais.
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Na Paraíba, mesmo com a atuação de organizações que lutam pelos direitos das travestis,
não existem dados precisos sobre o número de crimes contra travestis, já que, seguindo os passos do
Grupo Gay da Bahia (GGB), grupos como o Movimento do Espírito Lilás (MEL) iniciaram um
mapeamento local sobre essas mortes também tendo como principal fonte jornais e portais de
notícias, onde buscavam pelos crimes e perfis das vítimas para, a partir das estatísticas, exigirem
atenção do Estado. O problema, já citado anteriormente, é que a dificuldade – ou falta de vontade –
em diferenciar homossexuais e transexuais desequilibra a balança entre a necessidade desses grupos
também se faz presente, em larga escala, no universo das notícias, especialmente em blogs ou sites
de circulação regional.
A partir da proximidade entre a subnotificação dos crimes contra travestis e a necessidade de
políticas públicas que subsidiem melhores condições para essa população, traçaremos um paralelo
entre o modo como os crimes cometidos contra esse grupo são retratados no cenário midiático do
estado da Paraíba4 e o que se tem feito, a título governamental, para que as travestis saiam da
marginalidade no imaginário social – e das páginas policiais, que, como veremos a frente, são as
“esquinas” a que estão destinadas na internet.
“Só por que eu não sou igual à maioria?”
Em sua pesquisa sobre as diferenças entre as mulheres trans5 de São Paulo, Barbosa (2010)
conversou com várias travestis, na tentativa de compreender as diversas nuances da
transgeneridade. Renata, uma das entrevistadas, resumiu o discurso repetido em diversos estudos
etnográficos: “ser travesti é um fenômeno. Uma experiência identitária. E não necessariamente uma
doença, um transtorno, um distúrbio, um desequilíbrio. Só porque eu não sou igual à maioria?”. Na
mesma pesquisa, Renata demonstrou uma opinião que parece ser aprovada por muitas travestis: a
ideia de travessia. “Não somos homens, não somos mulheres, somos travestis. Somos um terceiro
sexo. Eu gosto dessa definição [...] eu atravesso do masculino para o feminino”.
4 O presente trabalho traz resultados parciais de uma pesquisa mais ampla, que vem sendo desenvolvida em minha
dissertação de mestrado no PPGC/UFPB, financiada pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior (CAPES).
5 A palavra “transgênero” ou apenas “trans” é considerada um termo guarda-chuva que engloba identidades de gênero
em inconformidade com o sexo biológico, como homens e mulheres transexuais e as travestis.
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Em países europeus, onde muitas aportam em busca de uma vida financeiramente estável
através da prostituição, as travestis são vistas como o melhor do Brasil, “onde alcançam visibilidade
notável, tanto no espaço social quanto no imaginário cultural” (KULICK, 2008, p. 22). São
conjuntos de seios, bundas e coxas que chamam a atenção, preenchidos com silicone (industrial, na
maioria dos casos), aliados aos padrões exacerbados de feminilidade que o país ainda preserva e que
estrangeiros veem como um corpo “exótico”, carnavalesco. No Brasil, porém, nove a cada dez
travestis brasileiras6 estão nas “pistas”; a vida nas ruas, como prostitutas, em meio a drogas e
sujeitas a violências diárias, é a única opção que possuem.
Apesar de possuir um movimento LGBT atuante, o que será comprovado mais a frente, na
Paraíba, a situação não foge à regra. Em João Pessoa e Campina Grande, maiores cidades do estado,
travestis são comumente vistas nas avenidas mais movimentadas a noite, em busca de clientes para
programas sexuais, e o índice de travestis que se prostituem se aproxima dos 90% da média
nacional. Na imprensa local, que segue os passos da grande mídia nacional, travestis só são notícia
quando cometem ou sofrem um crime – sempre com sua agência em evidência. Em seu estudo
etnometodológico realizado na década de 90 em Salvador (BA), o antropólogo Don Kulick já
constatava os deslizes da imprensa sensacionalista contra a identidade travesti. Como observou, os
meios de comunicação reforçam estereótipos, pois
essas reportagens pintam sempre uma mesma imagem das travestis como pessoas
pervertidas, armadas, viciadas em drogas, marginais, que transmitem Aids e atraem
homens inocentes, colocando-os em situações perigosas para então assaltá-los,
enfim, como pessoas que perturbam a ordem pública, espalhando o caos. (KULICK,
2008, p. 51)
Mesmo quase duas décadas depois da publicação original, a pesquisa de Kulick segue
relevante para compreendermos a situação das travestis brasileiras, ainda que o relato chegue a ter
ares fantasiosos em alguns aspectos, se comparados aos dados atualizados; em seu livro Travesti,
Kulick fala que a expectativa de vida de uma travesti não chega aos 50 anos mas hoje, segundo uma
pesquisa realizada em 2016 pela Antra, sabemos que ela não ultrapassa os 35 – menos da metade da
média nacional estimada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE), de 75,2 anos.
Essa discrepância pode ser explicada pela fluidez entre os gêneros que faz parte da identidade
travesti. Podemos relacioná-la, sob a perspectiva da Teoria Queer, que toma o gênero como uma
construção social, com a definição de Louro para os indivíduos considerados transgressores de
gênero ou sexualidade. Segundo a autora, esses são vistos como
6 Pesquisa realizada pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra).
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[...] infratores e devem sofrer penalidades. Acabam por ser punidos, de alguma
forma, ou, na melhor das hipóteses, tornam-se alvo de correção. Possivelmente
experimentarão o desprezo ou a subordinação. Provavelmente serão rotulados (e
isolados) como “minorias”. Talvez sejam suportados, desde que encontrem seus
guetos e permaneçam circulando nesses espaços restritos (LOURO, 2016, p. 89-90).
Ainda em Louro (idem), vemos que gênero e sexualidade estão sempre envolvidos em
relação de poder, já que “as normas regulatórias voltam-se para os corpos para indicar-lhes limites
de sanidade, de legitimidade, de moralidade ou de coerência”, sendo que os que rompem esses
limites são vistos como corpos “ilegítimos, imorais ou patológicos” (LOURO, 2016, p. 84). Como a
maioria dos teóricos queer, a autora apoia-se nos conceitos de controle dos corpos – o “biopoder” –
de Foucault (2015) através da hierarquização dos indivíduos em domínios de valor através de
tecnologias normatizadoras, sendo a sexualidade o dispositivo mais utilizado para tal.
Travestilidade e violência: uma realidade nacional
Apesar de ter sido cunhado na década de 70 e tratar de outras materialidades corpóreas e
recortes sociais, o conceito de “biopoder” se aplica perfeitamente ao cotidiano das travestis, que,
mantidas longe das instituições, devem se contentar com a noite, a prostituição como ofício único e
o submundo em que habitam, povoado por outros ditos “marginais”. Esses estereótipos, quando
replicados, resultam na naturalização das chamadas “violências específicas”, ou crimes de ódio,
contra as travestis e outras minorias políticas, como mulheres e homossexuais.
Os resultados preliminares de minha pesquisa de dissertação, que tem como objetivo
analisar o conteúdo das notícias sobre travestis em portais de cobertura policial da Paraíba, mostram
que, durante o período de amostragem que coloca o Brasil em primeiro lugar nas mortes de pessoas
trans (2008-2016) foram mortas pelo menos 48 travestis no estado7. Os crimes, em sua totalidade,
foram executados com disparos de armas de fogo, facadas ou pedradas – geralmente, dezenas deles.
Oficialmente, apenas 12% das vítimas tinha idade além da expectativa de vida estimada pela Antra.
Ainda no espectro da subnotificação, 27% das travestis assassinadas não tiveram suas idades
confirmadas. Os outros mais de 60% tinham apenas até 35 anos de idade, conforme previa o
movimento.
Construção de redes de notificação dos crimes contra LGBTs
7 Dados concedidos pela SEMDH e referentes ao período entre 1º de janeiro de 2008 e 8 de março de 2016.
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No Brasil, o primeiro passo concreto para combater os crimes contra travestis foi dado em
2004, com o Brasil Sem Homofobia: programa de combate à violência e à discriminação contra
GLBT e de promoção à cidadania homossexual. Na época, ainda que o programa tenha sido feito
com consultas ao movimento e dedicado a Janaína, uma militante travesti, as pautas principais ainda
giravam em torno dos direitos fundamentais dos homossexuais, contemplando pouco – ou nada – as
demandas de travestis e transexuais.
A partir desse momento, no entanto, a população LGBT começou a ser vista como “sujeito
de direito” no país, tratando das violências específicas sofridas por essa população. Foi criado o
Disque Defesa Homossexual (DDH), apenas para que as autoridades notassem que o número de
denúncias era baixíssimo. Até então, as poucas notificações eram conseguidas a partir da imprensa,
já que, na década de 80, o GGB começou a fazer um trabalho de coleta e catalogação dos casos que
envolviam pessoas LGBT – trabalho árduo e importante, mas, como já dito previamente, impreciso.
Além disso, o tom das matérias colocava a tragédia como “efeito das fraquezas sexuais, morais e de
escolhas da própria vítima, que teria encontrado um destinado procurado por ela mesma” (RAMOS,
2005, p. 36), o que persiste em muitas das páginas policiais de grandes ou pequenos veículos de
comunicação. A ideia, no entanto, era uma forma de sensibilizar e chamar a atenção das
autoridades, e foi copiada pelo MEL, na Paraíba, a partir de 1998.
Com a criação da Gerência LGBT no estado, em 2011, durante a primeira gestão de Ricardo
Coutinho (PSB), a categorização de casos, perfis de vítimas e agressores se profissionalizou, apesar
de a subnotificação não ter sido extinta. Com integrantes do próprio MEL assumindo cargos
administrativos de extrema importância, o método empregado pelo movimento foi adotado pelo
governo, e hoje uma “rede” de notificação dos casos de homo/lesbo/transfobia está consolidada,
unindo movimentos LGBT (como o Grupo de Mulheres Lésbicas e Bissexuais Maria Quitéria e a
Associação das Travestis e Transexuais da Paraíba – Astrapa), a gestão estadual e a Delegacia
Especializada de Crimes Homofóbicos (DECH).
A tabela utilizada pela SEMDH, que também conta com os casos contabilizados pelo MEL
entre 1990 e 2010, é atualizada a partir de notícias de sites locais e nacionais, notificações das
delegacias de todo o estado e também através do próprio movimento, que aciona a gestão na
possibilidade de um crime motivado por homo/lesbo/transfobia, ainda que este não seja
formalmente comunicado. Mídias sociais como o Facebook também já foram parceiras da
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iniciativa: segundo o responsável pela gerência LGBT, Victor Pilato, as mortes de dois homens
trans, notificadas como de mulheres lésbicas, já foram “desmistificadas” pela gerência através de
seus perfis na rede social, que apontavam a identidade masculina dos jovens.
A busca pelo não dito: análise da morte de Cicarelli enquanto acontecimento midiático
Dentro dos estudos da mídia, sabe-se que a notícia não possui caráter apenas informativo,
mas também antropológico, já que “reforça as percepções de padrões culturais e de arquétipos no
inconsciente coletivo” (MOTTA, 2002, p. 4). Portanto, como estudo de caso para esta breve análise,
utilizarei um caso que movimentou as páginas policiais do estado da Paraíba em fevereiro de 2016:
o assassinato de Cicarelli, travesti de 36 anos assassinada no bairro de Mangabeira I, em João
Pessoa, com mais de 20 facadas. A jovem, que foi descrita por vizinhos como alegre e tranquila,
também levou pedradas e teve uma de suas orelhas decepadas.
Selecionamos as notícias que compõem o corpus dessa análise a partir de técnicas da
análise de conteúdo de Bardin (1980), nos três principais portais noticiosos da Paraíba: o G1
Paraíba (afiliado à Rede Globo), o Jornal da Paraíba e o Portal Correio (ambos versões online dos
maiores veículos de jornalismo impresso do estado, à época). Os sites foram escolhidos a partir do
critério de exclusividade – inicialmente, pretendia-se trabalhar com alguns portais de menor
circulação, mas após alguns cliques pode-se perceber que, nestes, as notícias são copiadas dos três
endereços de mídia “oficial”, não constituindo, portanto, material relevante para a pesquisa.
Para buscar as notícias de interesse, seguimos o exemplo do site ativista Rede Trans Brasil,
que contabiliza as mortes de pessoas trans no país desde 2016, utilizando palavras-chave como
“transexual”, “travesti”, “morte” e, nesse caso, “Cicarelli”. As duas primeiras matérias, do G1 e do
Jornal da Paraíba, respectivamente, foram veiculadas ainda na manhã do dia 16 de fevereiro de
2016, poucas horas após a descoberta do corpo de Cicarelli. Pontuaremos, a seguir, algumas
questões sobre elas. Segue o conteúdo da matéria veiculada no G1:
O corpo de uma travesti de 36 anos foi encontrado na madrugada desta terça-feira
(16), na esquina entre as ruas José Tadeu Cabral e Eurydice de Barros Esteves, no
bairro de Mangabeira, em João Pessoa. De acordo com a Polícia Civil, a vítima teria
sido morta com mais de 20 facadas. Segundo a polícia, moradores do bairro saíam
de casa quando viram o corpo e ninguém soube explicar como aconteceu o
homicídio. Além das facadas, a orelha direita da vítima foi cortada e a perícia
encontrou uma pedra ao lado do corpo. O objeto será analisado para saber se foi
utilizado no crime. Ainda de acordo com a Polícia Civil, os familiares da vítima
prestaram depoimento e disseram que a vítima não tinha envolvimento com nenhum
tipo de crime e que não sabem os motivos do homicídio. O caso será investigado
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pela Delegacia de Homicídios de João Pessoa. (Corpo de travesti morta a facadas é
encontrado em João Pessoa, G1 Paraíba, 16/2/2016)
O G1, portal de notícias da Globo, apesar de suas subdivisões estaduais, não atua de forma
independente; possui, em sua linha editorial, uma linguagem mais enxuta, direta, que às vezes acaba
por deixar passar detalhes importantes à matéria, como dados precisos sobre quem ou o que se fala
(a exemplo de estabelecimentos, que não são citados, assim como na Globo, para não “dar
audiência” gratuitamente). É um portal feito exclusivamente para a internet e, portanto, baseado
unicamente na agilidade da informação. É difícil dizer, porém, se é sua forma de noticiar a
responsável pelos poucos dados divulgados sobre a vítima, já que esse é um discurso recorrente em
relação à mortes de travestis; dificilmente sabe-se algo sobre a vítima além de sua transgeneridade
(se muito) e se supõe um envolvimento prévio da vítima com a criminalidade. Outra característica
do site, a atualização da notícia com fatos relevantes sobre a investigação, é desativada nesse caso
em especial, ainda que sejam nas linhas policiais que as atualizações sejam mais necessárias – e
interessantes ao leitor. A notícia a seguir, veiculada no Jornal da Paraíba (versão online) poucos
minutos antes, segue outro padrão:
Uma travesti foi encontrada morta, por volta das 5h desta terça-feira (16), em
Mangabeira, Zona Sul de João Pessoa. Segundo a Delegacia de Homicídios, o corpo
estava entre as ruas José Tadeu Cabral e Euridicy de Barros. A vítima, de 36 anos,
era conhecida como Cicarelli e foi morta com aproximadamente 24 facadas.
Conforme a Delegacia de Homicídios, o pai e a irmã de Cicarelli, que estiveram no
local, informaram que ela não tinha envolvimento com drogas e não sabiam se
alguém tinha richa com a vítima. A perícia investiga se foi usada uma pedra, que
estava ao lado do corpo, no homicídio. A polícia vai investigar o caso para saber se a
morte está ligado (sic) a crime de ódio ou não. O cadáver foi encaminhado para a
Gerência de Medicina e Odontologia Legal (Gemol). Até as 8h desta terça-feira
(16), nenhum suspeito foi identificado. (Travesti é encontrada morta a facadas em
João Pessoa, Jornal da Paraíba, 16/02/2016)
No espectro de ações discursivas que deslegitimam a identidade de gênero das vítimas, a
matéria veiculada no JP online é uma das poucas, dentre as que pesquisei ao longo dos últimos
meses, em que se busca uma adequação da linguagem e chega a problematizar o caso. Um ponto
básico a ser citado é a utilização do pronome feminino, assim como a não menção ao nome de
batismo – masculino – da vítima. Outra questão a se colocar é a da fala da família; a ausência desta
sempre foi algo que me chocou ao ler diversas matérias na área policial. Mulheres, homens,
crianças, todos tinham familiares para chorar seu luto. Travestis raramente possuem a chance da
defesa post-mortem ou, pelo menos, do lamento.
Essa é uma realidade, no entanto, que vai além do universo das notícias, como já se foi
colocado. Boa parte das travestis acaba nas pistas justamente pelo desprezo dos entes “queridos”.
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Por fim, a simples menção sobre a possibilidade de um crime de ódio – o que seria desmentido
pouco depois na maioria das páginas que noticiassem a prisão dos assassinos de Cicarelli –
humaniza a narrativa, ainda que não a problematize. Não basta que fala-se em transfobia; é papel
social do jornalista explicar, assim como o faz em outras pautas, o que é a transfobia em si, o que
ela causa, como combatê-la. Ainda que não se sirva de ativismo, a herança do jornalismo impresso
e investigativo faz com que os textos do JP se diferenciem, de um modo geral, dos materiais
encontrados em outros portais, especialmente no tocante à minorias políticas. Seria, quem sabe,
talvez, uma aposta do jornalismo policial como jornalismo especializado.
Por fim, no Portal Correio, temos uma amostra certeira do jornalismo digital paraibano. O
portal, um dos mais acessados do estado, aposta no sensacionalismo e nas notícias policiais, tal qual
suas programações televisivas e radiofônicas demonstram, com problemáticas em relação às
minorias políticas que já fazem parte do imaginário social do grupo, a exemplo de jornalistas que
destilam misoginia em seu conteúdo8. Coincidentemente, ao buscar as palavras-chave escolhidas,
encontramos apenas uma matéria – entre, talvez, dez sobre travestis ao longo dos anos) que faz
menção ao caso de Cicarelli. A notícia, veiculada já no dia 17 de fevereiro com informações da
Secretaria de Comunicação do Estado, diz respeito a prisão de dois dos três suspeitos de
participarem do crime que levou Cicarelli à morte.
Dois jovens de 18 e 21 anos foram presos suspeitos de matar o travesti de 36 anos,
conhecido como ‘Cicarele’, nessa terça-feira (16), no bairro de Mangabeira, em João
Pessoa. A dupla foi apresentada à imprensa pela Delegacia de Homicídios da
Capital. A motivação do crime está ligada ao tráfico de drogas do bairro, conforme
revelou o delegado Luiz Cotrim, que comandou as investigações. As prisões
ocorreram nos bairros Mangabeira e José Américo, mas um terceiro suspeito ainda é
procurado. Segundo a assessoria de imprensa da Secretaria de Segurança Pública da
Paraíba (Seds), os jovens tinham envolvimento com o tráfico de drogas e a travesti
teria sido morta a pedradas e com mais de 20 facadas por estar desfalcando um
ponto de tráfico, levando usuários de uma ‘boca de fumo’ para outra. Ainda de
acordo com a Seds, um dos presos deu as coordenadas sobre local onde a travesti
estaria no determinado horário e outros dois a executaram. Um dos envolvidos
continua foragido. A Polícia Civil conseguiu chegar aos envolvidos através de
investigações e com a ajuda do 197. Segundo a Seds, os presos vão responder por
homicídio duplamente qualificado. A Polícia Civil segue em buscas para prender o
terceiro suspeito do crime. (Polícia descarta homofobia e confirma tráfico de drogas
em morte de travesti, em JP, Portal Correio, 17/02/2016)
Ainda que conte com informações institucionais, é pertinente perguntar-se: por que a própria
notícia do crime não foi ? O cenário paraibano, que não foge à subnotificação dos casos de mortes
8 O radialista Fabiano Gomes, na época afiliado ao Sistema Correio, foi alvo de críticas de entidades por comentários
machistas em seu programa, em 2013. Disponível em: http://agenciapatriciagalvao.org.br/violencia/pautas-
violencia/diretor-de-jornalismo-da-radio-correio-da-pb-defende-no-ar-crime-virtual-contra-a-mulher-2/. Acesso em: 07
jul. 2017.
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contra pessoas trans, tem uma característica forte no meio digital. Os blogs e portais menores
basicamente se alimentam, replicam, sustentam o conteúdo dos “grandes” websites – os aqui
analisados e os que publicam notícias diretamente de agências e assessorias. O Portal Correio, seja
pela atenção ao jornalismo policial, seja pelo viés conservador, é um dos mais replicados em todos
os sites pesquisados. Afirmar que mortes com requintes de crueldade como a de Cicarelli não
tiveram motivações transfóbicas soa, se não desonesto, no mínimo ignorante, fato pontuado por
Luciel Araújo em uma das entrevistas realizadas durante essa pesquisa:
[...] o cara mataria qualquer um que não pagasse a ele, mas o fato de a travesti estar
na pobreza, analfabeta, fora de casa, na prostituição e precisando vender drogas para
sobreviver é uma consequência de ela ser travesti. Ela foi vítima da transfobia da
sociedade. (ARAÚJO, 2016, em entrevista)
Do movimento para o movimento: representatividade e efetividade nas políticas públicas
O caso de Cicarelli, ainda que chame a atenção pelos requintes de crueldade – muito comuns
em crimes de ódio – não chegou a ser novidade nem mesmo no mês em que ocorreu. Cicarelli foi
uma das três travestis mortas seguidamente, em período inferior a um mês, em João Pessoa, no
início de 2016. No início de 2017, uma pesquisa mostrou que o índice de crimes contra a vida de
pessoas trans cresceu em 22% no ano de 20169 e que as mulheres trans brasileiras correm nove
vezes mais risco de sofrer uma morte violenta do que as norte-americanas, o que confirma o status
indesejável de país mais perigoso para transicionar. Com índices tão absurdos, o que tem os
governantes realizados para proteger essa população?
Quando se fala em políticas públicas para a população LGBT, é necessário lembrar que suas
demandas não são tão bem recebidas como outros grupos. Quase duas décadas depois do Brasil Sem
Homofobia, as organizações ainda lutam pelos objetivos básicos do programa: tratamento e/ou
desvinculação de LGBT com o vírus HIV/Aids e inserção de forma igualitária no mercado de
trabalho, por exemplo. No último caso, as travestis estão à margem da margem. Ainda que algumas
trabalhem no mercado formal, poucas são as que conseguem subsídio total a partir dele; muitas
utilizam a prostituição, se não como único emprego, como um “bico” para complementar a renda.
As políticas para LGBT ainda são envoltas na violência, na sobrevivência, e não plenamente no
“viver”; ainda engatinham em campanhas de conscientização mais do que em ações efetivas, como
9 Disponível em: http://blogs.correio24horas.com.br/mesalte/assassinatos-de-transexuais-e-travestis-cresce-22-em-um-
ano-no-brasil-bahia-teve-9-mortes. Acesso em: 26 jun. 2017.
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um meio de obter aprovação de uma realidade para, então, executar essas ações. Dentro do próprio
movimento, no entanto, as travestis e transexuais ainda se consideram invisibilizadas, sendo
necessário “aproximar do ‘movimento homossexual’ travestis e transgêneros que possam falar de
violência e discriminação na primeira pessoa” (RAMOS, 2005, p. 43).
Desse modo, na Paraíba, talvez uma das principais conquistas no âmbito da gestão pública
tenha sido, de fato, a profissionalização da tabela para promover uma maior visibilidade dos casos
de transfobia – sejam eles diretos, ou indiretos; ou seja, uma morte com motivação transfóbica clara
ou decorrente da exclusão social a que as mulheres trans e travestis estão expostas na sociedade.
Sendo um dos estados mais perigosos para pessoas trans no país, há pouco o que comemorar, mas o
caminho está em curso. Em 2011, um decreto assinado pelo governador Ricardo Coutinho dispôs
sobre o tratamento nominal e inclusão do uso do nome social para travestis e transexuais no âmbito
da administração pública. João Pessoa, apesar de palco de tragédias envolvendo pessoas trans, foi a
primeira cidade no nordeste e a segunda no país a aderir totalmente ao uso do nome social –
inclusive em contextos de criminalidade, na confecção de boletins de ocorrência (Silva et al., 2017).
Outra medida a ser ressaltada é a criação do ambulatório para saúde integral de travestis e
transexuais – Ambulatório TT, inaugurado em 2013, que atende pelo Sistema Único de Saúde
(SUS) e ainda é um dos poucos do país. De maneira mais ampla, ainda pode-se citar, a nível de
benefícios para mulheres transexuais e travestis, as políticas conjuntas para a população LGBT no
estado: inauguração do Centro Estadual de Referência dos Direitos de LGBT e Enfrentamento a
Homofobia da Paraíba (2011); ampliação da visita íntima para casais LGBT no Sistema Prisional
(2012); criação do Comitê de Saúde Integral para LGBT (2012), e do Conselho Estadual dos
Direitos de LGBT do Estado da Paraíba - CEDLGBT (2014), além da realização de campanhas de
promoção da cidadania (como a bem sucedida Tire o Respeito do Armário, Todas e Todos Pelo Fim
da Homofobia) e de conferências estaduais para discutir políticas públicas para essa população.
Nota-se, porém, que os atos da gestão pública pouco tem influenciado o imaginário sobre
travestilidade na Paraíba, dados os índices altíssimos de mortes violentas de mulheres trans no
estado. Uma coincidência, possivelmente, ligada ao silêncio – ou ao falatório caricato de sua
imprensa, que ainda engatinha ao tratar da cidadania da população T, de sua existência e, mais
fortemente, de sua resistência.
Considerações finais
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A partir desse breve panorama sobre as violências sofridas pelas travestis na Paraíba e no Brasil e
sobre o que se tem feito e o que ainda é preciso fazer, é inegável a afirmação de Silva (2007, p. 64)
de que há uma ligação entre o estigma que ronda o cotidiano travesti, a exclusão social decorrente
desse estigma e a consequente banalização da violência contra essas pessoas. Também é possível
recorrer a um dos primeiros estudos aprofundados na Teoria Queer, em que Butler (2016, p. 44)
pontua que as identidades de gênero não normativas com a heterossexualidade compulsória são
vislumbradas como identidades “falhas”, pois não são compreendidas sócio e culturalmente.
Não cabe às travestis, no entanto, esse peso; podemos relacionar “o risinho no canto da boca
do intelectual macho — ou do gay respeitável — com a bala que fere o (sic) travesti”, pois é este o
responsável pelo extermínio dessa população (PERES, 2005, p. 205). famoso cenário retratado por
Kulick em 90, no entanto, segue atual, com a violência como “pano de fundo de suas vidas”
(KULICK, 2008, p. 47), ainda que a população travesti esteja cada vez mais politizada – o que
acarretou, inicialmente, na diferenciação entre o significado “prévio” da palavra “travesti” e o atual:
uma identidade de gênero a parte, por vezes, das mulheres transexuais.
A ausência das demandas travestis como pauta da mídia causa resulta num apoio parco às
políticas públicas e vice-versa. As políticas públicas seguem, portanto, sendo conquistadas apenas
pelo movimento, já que a sociedade não as vê como prioridade. A prostituição como
empoderamento (a fonte e a solução de muitos de seus problemas) e a aplicação de silicone
industrial ainda permeia a maioria das discussões sobre o grupo, apontando o desejo de
sobrevivência no meio. A diferença é que agora, anos depois da maioria dos estudos antropológicos
inéditos sobre suas vidas, as travestis que se prostituem a noite desejam ocupar seu lugar de fala e
obter seus direitos por meio das instituições médicas e jurídicas – e cabe à gestão pública ouvi-las e
fazer com que o resto da população as ouça.
Referências
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12
Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
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SILVA, Hélio R. S. Travestis: entre o espelho e a rua. Rio de Janeiro: Rocco, 2007.
The naturalization of crimes against trans women and transvestites in the news websites of
Paraíba
Astract: This paper aims to explore how the local police pages portray the crimes committed
against trans women and transvestites in Paraíba, based on a brief analysis of news related to the
murder of the transvestite Cicarelli, held in João Pessoa, in the year 2016. Also, the research will
show the progress made in state public policies for this part of the population after the creation of
LGBT Management in the Secretariat for Women and Human Diversity, since the absence of these
policies is a salutary part of the scenario of violence experienced by transvestites.
Keywords: Gender violence. Transvestites. Journalism. Public policies.