Levinas, O Ser e a Morte

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  • An. Filos. So Joo del-Rei, n. 10. p. 269-292, jul. 2003

    O SER E A MORTE

    Rafael Haddock-LoboDoutorando em Filosofia na PUC-Rio

    Resumo: O objetivo deste artigo con-siste em analisar a relao entre o ser ea morte segundo as interpretae em-preendidas por Emmanuel Lvinas emseus cursos na Sorbonne. Tais conside-raes visam a empreender uma crtica ontologia de Martin Heidegger, tendocomo base para tais crticas os pensa-mentos de Henri Bergson e Ernst Bloch.

    Palavras-chave: Ser, morte, Fenome-nologia, tica, ontologia

    Abstract: The aim of this paper is fo-cused in analyzing the relation betweenBeing and Death according to the inter-pretations found in Emmanuel LvinasSorbonne courses. These considerationsintends to enterprise a critics to MartinHeideggers ontology based on HenriBergson and Ernst Blochs thoughts.

    Key-words: Being, death, Phenome-nology, ethics, ontology.

    m novembro de 1975, Lvi-nas iniciaria seus cursos naSorbonne sobre Ser e Tem-

    po, que se estenderiam at maio se1976. Eles aconteciam semanal-mente em dois horrios distintos, umentre 10 e 11 horas e o outro entre 12e 13 horas. O matinal tinha comotema justamente a questo da tempo-ralidade e da morte e o posterior de-dicava-se questo de Deus e daonto-teologia. Para nosso atual inte-resse, o primeiro curso mostra-secomo fonte bibliogrfica inspiradorano que concerne relao a que en-to atentamos.

    Trata-se aqui, antes de tudo, de um

    curso sobre o tempo a durao do

    tempo, inicia Lvinas em 7 de novem-

    bro de 1975, no primeiro dia do primei-

    ro curso, antecipando, logo em segui

    da, que o tema a ser estudado a

    morte e o tempo encontra-se em

    Heidegger antes mesmo de Ser e

    Tempo, pois j aparece em 1924, na

    conferncia O conceito de tempo.

    As primeiras interrogaes de Lvi-nas mostram-se importantssimas porapresentarem todas as noes quesero desenvolvidas ao longo destesmeses de seu curso. Lvinas tratade, logo de incio, afirmar que emnenhum momento seu pensamentoassemelhar-se-ia a uma espcie defilosofia do Sein zum Tode, apesar detodo o dbito que ele, junto a todapesquisa contempornea que trata doassunto, tem em relao a Heide-gger, como, por exemplo, a citaode Janklvitch que afirma que amorte um irreversvel, onde eu sei

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    que eu devo morrer a minha morte1.Para Lvinas, esta questo deJanklvitch (tambm devedora deHeidegger) abriria espao para al-guns questionamentos fundamentaissobre a morte, como: o que estariarealmente em jogo com a morte, onada e o desconhecido? A morte,ento, reduzir-se-ia ao dilema onto-lgico ser-ou-nada? Temos, destemodo, aqui, alguns dos temas quesero tratados na obra levinasiana, aquesto do aniquilamento, do desco-nhecido e do dever (que refletem,como veremos, o carter de respon-sabilizao que se apresenta junto morte do outro).

    Seguindo aqui os passos da her-menutica heideggeriana, segundoLvinas, tudo aquilo que podemospensar ou saber da morte ou do mor-rer chega-nos de segunda mo(nous le tenions de seconde main2),chega-nos do ouvir dizer ou do saberemprico proveniente da morte dosoutros, a morte primeira. No obs-tante, j podemos, aqui mesmo, en-xergar o que mais tarde se funda-mentar como a diferena funda-mental entre o pensamento da mortede Lvinas e a fenomenologia do sermortal como encontrada em Ser eTempo. Para Lvinas,

    este saber nos vem da experincia e

    da observao dos outros homens, de

    seu comportamento de moribundos e

    de mortais conhecedores de sua morte

    1 JANKLVITCH, V. La mort, Paris,Flammarion, 1966, p. 383.2 LVINAS, E. Dieu, la mort e le temps,Paris, Grasset, 1993, p. 17.

    e esquecidos de sua morte (o que no

    quer dizer aqui divertimento: h um

    esquecimento da morte que no di-

    vertimento). Seria a morte separvel

    da relao com outrem? O carter

    negativo da morte (aniquilamento)

    est inscrito no dio ou no desejo de

    homicdio. na relao com outrem

    que pensamos a morte em sua negati-

    vidade 3.

    E assim que Lvinas vai indicar ocarter radicalmente responsabiliza-dor que a morte trar para o sujeitotico. A morte, por ser o desapareci-mento entre os seres de um entevivo, o que conclama imediata-mente a uma resposta. Para exprimiruma das frases mais significativas deLvinas sobre o tema, que se seguequase imediatamente ao supracitadotrecho, lemos: La mort est le sans-rsponse. A morte o sem-resposta;, por isso, a urgncia de resposta, aconvocao para que se respondapor aquele que no mais responde.

    Logo a seguir de um dos trechos to-mados como epgrafe a este captulo,nas primeiras pginas do conto Amorte de Ivan Ilitch, de Tosti, quan-do a notcia de sua morte espalha-seentre os amigos de trabalho (quealiviam-se e dizem: Ora, bem! Elemorreu e eu estou vivo!), Tosti ime-diatamente prossegue: Quanto aosamigos mais chegados de Ivan Ilitch,os chamados ntimos, unnime einvoluntariamente consideravam osaborrecidos deveres a cumprir acompanhar o enterro e fazer uma

    3 Idem.

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    visita de psames viva4. Ou seja,a morte a imediata convocaopara que se tome decises, para quese transforme em ato a inercial me-lancolia, o desconsolo frentico ou odesnorteante pranto frente falta dooutro, pois, para Lvinas, o outronunca esteve l, presente, ele sem-pre apresentou-se como falta, devidoao carter intocvel de seu rosto e ainfinita distncia que sempre nos se-parou dele.

    Entretanto, apesar das discrdiasapresentadas (ou talvez, por en-quanto, meramente esboadas ouensaiadas), Lvinas aponta a neces-sidade de se trilhar o percurso heide-ggeriano para que se compreendaeste fenmeno da mortalidade huma-na. Ento, sigamo-lo tambm. Dedi-quemo-nos, agora, a uma leitura(guiada por Lvinas) deste existencialfundamental ao pensamento do Ser.

    *Para Lvinas, a necessidade urgentede se pensar primeiramente a morteprovm da urgncia contemporneade se pensar o tempo. sob esteaspecto que o brilhantismo das anli-ses heideggerianas parecem ter se-duzido o filsofo lituano. Como jvimos, a obra de Heidegger da qualtratamos foi a grande influncia nopensamento levinasiano e, apesar detodas as reticncias que o levinasia-nismo pode (e, at mesmo, deva)apresentar com relao pessoa deHeidegger, ou s implicaes tico-polticas (como preferem defender os

    4 TOLSTI, L. A morte de Ivan Ilitch, Rio deJaneiro, Ediouro, 2000, p. 20.

    levinasianos) a que o fundamenta-lismo ontolgico pode conduzir, Sere Tempo permanece sendo a grandeobra de referncia, o ponto de partidaa praticamente todas as crticas queLvinas vem a solidificar como pro-priamente suas.

    Em algumas de suas obras, j anteri-ormente citadas, Lvinas preocupa-se em destrinchar cuidadosamente aanaltica do Dasein. Por isso, nestemomento de suas pesquisas, ele jtoma como um a priori de seu traba-lho os fundamentais conceitos daobra de Heidegger, destacando-sesobretudo a noo de Jemeinigkeit,traduzida por minhedade. Segundoa linha da analtica existencial, aquesto do Ser que urge em serrepensada ou pensada radicalmente apresenta sua extrema importnciapois, a todo momento, o que est emjogo esta minhedade (como pode-mos ver no pargrafo 9 de Ser eTempo). esta minhedade que oDasein experimenta ao longo dasanlises demonstradas por Heide-gger que poder, posteriormente,conduzir propriedade, ou seja, aomodo autntico do Ser.

    , entretanto, sob os moldes do cui-dado ou da cura (Sorge) que a tem-poralidade vai se apresentar comoconstituinte ontolgico dos modos deser do Dasein. Lvinas diz que

    A frmula estar desde sempre diante

    de si como ser no mundo contm as

    frmulas temporais: desde sempre,

    diante de si e junto a. H aqui uma

    tentativa de descrever a temporalidade

    sem fazer intervir o passar dos instan-

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    tes, o tempo que passa. Preocupao

    em procurar um tempo original que

    no se definiria como um rio que passa5.

    esta a razo que conduz Heideggera fugir das tradicionais interpretaesdo tempo como um tempo mensur-vel em busca de se pensar este tem-po original que, no caso de Ser eTempo, vem a emergir no modo deser do cuidado. Em sua estrutura, ocuidado pode ser interpretado segun-do a tripla temporalidade que apre-senta sob os modos da decadncia,do estar-lanado e do projeto, quecorrespondem, respectivamente, apassado, presente e futuro. Em suainterpretao, Lvinas diz encontrar aexistncia humana, o Dasein, des-crita em seu Da (Ser-no-mundo) sobestas trs estruturas do cuidado, massabendo-se que a analtica heidegge-riana parte sempre da anlise do entehumano em sua cotidianeidade me-diana, de sua banal vulgaridade,deve-se, ento, pensar em que estasestruturas concerniriam realidademesma da vida, propriedade doDasein.

    Nesta descrio do cuidado, encon-tramos esta tripartio momentneados modos de ser da existncia hu-mana como uma excluso da possi-bilidade de totalidade do Dasein. Ouseja, de acordo com esta estruturafundamental do ser, torna-se impos-svel se pensar a existncia humanacomo um todo, donde se conclui quea possibilidade de totalidade encon-tra-se fora do Dasein, em algo que o

    5 LVINAS, E. Dieu, la mort et le temps, p.35.

    transcende, o supera ou, talvez, oaniquile. Alguma coisa falta ao Da-sein para o conferir sua totalidade eesta coisa, segundo Heidegger, seriaa morte. Somente frente morte atemporalidade original poder serpensada, pois somente neste mo-mento, quando o ente humano estiverem relao sua prpria morte, estepoder ver-se, sentir-se ou pensar-secomo um todo. E, aqui, duas ques-tes fundamentais so colocadas: oque seria este tempo autntico ecomo poderamos pensar a existn-cia humana em sua totalidade?

    Correntemente, pensa-se a mortecomo o fim da durao do ser no flu-xo ininterrupto do tempo. Assim, amorte seria a destruio do ser, seuaniquilamento. Por esta razo, se-gundo Lvinas, a passagem por Hei-degger seria inelutvel e necessria,ainda que no se vise a pensar amorte sob um aspecto de aniquila-mento ou nadificao. Em Heidegger,como em Lvinas, a morte apresenta-se com um pensamento dificlimodevido ao seu carter ininteligvel,desconhecido mesmo, referente aode fora do qual a morte provm, refe-rente ao fator estrangeiro que seapresenta na mortalidade do entehumano, transcendente e estranho.

    Entretanto, para Heidegger, o queest em jogo na morte seu carterontolgico e, mais ainda, a proprie-dade do ser mortal. a partir damorte do outro, que vejo como fen-meno emprico (a morte primeira) aminha possibilidade como mortal mesurge, me assusta e me assombra, amim mesmo, ao que h de mais pr-

    ?

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    prio em mim. no momento de mi-nha morte que eu posso ser mais eu.Nos termos levinasianos, este questi-onamento torna-se um questiona-mento de mim mesmo:

    Que esta assuno da questo do Ser

    comporte o fim, que a morte seja as-

    sim o que se pode produzir de mais

    meu tal ser mais tarde a anlise

    heideggeriana. No surgimento do pr-

    prio anuncia-se j a morte 6.

    Este movimento o que caracteriza-ria a apropriao da morte, momentoem que a morte do outro apropriadapor mim e que se torna o espectro deminha prpria morte. Entretanto,como sabemos que a existncia hu-mana s pode ser analisada verda-deiramente sob sua vulgaridade me-diana, ou seja nas condies em queo ente humano se encontra na maiorparte do tempo e na maioria das ve-zes (fato este que sabemos concernirao modo do esquecimento do Ser, doafastamento da angstia e da tarefagigantomquica da ontologia funda-mental), esta apropriao caracteriza-se mais especificamente como umaalienao.

    Como se antecipou, no Dasein algoest em falta. Para Heidegger, faltajustamente seu modo prprio de ser,falta a ele ser o que ele deve vir a ser(pois no esqueamos do dbito filo-sfico que Heidegger apresenta emrelao a Pndaro, que o Dasein,como possibilidade, deve vir a ser oque ele , que, como abertura, eledeve deixar vir a ser seu modo mais

    6 Ibidem, p. 43.

    prprio, sua prpria propriedade). Ouseja, falta a ele sua finalidade mes-ma, seu encerramento como ser, acompletude, por conseguinte, de suatarefa de ser-no-mundo que nadamais que ser-para-a-morte.

    por esta certa relao morte queo Dasein ser um todo; somente aquipoderemos pensar certa ipseidade daexistncia humana mesma. A propri-edade desta apropriao d-se, se-gundo Lvinas, devido ao fato destaapropriao ser a apropriao maisprpria e a mais inevitvel. nestemomento que meu ser, como umtodo, convocado. Sendo-para-a-morte, estou sendo eu mesmo, intei-ramente, a todo momento. Nestaconcepo, o eu estaria plenamentepresente em sua mortalidade.

    Entretanto, apesar de no se podernegar que o que est em jogo namortalidade do ente humano seja asua finitude, ou algum carter de fim,Lvinas pensa no ser necessrioque se pense este fim como aniqui-lamento do Ser, como pura e simplesfinitude que me traria o que h demais prprio em mim mesmo. ParaLvinas, a morte um escndalo,escndalo da no-resposta de umapartida sem retorno, que seria deminha inteira responsabilidade.

    Para Lvinas, como veremos maisdetalhadamente a seguir, o que estrealmente interessando a Heidegger o eu prprio, sendo a morte do ou-tro apenas um momento empricoque ser egoisticamente apro-priado. A morte em Heidegger trata-se, assim, de um momento egico

    continuar

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    onde no se enxergaria o comandotico que se subsidia na morte dooutro. Mais uma vez, a ontologia su-focaria a tica em nome de algomaior, algo superior, fundamental,que seria o Ser. Mais uma vez, coa-dunamos com Lvinas, o papel fun-damental da alteridade seria esque-cido e o Outro seria estrangulado poresta demanda de propriedade quedefiniria a analtica hermenutica deHeidegger. Lvinas diz:

    Simpatia e compaixo, passar mal pelo

    outro ou morrer mil mortes pelo outro

    tm como condio de possibilidade

    uma substituio mais radical a ou-

    trem. Uma responsabilidade por ou-

    trem em suportar sua desgraa ou seu

    fim como se fssemos culpados. lti-

    ma proximidade. Sobreviver como cul-

    pados. Neste sentido, o sacrifcio por

    outrem criaria com a morte do outro

    uma outra relao: responsabilidade

    que seria talvez o porqu se pode mor-

    rer. Na culpabilidade de sobrevivente,

    a morte do outro meu dever. Minha

    morte minha parte na morte de ou-

    trem, e na minha morte eu morro esta

    morte que minha falta [culpa]. A

    morte do outro no somente um

    momento da minhedade de minha fun-

    o ontolgica 7.

    Entrementes, Heidegger diz:

    Pode-se formular o que se discutiu at

    o presente em trs teses: 1. Enquanto

    a pre-sena (Dasein) , pertence-lhe

    um ainda-no, que ela ser o conti-

    nuamente pendente. 2. O chegar-ao-

    fim do ente que cada vez ainda no

    7 Ibidem, p. 49.

    est no fim (a superao ontolgica do

    que est pendente) possui o carter de

    no-ser-mais-presente. 3. O chegar-

    ao-fim encerra em si um modo de ser

    absolutamente insubstituvel para cada

    pre-sena singular 8.

    Segundo Lvinas, a atitude de Hei-degger no faria seno delimitar anoo de Dasein a partir de deriva-dos seus como fim e totalidade nointuito de mostrar como se pode pen-sar a finitude no seu modo de ser-a ecomo seu fim pode constituir-se comototalidade.

    Para Heidegger, seguindo-se oexemplo do fruto maduro9, podemosperceber que este ainda-no do Da-sein encontra-se j includo em seuprprio ser, no como uma determi-nao arbitrria mas como um cons-titutivo. Para entendermos melhor,passo a passo este exemplo queHeidegger aponta (e ao qual Lvinastece inmeras consideraes), par-tamos, de incio, da bvia constata-o de que o fruto ainda verde enca-minha-se ao amadurecimento. ParaHeidegger10, o amadurecimento e oamadurecer caracterizam o ser en-quanto fruto, ou seja, o ainda-noda imaturidade no significa umacoisa exterior a qual, indiferente aofruto, poderia ser simplesmente dadanele ou com ele.

    8 HEIDEGGER, M. Ser e Tempo, parte I,Petrpolis, Vozes, 1995, p. 23.9 Ibidem, pp. 24-25.10 Todas as citaes desta passagem referem-se ao exemplo encontrado no pargrafo 48 deSer e Tempo.

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    De modo semelhante, o ente huma-no, pelo simples fato de ser, j ain-da-no. Deste modo, a caractersticaconstitutiva do Dasein sua no-totalidade, este ainda-no que eledeve, por ser abertura e possibilida-de, ser a cada momento. Mas, dife-rentemente do fruto, que se completacom seu amadurecimento, a mortehumana no significa necessaria-mente sua completude: no significaeste levar-se a cabo, como no casodo amadurecimento do fruto nem, deoutra maneira, terminar como se ter-mina um caminho que se est tri-lhando (pois, neste caso, ao termi-narmos de trilh-lo, o caminho lpermaneceria) o fim do Dasein nodiz respeito a esses outros modos dofindar. Neste caso, na morte, a pre-sena nem se completa, nem sim-plesmente desaparece nem acaba enem pode estar disponvel mo 11.E justo neste ponto em que pode-mos encontrar uma definio maisprecisa sobre o que seria a estruturaSein-zum-Tode, onde lemos:

    Da mesma forma que a pre-sena, en-

    quanto , continuamente j o seu

    ainda-no, ela tambm j sempre o

    seu fim. O findar implicado na morte

    no significa o ser e estar-no-fim da

    pre-sena, mas o seu ser-para-o-fim. A

    morte um modo de ser que a pre-

    sena assume no momento em que .

    Para morrer basta estar vivo 12.

    11 Ibidem, p.26.12 Ibidem, p. 26. A citao entre aspas refe-rente a Der Ackermann aus Bhmen, editadopor A. Bernt e K. Burdach (Vom Mittelalterzur Reformation. Forschungen zur Geschichteder deutschen Bildung, editado por K. Bur-dach, vol. III, 2 parte), 1917, cap. 20, p.46.

    Ao retomar esta discusso, Lvinasconcorda com o fato de que, exis-tncia humana, o fim no se trata deum ponto final, mas o nico modo dese assumir a finitude em seu prprioser. A morte passa a ser uma possi-bilidade com a qual o Dasein depara-se e no mais um rapto. A citao deDer Ackermann aus Bhmen, de K.Burdach, exata: Para morrer bastaestar vivo (fato que, como veremoslogo em seguida, representa, junto aCcero e Tolsti, a referncia biblio-grfica e portanto, se podemos assimdizer, a influncia encontrada margi-nalmente em Ser e Tempo. EmLtre-pour-la-mort comme origine dutemps, conferncia de janeiro de1976, Lvinas vai objetivar mais cla-ramente seus interesses sobre a lei-tura de Ser e Tempo, ao dizer que a morte pensada como fim, e tambmpensada como questo, que vai inte-ressar a seus planos de pesquisa.Mas que seria esta possibilidade dese colocar a morte em questo? Aque levaria este questionamento damorte? Ele responde:

    Questo que no seria modalidade de

    julgamento, mas, para-alm do julga-

    mento, questo que no um outro

    julgamento. Questo sem posio de

    problema. Questo onde se faz a ver-

    so para o outro (toda questo de-

    manda e prece). Verso para o outro

    onde se tem o prprio pensamento te-

    rico ou dxico na medida em que ele

    se interroga ( ...). Verso para o outro

    no para colaborar com ele e verso

    que, em seu questionamento, no se

    coloca a questo prvia por excelncia

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    (a questo no precedida pela exis-

    tncia) 13.

    E, destas palavras, segue-se, talvez,a definio levinasiana mais impor-tante no que concerne mortalidade,a definio da morte do outro comomorte primeira:

    A morte que o fim significa no pode

    medir todo o alcance da morte en-

    quanto responsabilidade por outrem

    pela qual, na verdade, torna-se si pr-

    prio: torna-se si prprio por esta res-

    ponsabilidade incessante, no deleg-

    vel. pela morte do outro que eu sou

    responsvel a ponto de incluir-me na

    morte. O que se mostra, talvez, em

    uma proposio muito aceitvel: Eu

    sou responsvel pelo outro pelo fato

    dele ser mortal. A morte do outro a

    morte primeira 14.

    Enquanto, para Heidegger, a mortedelineia-se atravs da questo dafinitude do eu, em Lvinas vemo-laatingir o que, como veremos, trata-seda concepo de infinito. Em Heide-gger, a morte no seria apenas ummomento, mas um modo de ser, deestar prestes a findar-se a cada mo-mento de seu ser. Lvinas define afrmula heideggeriana como ter queser ter que morrer, o que transfor-maria o tempo como o modo de serdo ser-mortal e o que uniria o Daseinem seus trs momentos temporais,como o passado (decadncia), pre-sente (estar-lanado) e futuro (proje-to). Assim, ser-para-a-morte significa-

    13 LVINAS, E. Dieu, la mort et le temps, p.52.14 Ibidem, pp. 52, 53.

    ria, para o Dasein, estar diante de sio que, nos termos levinasianos, trariaj a marca da impossibilidade: Amorte a possibilidade da impossibi-lidade radical de estar-a, de ser-a,do Dasein (La mort est la possibilitde limpossibilit radicale dtre-la)15.

    Por conseguinte, podemos deduzirque a totalidade do Dasein no sesimplificaria extenso quantitativatemporal de sua vida de seu nasci-mento sua morte. J podemoscompreender que o morrer no deve,de modo algum, ser compreendidocomo trmino, pois a morte tratar-se-ia, por assim dizer, de uma possibili-dade aberta e eminente. A morte: anica certeza que teramos, a possi-bilidade absoluta e, por isso, a possi-bilidade que tornaria possvel todapossibilidade.

    Em uma conferncia posterior, intitu-lada Le temps pense partir de lamort, Lvinas encerrar seus estu-dos da questo da morte como en-contrada em Ser e Tempo, para sededicar ao pensamento que teriacomo pano de fundo a infinitude, eno somente a finitude, como a ana-ltica existencial de Heidegger pro-pe. Impressionantemente, estasanlises que Lvinas traa asseme-lham-se s encontradas na obra deFranoise Dastur, ainda que, comoprevenimos, estas sigam em defesada ontologia heideggeriana em detri-mento do pensamento do infinito.Para Lvinas, a morte seria o contr-rio do aparecer, o retorno do ser emsi ao momento do desconhecido, da

    15 Ibidem, p. 55.

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    no-resposta. Deste modo, a morteseria um movimento oposto ao dafenomenologia, definir-se-ia como ofenmeno do fim ao mesmo tempoem que seria o fim do fenmeno. Porisso, ela seria, sobretudo, questo,questionamento constante e, ento,intrigante filosofia. Ela [a morte]concerne, diz Lvinas, como fen-meno do fim, a nosso pensamento, anossa vida que pensada [a nossavida que pensamento], ou seja, manifestao manifestando-se a simesma, manifestao temporal oudiacrnica 16.

    Para Heidegger, a morte significaria aminha morte como aniquilamento, aopasso que, em Lvinas, o que emer-ge desta constatao a infinitude doOutro, a constatao da alteridadeabsoluta e infinita pois, como em di-versos momentos j disse Lvinas,ns vivemos em um mundo onde hOutro e onde sempre haver. Eu mevou, como disse Heidegger (em ne-nhum momento Lvinas vai negar afinitude do eu), mas o Outro perma-nece. E por isso que a morte doOutro passa a apresentar uma foramuito maior no pensamento levinasi-ano: na morte emprica do Outro to-mamos conscincia do fato mais im-portante de nossas vidas e no setrata aqui de nossa prpria finitude,como diria Heidegger, de perceber-mos nossa total propriedade, o quehaveria de mais nosso que a res-ponsabilidade emergente da ausn-cia do Outro. Na morte emprica dequem amamos percebemos que oOutro nunca esteve l, que somente

    16 Ibidem, p. 60.

    deixava seus rastros na epifania deseu rosto invisvel. Assim, a morte doOutro me faz compreender a infinitaresponsabilidade que tenho frente aomundo e, aqui sim, podemos falarde propriedade, da conscientizaoda prpria responsabilidade que te-nho e de meu surgimento como su-jeito tico.

    Neste momento, ao vermos as leitu-ras de Lvinas sobre Ser e Tempofindarem-se, ou seja, ao termos tri-lhado os rastros de Heidegger notexto levinasiano, vemos a necessi-dade de, agora, recorrermos direta-mente ao texto heideggeriano paratrilharmos os rastros que ele nos ofe-rece, antes de prosseguirmos com asconseqentes anlises empreendidaspor Lvinas em seu curso.

    *Alm da j mencionada citao de K.Burdach em Der Ackermann ausBhmen (Para morrer basta estarvivo), optamos por analisar tambmalgumas outras referncias presentesno primeiro captulo da segunda se-o de Ser e Tempo. Entretanto, aescolha por apenas dois autores,Ccero e Tosti - em detrimento dePlato, Aristteles, Kierkegaard, Hus-serl e Dilthey, entre outros deu-se,no caso do primeiro autor, por enxer-gar a magistral influncia de seu tra-tado Saber envelhecer sobre a obraheideggeriana e, no caso do segun-do, pelo fato de Tolsti, alm de terinfluenciado as leituras de Heidegger(tratando-se A morte de Ivan Ilitchde um belssimo conto), o autor russotambm ter sido um escritor muitopresente na formao intelectual de

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    Lvinas no tempo de seus estudosmoscovitas.

    Mas o que uniria, nestes vinte scu-los de distncia, as obras de Ccero eTolsti? Ou melhor: o que Heideggerviu de comum entre estas duas gran-des obras? De distintas formas, umapor se tratar da anlise da velhice e aoutra por constituir-se em torno damorte anunciada por uma misteriosadoena, ambas tratam da espera damorte, tratam, para usar uma lingua-gem mais propriamente heideggeria-na, desta conscincia do por-vir damorte. Analisemo-las, portanto.

    Logo de incio, vemos a apresenta-o do tema da morte em Ser eTempo diretamente ligado questode propriedade e totalidade. No Da-sein, pelo simples fato de ser, sempreh algo pendente que, segundoHeidegger, o que ele pode ser e oque ele ser. Nisto consistir-se-ia oque chamado fim, ou seja, a fina-lizao de seu ser-no-mundo amorte. A questo, entretanto, surgecom a aparente impossibilidade desteente que somos ter acesso a estatotalidade de seu ser. O que est emjogo no Dasein seria, ento, este seupoder ser, esta relao com sua fini-tude em termos de potencialidade, deabertura, onde a no totalidade si-gnifica o pendente do poder-ser17, aconstante inconcluso. Sendo assim,vemos definido o existencial ser-para-a-morte como o fim do existencialser-no-mundo, donde se conclui quea entrada da morte participaria doencerramento, do aniquilamento da

    17 HEIDEGGER, M. Ser e Tempo, p. 16.

    relao da existncia humana com omundo ambiente. Ou seja, momentoem que no mais nos experienciamoscomo entes pois, como disse Epicuro,se a morte est aqui porque aquino estamos mais; e se ns estamosaqui, porque a morte ainda nochegou. Da se deduz que no hencontro emprico entre o ente e aprpria morte, pois uma presenasubstituiria a outra. No obstante, amorte nos espreita e dela tomamosconhecimento atravs da morte dosoutros, da morte que deduzimos dofato deste determinado outro nomais estar l onde antes, suposta-mente, estaria.

    desta morte que trata o j citadoconto de Tolsti. Em nota de rodapdo pargrafo 51 de Ser e Tempo (so-bre o ser-para-a-morte e a cotidianei-dade da pre-sena), Heidegger dizque em seu conto A morte de IvanIlitch, L.N. Tosti exps o fenmenodo abalo e do colapso desse morre-se impessoal. Analisemos, ento arelao deste pargrafo de Ser eTempo com a referida obra russa. Amorte da personagem Ivan Ilitch, amorte anunciada pela misteriosa do-ena que, aos poucos, faz o protago-nista definhar, faz com que todos aseu redor vejam a aproximao damorte pois Ivan, mais que todos eles,estaria encaminhando-se a seu fim.

    Para Heidegger, o Dasein cotidianoconhece a morte como uma simplesocorrncia, dado que todos tm co-nhecimento de casos de morte, depessoas que morreram etc. Disto seconclui que a morte delineia-se nocampo do impessoal, ou seja, do

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    morre-se, sendo assim o modo deser do ser-para-a-morte cotidiano.Isto exemplifica-se unicamente napreviso da morte por Ivan Ilitchquando, em face da morte, este diznunca ter tido a plena certeza de queele realmente morreria. Lemos emTolsti:

    Ivan Ilitch via que estava se finando e

    o desespero no o largava. No fundo

    da alma, sabia bem que ia morrendo,

    mas no s no se acostumava com a

    idia, como no a compreendia mes-

    mo uma absoluta incapacidade de

    compreend-la. O exemplo de silogis-

    mo que aprendera no compndio de

    Lgica de Kiesewetter Caio um

    homem, os homens so mortais, logo

    Caio mortal sempre lhe parecera

    exato em relao a Caio, jamais em

    relao a ele. Que Caio, o homem

    abstrato, fosse mortal, era perfeita-

    mente certo; ele, porm, no era Caio,

    no era um homem abstrato, era um

    ser completa e absolutamente distinto

    de todos os demais.18

    a esta absoluta incapacidade decompreender a morte que Heideggerse refere em Ser e Tempo. Todossabemos teoricamente do fato desermos mortais, mas quando estemomento de fato se prenuncia, sejade sbito ou mesmo paulatinamente,o desespero toma conta de nossasalmas. Tal desespero semelhante emagistralmente analisado por Kierke-gaard em O tratado do desespero19, no captulo em que o desespero

    18 TOLSTI, L. A morte de Ivan Ilitch, p. 55.19 Ver KIERKEGAARD, S. Trait duDspoir, Paris, Gallimard, 1999, pp. 375-388.

    irrompe devido ao fato de nos con-frontarmos com a possibilidade doimpossvel acontecer. Neste caso, amxima impossibilidade a morte, aminha morte ou, nos termos heide-ggerianos a morte prpria. Mas elapode acontecer, e ela acontece. Porisso, para Ivan, na teoria, em nadatorna-se injusto o fato de Caio, o ho-mem abstrato, morrer. Alis, nadamais justo, posto que Caio mortal.Porm, o silogismo funcionaria demodo muito deferente, no que setrata de justia, no caso dele, IvanIlitch, ser o ser do qual a morte seaproxima.

    Vemos que em nada se relacionamexperincia da morte e razo. A pro-ximidade da morte e as afees queela faz emergir angstia, desespe-ro, medo-pavor, insanidade etc. fogem completamente a quaisquerespeculaes racionais ou antecipa-es teorticas da morte. Desta ma-neira, j estaria se antecipando oprprio fim do Dasein como ser-no-mundo; o desespero, beira da lou-cura, afasta por completo a existnciahumana de suas definies tradicio-nais, seja como Bis Theortiks,seja como Res Cogitans ou mesmocomo Dasein, aquele ente privilegia-do que, desde sempre, se moveriaem uma pr-compreenso do Ser.

    E assim prossegue Ivan:

    Caio de fato mortal e, portanto,

    justo que morra, mas quanto a mim, o

    pequeno Vnia, Ivan Ilitch, com todos

    os meus sentimentos e minhas idias,

    o caso inteiramente outro. impos-

    svel que eu tenha de morrer. Seria

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    demasiado horrvel. Era assim que ele

    sentia. Se eu tivesse de morrer como

    Caio, haveria de sab-lo muito bem.

    Minha intuio me diria. Mas jamais

    me disse coisa alguma. Eu e os meus

    amigos sabemos que nada temos de

    comum com Caio. E eis que a morte

    se apresenta!, pensava. No pode

    ser. No pode, mas est a! Como?

    Como poder se entender uma loucura

    igual? 20

    No se pode entender tal loucura.No mais, no agora, neste momentomortal. Neste momento, nada maispode afastar a idia da morte, o pr-prio Ivan parece tentar, mas tudoem vo, pois tudo que no incio desua doena, assim que tinha sidodescoberta parecia afastar a cons-cincia da morte, todos os truques deocupao e esquecimento que antesfuncionavam para anular ou, ao me-nos, amenizar tal conscincia, nomais surtem efeito agora.

    O momento descrito por Tolsti omomento de mxima solido. Ivantentava afastar a idia da morte, masnada conseguia, ela o tinha tomadopor inteiro. E se interrogava: Sercrvel que somente ela seja verda-de?21 e ento chegara o momento,ia para o escritrio, deitava-se e no-vamente ficava a ss com ela. Cara acara e sem nada poder fazer, salvoencar-la, enquanto o corao gela-va-se no peito22.

    20 TOLSTI, L. A morte de Ivan Ilitch, p. 55.21 Ibidem, p. 56.22 Ibidem, p. 57.

    Mas tal presena da morte, este caraa cara com ela, trata-se j da epifaniada morte, ou melhor, da mortalidade,dado que, para Heidegger, ser emorte em momento algum se encon-trariam. Mas, deste modo, tal descri-o tolstoiana seria a prpria estrutu-ra do ser-para-a-morte, da conscien-tizao de sua finalidade / finitude.Em Ser e Tempo, na descrio destemorre-se impessoal, vemos que odiscurso pronunciado ou, no mais dasvezes, difuso sobre a morte diz oseguinte: algum dia, por fim, tambmse morre mas, de imediato, no se atingido pela morte 23. O que signifi-ca que a morte que como sabemos,segundo Heidegger, sempre minha,sempre diz respeito a mim regrideao nvel da publicidade, do Man, natentativa de afastar-se ao mximo oser-para-a-morte e aferroar-se idiade que somente Caio, o homem abs-trato, mortal.

    Para Heidegger, a tentativa de enco-brir a mortalidade tamanha que osmais prximos, os entes amados,tomam para si a tarefa de animar omoribundo, de consol-lo com o in-tuito de faz-lo voltar s sua cotidia-neidade. Heidegger diz que

    desta maneira que o impessoal bus-

    ca continuamente tranqilizar a res-

    peito da morte. No fundo, essa tranqi-

    lidade vale no apenas para o mori-

    bundo mas, sobretudo, para aqueles

    que consolam. (...) No raro perce-

    ber na morte dos outros um desagrado

    e at mesmo uma falta de tato social

    23 HEIDEGGER, M. Ser e Tempo, p. 35.

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    de que a public-idade deve se preca-

    ver 24.

    O que alcana-se, aqui, o incmodocausado pela morte (ou pior, pelaproximidade da morte, por doenamortal etc.) no meio prximo circun-dante do moribundo. este incmo-do que, no momento mesmo damorte ou logo em seguida, faz ouvir-se coisas como antes ele que eu ouora bem! Ele morreu e eu estouvivo! (como disseram alguns dosamigos mais distantes de Ivan assimque souberam de seu falecimento) eque, no meio mais prximo, maisntimo, na vida privada mesma, fazcom que caso j no se possamais, como apontou Heidegger, con-solar e estimular ao mximo o mori-bundo - se deseje, de forma intensa eno necessariamente secreta, amorte rpida do moribundo, tamanhoo mal-estar que sua presena (comometonmia da presena eminente damorte) causa a todos. Tal fato oque se relata sob um aspecto maispropriamente sociolgico - na obra Asolido dos moribundos, de NorbertElias, onde denunciada a relaoentre o descaso das sociedades comos idosos e a dificuldades que aspessoas apresentam em identifica-rem-se com os velhos 25. Por este 24Ibidem, p. 36.25 Elias diz: Os anos de decadncia so pe-nosos no s para os que sofrem, mas tambmpara os que so deixados ss. O fato de que,sem que haja especial inteno, o isolamentoprecoce dos moribundos ocorra com freqn-cia nas sociedades mais avanadas uma dasfraquezas dessas sociedades. um testemu-nho das dificuldades que muitas pessoas tmem identificar-se com os velhos e moribun-dos. (ELIAS, N. A solido dos moribundos,

    incmodo, os moribundos so isola-dos, afastados, para que, com isso, oDasein possa prosseguir fingindo suaimortalidade, apoiando-se na mortali-dade abstrata de Caio, o ser quepode morrer.

    No conto de Tolsti, a anunciao damorte de Ivan torna-se um transtorno famlia. Ele est um cadver, dizi-am todos. Mas mais que ser um ca-dver, ele anuncia-se cadver. Amorte espreita a todos e sua pre-sena, naquela casa era constante-mente lembrada, o que fazia com quetodos (exceto o filho menor, o maisabobado) afastassem-se gradati-vamente de Ivan, quanto mais mos-trava-se, dele, a morte prxima.

    Todos vem que ele no se sente bem

    e dizem-lhe: Se est cansado, pode-

    mos parar. Descanse um pouco. Des-

    cansar? No. De modo nenhum! E

    acabou a partida. Todos esto calados

    e sombrios. Ivan Ilitch no ignora que

    inspirou aquela atmosfera, mas no

    pode dissip-la. Ceiam e cada um vai

    para o seu lado, e Ilitch ficou solitrio,

    com a conscincia de que sua vida

    estava envenenada e que envenenava

    a dos outros, e que o veneno no iria

    ser eliminado, mas sim penetrar cada

    dia mais fundamente no seu ser. E,

    com a conscincia disto e com a sua

    dor fsica, alm do terror, tem de ir

    para a cama, onde freqentemente fi-

    cava rolando, insone, a maior parte da

    noite. E de manh era preciso levan-

    tar-se, vestir-se, ir para o tribunal, falar,

    escrever, ou ento ficar em casa as

    Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2001, p.08.)

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    vinte e quatro horas do dia, cada uma

    das quais era uma tortura. E sozinho

    tinha de viver assim beira do abismo,

    sem ningum que o compreendesse e

    tivesse pena dele 26.

    As anlises sociolgicas de Elias,todavia, trazem tona um outro as-pecto da proximidade da morte, qualseja, a velhice. Quo mais velhosestaramos, ao menos a princpio,mais prximos estaramos da morte(fato que, talvez, justifique a razopela qual o filho mais novo de Ivan, omenino, fosse aquele que mais su-portasse a viso do pai cadavrico).Esta constatao, de que, em umaprimeira anlise, quanto mais jovensformos mais distante estaria esteface-a-face com a morte vai justa-mente em direo s anlises feitaspor Ccero em seu Saber envelhe-cer.

    Segundo o filsofo romano, haveriaquatro razes de se temer a velhice:1. O declnio da memria; 2. A faltade vigor; 3. A rabugice; 4. A aproxi-mao da morte. , obviamente, aesta quarta razo que nos interessa-mos. Para Ccero, a aproximao damorte seria o fator responsvel pelotremendo desconsolo sofrido na ve-lhice. No obstante, ela incontes-tvel27. As anlises heideggerianastambm partem deste mesmo princ-pio, incluindo a ele as caractersticas

    26 TOLSTI, L. A morte de Ivan Ilitch, p. 50.27 CCERO. Saber envelhecer, Porto Alegre,L&PM, 2001, p. 52. provvel que tal cita-o de Ccero seja talvez a mais importantesegundo a leitura heideggeriana.

    de iminncia, irremissibilidade e insu-perabilidade 28.

    Mas, em retorno Ccero, a morteseria to somente aquilo que semprenos espreita e tambm o momentoem que, de certo modo, o ente hu-mano destemporalizado. A morte o tempo mais singular que podemosconceber, quando cada um de nsteria seu prprio tempo. Quando elachega, futuro, presente e passadounem-se, e todos os tempos desapa-recem: o passado jamais retorna eningum nunca conhecer o futuro,deste modo, contentemo-nos com otempo que nos dado a viver, sejaqual for! 29.

    A teoria de Ccero mostra-se, unica-mente, como uma postura afirmativafrente morte, primeiro pelo fato desua inevitabilidade. Ainda assim, estadestemporalizao, torna a vida hu-mana intensa, dure ela o quanto du-rar, pois qualquer que seja a duraoda existncia humana, ela seria sufi-cientemente curta para que se vivana sabedoria e na honra. Defende-se,assim, uma educao para a morte,pois desde a adolescncia devera-mos nos preparar para este momentode partida, porque deste modo,quanto mais velhos nos tornamos,mais sabiamente passaramos acompreend-la. Alis, partir justa-mente a metfora empregada porCcero para se traduzir a morte, masno uma partida sofrida, triste, dolo-rosa, como a de quem abandona asua moradia, mas sim uma breve

    28 HEIDEGGER, M. Ser e Tempo, pp. 30-34.29 CCERO. Saber envelhecer, p.54.

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    partida, como a de quem abandonaum abrigo temporrio ou um lugaronde fora recebido momentanea-mente pois, para ele, o que a nature-za nos ofereceria no passaria de umacolhimento provisrio e no um do-miclio eterno.

    Isso porque, como vimos, a mortenos espreita a cada momento denossas vidas e, por isso, devemosestar preparados para ela a cadamomento o que mostra a radicali-dade do pensamento de Ccero emrelao a tradio metafsica que oantecedeu e que o seguiu. A lio deCcero o revs do desespero frente morte, como descrito por Tolsti; aeducao para a morte que Ccerodefende o nico modo de manter-mos o esprito calmo e a serenidadeem face disto que mais nos assom-bra. Vivemos, a cada momento denossas vidas, nossa prpria morte, eassim devemos viver, serenamente:Cada um de ns deve morrer, comefeito; hoje mesmo, talvez 30.

    este carter radical que norteouHeidegger em suas anlises. Primei-ro, no que concerniria impendnciada morte, ou seja, no fato de que estano seria algo no dado mas, aocontrrio, seria iminente e, assim, oassombroso que nos espreita a cadamomento de nossa existncia. Poroutro lado, a educao para a morteque Ccero prope como antdoto aodesespero coaduna-se perfeitamentecom a noo de que a morte seriauma possibilidade ontolgica que oDasein teria que assumir a cada mo-

    30 Ibidem, p.57.

    mento de sua existncia. Diz Heide-gger, espiritualmente irmanado a C-cero:

    Com a morte, a prpria pre-sena

    impendente em seu poder-ser mais

    prprio. (...) Sua morte a possibilida-

    de de poder no mais estar presente.

    (...) Sendo impendente para si, nela se

    desfazem todas as remisses para

    outra pre-sena. Essa possibilidade

    mais prpria e irremissvel , ao mes-

    mo tempo, a extrema. Enquanto poder

    ser, a pre-sena no capaz de supe-

    rar a possibilidade da morte. A morte

    , em ltima instncia, a possibilidade

    da impossibilidade absoluta da pre-

    sena. Desse modo, a morte desen-

    tranha-se como a possibilidade mais

    prpria, irremissvel e insupervel 31.

    Ou seja, pelo simples fato de existir,o Dasein j estaria lanado na possi-bilidade de morrer, fato este que per-cebemos - no s em Heideggercomo tambm em Tosti e Ccero(que pretendemos, ao menos mini-mamente, ter indicado como passa-gens oblquas nossa discusso),mas tambm em Kierkegaard e Elias(que foram apenas mencionados) -caracterizar esta estrutura funda-mental de nosso modo de ser cha-mada ser-para-a-morte. Sendo as-sim, cabe-nos agora um retorno aoscursos de Lvinas no intuito de ver-mos como suas crticas a este exis-tencial fundamentam-se nas filosofiasde Bergson e Bloch.

    *

    31 HEIDEGGER, M. Ser e Tempo, p. 32.

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    Como vimos, as leituras de Ser eTempo feitas por Lvinas levam-nos concluso de que a morte no si-gnifica o instante da morte, como sepode pensar normalmente, mas ofato deste ente que somos estar emconstante relao com a impossvelpossibilidade de sua prpria mortali-dade, apresentada primeiramentepela morte dos outros, e tal seria,portanto, uma provvel definio paraa estrutura heideggeriana ser-para-a-morte.

    Entretanto, em algumas considera-es que se iniciam logo em seguidadas conferncias sobre Heidegger,Lvinas comea a delinear o queseria mais propriamente a sua defini-o desta relao com o fenmenoda mortalidade. Seu primeiro passopara isso encontra-se na confernciade 30 de janeiro de 1976 intituladaEn de de Heidegger: Bergson,onde o filsofo apresenta a possibili-dade de se pensar o ente humanocomo no sendo um ser-para-a-morte, mas sim, neste momento inici-al, como um ser-para-a-vida ou comoum no-ser-para-a-morte.

    Sendo assim, dediquemo-nos, nestemomento, ao estudo desta filosofiada vida, como pretende definir Lvi-nas o pensamento bergsoniano, ondea ontologia ainda no teria tanto es-pao como posteriormente adquiririaem Heidegger, dado que, em Ber-gson como em Lvinas, os existentesdever ser pensados mais prioritaria-mente que a existncia. Enxergamosassim, desde o incio desta confern-cia dedicada a Henri Bergson, a ne-cessidade anteriormente citada de

    Lvinas abandonar o solo da ontolo-gia e fazer uma filosofia pr-heideggeriana, para-aqum de Hei-degger.

    *De acordo com Benedito Nunes 32, foia partir dos fenmenos da conscin-cia que Henri Bergson descobriu anoo de intuio como caminhopara o conhecimento absoluto, dondese deduz que a conscincia, comosucesso pura, que tem por base amemria, durao 33. Assim, se-guindo de certo modo certa posturakantiana no que diz respeito ao tem-po como fenmeno subjetivo (res-saltando-se que, do kantismo, seafasta de modo radical em tantasoutras vezes), o bergsonismo abririaespao para uma leitura da relaodo ente humano com sua prpriatemporalidade, tendo por substrato aexperincia interior. Deste modo,qualquer filosofia que tenha passadopelas leituras bergsonianas, deve, dealgum modo, atentar experinciaconcreta do ser humano, posto que aconscincia a nada mais que avida interior mesma deste ente. Po-demos, deste modo, alm das crticas ontologia, vermos a razo que terialevado Lvinas a recorrer a Bergon,qual seja, a este imperativo bergsoni-ano de atentarmos s experinciasconcretas do homem existente, con-creto, aqum da ontologia.

    Segundo Bergson,

    32 NUNES, B. A filosofia contempornea:trajetos iniciais, So Paulo, tica, 1991.33 Ibidem, p. 70.

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    Kant estabelecera, dizia-se, que nosso

    pensamento se exerce sobre uma

    matria previamente dispersa no Es-

    pao e no Tempo, e assim preparada

    essencialmente para o homem: a coi-

    sa em si nos escapa; seria preciso,

    para atingi-la, uma faculdade intuitiva

    que no possumos. Resultava de

    nossa anlise, por outro lado, que ao

    menos uma parte da realidade, nossa

    pessoa, pode ser atingida em sua pu-

    reza natural 34.

    E, deste modo, se por um lado Ber-gson herdara do kantismo a prprianoo de intuio e da exigncia dese pensar a temporalidade como fe-nmeno que se d no interior do su-jeito, ele tambm de Kant se afastaao tentar inaugurar seu pensamentocomo um rompimento com a tradiometafsica idealista (Leibniz, Espino-za, Kant, Fichte, Schelling, Hegel eSchoppenhauer), ainda completa-mente marcada pelo trao da Teolo-gia 35.

    34 BERGSON, H. O pensamento e o movente,in Os pensadores, So Paulo, Abril cultural,1979, p. 111.35 Sobre este assunto, ver tambm a Segundaparte da introduo de O pensamento e omovente, onde vemos que a filosofia chamaDeus, um Ser cuja essncia o condenaria anolevar em nenhuma conta as invocaes huma-nas, como se, abarcando teoricamente todasas coisas, ele fosse, de fato, cego para nossossofrimentos e surdo s nossas preces. E,mais adiante, conclui: qualquer que seja onome que demos coisa em si, quer a cha-memos a Substncia de Espinoza, o Eu deFichte, o Absoluto de Schelling, a Idia deHegel, ou a Vontade de Schoppenhauer, apalavra se apresentar sempre com a signifi-cao bem definida: ela a perder, ela se es-vaziar de toda significao, se a aplicarmos totalidades das coisas. (...) Pouco me importa

    por isso que, para fugir deste vcioinicialmente onto-teolgico, onde oabsoluto o outro nome do Ser e deDeus, Bergson volta-se ao existente,de forma que a filosofia tenha que secontentar em permanecer no nvel dacondio humana, e no acima dela.O mtodo filosfico bergsoniano, as-sim, seria fundamentado na repulsoa qualquer soluo verbal, encon-trando na vida interior do ser humanoseu campo de experincia. Ou seja,nos termos de Lvinas, surge, destemodo, a filosofia (bergsoniana) davida.

    Justamente como vida, como experi-ncia da vivncia interior, que aconscincia concebida como me-mria, como espcie de conservaoe acumulao do tempo passado notempo presente. O que nos permitededuzir que, desde seu primeiro es-boo como conceito, a noo deconscincia, em Bergson, faz cumpriruma destemporalizao do tempo,pois, alm de conceber o passadosempre presente neste agora, tam-bm enxerga a conscincia comoantecipao do futuro. Para ele, ofuturo o que nos convoca (o que,como veremos em seguida, aproxi-ma-se em muito das consideraesticas de Lvinas), uma traoininterrupta que nos faz, ao mesmo

    que se diga Tudo mecanismo ou Tudo Vontade: nos dois casos confunde-se tudo.Nos dois casos, mecanismo e vontadetornam-se sinnimos de ser e, por conse-qncia, sinnimos um do outro. A est ovcio inicial dos sistemas filosficos. Elescrem nos informar acerca do absoluto dando-lhe um nome. (Ibidem, pp. 125-126)

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    tempo em que avanamos na rota dotempo, agir e tomar decises conti-nuamente. Sua mxima exprime-seem Toda ao um penetrar no fu-turo, pois ns, seres humanos ser-amos definidos do seguinte modo:

    Sobre este passado nos apoiamos,

    sobre este futuro nos debruamos;

    apoiar-se e debruar-se desta maneira

    o que prprio de um ser conscien-

    te. Digamos, pois, que a conscincia

    o trao de unio entre o que foi e o que

    ser, uma ponte entre o passado e o

    futuro36.

    Para Lvinas, esta radical subjeti-vizao do tempo que caracterizariaa originalidade do pensamento deBergson. Segundo o fenomenlogo,enquanto todo o ocidente definiria otempo pela medida espacial (desdeAristteles), para Bergson, o tempooriginrio a durao, vir a ser ondecada instante carregado de todo opassado e abundante de todo porvir37.

    E foi justo esta noo de por-vir quepossibilitou a Lvinas a aproximaoentre Heidegger e Bergson. Em Hei-degger, o tempo originrio representaa finitude do Dasein e o tempo infinitoseria deduzido da finitude original;para Bergson, a finitude e a morteno esto inscritas na durao. Amorte est inscrita na degradao daenergia. Deste modo, a morte no

    36 BERGSON, H. Conferncias: A conscin-cia e a vida, in Os pensadores, So Paulo,Abril cultural, 1979.p. 71.37 LVINAS, E. Dieu, la mort et le temps, p.65.

    seria uma caracterstica do espritohumano, mas sim da matria, e, porisso, ela mais se inscreveria naquiloque Heidegger chamara Vorhande-nheit, ao passo que a vida, esta sim,seria durao, o lan vital.

    Todos os viventes dependem uns

    dos outros, e todos submetem-se ao

    mesmo formidvel impulso. O animal

    encontra seu ponto de apoio sobre

    planta, o homem sobrepe-se ani-

    malidade, e a humanidade inteira, no

    espao e no tempo, um imenso

    exrcito que galopa ao lado de cada

    um de ns, a frente e atrs de ns,

    em um ataque arrebatador capaz de

    derrubar bruscamente todas as re-

    sistncias e bem transpor de todos

    os obstculos, mesmo talvez da

    morte 38.

    Para Lvinas, a filosofia vital de Ber-gson afastaria a falsa idia da nadifi-cao e, mais ainda, a noo de quea morte se identificaria com o nada,posto que o humano assim ummodo de no ser-para-a-morte 39.Entretanto, o lan vital no se confi-gura como a ltima significao dotempo da durao bergsoniana. Emseus Duas fontes da moral e da reli-gio, a durao (que em A evoluocriadora pensada como o lan vital)torna-se vida inter-humana, torna-seo fato de que um homem pode lanarum chamado interioridade de outrohomem. Nas leituras de Lvinas, tal o papel do santo e do heri, para

    38 BERGSON, H. Lvolution creatrice, inOeuvres, Paris, PUF, 1970, pp. 724-725.39 LVINAS, E. Dieu, la mort et le temps, p.66.

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    alm do papel da matria, heris esantos que conduzem a uma religioaberta onde a morte no faz sentido40.Ao contrrio de Heidegger, a filosofiade Bergson no se restringe a umdrama do Ser, mas no porque seupensamento configure uma filosofiado porvir (o que ser o prximo passoa ser investigado por Lvinas) e simpois o para-ser no esgota o senti-do da durao. O que, em Heidegger,se d de modo oposto, pois o ser um dever, uma ocupao, Sache. Omodo segundo o qual o ser est comrelao ao nada sua propriedade; opara do para-ser cumpre-se a partirde seu prprio ser e o questiona-mento uma modalidade do dramado ser.

    Entretanto, este ser ainda para-serque necessita, na perspectiva levina-siana, de uma melhor elucidao.Este carter de por-vir o que fazcom que Lvinas ainda procure umaalternativa tica ao individualismo dopro-jeto heideggeriano, onde vemos omessianismo poltico de Bloch serconvocado a tomar parte deste dis-cusso.

    *O pensamento utpico de Bloch en-contra-se em plena consonncia comas grandes intuies da filosofiacontempornea, tendo como um deseu pressuposto o futuro como a es-sncia da temporalidade. Como vi-mos, desde Bergson a concepometafsica de tempo (como encontra-da no Timeu e em Aristteles) vem

    40 Idem.

    sendo solapada, entretanto (isto atBloch) nenhuma obra tinha chegadoao alcance das anlises das Duasfontes da moral e da religio, onde adurao assemelha-se relao como prximo numa generosidade criado-ra e conforme uma socialidade dife-rente daquela dos socilogos e histo-riadores 41. E neste caminho dainteriorizao que Bloch segue, ocaminho de uma pura espiritualidade,de cultura (arte, filosofia e religio)onde, pela santidade o futuro se fazpresena e acontece 42.

    Ao longo do semestre em que lecio-nou na Sorbonne, nos cursos quederam origem a Dieu, la mort e letemps, Lvinas dedicou trs confe-rncias ao pensamento de ErnstBloch, onde se apresentava a possi-

    41 LVINAS, E. De Deus que vem idia,Petrpolis, Vozes, 2002, p. 63.42 Ressaltamos, aqui, a presena de dois ter-mos tipicamente levinasianos: santidade eacontecer. Santidade, na concepo levinasia-na a superao do sagrado. Enquanto asacralidade configura um conjunto de normasreligiosas (que dizem respeito moral), asantidade pertence tica, aceitao daabsoluta alteridade e assuno de minha eter-na devoo ao Todo-Outro. Do mesmo modo,a noo de acontecer aparece como alternati-va tica noo de Ereignis. Se o eventoheideggeriano o evento do Ser, de algomaior que vem ao mundo, as coisas, paraLvinas, simplesmente acontecem, indepen-dente de sua Existncia. Por exemplo, casopensemos a bondade, em termos ticos, nopodemos afirmar que exista uma essncia dabondade humana ou que o homem essenci-almente bom, entretanto sabemos da ocorrn-cia de casos de bondade no mundo. Destemodo, alcanamos uma frmula aparente-mente incoerente, mas que carrega o que hde mais forte no pensamento levinasiano: Abondade no existe, mas ela acontece.

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    bilidade de um outro pensamento damorte, ou, como sabemos, comoalternativa a se pensar a morte sob agide da relao entre Ser e nada;Alternativa a se trilhar outro caminhoque no o da angstia, do tempo ori-ginrio como modo de ser do ser fi-nito; em outros termos, alternativa econvite para que se abandone amorte como momento ontolgico emdireo a um pensamento no qual osentido est tambm ligado ao mun-do, mas em que, alm disso, o senti-do do mundo est ligado intimamenteaos outros homens. Eis o que segostaria de falar aqui atravs da filo-sofia de Ernst Bloch, diz Lvinas:

    o que advm de uma filosofia na

    qual a preocupao social anima o

    conjunto do saber e da cultura e na

    qual a terminologia ontolgica est

    ligada ao outro. (...) E a morte no

    a fonte do sentido e do no sentido43.

    Isto porque, segundo Lvinas, o pen-samento de Bloch surge como o maisinteressante convite na histria dafilosofia para que se pense o tempode modo a ligar o pensamento onto-lgico tica, isto posto que este nose configuraria mais como uma pro-jeo do ser em direo a seu fim(como o tempo originrio em Heide-gger) nem como a imagem mvel daeternidade imvel (como em Plato),e sim como cumprimento, como atua-lizao do inacabado, como porvir.

    43 LVINAS, E. Dieu, la mort et le temps, p.108.

    Na utopia blochiana, o discurso on-tolgico s possui sentido caso ori-ente-se rumo a uma reorientaofundamental do pensamento, no queconcerne a sua intencionalidade tem-poral fato este que acaba por pro-duzir uma incomparvel conflunciaentre o discurso filosfico ontolgicoe um novo pensamento tico, emdecorrncia justamente de um pen-samento inacabado, impossvel de sepensar, de se fechar, de se cumprir.De acordo com a obra Marxismo eLiberdade, de Luiz Bicca, a filosofiapassa a ser vista como um empreen-dimento processual, na qual

    no lugar de uma doutrina do ser, sur-

    ge uma reflexo ontolgica na qual

    nem o ser nem o nada possuem o

    primado, e sim o ainda-no. Nesse

    sentido, a filosofia de Bloch , por

    princpio, u-tpica: como teoria do

    ser compreendido em moto contnuo,

    ela , ao mesmo tempo, teoria do

    ente que ainda no tem lugar na rea-

    lidade, uma ontologia do U-Topos,

    do mundo inacabado, incompleto 44.

    Ou, nas palavras de Bloch,

    Antes de tudo, o Ser no est per-

    dido e sim nunca esteve presente.

    (...) A ontologia do ainda-no-ser

    a do ente vinculado processualmente

    em seu formar-se e com permanente

    referncia ao Ser como um media-

    tizado Ser-em-ascenso 45.

    44 BICCA, L. Marxismo e Liberdade, SoPaulo, Loyola, 1987, p.23.45 BLOCH, E. Tbinger Einleitung in diePhilosophie, in Gesamtausgabe, vol. 13,Frankfurt, 1977, p. 216.

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    A inovao neste modo de compre-ender o pensamento filosfico trazidapor Bloch consiste em que, de mododiverso das demais ontologias clssi-cas, a ontologia do ainda-no-serno se fundamenta sobre as catego-rias de realidade e necessidade, massim sobre o conceito de possibilida-de, tendo como contingncia a possi-bilidade do ser e do no-ser. Assim,inaugura-se um pensamento aberto,onde o possvel no previamentedeterminado e escapa do alcancedas meras teorizaes abstratas, emque h lugar para o indeterminado epara o ser poder ser de outro modo ou seja, h lugar para o novo 46.

    Esta abertura ao novo e ao futuroocorre em Bloch visto que seu pen-samento, herdeiro direto do marxismoutpico (e sendo considerado, demodo injusto, por muitos como umamera interpretao de Marx), desen-volve-se a partir de uma dialtica daesperana. Aps longas meditaessobre a situao do mundo de suapoca, Bloch indagara-se sobre qualprincpio poderia auxiliar o mundo aresistir ao crescente niilismo e en-controu como resposta o que ele in-titulou princpio de esperana (DasPrinzip Hoffnung), contra o absurdode um mundo sem sentido. Noobstante, a utopia da esperana de

    46 Antecipamos aqui a impressionante seme-lhana que esta abertura ao indeterminado emBloch apresenta com relao s chamadasfilosofias do impossvel, devido, justamen-te, presena fundamental em seu corpoestrutural da noo de por-vir (como obvia-mente por, tambm, serem todas estas teorias,de Bloch, Lvinas e de Derrida, herdeiras domessianismo judaico).

    modo algum pe de lado a urgncia,herdada do marxismo, de uma prxis;a esperana configura uma apostaem funo de toda a humanidade,como tambm uma construo, umatarefa de pr-se em obra 47. E esteobrar que vai configurar, no pensa-mento blochiano, um enfraqueci-mento da morte como vista pela on-tologia, pois, a cada vez que se criauma nova obra, a morte novamentevencida.

    A dialtica blochiana no se define

    como um pensamento negativo,

    mas como um mtodo que visa a

    mutao de uma realidade, nova,

    mais ampla e mais certa, portanto

    como um pensamento que estrutura

    o real 48.

    E esta estruturao que o pensa-mento incide sobre a realidade deve-se ao carter de antecipao daconscincia (sua estrutura funda-mental). Nesta conscincia anteci-padora, a realidade surge como algoque existe l e como algo que existesob a forma do ainda-no-ser (Noch-nicht-Sein).

    47 Nota-se que o princpio de esperana visa,acima de tudo, a criao de uma morada(Heimat), uma casa, um lar, uma ptria. OHeimat uma casa que o homem deve cons-truir, uma tarefa a ser cumprida, na esperan-a de um mundo melhor, ainda que um mun-do sempre por-vir. por isso que a esperanaleva o homem a um constante labor, postoque no h um ideal de mundo a ser alcana-do, mas um constante a-fazer.48 FURTER, P. A dialtica da Esperana:uma interpretao do pensamento utpico deErnst Bloch, Rio de Janeiro, Paz e Terra,1974, p. 90.

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    Entretanto, o que parece de modomais significativo ter seduzido Lvi-nas o fato de que, neste humanis-mo, no pode haver a luta da huma-nidade contra os homens e, por isso,a viso da alteridade como descritapelo pensamento dialtico (fosse omaterialista, fosse o idealista), dooutro como um adversrio, supera-da. Neste pensamento, o outro devetambm entrar no processo de afir-mao plena de toda a humanidadee, como conseqncia, sua morte (amorte do outro) constitui uma radicalprovocao para que se abandone acomum indiferena e que se assuma,cada um, sua parcela de responsabi-lidade. Assim, a morte do outro trazconsigo a epifania de que h algoainda a ser feito, chama ao, fazemergir o por-vir que comanda a obra perfeito equilbrio entre tica e on-tologia 49. Este acordo entre o homem

    49 Em um artigo seu intitulado Sobre a morteno pensamento de Ernst Bloch, publicadoprimeiramente em Utopie Marxisme selonErnst Bloch (Paris: Payot. 1976) e depois emDe Deus que vem idia, Lvinas indicarazes que teriam levado Bloch a conseguireste pleno equilbrio. Dentre eles, Lvinasdestaca a no predominncia de um pensa-mento de origem greco-ocidental, com suasrazes no judasmo. Eis o inventrio destasrazes que Lvinas nos apresenta: 1. A utopiapode ser comparada ao messianismo, na espe-ra de um mundo que est por vir; 2. Cadaum tem sua parte a fazer neste mundo queest por vir; 3. O mundo como inacabado,ainda-a-ser, como o descrito no versculo 3do segundo captulo do Gnesis: ... a obraque Deus criou por fazer; 4. A liberdade dohomem em relao Obra; 5. O mundo pen-sado como Heimat, como terra prometida;6. A antecipao do mundo utpico como oque diz respeito a mim, com estreita seme-lhana relao ideal Eu-Tu, como apresen-tada por Martin Buber; 7. A morte que apenas

    e o Ser, contudo, exige o aplaca-mento da angstia da morte, e neste ponto que o pensamento deBloch vai de encontro ontologiaheideggeriana.

    Para Lvinas, o pensamento sobre amorte que nos chega repousa sobrealgumas identificaes que eleaponta: identidade entre a morte hu-mana e o nada; identidade entre filo-sofia e ontologia; identidade entre sere mundo; identidade original entre amorte e a minha morte; identidadeentre a afetividade e a angstia (afetooriginal); identificao entre o tempooriginal e a finitude do ser-para-a-morte; identidade entre a finitude e aperfeio humana. Mas, de acordocom o filsofo lituano, em uma formade pensar religiosa e social, muitasdestas igualdades so abaladas. isto que ocorre no marxismo tal como interpretado por Bloch, em quetanto o Ser como o mundo no pos-suem sentido se no estiverem su-bordinados libertao, emancipa-o ou salvao do homem, o queindica que subsiste a esta ontologiauma estrutura primordialmente tica.

    desfaz o invlucro do humano, mas que no de modo algum uma aniquilao, o fim doser. (LVINAS, E. De Deus que vem idia,p. 60.)Em O Metafsico Marxista da Utopia, LuizBicca desenvolve esta herana que Blochrecebera da mstica judaica: Bloch, com oprojeto de construo de uma nova ontologia, dedicar-se-ia, alm de seus estudos do idea-lismo e do marxismo, mstica judaica me-dieval, a Cabala, e aos cristianismos comu-nistas dos movimentos hertico da IdadeMdia. BICCA, L. O Metafsico Marxista daUtopia, in Racionalidade Moderna e Subje-tividade, So Paulo, Loyola, 1997, p. 221.

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    Em Bloch (...) o mundo, dentro do

    curso da histria, inacabado, o ser

    no ainda. O fim utopia. A praxis

    possvel no devido ao fim da his-

    tria, mas pela esperana utpica

    deste fim. O presente e o eu huma-

    no, neste histria, comportam uma

    zona de obscuridade que se aclara

    pela utopia. A esperana necess-

    ria a histria (...) Na esperana, h

    uma antecipao, vive-se no mundo

    como se ele estivesse acabado. Esta

    esperana no significa a necessida-

    de de que isto se produza; ela uto-

    pia 50.

    Esta conscincia antecipadora dadialtica da esperana necessita deuma retemporalizao, posto queesta utopia gera um curto-circuitono tempo. A utopia da espera torna-se, assim, ela mesma a temporaliza-o do tempo que, como esperana,no se trata mais de um tempo pen-sado a partir da mortalidade do Da-sein o xtase primeiro a utopia eno mais a morte, e a morte no sereduz mais pura negao do Ser.

    Nas leituras levinasianas, a utopiablochiana ultrapassa e engloba aontologia de Ser e Tempo; o pensa-mento de Bloch, promoveria assimuma Aufhebung da analtica do Da-sein 51, na qual o pensamento heide-

    50 LVINAS, E. Dieu, la mort et le temps, p.113.51 Talvez o termo hegeliano no fosse a me-lhor opo, sob um ponto de vista levinasia-no, mas acreditamos ns que, em se tratandode um pensador dialtico, o objetivo de em-preender este triplo movimento caiba bem ao

    ggeriano conservado, negado eultrapassado. O nada da utopia no o nada da morte, j que, em Bloch,no a morte que possibilita esteporvir autntico, mas, ao contrrio, neste porvir autntico que a mortepode ser compreendida. Porvir esteque, como espera, visa a realizar oque ainda no ; espera de um su-jeito humano ainda estranho a si pr-prio, ainda Dass-sein; subjetividadedeste sujeito que no retoma para sia tarefa de cuidar do Ser; subjetivida-de como dedicao a um mundo por-vir.

    Na dialtica da esperana, a angstiada morte decorre do medo de se mor-rer sem haver terminado sua obra,seu ser, pois neste mundo inaca-bado que temos a impresso de nohavermos terminado nossa obra. EmBloch, A obra humana histrica,mas no est altura da utopia. Hfracasso em toda vida, e a melancoliadeste fracasso o modo de se man-ter no ser inacabado 52. Sendo as-sim, no a melancolia que derivariada angstia (como afeto par excelen-ce), mas sim a prpria angstia damorte que se trataria, ao contrrio,uma modalidade desta melancoliaresultante da constatao do inaca-bamento. No se trata, aqui, da mortecomo uma ferida narcsica, como adescoberta da prpria finitude, massim como o medo de deixar uma obraincompleta. Em De Deus que vem idia, l-se:

    pensamento de Bloch em relao her-menutica clssica em geral.52 LVINAS, E. Dieu, la mort et le temps, p.115.

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    O medo de morrer medo de deixar

    uma obra inacabada! Que a obra

    utpica do acabamento possa coin-

    cidir com a essncia do homem, que

    a preocupao em obrar no seja,

    como pensa Heidegger, agitao e

    distrao e uma maneira de desertar

    ilusoriamente um destino finito,

    Ernst Bloch o mostra, ao evocar os

    momentos privilegiados em que a

    obscuridade do sujeito varada por

    um raio vindo como do futuro utpi-

    co. (...) Esses instantes em que a luz

    da utopia penetra, por um momento,

    na obscuridade do sujeito, Bloch

    chama-os admirao 53.

    Admirao esta que vemos definida emseu Princpio de Esperana como o

    Modo como uma folha agitada pelo

    vento; mas o que entendido, assim,

    pode tambm se encher de contedo

    mais familiar e mais significante.

    Pode ser um sorriso de criana, o

    olhar de uma jovem, a beleza de

    uma melodia elevando-se do nada, o

    brilho desdenhoso de uma palavra

    rara que no se refere a nada de

    forma segura. (...) Ela a admirao

    mais profunda, sem nenhuma deri-

    vao, elemento do autntico sob a

    figura de uma questo, fazendo eco

    nela mesma .54

    Esta admirao, que em verdadetrata-se de um questionamento, aindaque informulvel, a questo primei-

    53 Ibidem, p. 66.54 BLOCH, E. Das Prinzip Hoffnung, in Ge-samtausgabe, vol. 5, Frankfurt, 1977, p.1388.

    ra da filosofia, a questo que su-porta todas as questes ulteriores.

    No intuito de evocar um destes maisnobres momentos de admirao,Bloch recorre a Tolsti (mais preci-samente a Guerra e Paz e a AnnaKarenina). Entre as diversas situa-es mais significantes (para utili-zarmos o termo do prprio Bloch) emque esta admirao emerge e nasquais a morte por conseguinte ven-cida, Bloch evoca o campo de bata-lha de Austerlitz em Guerra e Paz,onde o prncipe Andr Bolkonskicontempla a pura altura do cu, e, emAnna Karenina, a passagem em queKarenina e Vronski encontram-sejunto cabeceira de Anna, grave-mente enferma. Na passagem deGuerra e Paz, que tomaremos comoexemplo, encontramos o momentoem que o prncipe, ferido no campode batalha de Austerlitz, contempla aamplido dos cus, nem azul nemcinza, mas apenas amplo. E Tolsti,que repete insistentemente esta ca-racterstica de amplido do cu, es-creve:

    Observando Napoleo nos olhos, o

    prncipe Andr refletia sobre a vaida-

    de da grandeza, sobre a vaidade da

    vida cujo sentido ningum poderia

    compreender, e sobre a vaidade ain-

    da maior da morte, cuja significao

    nenhum vivente poderia jamais pe-

    netrar e explicar 55.

    Nestes momentos de admirao, amorte perde seu sentido, pois a admi-

    55 TOLSTI, L. Guerre et Paix, Paris, Galli-mard, 1956, livre III, parte II, cap. XXXVI.

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    rao questo e, ao mesmo tempo,no colocao de questo, questo e resposta. Vitria sobre amorte pressentida na admirao,essa a mensagem que Bloch nosdeixa como legado. Questo primeirada filosofia. Ponto comum entre aontologia e a tica e vitria da filoso-fia.