18
A NOÇÃO DE ROSTO EM LEVINAS E O ROSTO DO NEGRO NO BRASIL: ALTERIDADE E EMPODERAMENTO Douglas Silvino de Camargo 1 Izaque Pereira de Souza 2 RESUMO O tema do presente artigo é a alteridade etnicorracial no Brasil. O objetivo geral é apresentar a alteridade e empoderamento do negro numa perspectiva levinasiana 3 . Os objetivos específicos são: desenvolver a noção de Rosto em Levinas na ideia de hospitalidade do diferente. Analisar o Rosto do Negro no Brasil como resistência ética. Oferecer o espaço da voz e da vez ao negro no sentido de empoderamento. A justificativa da temática apresenta aspecto acadêmico, social e pessoal. No âmbito acadêmico se faz urgente a sistematização de trabalhos que abordem a alteridade, sobretudo, a alteridade do negro. Levar para academia, para reflexão filosófica a negritude como locus de resistência e direito é militar pelo Outro negligenciado diariamente. O cunho social é gritante, as estatísticas no Brasil apresentam o negro no cenário das desigualdades sociais como aquele que mais padece, apresenta na estatística da morte, os negros sendo eliminados, sobretudo, sua juventude. A justifica pessoal carrega uma vivência de três anos junto ao povo africano, em Moçambique, na aldeia de Metoro. A exploração do colonizador português atravessou os oceanos e continua a apropriar o negro no contexto brasileiro. Abordar a alteridade ética no contexto da negritude é um desafio necessário. Numa época de atentado as alteridades, de atentado ao Outro mais fraco e as minorias, trazer à baila o lugar do negro e seus direitos, sua dignidade e alteridade é abraçar uma causa que envolve história, memória e liberdade. O método utilizado é descritivo-hermenêutico, tendo como base a obra do filósofo Emmanuel Levinas Totalidade e Infinito (1961), e comentadores da questão da negritude no Brasil. A metodologia é bibliográfica. PALAVRAS-CHAVE: Levinas. Alteridade. Rosto. Resistência. Negritude 1 Mestrando em Filosofia pela Unioeste. Teólogo e Pós-graduando do curso de Especialização Lato Sensu em Intervenção Social nas Políticas de Assistência Social, Educação e Saúde do Programa de Pós-Graduação do Centro Universitário da Fundação Assis Gurgacz FAG - Cascavel, Paraná. E-mail: [email protected] 2 Doutorando em Educação. Mestre em Educação pela Unioeste. Professor e orientador do Programa de Pós- Graduação do Centro Universitário da Fundação Assis Gurgacz FAG - Cascavel, Paraná. E-mail: [email protected]. 3 Tal perspectiva está baseada em Emmanuel Levinas - nasceu em 1906, na República Lituânia, de família judaica. Mudou-se jovem para Estrasburgo, onde estudou filosofia e teve contato com importantes personalidades filosóficas. Seu itinerário acadêmico passou por contato com estudos de Husserl e Heidegger. Sua filosofia é fruto de tensão de vida, sofrimento pessoal e de um povo diante da violência ao diferente (Holocausto). Ele tem pensamento profético, não no sentido religioso, mas denúncia algo negativo e anuncia algo novo ou uma saída. Sua obra valoriza o Outro e apresenta o conceito de Rosto como expressão da subjetividade/historicidade de outrem, o conceito Rosto perpassa sua ética como resistência e empoderamento e assim estreia sentido social e humano para sobreviver e conviver em novos tempos (PELIZZOLI, 2008).

A NOÇÃO DE ROSTO EM LEVINAS E O ROSTO DO NEGRO NO BRASIL: ALTERIDADE E EMPODERAMENTOtcconline.fag.edu.br:8080/app/webroot/files/trabalhos/... · 2018. 12. 22. · A NOÇÃO DE ROSTO

  • Upload
    others

  • View
    3

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: A NOÇÃO DE ROSTO EM LEVINAS E O ROSTO DO NEGRO NO BRASIL: ALTERIDADE E EMPODERAMENTOtcconline.fag.edu.br:8080/app/webroot/files/trabalhos/... · 2018. 12. 22. · A NOÇÃO DE ROSTO

A NOÇÃO DE ROSTO EM LEVINAS E O ROSTO DO NEGRO NO BRASIL:

ALTERIDADE E EMPODERAMENTO

Douglas Silvino de Camargo1 Izaque Pereira de Souza2

RESUMO

O tema do presente artigo é a alteridade etnicorracial no Brasil. O objetivo geral é apresentar a alteridade e empoderamento do negro numa perspectiva levinasiana3. Os objetivos específicos são: desenvolver a noção de Rosto em Levinas na ideia de hospitalidade do diferente. Analisar o Rosto do Negro no Brasil como resistência ética. Oferecer o espaço da voz e da vez ao negro no sentido de empoderamento. A justificativa da temática apresenta aspecto acadêmico, social e pessoal. No âmbito acadêmico se faz urgente a sistematização de trabalhos que abordem a alteridade, sobretudo, a alteridade do negro. Levar para academia, para reflexão filosófica a negritude como locus de resistência e direito é militar pelo Outro negligenciado diariamente. O cunho social é gritante, as estatísticas no Brasil apresentam o negro no cenário das desigualdades sociais como aquele que mais padece, apresenta na estatística da morte, os negros sendo eliminados, sobretudo, sua juventude. A justifica pessoal carrega uma vivência de três anos junto ao povo africano, em Moçambique, na aldeia de Metoro. A exploração do colonizador português atravessou os oceanos e continua a apropriar o negro no contexto brasileiro. Abordar a alteridade ética no contexto da negritude é um desafio necessário. Numa época de atentado as alteridades, de atentado ao Outro mais fraco e as minorias, trazer à baila o lugar do negro e seus direitos, sua dignidade e alteridade é abraçar uma causa que envolve história, memória e liberdade. O método utilizado é descritivo-hermenêutico, tendo como base a obra do filósofo Emmanuel Levinas – Totalidade e Infinito (1961), e comentadores da questão da negritude no Brasil. A metodologia é bibliográfica. PALAVRAS-CHAVE: Levinas. Alteridade. Rosto. Resistência. Negritude

1 Mestrando em Filosofia pela Unioeste. Teólogo e Pós-graduando do curso de Especialização Lato Sensu em

Intervenção Social nas Políticas de Assistência Social, Educação e Saúde do Programa de Pós-Graduação do

Centro Universitário da Fundação Assis Gurgacz – FAG - Cascavel, Paraná. E-mail:

[email protected] 2 Doutorando em Educação. Mestre em Educação pela Unioeste. Professor e orientador do Programa de Pós-

Graduação do Centro Universitário da Fundação Assis Gurgacz – FAG - Cascavel, Paraná. E-mail:

[email protected]. 3 Tal perspectiva está baseada em Emmanuel Levinas - nasceu em 1906, na República Lituânia, de família

judaica. Mudou-se jovem para Estrasburgo, onde estudou filosofia e teve contato com importantes

personalidades filosóficas. Seu itinerário acadêmico passou por contato com estudos de Husserl e Heidegger.

Sua filosofia é fruto de tensão de vida, sofrimento pessoal e de um povo diante da violência ao diferente

(Holocausto). Ele tem pensamento profético, não no sentido religioso, mas denúncia algo negativo e anuncia

algo novo ou uma saída. Sua obra valoriza o Outro e apresenta o conceito de Rosto como expressão da

subjetividade/historicidade de outrem, o conceito Rosto perpassa sua ética como resistência e empoderamento e

assim estreia sentido social e humano para sobreviver e conviver em novos tempos (PELIZZOLI, 2008).

Page 2: A NOÇÃO DE ROSTO EM LEVINAS E O ROSTO DO NEGRO NO BRASIL: ALTERIDADE E EMPODERAMENTOtcconline.fag.edu.br:8080/app/webroot/files/trabalhos/... · 2018. 12. 22. · A NOÇÃO DE ROSTO

1 INTRODUÇÃO

Certamente, a teoria levinasiana do Rosto, oferece um modo diferenciado de

se conceber e interpretar a História, bem como de fundamentar a questão da justiça

e da própria moral tendo em mente a relação com o Outro. Na perspectiva

inaugurada pelo filósofo franco-lituano, as leis e as teorias da justiça e da liberdade

devem se pautar a responsabilidade para com o Outro homem. O Rosto do Outro

coloca-nos diante das exigências de ter-se de debruçar sobre a humanidade a partir

daquele que se retira das totalidades, isto é, de olhar a partir dos excluídos pelos

sistemas econômicos, a quem pertence às minorias muitas vezes não ouvidas, e

aos países e nacionalidades não consideradas pela totalidade político-filosófico

estabelecidas pelos norte-americanos e europeus, tão interpretada no drama da

humanidade dos refugiados.

Até mesmo a mulher, ainda hoje considerada inferior ao homem nas relações

sociais e nas relações de trabalho, merece ser defendida em sua alteridade. Mesmo

a reflexão sobre bioética, ganha algumas luzes orientadoras, na filosofia da

responsabilidade de Levinas: Ora, na perspectiva levinasiana, o direito a vir-a-ser, a

significação própria do ente, o valor de sua existência não depende, de maneira

alguma de sua autonomia racional: possui intrínseco de ‗Rosto‘ humano que é

necessário respeitar, mesmo feto ou como moribundo inconsciente.

Quando se lê a atual conjuntura cultural, com tantos atentados à liberdade e

ao senso de convivência humana, torna-se imprescindível uma filosofia que estude e

debata questões tão delicadas de nossa humanidade. Em função disso, nota-se a

relevância da filosofia de Emmanuel Levinas e a questão da responsabilidade pela

alteridade do Outro. Aprofundar, portanto, os conceitos levinasianos e trazê-lo para o

centro da reflexão filosófica com a questão da negritude, é um modo de militar em

prol do Outro, tão ameaçado atualmente, em sua alteridade.

A filosofia de Levinas nesse sentido torna-se um instrumento importante para

abrir novas discussões, ampliar horizontes e trazer à tona tantos dramas humanos

que são esquecidos em sua alteridade, que sofrem a negação da ética e da justiça

Tudo leva a crer que para entender de modo apropriado e profundo a

Alteridade Ética em Levinas é fundamental compreender a categoria Rosto. O Rosto

aparecerá na sua significação própria, ou seja, ele ―irradia uma luz própria. Ao invés

Page 3: A NOÇÃO DE ROSTO EM LEVINAS E O ROSTO DO NEGRO NO BRASIL: ALTERIDADE E EMPODERAMENTOtcconline.fag.edu.br:8080/app/webroot/files/trabalhos/... · 2018. 12. 22. · A NOÇÃO DE ROSTO

de ser iluminado e desvelado pela consciência transcendental, vindo de uma

dimensão de transcendência, é ele que ilumina‖ (KUIAVA, 2003, p.90).

2 A NOÇÃO DE ROSTO EM LEVINAS

Levinas parece apontar um novo paradigma, antes de qualquer formulação

lógica-descritiva é preciso visualizar onde o humano se fixa, o que é significativo

para as pessoas – senão as relações interpessoais, onde acontece o encontro entre

o eu e o Outro, realidades distintas, porém, conduzidas por um desejo de relação.

Não parto da racionalidade como uma noção que engloba um sistema de categorias da nossa lógica do conhecimento: gostaria de alargar esta noção: parto do que é significativo, onde o humano se fixa antes de qualquer sistema (LEVINAS,1991, p. 30).

A ética configura esse evento da superação da prisão do Outro pelo Mesmo,

da resistência ética que se dá na epifania do Rosto. O Rosto está presente na sua

recusa de ser conteúdo. Neste sentido, ―não poderá ser compreendido, isto é,

englobado‖ (Levinas, 1980, p.173). O Outro como invisível ontológico e social,

caracterizado pela Filosofia Ocidental, valoriza a inter-relação quando o Eu pode

descrever e direcionar o Outro.

Mas é preciso afirmar:

Apesar do desespero de uma época sufocada em si mesmo, ocorre o Outro [...], o Outro corrói minhas certezas, me extrai de mim mesmo, delimita meu desespero e minha solidão aparentemente infinitos e eternos com sua ocorrência, e funda meu persistir na existência – minha subjetividade – para que eu possa, entre muitas coisas, filosofar (TIMM DE SOUZA, 2000, p. 179).

O Rosto nessa perspectiva apresenta duas dimensões: anúncio e denúncia.

Enquanto anúncio o Rosto apresenta o Outro:

Intocável, inconveniente, inadequado, impensável, inefável e não se dará à satisfação. Há uma originariedade que não se conceitua e nem se generalizará. Mas, sobretudo, será um antes ou além da vontade, da liberdade e da razão (SUSIN, 1984, p. 200).

Mas se o Outro é impensável e inefável, como é possível ter algum contato

com o Outro? É uma alteridade diluída na abstração? O Rosto enquanto denúncia,

Page 4: A NOÇÃO DE ROSTO EM LEVINAS E O ROSTO DO NEGRO NO BRASIL: ALTERIDADE E EMPODERAMENTOtcconline.fag.edu.br:8080/app/webroot/files/trabalhos/... · 2018. 12. 22. · A NOÇÃO DE ROSTO

apresenta o Outro concreto. Lévinas recupera categorias bíblicas para essa

abordagem. Assim, se descreve: ―O pobre, o órfão, a viúva e o estrangeiro são

modelos concretos de alteridade‖ (Susin, 1984, p. 201).

O poema O bicho se entrelaça nessa perspectiva da visita do Outro

indesejável ao eu – quem é Outro o pobre, órfão, a viúva e o estrangeiro?

O pobre, o órfão, a viúva e o estrangeiro que não sou eu: não têm alimentos – nem pão, nem música, nem flores – não têm vestuário – nem roupas, nem títulos, nem funções sociais, não têm habitação e nem porta para separar a própria intimidade. Sem gozo do mundo e sem felicidade, com necessidades sem poder satisfazê-las, estão ameaçados de morte na própria corporeidade e na própria interioridade [...]; todas essas situações se cruzam e se juntam (SUSIN, 1984, p. 201).

O Rosto é anúncio e denúncia. Esse ato profético do Rosto coloca-nos a ética

como filosofia primeira. A relação com o Outro causa ruptura com eu egoísta e

suscita alteridade. ―O Rosto recusa-se à posse, ao meus poderes. Na sua epifania,

na sua expressão, o sensível ainda captável transmuda-se em resistência total à

apreensão‖ (Levinas,1980, p. 176).

Neste percurso pelo pensamento levinasiano, a atitude é de ―acolhimento‖, na

―escuta‖ desta palavra que ―abre o acesso à humanidade do humano‖, e ―um novo

ponto de partida para a ética‖. Na contestação da prioridade originária do ser, em

seus privilégios de inteligibilidade e significação – evadindo-se do ser – afirma-se a

prioridade da ética entendida não como ―corolário de uma visão do mundo, como

fundada sobre o ser, sobre o conhecimento, sobre categorias ou existenciários‖

(Lévinas, 2002, p. 164), e que não se fundamenta numa ―vontade livre e racional‖ e

na ―autonomia soberana do eu‖ no exercício de seus poderes e de seus saberes.

É no ―acolhimento de Outrem‖, no ―aproximar-se do próximo na proximidade‖,

no ―um-para-o-outro‖, na dissimetria da relação, é o ―não contemporâneo‖ do ―outro‖,

o ―não englobável‖, o ―não tematizável‖, o ―não sintetizável‖ pelo ―eu‖. No dizer de

Lévinas:

Um-para-o-outro como um-guardião-de-seu-irmão, como um responsável-pelo-outro. Entre o um que eu sou e o outro pelo qual eu respondo abre-se uma diferença sem fundo, que é também a não indiferença da responsabilidade, significância da significação, irredutível a qualquer sistema (LEVINAS, 1993, p.15).

Page 5: A NOÇÃO DE ROSTO EM LEVINAS E O ROSTO DO NEGRO NO BRASIL: ALTERIDADE E EMPODERAMENTOtcconline.fag.edu.br:8080/app/webroot/files/trabalhos/... · 2018. 12. 22. · A NOÇÃO DE ROSTO

Esta diferença da não-indiferença estrutura originariamente o humano. Dito de

outro modo: a abertura do eu a outrem, ―sem fundo de comunidade‖, ―relação sem

relação‖ é o sentido profundo do humano, em sua significância ética.

A resistência ética é existente, mas o Outro a faz não por vontade consciente

própria e desejada, mas como que por direito intrínseco e natural, ao qual o eu se

resigna e deve aceitar. Para Levinas, a ética não é ser bom ou moralista. Trata-se,

porém, de uma estrutura que mantém a vida em cuja raiz se depende do Outro e da

alteridade revelada sempre pelo Rosto.

A ética de Levinas se revela com grande pertinência. Sobretudo, quando a

violência, o assassinato, insistem em se tornarem banais. O Outro, sobretudo, o

mais inocente, se desvela diante do eu com todos os seus direitos, e deve ser

respeitado e considerado. O outro exige por si postura ética.

A alteridade ética proposta por Lévinas, em tempos de crítica à técnica e à

reificação do homem, desperta para a valorização do Outro, como reconhecimento,

respeito e igualdade. E o Outro está sempre evidente.

Em tempos difíceis, de alteridades ameaçadas e perseguidas, de bandeiras

da tortura e da morte sendo pronunciadas e homenageadas, é preciso ser

resistência ética, é preciso dizer:

O assassínio exerce um poder sobre aquilo que escapa ao poder. Ainda poder, porque o Rosto exprime-se no sensível: mas já impotência, porque o Rosto rasga o sensível. A alteridade que se exprime no Rosto fornece a única matéria possível à negação total (LEVINAS, 1980, p.179).

O assassínio se considera vitorioso diante de seu ato prevalecido. No entanto,

Levinas aponta que o Rosto tem uma expressão original, um Infinito no seu finito

estético.

O Infinito paralisa o poder pela sua infinita resistência ao assassínio que, dura e intransponível, brilha no Rosto de outrem, na nudez total de seus olhos, sem defesa, na nudez da abertura absoluta ao Transcendente. Há uma relação, não com uma resistência muito grande, mas com alguma coisa absolutamente Outro: a resistência do que não tem resistência – a resistência ética (LEVINAS, 1980, p. 178).

Essa afirmação traz a memória uma experiência pessoal realizada durante

três anos numa aldeia africana, em Moçambique, com o povo Makhuwa. Povo

marcado pela fome, pela desigualdade e pelas heranças da Guerra Civil

Moçambicana. Um ‗Eu colonizador‘ que se fez assassínio de uma cultura e da

alteridade de Outrem.

Page 6: A NOÇÃO DE ROSTO EM LEVINAS E O ROSTO DO NEGRO NO BRASIL: ALTERIDADE E EMPODERAMENTOtcconline.fag.edu.br:8080/app/webroot/files/trabalhos/... · 2018. 12. 22. · A NOÇÃO DE ROSTO

No entanto, a fala de uma mãe da aldeia Makhuwa, diante de uma pergunta,

ressoa a resistência infinita do Outro. A pergunta foi a seguinte: diante desse

contexto duro, de tantas falências, de sofrimento, o que faz você continuar a lutar

pelos seus? A resposta teve cunho metafísico, porém, carregada de eticidade –

“Muluku Neta Natthu Awe” ("Deus está com a gente; Deus caminha com seu povo").

Na aldeia Makhuwa, Muluku (Deus), é um ser pessoal, que ajuda na vivência da

comunidade, passa pelo outro, pelas relações.

É importante retomar, pensando o Outro - o ―Rosto onde se apresenta o Outro

– absolutamente Outro – não nega o Mesmo [...], essa relação é a não-violência por

excelência, porque em vez de ferir a liberdade, chama-a à responsabilidade e

implanta-a‖ (Levinas, 1980, p. 181).

Levinas continua:

Não-violência, ela mantem no entanto a pluralidade do Mesmo e do Outro. É paz. A relação com o Outro, absolutamente Outro -, que não tem fronteira com o Mesmo, não se expõe à alergia que aflige o Mesmo numa totalidade e na qual a dialética hegeliana assenta. O Outro não é a razão um escândalo que a põe em movimento dialético, mas o primeiro ensino racional, a condição de todo ensino (LEVINAS, 1980, p.182).

A não-violência que o Outro restabelece, faz com que o eu sinta-se numa

relação de responsabilidade. ―O encontro com Outrem é imediatamente minha

responsabilidade por ele‖ (Levinas, 2005, p. 143). Levinas continua: ―A

responsabilidade pelo próximo é, sem dúvida, o nome mais grave do que se chama

amor do próximo. Amor sem eros, caridade, amor em que o momento ético domina o

momento passional, amor sem concupiscência‖ (Levinas, 2005, p. 143).

O amor e a abertura para o Outro, bem como a hospitalidade realizada pelo

sujeito, faz nascer uma nova realidade com novos paradigmas civilizacionais. Novos

valores, novas utopias e nova relação social possibilitam um novo modo de

experimentar a realidade.

Trazer para baila filosófica o pensamento de Levinas, a alteridade ética, e os

conceitos tão caros, como Rosto aqui pensado, é beber de uma fonte que busca

saciar a sede de justiça pelo Outro massacrado.

Levinas, com sua filosofia voltada ao Outro, à ética e a responsabilidade

infinita torna-se um farol ao navio da existência, que experimenta as ondas

Page 7: A NOÇÃO DE ROSTO EM LEVINAS E O ROSTO DO NEGRO NO BRASIL: ALTERIDADE E EMPODERAMENTOtcconline.fag.edu.br:8080/app/webroot/files/trabalhos/... · 2018. 12. 22. · A NOÇÃO DE ROSTO

revoltosas de uma época da exclusão e da relativização da alteridade e do racismo

institucionalizado.

3 O ROSTO DA RESISTÊNCIA NO BRASIL: A QUESTÃO DO NEGRO

O bicho

Vi ontem um bicho

Na imundície do pátio,

Catando comida entre os detritos.

Quando achava alguma coisa,

Não examinava nem cheirava:

Engolia com voracidade.

O bicho não era um cão,

Não era um gato,

Não era um rato,

O bicho, meu Deus, era um homem.

Datado no Rio de Janeiro em, 25-02-1947, e publicado neste mesmo ano em

Belo belo, o poema O bicho é um dos mais conhecidos de Manuel Bandeira. No

entanto, não recebeu grandes elogios, devido à forte crítica literária para época.

O poema nos toca porque diz e desenha, com clareza e precisão, uma

situação que permanece, que se testemunha diariamente, perto de cada um de nós

— nas cidades, nas ruas, nas calçadas, em muitos lugares.

De lá para cá, as desigualdades só aumentaram no Brasil, junto com a

desigualdade social vêm a desigualdade racial, sorrateira e assassina:

As décadas de 1980 e 1990 foram marcadas por um contexto onde o

debate era mobilizado pela questão da existência ou não da discriminação racial no país. A democracia racial ainda se colocava como um paradigma a ser questionado, e o reconhecimento das desigualdades raciais e a reflexão sobre suas causas precisava se consolidar. A partir de meados dos anos 90, entretanto, os termos do debate se transformaram. Reconhecida a injustificável desigualdade racial que, ao longo do século, marca a trajetória dos grupos negros e brancos, assim como sua estabilidade ao correr do tempo, a discussão passa progressivamente a se concentrar nas iniciativas necessárias, em termos da ação pública, para o seu enfrentamento (THEODORO, 2008, p. 11).

Apesar de reconhecida a desigualdade racial, é preciso considerar que não foi

superada. Levinas com sua noção de Rosto aborda não uma questão estética

(física), mas o todo humano encarnado no Rosto, sua liberdade, suas vontades, sua

Page 8: A NOÇÃO DE ROSTO EM LEVINAS E O ROSTO DO NEGRO NO BRASIL: ALTERIDADE E EMPODERAMENTOtcconline.fag.edu.br:8080/app/webroot/files/trabalhos/... · 2018. 12. 22. · A NOÇÃO DE ROSTO

historicidade e memória, seu direito de ser e de vir a ser. O Rosto é o espelho da

dignidade, da resistência diante do preconceito estampado e cruel. Há uma marca

horrorosa na sociedade brasileira que se chama preconceito. A política de imigração

do Brasil nasce:

Impregnada de matizes racistas, essa política resultou não apenas na marginalização de negros e mulatos no Sudeste, mas também reforçou o padrão de distribuição regional de brancos e não-brancos que se desenvolvera durante o regime escravista (HASENBALG apud JACCOUD, 2008, p. 25).

O mercado de trabalho foi o primeiro lugar de exclusão do negro no Brasil.

―No mercado de trabalho, a entrada massiva de imigrantes europeus deslocava a

população negra livre para colocações subalternas‖ (Jaccoud, 2008, p. 33). A

abolição da escravidão era documental, um papel, caneta e uma assinatura não

garantiu direitos pautados na justiça brasileira.

Para os ex-escravos, dedicados em sua grande maioria às atividades rurais, a passagem ao trabalho livre não significou sequer a sua inclusão em um regime assalariado. Quando permaneciam nas fazendas, sua passagem à condição de dependente ampliou a massa de trabalhadores livres submetidos à grande propriedade e afastados do processo de participação nos setores dinâmicos da economia (JACCOUD, 2008, 35).

A política de imigração criou uma atmosfera na qual preconizava que o negro

era menos capaz que o branco, que seu trabalho não oferecia destaque e status

perante uma sociedade em pleno desenvolvimento, o trabalho do negro deveria

estar numa base que não oferecesse credibilidade social. Esse preconceito era

proposital, de cunho cultural, mas também econômico.

Efetivamente, os preconceitos vigentes difundiam a crença da menor capacidade do trabalhador negro face ao branco, ampliando à expectativa favorável que cercava a entrada de trabalhadores europeus. Este era apontado como o trabalhador por excelência: ―disciplinado, responsável, enérgico, inteligente, enfim, racional (AZEVEDO apud JACCOUD, 2008, p. 37).

Ser Rosto negro foi (é) sofrer a violência mascarada na ideia de progresso:

Assim, se, de um lado, a ideologia do Brasil moderno, do progresso e do crescimento, não comportava a visão do pobre, sobretudo do pobre e negro, a grande maioria, de outro lado, a despeito desse mesmo discurso modernizante, a sociedade brasileira sempre tem convivido com a pobreza

Page 9: A NOÇÃO DE ROSTO EM LEVINAS E O ROSTO DO NEGRO NO BRASIL: ALTERIDADE E EMPODERAMENTOtcconline.fag.edu.br:8080/app/webroot/files/trabalhos/... · 2018. 12. 22. · A NOÇÃO DE ROSTO

e com a desigualdade, fazendo destas uma espécie de ponto de apoio de sua reprodução. O Brasil, desigual em sua essência, precisa dos pobres e da pobreza. O dia-a-dia de nossa sociedade não prescinde dos serviços pessoais a baixo custo. Essa sinergia perversa vige até nossos dias. No país que convive e vive da desigualdade, o negro, ao perder o lugar central no mundo do trabalho, não deixou de exercer um papel social como o núcleo maior dos pobres, prestadores de serviços aos quais as classes médias recorrem ostensiva e sistematicamente (JACCOUD, 2008, p. 40).

Na base do preconceito diante ao Outro ―diferente‖, estão duas irmãs

gêmeas: a ignorância e a naturalização. Ambas, dão legitimidade aquelas frases ―foi

sempre assim‖, ―infelizmente, não se pode fazer nada‖. A naturalização do

preconceito de qualquer instância, é a forma mais cruel da negação do sofrimento

do Outro. Legitima a injustiça, corrobora com a morte e aceita o sofrimento e a

exploração do pobre e negro numa lógica racional estabelecida.

No excelente artigo A naturalização do preconceito na formação da identidade do afrodescendente, Ricardo Ferreira e Amilton Camargo (2001) nos trazem dois exemplos importantes para observar o efeito cascata do preconceito racial embutido nas falas e ações cotidianas. Ambos mostram professoras do ensino fundamental, as duas acreditando, através de seus discursos, estar atuando pedagogicamente contra o olhar que vê desprestígio na pele escura. A primeira delas, em entrevista a uma pesquisadora durante sua pesquisa de mestrado, alega que o preconceito racial pode ser superado caso os negros utilizem produtos de higiene pessoal que escondam seu odor. Diz: ―Uma pessoa que é negra, a pele, a melanina faz com que o cheiro fique mais forte. Hoje em dia esse preconceito de cheiro já melhorou muito com os produtos modernos de nossa indústria (…) Não havendo o cheiro, não existe o porquê de o branco não conversar com o negro e vice-versa. ―Tem gente que melhorou muito‖. Outra professora, também não se considerando racista, afirma que aproveita os momentos lúdicos para ensinar o respeito racial entre seus alunos: ―Nas próprias histórias infantis tem aquela coisa da madrasta, da bruxa, uma coisa má e uma coisa boa. Então a gente pode aproveitar a raça nesse sentido. Porque uma pessoa, às vezes, por exemplo, é preta e tem a alma branca‖ (NO PAÍS DO RACISMO INSTITUCIONAL, 2013, p. 18).

De forma silenciosa e naturalizada o preconceito é criminalizado na cor. O

Brasil contêm uma população afrodescente grandiosa, sua cultura, conhecimento e

dinamismo enrique o país. No entanto, na perspectiva da criminalização da cor o

crime e a violência no Brasil, estão relacionados aos negros. A ideologia que

relaciona insegurança a população negra, faz com que aumente e de forma

institucionalizada o abuso e o extermínio ao homem e a mulher negro e pobre.

As estatísticas apontam números que assustam e colocam o Brasil numa

vitrine internacional:

Page 10: A NOÇÃO DE ROSTO EM LEVINAS E O ROSTO DO NEGRO NO BRASIL: ALTERIDADE E EMPODERAMENTOtcconline.fag.edu.br:8080/app/webroot/files/trabalhos/... · 2018. 12. 22. · A NOÇÃO DE ROSTO

Segundo o relatório, a proporção de negros, entre as vítimas da violência policial, é três vezes maior que a proporção dos brancos. Entre aqueles, a taxa de homicídios por 100 mil habitantes (pretos e pardos) é de 46,3%. Em relação aos brancos e amarelos, a probabilidade de ser assassinado é quase o dobro para os pardos e 2,5 vezes maior para os pretos. Em relação ao sistema prisional, de acordo com dados levantados em 2010 (Diretoria de Políticas Penitenciárias do Ministério da Justiça), 37% dos presos se declaram brancos, enquanto 55% se declaram pretos e pardos (38% pardos, 17% negros). Um por cento se declara amarelo, enquanto os indígenas não pontuaram (eram 511). Os dados são relativos ao ano de 2009, quando o Brasil tinha 473.626 pessoas em regime de cárcere. De acordo com o Índice de Homicídios na Adolescência (iha), do Unicef, a probabilidade de um adolescente ser assassinado é quase 12 vezes maior quando este é do sexo masculino. Se ele é negro, o risco é três vezes maior em relação aos brancos. Outra pesquisa, realizada pelo sociólogo Túlio Kahn (que analisou diversas pesquisas de opinião realizadas entre 1995 e 1997, pelo Instituto Datafolha), mostra que os negros formavam o único grupo que tinha mais medo dos policiais do que dos bandidos. Adorno (1995), em Discriminação racial e justiça criminal, verificou que, proporcionalmente, brancos e negros são iguais no cometimento de crimes violentos. No entanto, identificou que os negros tendem a ser mais severamente punidos do que os brancos. O autor considera que os negros recebem mais vigilância policial, defrontam maiores obstáculos no acesso à justiça criminal e enfrentam maiores empecilhos para usufruir do direito de ampla defesa (NO PAÍS DO RACISMO INSTITUCIONAL, 2013, p. 46).

Uma pergunta inicial se faz - qual o caminho para tratar desse assunto? É

antes de tudo, não nega-lo. A instituição não pode fechar os olhos e dizer que não

existe, ou que é um exagero. Toda forma de negação é uma afirmação do

preconceito existente. Numa visão levinasiana negar o Rosto de Outrem, negar o

Rosto do mais fraco é praticar com ele a injustiça e promulgar sua morte.

Uma das ―ofensas‖ ouvidas pelos policiais é bastante significativa: não raro, eles são chamados de ―negros‖, em tom depreciativo, por aqueles que abordam. Aqui a cor da pele assume, por parte do abordado, um aspecto pejorativo, é uma fala que entende a pele escura como um problema e uma prova do pouco prestígio do outro. É claro que classificar alguém como ―negro‖ não se constitui em prática racista em si, mas, a partir do momento em que se utiliza o termo como forma de demarcar o outro de maneira negativa, a discriminação racial passa a ser uma realidade (NO PAÍS DO RACISMO INSTITUCIONAL, 2013, p. 55).

A ideologia que deu sustentação ao escravismo no passado, impediu aos

negros a oportunidade de viverem como cidadãos da nação brasileira. Ela tornou

natural o preconceito e a discriminação que são realidades anti-humanas, anti-

naturais. No que diz respeito à economia, os grupos negros se configuraram como

reserva de mão de obra ou como executores de ofícios desprestigiados aos olhos da

população de origem europeia.

Page 11: A NOÇÃO DE ROSTO EM LEVINAS E O ROSTO DO NEGRO NO BRASIL: ALTERIDADE E EMPODERAMENTOtcconline.fag.edu.br:8080/app/webroot/files/trabalhos/... · 2018. 12. 22. · A NOÇÃO DE ROSTO

As disparidades entre a população negra e a branca no acesso à educação,

emprego, padrão salarial, moradia e outras necessidades fundamentais, são

consequências do processo histórico secular de negação de oportunidades aos afro-

brasileiros de exercício da cidadania. Os negros tiveram que aprender muito sobre

deveres, mas pouco sabem e pouco são informados sobre direitos. Diante disso, é

preciso entender a alteridade numa visão etnicorracial, tendo a educação como

possibilidade de inclusão e justiça.

4 VOZ E VEZ: ALTERIDADADE E EMPODERAMENTO DO NEGRO

Abordar alteridade é realizar um processo epistemológico de reviravolta, a

educação baseada na história da Filosofia Ocidental centrou-se no ‗Eu‘. As relações

buscam a realização do indivíduo, mesmo o existencialismo contemporâneo, que se

abre para ética e para as inter-relações, prioriza a construção do ser e sua

potencialidade. O sistema social e econômico encarnou essa ontologia egocêntrica

do eu dominador. Discutir alteridade é quase uma afronta, a ideia utilitarista prevê o

outro em função do eu, se me é útil, me é possível. A mercantilização do outro torna-

o um invisível social.

Trazer a questão da alteridade do negro é antes de tudo, abrir espaço para

um Outro que tem voz e que busca seu espaço por direito. É abrir a porta da ética

para que o negro tome seu assento e faça uso de seu espaço. O item anterior

evidenciou a luta histórica da alteridade negra, os preconceitos e os extermínios

diretos e indiretos da negritude. No entanto, os Rostos resistentes não fraquejam e

no empoderamento constroem pontes para uma cidadania livre e justa ao homem e

a mulher negra.

Uma via possível de para diminuir a desigualdade social e racial é a

educação. A escola tem um papel prioritário para promoção da alteridade.

Depois da família, o segundo núcleo de relações fortes e de construção da subjetividade e da alteridade é a escola. No convívio com os outros, na sua diversidade é que o ser humano se torna melhor, a educação na sua base, tem a missão de nutrir o cuidado e a hospitalidade com o ―diferente‖. Só há ética, se houver encontro com o outro, não encontro de dominação, mas encontro como fundamento ético (VIANNA, 2005, p. 32).

Page 12: A NOÇÃO DE ROSTO EM LEVINAS E O ROSTO DO NEGRO NO BRASIL: ALTERIDADE E EMPODERAMENTOtcconline.fag.edu.br:8080/app/webroot/files/trabalhos/... · 2018. 12. 22. · A NOÇÃO DE ROSTO

A escola é o laboratório da diversidade, trabalhar a partir da escola, pelo viés

da educação o empoderamento é garantir espaços de poder e garantia de direitos já

estabelecidos. Na questão do ensino fundamental e médio entra também a formação

dos professores e uma pedagogia da inclusão.

Além dos resultados até o momento limitados dos esforços de formação de professores visando a implementação da Lei no 10.639/2003,30 outras dificuldades têm sido encontradas. Algumas instituições de ensino, tanto públicas quanto privadas, e secretarias estaduais e municipais de educação ofereceram resistência à incorporação desses estudos, obrigando o Ministério Público, sob demanda de entidades do Movimento Negro, a adotar medidas para exigir o cumprimento da referida Lei. Não há dúvidas de que essas resistências apontam não somente a ausência de uma normatização sobre os critérios e conteúdos necessários à implementação da Lei, assim como a disponibilidade de material didático para uso nos cursos de capacitação e em sala de aula. Contudo, essa é uma experiência importante, cujas lições podem abrir novas perspectivas para o trabalho com os temas do preconceito, racismo em sala de aula, e para a capacitação dos professores para lidarem com situações de discriminação direta ou indireta dentro do espaço escolar (JACCOUD, 2008, p. 153).

É importante ter os pés no chão, conduzir a alteridade e a negritude para um

espaço de fala, dar vez ao seu Rosto é desafiar a lógica prevalecida dos grupos que

olham e não querem ver o negro sair da senzala.

O empoderamento é um caminho sem volta, porém, é preciso estabelecer

uma metodologia da resistência, isso se dá pelos pequenos grupos, na base da

comunidade. A alteridade e a resistência que revolucionou o mundo, se deu numa

periferia de Jerusalém, a mais de dois mil anos atrás, com um grupo pequeno, no

entanto, com uma pedagogia politizada.

A universidade é outro lugar para sustentar o empoderamento, é o areópago

da diversidade, portanto, lugar de fundamentar a alteridade. A formação de novos

agentes enganchados e dispostos a planejar a inserção daquele e daquela que

ainda é excluído pela cor, é tarefa também do meio educacional. Uma ferramenta

fundamental é o Direito, pois, através de garantias legitimas é possível trilhar

políticas públicas que abranjam a todos, sobretudo, o marginalizado racial. Há

diversos movimentos/fenômenos que direcionam essa discussão.

Nesse sentido, discutir políticas e instrumentos de combate à desigualdade racial implica em debater um conjunto variado de fenômenos que estão na base desse processo. Serão aqui destacados o racismo, a discriminação direta, a discriminação indireta, o preconceito, que, em conjunto, mantêm a população negra concentrada nos segmentos mais baixos da estratificação social brasileira (JACCOUD, 2008, p. 134).

Page 13: A NOÇÃO DE ROSTO EM LEVINAS E O ROSTO DO NEGRO NO BRASIL: ALTERIDADE E EMPODERAMENTOtcconline.fag.edu.br:8080/app/webroot/files/trabalhos/... · 2018. 12. 22. · A NOÇÃO DE ROSTO

A tarefa árdua de rompimento com o racismo institucionalizado a partir de um

empoderamento do negro, têm criado experiências positivas.

Alguns caminhos promissores têm sido abertos, mesmo que ainda de forma incipiente ou em abrangência limitada, por meio de experiências diversas. No âmbito do combate ao racismo institucional, desenvolveu-se, durante os anos de 2005 e 2006, uma interessante experiência no âmbito das políticas de saúde. É fato que o conceito de ação afirmativa inclui, para alguns analistas, o conjunto das iniciativas do Estado no sentido de se contrapor à atitude passiva de afirmar a não discriminação como princípio na esfera do Direito. Ou seja, fora do campo criminal, todas as ações em prol da promoção da igualdade poderiam ser classificadas como afirmativas. Aqui, contudo, adotamos uma conceituação mais restrita do termo, com fins não apenas analíticos, mas também com o objetivo de melhor caracterizar os objetivos e complementariedades dos programas e políticas públicas. Ao mesmo tempo, na educação fundamental e média, foram implementadas algumas políticas valorizativas visando o ensino da história e da cultura negra.

O Ensino Superior no Brasil têm sido campo de um conjunto múltiplo de programas de ações afirmativas, reunindo diferentes tipos de cotas e sistemas de bonificações em busca da maior inclusão dos estudantes negros. No mercado de trabalho, o Ministério Público do Trabalho vem desenvolvendo uma ação de defesa dos direitos difusos da comunidade negra, e atuando na promoção de condutas não-discriminatórias e promotoras da igualdade (JACCOUD, 2008, p. 138).

O acesso à educação da população negra é o retrato de sua alteridade

garantida, enquanto não houver acesso à educação sua alteridade está ameaçada,

é uma constante luta de resistência, enquanto houver negros destituídos do direito

de estudar, estará com sua liberdade e dignidade em risco. Sobre esse assunto é

bom fundamentar:

Nos últimos anos, as iniciativas de promoção do acesso ao Ensino Superior vêm se destacando como palco de expressivos avanços no que se refere a iniciativas de combate às desigualdades raciais e à ampliação de oportunidades sociais. As ações afirmativas nas universidades públicas brasileiras vêm sendo adotadas, de forma voluntária e espontânea, por um conjunto crescente de instituições, desde o início da década, e têm efetivamente representado um importante mecanismo de democratização do acesso ao Ensino Superior e de ampliação do acesso da juventude negra às universidades no Brasil (JACCOUD, 2008, p. 145).

Com isso, é possível afirmar que:

Essas iniciativas, a despeito de seu caráter restrito e limitado, têm representado um significativo avanço nas políticas de combate à desigualdade racial e nas perspectivas abertas à população negra no Brasil. Vêm igualmente permitindo aprofundar o debate sobre a interação do negro e seu lugar em nossa sociedade, além de recolocar no debate a discussão sobre a educação pública no Brasil, seu papel e a qualidade de seu ensino. E, por fim, tem feito avançar nossa compreensão sobre democracia e sobre

Page 14: A NOÇÃO DE ROSTO EM LEVINAS E O ROSTO DO NEGRO NO BRASIL: ALTERIDADE E EMPODERAMENTOtcconline.fag.edu.br:8080/app/webroot/files/trabalhos/... · 2018. 12. 22. · A NOÇÃO DE ROSTO

a variedade de instrumentos que devem ser mobilizados na construção de maior justiça social (JACCOUD, 2008, p. 150).

Para que esse processo de empoderamento e alteridade etnicorracial sejam

visualizadas pelas instâncias diversas, é necessárias estratégias múltiplas e

integradas, que estejam ligadas aos pequenos grupos da comunidade, da escola, da

universidade, e dos órgãos governamentais e ONGS. Formar rede de relações é

impreenchível para o êxito daquilo que se busca.

O enfrentamento de uma questão com a centralidade da temática racial, que perpassa o tecido e as relações sociais no país, não pode prescindir de uma ação de Estado, desenvolvida mediante uma Política Nacional que inclua a adoção de um posicionamento efetivo das instâncias governamentais, e não apenas a Seppir. É necessário que as desigualdades raciais sejam incorporadas como desafios em cada uma das políticas setoriais. Os indicadores superiores de repetência e evasão de crianças negras nas escolas brasileiras aguardam serem transformados em metas para a intervenção da política de educação, da mesma forma que as taxas reduzidas de cobertura de mulheres negras em exames e procedimentos de saúde, a violência policial contra jovens negros, entre inúmeros exemplos que podem ser citados. Ministérios e órgãos setoriais, além do Legislativo e do Judiciário, devem ser envolvidos em uma política que tenha diretrizes e metas balizadoras da ação pública, sinalizando para os estados e municípios e para a sociedade sobre a importância da intervenção governamental na busca da igualdade racial (JACCOUD, 2008, 164).

Junto com as formas legais de não aceitação do racismo e da segregação,

também passa a mudança de mentalidade. Talvez seja o ponto nodal da discussão,

a mudança de mentalidade e a sensibilidade ao Outro.

O combate à problemática racial não será efetivo se não lograr uma mudança da mentalidade ainda largamente implantada em nosso país. Sem a efetiva importância da igualdade como valor, o reconhecimento da diversidade na formação nacional, e a condenação de racismos e preconceitos, nem a legislação em vigor será aplicada em sua plenitude, nem as políticas e ações de promoção da igualdade racial poderão ter o sucesso que delas se espera (THEODORO, 2008, p. 172).

O pior de todos os preconceitos é a indiferença a realidade que grita, a

indiferença ao Outro, seu Rosto ainda preso no tronco da hipocrisia e chicoteado na

ofensa injusta e cruel, como bem lembra Luiz de Jesus no poema Negro Soul: ―Sou

um negro no tronco da demagogia; levando chibatadas de hipocrisia, preso na

senzala da indiferença; e transportado no navio da ofensa‖.

Page 15: A NOÇÃO DE ROSTO EM LEVINAS E O ROSTO DO NEGRO NO BRASIL: ALTERIDADE E EMPODERAMENTOtcconline.fag.edu.br:8080/app/webroot/files/trabalhos/... · 2018. 12. 22. · A NOÇÃO DE ROSTO

A alteridade etnicorracial é um projeto que envolve a vida e a dignidade,

portanto, num país marcado por uma história de negação da negritude, esse será

um projeto de constante resistência. Alinhar as diversas forças, protagonizar o negro

no espaço de poder é abrir as portas para uma sociedade que lida de forma sadia

com a diversidade.

Com isso, a ética aliada a alteridade precisa oferecer no mínimo uma

existência de paz ao negro, já marcado historicamente pelos tormentos da

escravidão. Na linha levinasiana - deixar ser ―contaminado‖ pelo Rosto de Outrem é

criar espaço de paz e realização, o Rosto não é ameaça, o Rosto é abertura e

transcendência.

Page 16: A NOÇÃO DE ROSTO EM LEVINAS E O ROSTO DO NEGRO NO BRASIL: ALTERIDADE E EMPODERAMENTOtcconline.fag.edu.br:8080/app/webroot/files/trabalhos/... · 2018. 12. 22. · A NOÇÃO DE ROSTO

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente artigo desenvolveu a alteridade etnicorracial no Brasil. Teve como

objetivo apresentar o sentido da alteridade, da resistência e do empoderamento do

negro no Brasil. Balizado pela filosofia levinasiana apresentou a noção de Rosto,

uma categoria filosófica que garante a alteridade e coloca a ética como caminho a

percorrer. O Rosto em Levinas não pode ser escravizado, sempre escapa, é

resistência, mesmo com a morte do Outro, seu Rosto/historicidade/memória é

semente lançada, que se multiplicará nos espaços infinitos de luta.

A realidade apresentada no segundo item destacou a marca histórica e

institucionalizada do preconceito e criminalização pela cor. Uma realidade dura que

mostrou os rostos invisibilizados pela cor e pela pobreza. Porém, mesmo dia da

morte e ameaça constante a alteridade do negro, esse se faz Rosto de resistência.

Portanto, o item voz e vez preconizou os lugares fundamentais para a

garantida da alteridade e do empoderamento (escola, universidade etc). É dever,

portanto do Estado, através das instâncias jurídicas garantir o protagonismo do

negro sem ameaça e violência.

Em suma, esse artigo em suas considerações aliou filosofia com questões

sociais, ética e políticas públicas, a negritude e empoderamento. A noção de Rosto

transpassou a reflexão, entendida como expressão de alteridade, justiça e

responsabilidade por Outrem.

Pensar a ética e sua praticidade é sentar no banco da existência do Outro,

sem julgamentos, sem preconceito, sem criminalização. O negro viveu a pedagogia

da cana-de-açúcar; foi triturado e na intenção de ser destruído, deu o seu melhor ao

Brasil – sua doçura, doçura é resistência!

Page 17: A NOÇÃO DE ROSTO EM LEVINAS E O ROSTO DO NEGRO NO BRASIL: ALTERIDADE E EMPODERAMENTOtcconline.fag.edu.br:8080/app/webroot/files/trabalhos/... · 2018. 12. 22. · A NOÇÃO DE ROSTO

REFERENCIAS

KUIAVA, Evaldo Antônio. Subjetividade transcendental e Alteridade: um estudo

sobre a questão do Outro em Kant e Levinas. Caxias do Sul, RS: EDUCS, 2003.

LEVINAS, Emmanuel. De outro modo que Ser o más allá de la Esencia. Trad.

Antonio Pintor Ramos, 4 ed. Salamanca, Epanha: Ediciones Sígueme, 2003.

_____. Entre Nós: Ensaio sobre a exterioridade. Trad. Pergentino Pivatto, 2 ed.

Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 1991.

_____. Transcendência e Inteligibilidade. Vila Nova de Gaia, Portugal, Edições 70.

1993.

_____. Totalidade e Infinito: Ensayo sobre la exteriodad. 6 ed. Salamanca,

Espanha: Edicione Sígueme, 1980.

PELLIZOLI, Marcelo Luiz. A relação ao Outro em Husserl e Levinas. Porto Alegre,

RS: EDIPUCRS, 2008.

SUSIN, Luiz Carlos. Ética em diálogo: Levinas e o pensamento contemporâneo –

questões e interfaces. Porto Alegre, RS: EDIPUCRS, 1984.

SOUZA, Ricardo Timm de. Sentido e Alteridade: Dez ensaios sobre o pensamento

de Emmanuel Levinas. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2000.

Page 18: A NOÇÃO DE ROSTO EM LEVINAS E O ROSTO DO NEGRO NO BRASIL: ALTERIDADE E EMPODERAMENTOtcconline.fag.edu.br:8080/app/webroot/files/trabalhos/... · 2018. 12. 22. · A NOÇÃO DE ROSTO

VIANNA, Oliveira. Escola, negro e políticas públicas. São Paulo. Ed. Nacional,

2005.

Theodoro, Mario (Org.). Luciana Jaccoud, Rafael Osório, Sergei Soares. As

políticas públicas e a desigualdade racial no Brasil: 120 anos após a abolição.

Brasília: Ipea, 2008.

No País do Racismo Institucional – Dez anos de ações do GT Racismo no MPPE.

Recife, 2013.