A Noite Mais Chuvosa de Tom

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  • 8/15/2019 A Noite Mais Chuvosa de Tom

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    A NOITE MAIS CHUVOSA DE TOM

    Caminhava enérgico, passos marcados e nariz erguido, como numa marcha militar. Evitava os olhares curiosos que os outros transeuntes lhe dirigiam

    enquanto passavam pelo seu corpo completamente encharcado, como se não fossem para ele. Maldita hora em que a previsão resolvera de fato funcionar. O

    guarda-chuva e o velho sobretudo, àquelas horas, repousavam enxutos sobre a cama desarrumada, provavelmente adquirindo alguns fios a mais de pêlo de

    gato para a sua já vasta coleção.

    A chuva sobreveio-lhe como um carma. A água embaçava-lhe os óculos e Tom nada podia fazer quanto aos seus oito graus de miopia. O suéter aderido à

     pele lhe dava a aparência de um embrulho mal feito. O vento tanto derrubava a temperatura de seu corpo que a sensação era próxima à de caminhar nu na

    Antártida.

    Talvez por isso decidira parar ante a um solitário vendedor de churrasquinhos no espeto. O nojo percorria seu corpo como um choque elétrico cada vez

    que lhe vinham à mente a imagem daqueles pequenos pedaços mal passados de carne. A barba espessa do homem por detrás da barraca e a sua pança que

    escapava para fora da regata vestida sob uma jaqueta jeans desbotada apenas aumentava-lhe a aversão ao petisco. Mas daquela vez, ele próprio gostaria de

    estar ali, fritando no lugar deles naquela chapa.

    O relógio parara às onze e dez da noite, prova cabal de que o vendedor enganara-lhe ao dizer que era à prova d’água. Já não mais encontraria funcionando

    quaisquer estabelecimentos decentes que lhe oferecessem um prato quente e delicioso. Tom sabia que se arrependeria depois, mas decidira encarar aquele

    “rato frito”, muito mesmo porque a fome já começara a lhe corroer as entranhas. No fundo de sua cabeça, bem baixinho, ele ouvia a voz estridente proveniente

    de sua azia, dizendo-lhe que mais tarde lhe faria uma visita. Ela ficava cada vez mais audível à medida que o churrasqueiro embebia o espeto em molhos de

    todas as cores. O homem estendera-lhe a iguaria, aguardando ser pago. Tom considerava o apogeu do absurdo se desfazer de cinco dinheiros em troca de uma

    semana de rei. Abriu sua carteira, mas as moedas saltaram para fora, umas duas ou três foram parar dentro de um bueiro. Uma delas era a moeda da sorte de

    Tom, que estampava em alto relevo a figura de um simpático vagalume. Ela provavelmente encontrava-se mais afortunada no esgoto do que o ex-dono

    naquela noite.

     Não depois de praguejar severas vezes, Tom continuara a sua “Via Crúcis”, deixando para trás uma nota de valor maior,  pois o churrasqueiro não tinha

    troco suficiente em caixa, nem aceitara o churrasco de volta. Agora uma crosta espessa acumulara-se sobre a superfície das lentes de seus óculos. As pessoas

    transformaram-se em vultos difusos. Tropeçava lamentavelmente pelas pedras da calçada, inspirando olhares cada vez mais desconfiados dos pedestres.

    Foi quando sentira seu corpo se chocar contra uma superfície emborrachada e escura. Caiu com tudo ao chão e o churrasco que nem comera foi parar

    longe. Mas pensou ter derrubado também o que quer que fosse. O som de pneus cantando ecoou sobre a cena, seguida por um turbilhão de insultos, muitos dos

    quais ele jamais ouvira antes.

    Ainda atordoado, tentou rudimentarmente limpar as lentes dos óculos e viu-se diante de uma descabelada e enfurecida mulher, que gesticulava como um

    maestro, regendo uma inapropriada sinfonia de palavras chulas. Teve ciência de que o objeto emborrachado com o qual colidira era na verdade o peculiar

    uniforme de trabalho de uma profissional da noite. Era como se a Mulher-Gato se fantasiasse com as roupas do Michael Jackson. Tom demorara a entender o

    que estava acontecendo.

     —  Eu tava fechando um negócio grande cara —  ela berrou —  Grande, entende? Mas tu espantou meu cliente.

    Tom levantara-se desconcertado e fizera menção de ir embora:

     —  Eu lamento muito mas...

     —  Opa, peraí! São quinhentinhos! Tu me deve 500 mangos, cara.

    Tom congelara. Sua carteira já fora desfalcada demais para o seu gosto. Mas a moça estava irredutível. Ela t inha um canivete.

     —  Ou recebo meus 500, ou recebo meus 500. Sacou? Meu nome é Josephine, irmão, e eu mando nisso aqui tudo, chapa! Tu me paga ou trabalha.

     —  Trabalha? C-como assim?

    Tom no fundo entendera. Ou era furado por uma prostituta enfurecida ou começava a fazer estágio na prostituição.