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  Universidade do Estado do Rio de Janeiro Centro de Ciências Sociais Instituto de Filosofia e Ciências Humanas Luiz Maurício de Abreu Arruda “A nova Jericó maldita: um estudo sobre a Colônia do Iguá em Itaboraí/RJ (1935-1953) Rio de Janeiro 2015

"A nova Jericó maldita": um estudo sobre a Colônia do Iguá em Itaboraí/RJ (1935-1953)

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Colônia do Iguá; História Local; Leprosário; Memória; Políticas de Saúde; Itaboraí.

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  • Universidade do Estado do Rio de Janeiro

    Centro de Cincias Sociais

    Instituto de Filosofia e Cincias Humanas

    Luiz Maurcio de Abreu Arruda

    A nova Jeric maldita: um estudo sobre a Colnia do Igu em

    Itabora/RJ (1935-1953)

    Rio de Janeiro

    2015

  • Luiz Maurcio de Abreu Arruda

    A nova Jeric maldita: um estudo sobre a Colnia do Igu em Itabora/RJ (1935-

    1953)

    Dissertao apresentada, como requisito

    parcial para obteno do ttulo de Mestre,

    ao Programa de Ps-Graduao em

    Histria, da Universidade do Estado do Rio

    de Janeiro. rea de concentrao: Histria

    Poltica.

    Orientador: Prof. Dr. Andr Luiz Vieira de Campos

    Rio de Janeiro

    2015

  • CATALOGAO NA FONTE

    UERJ/REDE SIRIUS/CCSA

    Autorizo, apenas para fins acadmicos e cientficos, a reproduo total ou parcial desta dissertao, desde que

    citada a fonte.

    ___________________________ _________________________

    Assinatura Data

    A779 Arruda, Luiz Maurcio de Abreu.

    A nova Jeric maldita: um estudo sobre a Colnia do Igu em Itabora/RJ (1935-1953) / Luiz Maurcio de Abreu Arruda. 2015.

    186 f.

    Orientador: Andr Luiz Vieira de Campos.

    Dissertao (mestrado) Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Instituto de Filosofia e Cincias Humanas.

    Bibliografia.

    1. Hansenase Brasil Histria 1935-1953 Teses. 2. Hansenase Hospitais Itabora (RJ) Teses. I. Campos, Andr Luiz Vieira de. II. Universidade do Estado do Rio de

    Janeiro. Instituto de Filosofia e Cincias Humanas. III. Ttulo.

    CDU 616-002.73(81)

  • Luiz Maurcio de Abreu Arruda

    A nova Jeric maldita: um estudo sobre a Colnia do Igu em Itabora/RJ (1935-

    1953)

    Dissertao apresentada, como requisito

    parcial para obteno do ttulo de Mestre,

    ao Programa de Ps-Graduao em

    Histria, da Universidade do Estado do Rio

    de Janeiro. rea de concentrao: Histria

    Poltica.

    Aprovada em 26 de maro de 2015.

    Banca Examinadora:

    _______________________________________________________

    Prof. Dr. Andr Luiz Vieira de Campos (Orientador)

    Instituto de Filosofia e Cincias Humanas UERJ

    _______________________________________________________

    Prof. Dra. Laurinda Rosa Maciel

    Casa de Oswaldo Cruz/FIOCRUZ

    _______________________________________________________

    Prof. Dra. Lcia Maria Paschoal Guimares

    Instituto de Filosofia e Cincias Humanas UERJ

    _______________________________________________________

    Prof. Dra. Lcia Maria Bastos Pereira das Neves ( Suplente )

    Instituto de Filosofia e Cincias Humanas - UERJ

    Rio de Janeiro

    2015

  • DEDICATRIA

    A meus pais Joo Jaks (in memoriam) e Maria das Graas que

    combateram o bom combate e tudo fizeram, dentro dos princpios da

    tica e da moral, para me tonar a pessoa que sou hoje. Aos demais

    membros da minha famlia que de uma forma ou de outra marcam

    nossa existncia para sempre...

  • AGRADECIMENTOS

    Primeiramente agradeo a Deus a oportunidade da vida!

    Aristteles disse que a mxima expresso da virtude e (em consequncia) a vida

    verdadeiramente feliz deviam ser encontradas no cultivo da verdadeira amizade. Fui

    abenoado com um grupo de amigos que confirmam isso. Muitas vezes as pessoas

    compartilharam comigo material que propiciaram a concluso desta pesquisa, alm das

    palavras de conforto nos momentos de dificuldade.

    No foram poucos os incentivos que recebi nesta caminhada. Agradecer a todos seria

    quase impossvel, ainda assim em meus pensamentos todos esses rostos ficaro guardados,

    pois ao escrever estas palavras, vejo passar um filme diante de meus olhos. Esta dissertao

    a concretizao de tudo o que vivi nestes ltimos dois anos.

    Dedico este trabalho as minhas filhas (Jenyffer, Laysa e Lavnia) e principalmente a

    Wanessa Silva da Costa Arruda, pelos vrios dilogos que mais pareciam monlogos em que

    eu citava nomes, conceitos e assuntos correlatos, pouco familiares a sua rotina, ainda assim,

    estava sempre atenta a ouvir para me agradar. Obrigado pelo incentivo nos momentos difceis,

    principalmente pela compreenso dos meus transtornos de humor, tendo pacincia, pois sabia

    o que se passava comigo. Seu entendimento demonstra a verdadeira relao de

    companheirismo e amor.

    Aos mestres do Departamento de Histria da UERJ, o meu afetuoso abrao...

    Devo agradecimentos especiais ao professor Andr Luiz Vieira de Campos, que

    gentilmente aceitou orientar esta pesquisa. O meu carinho pela histria de Itabora, provocou

    mudanas constantes no projeto de pesquisa, no qual s um orientador dotado de pacincia,

    seria capaz de compreender e me apoiar nessa trajetria, me indicando diretrizes seguras para

    concluso desta empreitada. Obrigado por ter me ensinado a superar os desafios que surgiram

    durante esse percurso.

    Agradeo as queridas professoras Lcia Maria Paschoal Guimares e Lcia Maria

    Bastos Pereira das Neves, que alm da grande contribuio a este trabalho, atravs dos cursos

    de teoria e historiografia da Histria, aceitaram de imediato participar da banca de

    qualificao.

    Ao professor e amigo Carlos Mauro de Oliveira Jnior, agradeo pelas aulas

    gratificantes nos tempos de graduao, que acabaram por consolidar uma bela amizade.

  • A professora Cristina Maria de Oliveira Fonseca, onde tive a grata alegria de conhecer

    atravs do Curso de Histria da Sade Pblica no Brasil na Casa de Oswaldo Cruz,

    possibilitando importante espao de discusso e debates sobre Histria da Sade Pblica no

    Brasil.

    Aos queridos amigos da graduao, em especial: Carlos Vincius, Eduardo Gomes

    (Dudu), Juarez de Almeida Moraes Jnior, Zilmar Luiz dos Reis, Paulo Veiga, Vincius

    Oliveira e Raphael Santana.

    A professora Laurinda Rosa Maciel que tive o imenso prazer de conhecer na Casa de

    Oswaldo Cruz e logo se tornou uma amiga pessoal, devido ao seu carinho e sensibilidade que

    me recebeu em seu trabalho. Querida Laurinda voc a real demonstrao de que amigos so

    como prolas de valor inestimvel, que nos fazem brilhar nos momentos essenciais. A sua

    contribuio para esta pesquisa foi imprescindvel.

    Ao professor Henrique Mendona da Silva, agradeo o incentivo e a grande

    contribuio para a pesquisa com o envio de fontes

    A Maria Suellen Timoteo Correa, que sendo sempre muito solcita, me ajudou em

    algumas tradues.

    Ao professor e amigo Gilciano Menezes Costa pelos inmeros dilogos sobre a

    histria de Itabora e a oportunidade de juntos trabalharmos em projetos sem fim lucrativos,

    que tem como objetivo produzir conhecimento sobre a histria da pedra bonita escondida na

    gua, que por muitos momentos, malbaratada pela administrao pblica.

    Aos confrades da Doutrina Esprita, em especial Andr Cantareli, Valter Carvalho e

    Claudiomar Fernandes, agradeo pelas palavras de incentivo e a amizade.

    A todos ex-internos da Colnia Tavares de Macedo, principalmente aqueles que

    abriram as portas de suas residncias, confidenciando o relato de suas memrias, registro meu

    carinho e agradecimento, pois suas contribuies foram essenciais para realizao deste

    trabalho.

    Aos senhores Jonas, Daniel e Saul que alm de depoentes, so amigos de longa

    caminhada e espritos dotados de grande sensibilidade.

    Aos meus colegas da Ps-Graduao deixo o meu afetuoso abrao, em especial: Ana

    Paula Carvalho, Ana Melo, Isabela Mota, Aline Hoche, Bonifcio Luiz, Camila Camacho,

    David Coutinho, Jordan Gonalves, Rodrigo Pires e Regilany Alves.

    A UERJ, em que fui acolhido desde a graduao, porque sem ela no poderia ter

    realizado este sonho de conquista.

  • A todos aqueles, que embora no citados nominalmente, contriburam direta e

    indiretamente para a concretizao deste trabalho.

    CAPES, pelo apoio financeiro concedido atravs da bolsa de estudos, que viabilizou

    a realizao desta dissertao.

  • Se todos pensassem um pouco nos desgraados que existem no

    mundo, na crueldade absurda de suas almas e nos meios que se dispe

    para socorr-los, talvez os homens despertassem de seu letargo e

    compreendessem que, antes de neviar pessoas para a lua, mais

    oportuno seria impedir que essas mesmas pessoas morressem de lepra

    ou de fome na Terra.

    Raoul Follereau

  • RESUMO

    ARRUDA, Luiz Maurcio de Abreu. A nova Jeric maldita: um estudo sobre a Colnia de Igu em Itabora/RJ (1935-1953). 2015. 186 f. Dissertao (Mestrado em Histria) Instituto de Filosofia e Cincias Humanas, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro,

    2015.

    O objetivo da pesquisa que resultou nesta dissertao consiste na anlise sobre as

    origens do primeiro leprosrio fluminense, a Colnia de Igu, em Itabora, Estado do Rio de

    Janeiro. Busco privilegiar no s a anlise desta cidade em miniatura tal como se pretendeu constituir um leprosrio e sua estrutura mas tambm os impactos poltico-sociais ocorridos com sua fixao em um municpio que alimentou, durante a primeira metade do

    sculo XX, a ideia de que poderia recuperar a situao de pujana econmica e poltica que

    viveu entre os sculos XVIII e XIX, quando ocupou importante papel na economia

    fluminense e brasileira. Nesta anlise focalizamos o movimento de resistncia contra a

    instalao da Colnia neste municpio originada por aqueles que acreditavam que o leprosrio

    iria prejudicar o reflorescimento da regio, bem como as disputas polticas envolvidas em sua

    fixao na cidade. Tambm consideramos os relatos de ex-internos do antigo leprosrio sobre

    a experincia do viver em uma colnia de atingidos pela lepra. Algumas de suas memrias

    foram incorporadas ao trabalho em nossa tentativa de relatar o cotidiano de um sistema que os

    segregou pela fora do ato de internar compulsoriamente. Os marcos cronolgicos da pesquisa

    se referem, respectivamente, ao ano de 1935, quando foi lanada a pedra fundamental para

    construo da Colnia de Igu e que tambm um perodo marcado pelo incio do Plano

    Nacional de Combate Lepra. Tal Plano representou uma acelerao na construo e

    modernizao de instituies dessa natureza em todo pas e marcou um momento de

    consolidao do internamento como profilaxia dos doentes. Como marco final, estabelecemos

    o ano de 1953 quando a Colnia Tavares de Macedo, como o Igu ficou denominado a partir de 1942 recebe o novo sistema de abastecimento de gua, evidenciando a aliana entre a instituio e o poder local na luta por melhorias do sistema de servios pblicos do

    municpio e, portanto, evidenciando a falsa questo de que a presena da Colnia iria

    prejudicar o municpio.

    Palavras-chave: Colnia de Igu. Histria local. Leprosrio. Memria. Polticas de sade.

  • ABSTRACT

    ARRUDA, Luiz Maurcio de Abreu. The new cursed Jericho: a study about Colnia do Igu,

    in Itabora/RJ (1935-1953) 2015. 186 f. Dissertao (Mestrado em Histria) Instituto de Filosofia e Cincias Humanas, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro,

    2015.

    The purpose of the research, resulted in this dissertation, is to analyze the origins of

    the first leprosarium of Rio de Janeiro, the Igu Colony (Colnia do Igu), in the city of Itabora. We seek to focus not only in the analysis of this "miniature city" - as it was intended

    to be in its structure - but also in the political and social impacts occurred with its attachment

    in a city that fed, during the first half of the twentieth century, the idea that could retrieve the

    situation of economic and political strength of the eighteenth and nineteenth centuries, when

    occupied an important role in the economy of Rio de Janeiro and Brazil. In this analysis, we

    focus on the resistance movement against the installation of the Colony in this city by those

    who believed that the leprosarium would harm the revival of the region and the political

    disputes involved in its establishment in the city. We also consider the reports of former

    inmates of the leper colony on the experience of living in a colony affected by leprosy. Some

    of his memories were incorporated into the work in our attempt to report the daily life of a

    system that segregated by the force of compulsory hospitalization. The chronological sections

    of the survey refer, respectively, to 1935, when it launched the foundation stone for

    construction the Igu Colony in a period marked by the beginning of the National Plan

    Against Leprosy. This plan represented an acceleration in construction and modernization of

    institutions of this nature throughout the country and marked a time of consolidation of the

    hospitalization as prophylaxis of patients. As a final mark, we set the year 1953 - when the

    Tavares de Macedo Colony, such as Igu was called from 1942 - receives the new water

    supply system, showing the alliance between the institution and the local government in the

    fight for improvement of the public services system in the city and therefore showing the false

    axiom that the presence of the Colony would hurt the city.

    Keywords: Health policy. Igu colony. Leprosy. Leprosarium. Local history. Memory.

  • LISTA DE FIGURAS

    Figura 1 Operrios construindo os pavilhes da Colnia de Igu.........................................92

    Figura 2 Chegada do Presidente Getlio Vargas e sua comitiva em Itabora para

    inaugurao da Colnia de Igu...........................................................................103

    Figura 3 Getlio Vargas junto com as representantes da Federao das Sociedades de

    Assistncia aos Lzaros e Defesa contra a Lepra na inaugurao...................... 104

    Figura 4 O Presidente Getlio Vargas de perfil, provavelmente hasteando a Bandeira

    Nacional............................................................................................................. 104

    Figura 5 Ministro Gustavo Capanema e o Ministro da Guerra Eurico Gaspar

    Dutra....................................................................................................................105

    Figura 6 Fachada e planta baixa do pavilho de servios administrativos .........................109

    Figura 7 Avenida de pavilhes Carville no dia da inaugurao e nos dias atuais...............110

    Figura 8 Planta baixa dos pavilhes construdos em Igu...................................................112

    Figura 9 Pavilho modelo Carville construdos na Colnia de Itanhenga e Igu............... 112

    Figura 10 Escola 19 de abril e Vila dos casados no dia da inaugurao e nos dias

    atuais................................................................................................................... 113

    Figura 11 Cemitrio nos dias atuais....................................................................................118

    Figura 12 Plano geral de construo do Leprosrio de Igu...................................................120

    Figura 13 Internos da Colnia em momento de lazer..........................................................138

    Figura 14 Anncio de Jornal o "Dia dos acamados" ......................................................... 141

    Figura 15 Jonas e sua Banda em dcada de 1950........................................................... 143

    Figura 16 Ficha de Ocorrncia........................................................................................... 149

    Figura 17 Os novos prdios do Ministro Gustavo Capanema........................................... 155

    Figura 18 Ministro Gustavo Capanema e o Interventor Ernani do Amaral Peixoto na

    inaugurao do novo prdio Ministro Gustavo Capanema................................... 156

    Figura 19 O Preventrio Vista Alegre em 1942 e nos dias atuais.....................................157

    Figura 20 Capela de Santo Antnio em 1942 e nos dias atuais..........................................158

    Figura 21 Placa comemorativa da inaugurao do servio de luz e fora da Cidade de

    Itabora................................................................................................................164

  • LISTA DE TABELAS

    Tabela 1 Verbas federais para construo e ampliao de leprosrios................................. 57

    Tabela 2 Leprosrios inaugurados durante a gesto de Gustavo Capanema........................ 58

    Tabela 3 Censo e estimativa dos leprosos em 1936.............................................................. 78

    Tabela 4 Arrecadao das rendas municipais..................................................................... 99

  • LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

    CPDOC Centro de Pesquisa e Documentao de Histria Contempornea do Brasil

    DGSP Diretoria Geral de Sade Pblica

    DNSP Departamento Nacional de Sade Pblica

    DNS Departamento Nacional de Sade

    DIP Departamento de Imprensa e Propaganda

    DNOS Departamento Nacional de Obras e Saneamento

    FSALDCL Federao das Sociedades de Assistncia aos Lzaros e Defesa Contra a

    Lepra

    IPLDV Inspetoria de Profilaxia da Lepra e Doenas das Venreas

    IPL Inspetoria de Profilaxia da Lepra

    IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica

    PQT Poliquimioterapia

    PPR Partido Popular Radical

    PSD Partido Social Democrtico

    PSF Partido Socialista Fluminense

    PTB Partido Trabalhista Brasileiro

    MESP Ministrio da Educao e Sade Pblica

    MES Ministrio da Educao e Sade

    SNL Servio Nacional de Lepra

    SFALDCL Sociedade Fluminense de Assistncia aos Lzaros e Defesa Contra

    - Lepra

    UDN Unio Democrtica Nacional

  • SUMRIO

    INTRODUO................................................................................................... 15

    1 DE COADJUVANTE A PAPEL PRINCIPAL: A TRANSFORMAO

    DA LEPRA EM ENDEMIA NACIONAL.........................................................

    31

    1.1 A Sade na Primeira Repblica e a formao de uma ideologia da

    higiene....................................................................................................................

    31

    1.2 Lepra: A filha mais velha da morte................................................................ 36

    1.2.1

    1.3

    Uma questo de hygiene nacional.....................................................................

    Isolamento compulsrio: condio essencial para o bom xito da

    prophyaxia...........................................................................................................

    38

    41

    1.4

    1.5

    1.6

    1.6.1

    O surgimento da cidade dos lzaros................................................................

    As facetas do isolacionismo.............................................................................

    Organizao Moderna da luta contra a Lepra: O Plano Nacional de

    Combate Lepra.................................................................................................

    As diretrizes do Plano Nacional de Combate Lepra...........................................

    46

    50

    53

    59

    2 O DEBATE SOBRE O LEPROSRIO NO ESTADO DO RIO DE

    JANEIRO............................................................................................................

    64

    2.1 Itabora: breve histrico..................................................................................... 64

    2.2 A situao da lepra em terras fluminenses........................................................ 74

    2.3

    2.4

    2.5

    A escolha do local: divergncias e alternativas.................................................

    O embate contra a Colnia de Igu em Itabora...............................................

    Projeto 483: Transfere o local da construo do Leprosrio de Igu para

    um local j comprometido pelo mal de hansen...............................................

    80

    86

    97

    3 COLNIA DE IGU: O CHAMARIZ DA DESCRAA OU CIDADE

    DA ESPERANA..............................................................................................

    106

    3.1 Uma cidade em miniatura............................................................................... 106

    3.2 Colnia de Igu: Um lugar de memrias............................................................ 121

    3.2.1 A violncia do diagnstico..................................................................................... 122

    3.2.2 Da chegada ao leprosrio....................................................................................... 129

    3.2.3 Trabalho: instrumento de (re)construo do cotidiano.......................................... 128

    3.2.4 O papel da Caixa Beneficente.................................................................................. 133

    3.2.5 Sociabilidade e poltica na Colnia........................................................................ 136

  • 3.2.6

    3.3

    3.3.1

    3.4

    Estigma, preconceito e resistncia.........................................................................

    Precisamos impedir a infeco das creanas! A atuao das Sociedades

    Fluminenses de Assistncia aos Lzaros e a fundao do Preventrio Vista

    Alegre...................................................................................................................

    Os primeiros anos do Educandrio Vista Alegre a partir de um

    depoente.................................................................................................................

    A cidade dos lzaros em Itabora: Depreciao ou benefcio?.....................

    CONSIDERAES FINAIS..............................................................................

    REFERNCIAS...................................................................................................

    147

    151

    159

    161

    170

    174

  • 15

    INTRODUO

    Minha insero no tema de Histria da Sade Pblica remete a algum tempo antes de

    escrever esta dissertao quando mantive contato aos pacientes internados no Hospital

    Estadual Tavares de Macedo, por meio de visitas peridicas. Nestes encontros tive a

    oportunidade de conhecer antigos pacientes que revelavam suas memrias e lembranas do

    perodo de isolamento e o complexo relacionamento com a populao externa ao Hospital, o

    que, em algumas ocasies, evidenciava a continuidade do milenar estigma que envolve a

    doena e o doente.

    No decorrer de minha graduao em Histria pela Universidade do Estado do Rio de

    Janeiro, conquistei uma bolsa de iniciao cientfica pela FAPERJ no projeto As campanhas

    de erradicao da malria no contexto da interiorizao do territrio e de institucionalizao

    de uma Poltica de Sade Pblica no Brasil: Dimenses Visuais (1930-1960), coordenado

    pela professora Maria Teresa Vilela Bandeira de Mello, que acabou por me inserir no campo

    de pesquisa sobre histria do Brasil, com enfoque em Histria da Sade e das Doenas. Esta

    pesquisa tem como premissa, a anlise dos aspectos histricos das campanhas de controle e

    erradicao da malria no Brasil do sculo XX, especificamente no perodo compreendido

    entre as dcadas de 1910 e 1960, mediante a anlise das imagens produzidas por diferentes

    campanhas ocorridas ao longo destes anos. A riqueza das fontes documentais consultadas, no

    contexto mais abrangente de institucionalizao de uma poltica de sade pblica no Brasil,

    nas dcadas de 1930 e 1960, foram de grande importncia para compreenso da

    institucionalizao de uma poltica de sade pblica no Brasil.

    Nesta dissertao, procuro analisar determinados aspectos pertinentes construo do

    primeiro leprosrio fluminense, privilegiando questes relativas ao movimento de resistncia

    contra sua instalao no municpio de Itabora e os respectivos impactos poltico-sociais

    gerados a partir deste embate. Ao realizar levantamento historiogrfico sobre a Colnia de

    Igu percebi a recorrncia de algumas questes como A populao se revoltou contra sua

    instalao devido ao preconceito da doena. Em primeiro lugar, quem era essa populao?

    O preconceito por si s explica tal atitude ou j existia na memria coletiva a ideia de

    decadncia associada s doenas? Por que Itabora e no outro dos 47 municpios do

    Estado? Como e quem articulou esse movimento? Como se deu esse enfrentamento nos

    campos poltico e social? Quais eram os interesses envolvidos? E, por fim, com sua

    inaugurao, a Colnia se tornou um chamariz de desgraa como acusavam aqueles que

  • 16

    combatiam sua construo em Itabora ou um grande aliado do poder local na luta por

    melhorias de infraestrutura no municpio?

    Esses so alguns dos questionamentos presentes que busco responder, alm de outros

    relacionados ao cotidiano dos doentes. Para isso, examinei aspectos sociais, culturais e

    polticos das primeiras dcadas de funcionamento da Colnia procurando compreender de que

    maneira se efetivaram as polticas de combate lepra no Estado do Rio de Janeiro, em

    especial a do isolamento compulsrio. Embora os pacientes, ou seja, os personagens que

    sofreram esta ao sejam de grande relevncia neste estudo, importante ratificar que este

    trabalho no sobre histria da doena.

    Sem deixar de reconhecer a qualidade de trabalhos j produzidos sobre histria da

    lepra no Brasil, gostaria de chamar a ateno para a peculiaridade desta pesquisa. Esta se

    refere conexo estabelecida entre a anlise histrica da Colnia de Igu durante as dcadas

    de 1930 a 1950 e sua relao com a histria poltica do municpio que a recebeu. Evidencio

    que muito mais do que um repositrio de leprosos, como apontado por parte da

    documentao consultada, a Colnia de Igu, alm de representar um testemunho privilegiado

    sobre o tratamento da hansenase no Brasil, tornou-se um elemento politicamente importante

    naquele municpio, desmentindo os temores iniciais de que, sua presena iria impedir a

    recuperao econmica da regio.

    Atualmente a hansenase uma doena que se encontra no limiar da sua eliminao

    como problema de sade pblica. Os progressos cientficos alcanados nas reas de

    imunologia, biologia molecular e sequenciamento genmico de seu agente causador, o

    mycobacterium leprae, representam perspectivas de pesquisa e de aplicao potencial para

    diagnstico, prognstico e vigilncia da doena.

    O Brasil o nico pas da Amrica Latina onde a doena no foi eliminada e o

    segundo pas no mundo com maior predominncia de novos casos. Em 2010, 92,4% dos

    novos casos de hansenase nas Amricas aconteceram no Brasil. Entretanto, o pas tem

    apresentado avanos no combate hansenase em diversos aspectos nos ltimos anos.

    Levantamento recente do Ministrio da Sade mostrou reduo de 61,4% no coeficiente de

    prevalncia (pacientes em tratamento) entre 2001 e 2011, passando de 3,99 por 10 mil

    habitantes para 1,54. Alm disso, durante o mesmo perodo, o nmero de postos de servios

    com pacientes em tratamento cresceu de 3.895, em 2001, para 9.445, em 2011, apresentando

    um aumento de 142%. Entre esses anos, o nmero de novos casos diminuiu 25,9%, passando

    de 45.874 mil para 33.955 mil. A mdia nacional est prxima da meta estabelecida pelo

  • 17

    Plano de Eliminao da Hansenase (menos de um caso para cada grupo de 10 mil, at 2015),

    sendo de 1,54 casos por 10 mil habitantes.1

    Tambm conhecida como lepra, morfeia, mal de lzaro ou doena de Hansen, a

    hansenase uma doena infecciosa e contagiosa, que afeta os nervos e a pele.2 Sua presena

    est associada a desigualdades sociais e atinge principalmente as regies mais carentes. A

    transmisso se d atravs das vias areas do doente (secrees nasais, gotculas da fala, tosse,

    espirro) chamados de bacilferos, ou seja, que expelem bacilos, devido falta de tratamento.3

    Ao iniciar o tratamento, o paciente deixa de transmitir a doena, levando em considerao que

    a maioria dos indivduos que entraram em contato com estes bacilos no desenvolve a doena,

    pois cerca de 95% da populao naturalmente imune.

    Apontada como uma das enfermidades mais antigas do mundo, a lepra acompanhou as

    mudanas sociais e culturais ao longo do tempo. Carregada de forte preconceito e estigma4,

    relegou os leprosos ao ostracismo e morte social, pois a enfermidade era vinculada a

    smbolos negativos como pecado, castigo divino ou impureza, confundida inclusive com

    outras molstias que igualmente produziam ulceraes na pele.

    O microrganismo causador da hansenase foi identificado em 1873, pelo mdico

    noruegus Gerhard Henrik Armauer Hansen, derivando da, um dos nomes da doena:

    hansenase. Com essa descoberta, grande parte dos aspectos simblicos que a cercavam foi

    desaparecendo. No entanto, o preconceito se mantm e, atualmente, apontado pelo prprio

    Ministrio da Sade, como uma das principais dificuldades enfrentadas pelos pacientes.

    Segundo os profissionais, o estigma ainda persiste em funo da escassez de divulgao de

    informaes acerca da doena e seus agravos.

    A descoberta do bacilo, sem dvida, modificou a histria da doena. Entretanto, o

    aspecto infectocontagioso continuou a ser refutado por boa parte da comunidade mdica

    durante o final do sculo XIX e incio do XX. Faltava uma prova experimental do cultivo e

    1http://www.agencia.fiocruz.br/hansen%C3%ADase (acessado em 19/12/2014).

    2 Para evitar ser anacrnico e mais apropriado historicamente, utilizo os termos: lepra e seus derivados.

    3Segundo o Ministrio da Sade a classificao operacional do caso de hansenase, visando o tratamento com

    poliquimioterapia baseada no nmero de leses cutneas de acordo com os seguintes critrios: Paucibacilar

    (PB): casos com at 5 leses de pele; Multibacilar (MB):casos com mais de 5 leses de pele. In:

    http://portalsaude.saude.gov.br/index.php/o-ministerio/principal/leia-mais-o-ministerio/705-secretaria-

    svs/vigilancia-de-a-a-z/hanseniase/11295-informacoes-tecnicas (acessado em 19/12/2014).

    4 A palavra estigma de origem grega (lepein) e tinha a conotao de impureza e desonra com a finalidade de

    sinalizar que a pessoa portadora de estigma era um indivduo marcado fisicamente, evidenciando algo de

    extraordinrio ou mal sobre o status moral de quem os apresentava. GOFFMAN, Erving, Estigma-Notas sobre a

    Manipulao da Identidade deteriorada, Rio de Janeiro: Zahar ores, 1980.

  • 18

    inoculao do micro-organismo, como estabelecido nos postulados de Robert Koch. A teoria

    do contgio, em detrimento da teoria da hereditariedade, foi um fator crucial para se

    compreender os diferentes posicionamentos relacionados poltica de combate doena,

    principalmente no que tange ao isolamento compulsrio dos doentes.5

    A partir do final do sculo XIX o isolamento compulsrio apontado como a

    profilaxia ideal para o controle da endemia. Mesmo no sendo aprovada por unanimidade pela

    comunidade cientfica internacional, esta prtica se manteve durante boa parte do sculo XX.

    No Brasil, o isolamento foi largamente utilizado quando o Ministrio da Educao e Sade

    Pblica elaborou, em 1935, o Plano Nacional de Combate Lepra, inaugurando uma fase de

    grandes construes e investimentos, o que demonstrava a importncia das polticas de sade

    no projeto varguista de construo de um Estado-nao moderno.

    Os questionamentos internacionais ao isolamento compulsrio vo ganhar impulso a

    partir do final dos anos 1940, graas aos avanos da indstria qumico-farmacutica e das

    pesquisas laboratoriais, com o uso das sulfas como principal terapia aos enfermos. Na dcada

    de 1970, esta passou a ser adotada como tratamento e, a partir de 1986, como protocolo oficial

    em todo o pas, denominado de poliquimioterapia (PQT). 6 A partir da dcada 1970,

    observamos a intensificao de um movimento de combate ao preconceito e estigma que

    estavam contidos na palavra lepra. Assim, em 1975, o pas adotou oficialmente o termo

    hansenase para designar a doena.7 A mudana de nomenclatura foi um passo importante

    dado pela comunidade cientfica brasileira para se pensar aspectos sociais e psicolgicos no

    combate doena no Brasil.8

    Particularmente em relao s produes historiogrficas referentes a esta doena no

    Brasil, importante salientar que a partir da dcada de 1990, foi produzido um nmero

    considervel de dissertaes de mestrado e teses de doutoramento tendo a lepra como tema ou

    objeto de pesquisa. preciso salientar que as obras anteriores a essa produo, escritas na

    5 COSTA, Dilma Ftima A. C. da. Entre ideias e aes: Lepra, medicina e polticas pblicas de sade no Brasil

    (1894-1934).Tese de Doutorado, Universidade Federal Fluminense, Niteri, 2007. pp.75-76.

    6Poliquimioterapia (PQT) uma combinao de medicamentos padronizada pela Organizao Mundial de Sade

    (OMS). O tratamento com a PQT altamente eficaz na cura da hansenase: ele imediatamente interrompe a

    transmisso da infeco, reduz o perodo de tratamento, evita o desenvolvimento de resistncia a drogas e

    apresenta poucos efeitos colaterais.

    7 Em 1975, ocorreu a substituio oficial do termo Lepra por Hansenase, atravs do Decreto n 76.078, de

    04/08/1975. Em 1995, assinada a lei n 9010 que determina que o termo Lepra e seus derivados no podero

    ser utilizados na linguagem empregada nos documentos oficiais da Administrao pblica brasileira.

    8 A simbologia de medo causada pela denominao lepra acabava por empurrar os doentes a uma vida

    clandestina, que chegavam a adotar novos nomes para no prejudicar a famlia.

  • 19

    maioria das vezes por mdicos que, em alguns casos, estiveram envolvidos diretamente no

    processo de polticas de combate doena no Brasil, retratam um olhar herico da medicina

    sobre a doena e seus respectivos impactos sociais. Entretanto, preciso considerar que essa

    produo foi realizada dentro de um determinado momento histrico e incorpora um vis

    positivista de inevitvel progresso da medicina, isento na maioria das vezes de um perfil

    analtico do processo histrico.9

    Um bom exemplo a Histria da lepra no Brasil, uma obra basilar em qualquer

    pesquisa sobre a trajetria da doena no pas. Ela foi escrita pelo mdico Herclides Csar de

    Souza-Arajo, destacado leprologista que ocupou importantes cargos na sade pblica no

    perodo em que a principal forma de tratamento consistia no isolamento compulsrio em

    hospitais colnia. A obra, composta por trs volumes e publicada entre os anos de 1946 a

    1956, abarca os perodos Colonial, Imperial e Republicano e bastante utilizada como fonte

    primria devido imensa quantidade de documentos reproduzidos em suas pginas.

    A segunda obra que me refiro, tendo ainda um olhar mdico e, portanto, uma narrativa

    heroica sobre a histria da doena, foi organizada e publicada pelo Servio Nacional de Lepra

    em 1950. Os dois volumes de Tratado de Leprologia apresentam vrios artigos sobre a

    histria, as pesquisas laboratoriais, a profilaxia e o tratamento da lepra no Brasil at aquele

    momento.

    No livro Ns tambm Somos Gente: trinta anos entre leprosos, publicado em 1961,

    o Dr. Orestes Diniz apresenta suas memrias profissionais relacionadas lepra, cujo

    envolvimento perpassa toda sua vida profissional. Alm de diretor do Hospital Colnia Santa

    Izabel, em Minas Gerais, Diniz ocupou vrios cargos de gesto na esfera pblica e

    notabilizou-se como um dos principais leprologistas do pas. Sua obra apresenta um olhar

    heroico dos profissionais da sade, enfatizando a vitria da medicina sobre a doena.

    Na produo de conhecimento histrico acadmico contemporneo sobre a lepra, a

    diversidade bem maior. Destaco aqueles que, seja pela qualidade do trabalho ou a

    perspectiva abordada, ofereceram subsdios para realizao desta dissertao.

    9 A tradio heroica ou otimista teve como principal referncia os trabalhos desenvolvidos por George

    Rosen, que apresenta uma viso progressista na qual a medicina social apresentou um carter reformista. Uma de

    suas principais bandeiras seria a capacidade de salvar a humanidade do terrvel mal que representam as doenas,

    eliminando as deficincias relacionadas manuteno do bem-estar social da populao. O desenvolvimento

    econmico seria benfico, pois levaria qualidade de vida e sade a todos. In: PORTER, Dorothy. The History of

    the Public Health and Modern State. Amsterdam: Rodopi B.V., 1994. Apud. CAMPOS, Andr Luiz Vieira de.

    Polticas internacionais de sade na Era Vargas - O Servio Especial de Sade na Era Vargas, 1942-1960. Rio

    de Janeiro: Ed. Fiocruz, 2006, pp. 13-23.

  • 20

    O trabalho de Yara Nogueira Monteiro com sua tese de doutoramento, Da maldio

    divina excluso social: um estudo da hansenase em So Paulo defendido em 1995 foi de

    extrema valia para elaborao desta dissertao. Ela analisou o estigma da lepra, desde os

    tempos coloniais, e o isolamento compulsrio adotado pelo governo paulista durante o sculo

    XX. Utilizando extensiva documentao, demonstra como o estado de So Paulo

    implementou um sistema de controle sobre os doentes atravs de uma complexa rede de

    leprosrios.

    A dissertao de Vivian Cunha, O isolamento compulsrio em questo. Polticas de

    combate lepra no Brasil (1920-1941), defendida em 2005, contribui com a discusso em

    torno do isolamento compulsrio. Sua pesquisa centrada na anlise das polticas de combate

    lepra no perodo de 1920 a 1941, tendo como foco especfico o debate mdico e as aes em

    torno do isolamento compulsrio, poltica pblica regulamentada a partir de decreto publicado

    em 1920. Ela faz uma anlise a partir da histria cultural, onde utiliza os escritos bblicos

    como exemplificao do milenar estigma presente em torno da lepra e do leproso. Segundo

    Cunha, o imaginrio medieval em torno da lepra foi transplantado para o continente

    americano atravs dos colonizadores, justificando a presena do forte estigma em torno da

    doena. Considero uma das principais contribuies de sua pesquisa o fato de demonstrar, que

    a poltica do isolamento compulsrio, com exceo do estado de So Paulo, s foi viabilizada

    aps a elaborao do Plano Nacional de combate Lepra em 1935.

    O isolamento compulsrio tambm foi objeto de estudo de Luciano Marcos Curi que

    estabeleceu como marco cronolgico de sua dissertao, o surgimento de um aparelhamento

    profiltico consistente, o chamado trip, orientado pelo Plano Nacional de combate lepra de

    1935. Com o ttulo Defender os sos e consolar os lzaros (1935-1976), o autor explora a

    diferena entre lepra e hansenase, destacando tambm o conceito de leprophobia social.

    Alm disso, ele analisa o trabalho realizado pelas sociedades filantrpicas atravs das

    campanhas de solidariedade para captao de recursos que foram aplicados nas construes

    dos preventrios e assistncia dos doentes e seus familiares. As chamadas damas ilustres,

    apontadas por Curi, ocuparam a posio de novos atores sociais na prtica da caridade e/ou

    filantropia, algo que sempre foi feito pela Igreja Catlica e se secularizou no Brasil, no final

    do XIX e incio do XX, com a institucionalizao da sade pblica.

    Laurinda Maciel, em sua tese de doutoramento Em proveito dos sos perde o lzaro

    a sua liberdade: uma histria das polticas pblicas de combate lepra no Brasil (1941-

    1962), apresenta um amplo quadro sobre a molstia em termos nacionais.Tendo como limite

    cronolgico a criao do Servio Nacional de Lepra, em 1941, demonstra o problema da lepra

  • 21

    no Brasil, antes da criao deste rgo evidenciando a trajetria do leprlogo Herclides

    Cesar de Souza-Arajo. O modelo de So Paulo, que segundo ela, trata-se de uma exceo

    quanto rede de leprosrios e administrao diferenciada do restante do pas, destaque

    tambm de seu trabalho. A tese de Laurinda Maciel, defendida em 2007, possibilitou

    importantes contribuies para fundamentao desta pesquisa.

    A tese de Dilma Cabral, Entre ideias e aes: Lepra, medicina e polticas pblicas de

    sade no Brasil (1894-1934), defendida em 2009, foi de grande importncia na busca pelo

    entendimento das mudanas no modelo interpretativo da lepra e as intervenes

    implementadas no seu controle. A partir disso, as reflexes apresentadas pela autora

    possibilitam a compreenso de que o isolamento do leproso foi conformado, ao longo da

    histria da doena, por teorias e categorias mdicas distintas, da mesma forma que sua funo

    assumiu aspectos e contedos diferenciados.

    Nos ltimos anos, surgiram importantes trabalhos no campo de pesquisa sobre a

    doena, dando voz aos doentes por meio do resgate de suas memrias. Destacam-se,

    principalmente, as dissertaes e teses sobre hospitais colnias (leprosrios). Atravs dessa

    importante recuperao, alguns pesquisadores tm buscado inserir no debate o personagem

    doente, ou seja, os que verdadeira e intensamente vivenciaram o estigma e a segregao. Tais

    trabalhos buscam compreender a dinmica destas verdadeiras mini-cidades que so os

    leprosrios, a partir da contribuio da memria, no s dos ex-internos dos antigos

    leprosrios, mas tambm dos ex-funcionrios e filhos de doentes que eram encaminhados aos

    preventrios (educandrios). Nessa mesma linha, destaco os trabalhos de Evrton Quevedo,

    Isolamento, isolamento e ainda, isolamento: o Hospital Colnia Itapu e o amparo Santa

    Cruz na profilaxia da lepra no Rio Grande Sul (1930-1950), e de Juliane Serres, Memrias

    do Isolamento: trajetrias marcadas pela experincia de vida no Hospital Colnia Itapu.

    E, por fim, destaco a tese de doutorado, defendida no ano de 2012, por Keyla

    Auxiliadora Carvalho, Colnia Santa Izabel: A lepra e o isolamento em Minas Gerais (1920-

    1960), que tambm busca dar voz aos ex-internos, realizando um trabalho muito

    interessante e complexo, ainda pouco explorado, privilegiando, alm disso, a construo

    social da doena, que levou a diferentes significados sobre ela.

    Poucas so as referncias bibliogrficas sobre a Histria da lepra no Estado do Rio de

    Janeiro e, consequentemente, sobre a Colnia de Igu. O primeiro trabalho que destaco a

    monografia em Histria, realizada por Rodrigo Octavio da Fonseca Lima Filho no ano de

    2004, O municpio de Itabora recebe os Anjos Inocentes Hansenase/Lepra

    Preconceitos e outros histrias. Nesta, o autor buscou analisar historicamente a construo da

  • 22

    Colnia de Igu, utilizando um nmero considervel de depoimentos de ex-internos. Fontes

    iconogrficas cedidas por muitos pacientes do hospital tambm fazem parte de seu trabalho,

    que guarda caractersticas da sociologia histrica com enfoque nos intensos movimentos

    culturais ocorridos no interior da Colnia, estabelecendo como objeto especificamente a

    fundao e existncia da Escola de Samba Anjos Inocentes.

    Bruno Souza Norbert Costa, atravs da monografia em Histria sob o ttulo: O

    isolamento compulsrio como poltica de combate lepra na Era Vargas: o caso da Colnia

    de Igu (1936-1938), buscou demonstrar o processo de estigmatizao dos leprosos e as

    representaes da lepra como propulsoras de prticas pblicas durante o primeiro Governo

    Vargas. Neste trabalho, o autor analisou, sobretudo, alguns aspectos que fizeram parte do

    projeto da Colnia, utilizando fontes tais como peridicos mdicos e filantrpicos, alm de

    correspondncias trocadas entre autoridades, que evidenciaram os problemas polticos

    gerados pela construo da Colnia em Itabora.

    E, por fim, destaco a pesquisa realizada por Ivonete Alves de Lima Cavalieri, atravs

    de sua tese de doutoramento em Poltica Social, sob o ttulo: Memrias do Isolamento

    Compulsrio no Hospital-Colnia Tavares de Macedo-RJ (1936-1986), defendida em 2013.

    Nela, a autora examina o cotidiano dos doentes durante o regime de isolamento compulsrio,

    recorrendo a uma srie de depoimentos de ex-internos da Instituio, incorporando, inclusive,

    dados colhidos atravs de anlise das fichas mdicas de pacientes presentes no arquivo interno

    do Hospital.

    O trabalho que apresento, representa uma nova perspectiva que se difere dos trs

    trabalhos mencionados acima, pois no trata somente da histria das doenas ou da histria

    dos ex-internos da Colnia de Igu, e sim apresenta uma interseo entre a histria das

    polticas pblicas de sade no Brasil e a histria poltica local. Essa nova perspectiva

    possibilita compreender as transformaes sociais, econmicas e polticas ocorridas entre as

    dcadas de 1930-1950 na Colnia de Igu/Tavares de Macedo e suas interfaces com a histria

    poltica de Itabora.

    Ao tratar de uma determinada poltica pblica de sade que vigorou em todo pas, este

    estudo tratou de uma instituio especfica, criada com a inteno de aparelhar o Estado do

    Rio de Janeiro com um leprosrio, inicialmente denominada de Colnia de Igu. Trata-se de

    uma anlise da histria da sade pblica, procurando entender suas relaes com a histria da

    expanso da autoridade do Estado e das instituies. A criao desta instituio est inserida

    em um contexto das primeiras polticas pblicas de sade de abrangncia nacional. A

    modernizao e construo de leprosrios por todo Brasil, se explica pelo quadro geral de

  • 23

    reformulaes dos servios de sade implementadas por Gustavo Capanema10

    (1934-1945),

    que est inserido no processo de institucionalizao da sade pblica no pas. Assim, outra

    vertente deste trabalho est apoiada em uma bibliografia, que associa as polticas de sade

    pblica promovidas pelo Primeiro governo Vargas, com a expanso da autoridade do Estado

    no territrio brasileiro.11

    Creio que esta dissertao tenha instaurado alguns nveis de percepo acerca do

    impacto que causou na populao de Itabora a construo de uma Cidade dos Lzaros; bem

    como, possibilitou o conhecimento das estratgias utilizadas pelos poderes local e regional

    durante a sua construo. Permitiu tambm uma compreenso do cotidiano dos internos da

    Colnia em suas dcadas iniciais, demonstrando, inclusive, o uso poltico desta instituio na

    obteno de benefcios ao municpio, o que corrobora com a insero deste trabalho tambm

    na histria poltica local de Itabora.

    Fontes e metodologia

    No tocante documentao, busquei utilizar um amplo conjunto de fontes, a fim de

    proporcionar produo de conhecimento novo sobre o tema escolhido, auxiliando, inclusive,

    outros pesquisadores que tenham interesse sobre a Histria local e sobre a Colnia de Igu.

    Argumento inicialmente a importncia da imprensa como fonte de pesquisa para

    estudos histricos e algumas consideraes, quanto ao uso destas fontes.

    Os jornais propiciaram o entendimento de vrias questes referentes pesquisa.

    Entretanto, demandaram cautela em sua anlise. Passvel de grandes deturpaes por parte do

    relato produzido pelos jornalistas, sua impreciso muitas vezes pode ser influenciada pelos

    10

    Advogado, nascido em Pitangui, cidade do interior de Minas Gerais, Gustavo Capanema Filho iniciou seus

    estudos nesta cidade e transferiu-se em seguida para Belo Horizonte. Ingressou em 1920 na Faculdade de Direito

    de Minas Gerais, onde se tornou amigo de Abgar Renault, Mrio Casassanta, Gabriel Passos e Emlio Moura,

    que mais tarde se destacaram no campo da literatura e poltica. Fez parte do grupo conhecido como Os intelectuais da rua da Bahia, integrado tambm por Carlos Drummond de Andrade, Mlton Campos, Joo Alphonsus e Joo Pinheiro Filho. Em dezembro de 1924, tornou-se bacharel em direito e ingressou na vida

    poltica, elegendo-se vereador da Cmara Municipal de Pitangui em 1927. Fez parte da administrao pblica

    mineira, sendo indicado pelo Congresso Nacional chefia do Ministrio da Educao e Sade Pblica em 1934,

    10 dias depois de Getlio Vargas ser eleito presidente do Brasil. cf. BOMENY, Helena Maria Bousquet;

    COSTA, Vanda Maria Ribeiro, SCHWARTZMAN, Simon. Tempos de Capanema. Rio de Janeiro, Editora FGV,

    2000. Pg. 9-35; Verbete: Gustavo Capanema Filho in: Dicionrio Histrico-Geogrfico Brasileiro.

    http://www.fgv.br/cpdoc/busca/Busca/BuscaConsultar.aspx (Acessado em 21 de fevereiro de 2014)

    11

    CAMPOS, Andr Luiz Vieira de. Polticas internacionais de sade na Era Vargas O Servio Especial de Sade Pblica na Era Vargas, 1942-1960. Rio de Janeiro: Ed. Fiocruz, 2006 e FONSECA, Cristina M. Oliveira.

    Sade no Governo Vargas (1930-1945): dualidade institucional de um bem pblico. Rio de Janeiro: Editora

    Fiocruz, 2007.

  • 24

    vieses polticos ou sociais do perodo em que ela foi produzida. Segundo Paul Thompson, os

    historiadores muitas vezes so menos cautelosos ao analisar jornais para se construir o

    passado, pois raramente tem condies de destrinchar as possveis fontes de distoro em

    jornais antigos. Podemos at saber:

    Quem era o proprietrio do jornal e, talvez, identificar sua orientao poltica ou

    social; nunca, porm, se poder conjecturar sobre o colaborador annimo que

    redigiu determinada matria partilhava daqueles vieses. (...) Ela tambm

    selecionada, moldada e filtrada por um determinado vis, a respeito do qual, no

    entanto o historiador no est seguro.12

    J na dcada de 1960, o historiador Jos Honrio Rodrigues assinalava a importncia

    da imprensa como uma das principais fontes de informao histrica, entretanto,

    ponderando que se tratava da mistura do imparcial e do tendencioso, do certo e do falso.13

    Vale salientar que nenhum vestgio do passado deve ser concebido como guardio da

    verdade. A inteno apenas de alertar sobre os cuidados que o historiador deve ter ao

    utilizar o uso instrumental dos peridicos como meros receptculos de informaes a serem

    selecionadas.14

    Uma das fontes importantes de minha pesquisa foi o Supplemento de Itaborahy,

    publicado semanalmente como um anexo de duas pginas, pelo Jornal O So Gonalo. Seu

    redator, que foi vereador de Itabora na dcada de 1930, engrossou as fileiras do grupo

    contrrio instalao do Leprosrio naquele municpio, publicando regularmente matrias

    sobre essa questo. Alguns peridicos que circulavam na capital federal, como Jornal Correio

    da Manh, noticiaram os avanos das construes e as insatisfaes de parte da populao

    local. O articulista acusou inclusive os envolvidos no movimento de serem impatriotas, por

    estarem fazendo oposio a instalao do leprosrio fluminense.

    Outros jornais, que circulavam em Itabora, foram de importante valia para meu

    trabalho, pois noticiavam com regularidade os acontecimentos culturais e polticos ocorridos

    na Colnia, servindo, inclusive, de veculo de comunicao para pedidos de donativos atravs

    da sensibilizao da populao. Entre estes destaco o Jornal Folha de Itabora, que iniciou

    12

    THOMPSON, Paul. A voz do passado. So Paulo: Paz e Terra, 1992. p.140.

    13

    RODRIGUES, Jos Honrio. Teoria da Histria do Brasil: Introduo metodolgica. 3 ed. So Paulo:

    Companhia Editora Nacional, 1968. pp.198-200. Apud. LUCA, Tnia Regina de. Fontes impressas. Histria dos,

    nos e por meio dos peridicos. In: PINSKY, Carla Bassanezi (org.). Fontes Histricas. 2ed. So Paulo:

    Contexto, 2008. pp.115-116.

    14

    LUCA, Tnia Regina de. Fontes impressas. Histria dos, nos e por meio dos peridicos. In: PINSKY, Carla

    Bassanezi (org.). Fontes Histricas. 2ed. So Paulo: Contexto, 2008. pp.116.

  • 25

    suas atividades em 1948, tendo como um de seus redatores Nelson Almada Abreu que foi

    interno na Colnia Tavares de Macedo entre as dcadas de 1940 e 1950. Seus textos

    noticiavam as atividades culturais, festas e visitas organizadas pelas sociedades filantrpicas,

    artigos sobre a lepra e principalmente as movimentaes poltico-partidrias ligadas ao PSD,

    que ocorreram na Colnia entre as dcadas de 1940 e 1960. A partir de sua colaborao neste

    editorial, foi possvel mapear uma srie de acontecimentos ocorridos no interior da Colnia e

    compreender inclusive como se deu a relao entre poder local e os internos da instituio.

    Outro peridico local que tambm contribui para a realizao desta pesquisa foi o

    Jornal O Itaborhaynse. Este jornal, fundado em 1895, teve suas atividades paralisadas em

    1930, retornando com produo ininterrupta a partir de 1952. A partir dele pude levantar

    informaes referentes histria poltica local, que muitas vezes foram silenciadas pelo Jornal

    Folha de Itabora, devido este representar os interesses do PSD no municpio de Itabora.

    Ainda que a atuao poltica do PSD em Itabora, durante as dcadas de 1940 e 1960, no

    tenham sido foco especfico de nosso trabalho, busquei analisar apenas os movimentos

    polticos que envolveram direta e indiretamente a Colnia, a fim de comprovar o argumento

    de que a instituio e o poder local uniram suas foras na luta por melhorias do sistema de

    servios pblicos do municpio e, portanto, evidenciando a falsa questo de que a presena da

    Colnia iria prejudicar o municpio.

    Tambm foram analisados documentos da Cmara Municipal tais como decretos,

    resolues, deliberaes, leis e livros de ata. Porm, apesar da imensa boa-vontade dos

    funcionrios responsveis pelo Centro de Memria e Documentao da Instituio, no foi

    possvel obter acesso aos documentos do perodo de instalao da Colnia (1935-1938), pois

    a documentao mais antiga (principalmente os livros de ata das sesses da Cmara

    Municipal), existente no acervo do final da dcada de 1940.

    Outro relevante conjunto de fontes coletados e analisados, encontram-se no Arquivo

    Pessoal de Gustavo Capanema. L foi possvel localizar relatrios, boletins, regimentos,

    regulamentos, estatutos e outros tipos de fontes oficiais, que foram de grande importncia

    para o entendimento da rede burocrtica que envolvia as aes de sade propostas pela Unio.

    Tambm encontrei material especfico relativo Colnia de Igu: por exemplo, o

    planejamento da instituio, descrio de sua estrutura e funcionamento, conflitos envolvidos

    em sua instalao, relatrio tcnico referente localizao do leprosrio e as vantagens do

    terreno de Itabora, alm de correspondncias trocadas entre mdicos, autoridades do Governo

    Federal, do Estado do Rio e do Ministrio da Educao e Sade durante o perodo de 1936,

    evidenciando as insatisfaes locais j mencionadas. Outro importante documento presente

  • 26

    neste acervo trata-se do relatrio da Comisso de Sade da Cmara Federal de 11 de

    novembro de 1937, no qual o Ministro da Educao e Sade precisou prestar esclarecimentos

    sobre quais as ordens tcnicas que orientaram a localizao do leprosrio, alm da tentativa de

    alguns parlamentares federais em levar para a votao o Projeto 483, que buscava transferir a

    Colnia de Igu para outra localidade, aproveitando o terreno e o que j havia sido construdo

    para realizao de uma estao experimental de agricultura.

    Na Biblioteca Popular de Niteri, tive acesso aos Relatrios dos Presidentes e

    Interventores do Estado do Rio de Janeiro, o que possibilitou a compreenso de

    investimentos, alm dos dados estatsticos referentes aos municpios, permitindo

    levantamento da situao econmica de Itabora e de seus municpios vizinhos. Tambm foi

    possvel, atravs deles, visualizar os investimentos no combate lepra, durante as dcadas de

    1920 e 1930, permitindo mapear as aes governamentais, antes da construo da Colnia de

    Igu.

    Segundo a direo do Hospital Estadual Tavares de Macedo, a instituio no possui

    arquivo de documentos das dcadas iniciais referentes antiga Colnia.

    No tocante profilaxia e ao tratamento da doena, os artigos e revistas mdicas

    permitiram visualizar a percepo dos vrios especialistas e as controvrsias acerca da

    etiologia da lepra, bem como as aes adotadas para combat-la. Destaco o peridico mdico

    Arquivos de Higiene, em especial o artigo do mdico Dcio Parreiras, Anotaes Acerca do

    Isolamento Nosocomial na Lepra. A Colnia de Igu (Estado do Rio)15

    , que trata do projeto

    para construo da Colnia.

    A obra do leprologista Herclides Csar de Souza-Arajo Histria da Lepra no Brasil

    (1956) um verdadeiro acervo documental. Nesta obra, o autor registrou suas viagens aos

    diversos leprosrios do Brasil e no exterior, assim como exps imagens, plantas e projetos de

    variadas instituies ligadas ao combate lepra. Alm disso, reproduziu as discusses

    travadas entre os mdicos nas sesses da Academia Nacional de Medicina sobre questes

    como o contgio da lepra, as formas de isolamento e como deveriam ser os preventrios e

    leprosrios do pas. Utilizei largamente diversas fontes reproduzidas pelo autor neste livro.

    O opsculo O Leprosrio do Igu (Brado de revolta de um povo) publicado pelo

    mdico e professor Roberto Pereira dos Santos em 1937, apresenta os principais

    acontecimentos ocorridos no perodo da construo da Colnia, quando um grupo capitaneado

    15

    PARREIRAS, Dcio. Anotaes acerca do isolamento nosocomial na lepra. A Colnia de Igu (Estado do

    Rio). In: Arquivos de Higiene. Ministrio da Educao e Sade. Departamento Nacional de Sade. Rio de

    Janeiro: Imprensa Nacional. Ano 7. n2, 1937. p. 99-110.

  • 27

    pelo prprio autor, se levantou contra a instalao do leprosrio em Itabora, gerando

    momentos de tenso entre o poder local e regional. Nestas pginas foi possvel ter acesso aos

    principais acontecimentos que envolveram todo esse imbrglio, com reproduo de artigos de

    jornais locais, atas da Cmara legislativa municipal de Itabora e Rio Bonito, alm da

    Assembleia Legislativa Fluminense e Federal.

    Para fechar o conjunto de fontes escritas e iconogrficas incorporadas pesquisa,

    recorri utilizao das memrias daqueles que foram os principais atores deste processo: os

    ex-internos da Colnia do Igu/Tavares de Macedo.16

    Apoiado na metodologia de Histria

    Oral busco compreender as subjetividades presentes nas relaes sociais vividas pelos que

    tiveram a experincia de ser leproso, tanto no meio social que inicialmente estavam

    inseridos ou nos limites do leprosrio, ps-internao.

    Com as memrias dos ex-internos possvel construir novas fontes, alm de

    resgatar as vivncias que esto se perdendo com a morte dos remanescentes do isolamento

    compulsrio. A memria do homem deve ter relevncia, assim como a memria fsica e

    espacial, pois como enfatiza Thompson A memria de um pode ser a memria de muitos,

    possibilitando a evidncia dos fatos coletivos.17

    A estratgia utilizada para seleo dos entrevistados foi primeiramente o critrio de

    "antiguidade", ou seja, priorizei a gerao que foi internada entre as dcadas de 1930 e 1940.

    Em seguida, optei pelo "papel" ocupado por esses atores na estrutura organizacional da

    Colnia. No total, foram sete pessoas entrevistadas, gerando cerca de seis horas de udio

    gravado em formato mp3. Aps a transcrio desses arquivos, realizei uma crtica histrica

    com tais documentos, pois assim como as fontes escritas, as fontes orais no devem ser

    concebidas como guardis da verdade e sua subjetividade deve ser igualmente considerada.

    Recorrer memria dos ex-internos serve, justamente, ao propsito de repensarmos a

    construo da narrativa histrica, favorecendo ao preenchimento de lacunas deixadas pela

    documentao textual e iconogrfica ou como novo recurso para se pensar processos, histrias

    e vivncias, ocorridos nos parmetros da pesquisa.18

    At que ponto confivel a evidncia

    oral? Ela equivale s fontes documentais com que o historiador est familiarizado? A

    reconstruo que se faz do passado baseia-se na autoridade de quem? Em suma, de quem a

    16

    Em 1940, dois anos depois da inaugurao oficial, a Colnia de Igu passa a ser designada Colnia Tavares de

    Macedo.

    17

    THOMPSON, Paul. A voz do passado. So Paulo: Paz e Terra, 1992. p.17.

    18

    JOUTARD, P. Desafios histria oral do sculo XXI. In: FERREIRA, M.; FERNANDES, T. & ALBERTI, V

    (Org.). Histria oral: desafios para o sculo XXI. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2000.p.33.

  • 28

    voz do passado? Essas questes esto sempre presentes no ofcio do historiador, porm de

    uma forma mais veemente com aqueles que trabalham com a metodologia de Histria Oral.

    Um dos aspectos mais polmicos em trabalhar com depoimentos orais diz respeito a sua

    credibilidade. A principal crtica fica por conta da subjetividade da fonte, que sustentada

    pela memria do entrevistado, que pode ser falvel e fantasiosa. Um dos principais objetivos

    do pesquisador seria justamente descobrir: porque o entrevistado selecionou determinados

    fatos? Porque em outros foi omisso? 19

    Sobre a legitimidade da histria oral e suas especificidades, Aspsia Camargo, que

    participou da criao do Programa de Histria Oral do CPDOC, em 1975, afirma:

    A histria oral legtima como fonte porque no induz a mais erros do que outras

    fontes documentais e histricas. O contedo de uma correspondncia no menos

    sujeito a distores factuais do que uma entrevista gravada. A diferena bsica

    que, enquanto no primeiro caso a ideologia se cristaliza em um momento qualquer

    do passado, na histria oral a verso representa a ideologia em movimento e tem a

    particularidade, no necessariamente negativa, de reconstruir e totalizar, reinterpretar o fato.

    20

    Neste sentido, cabe ao historiador um exerccio interpretativo constante ao lidar com

    as memrias de seus entrevistados, por tratar-se de fontes vivas e fragmentadas, que podem

    ou no sofrer alteraes seja por questes ideolgicas ou pela prpria memria coletiva

    daqueles que vivenciaram o mesmo processo. Michel Pollak indica que a memria deve ser

    compreendida como um fenmeno mutvel e flutuante, construdo coletivo e socialmente.

    Nesse sentido, a memria individual que cada um dos depoentes guarda sobre sua vivncia no

    leprosrio, faz parte e ajuda a construir uma memria coletiva sobre este mesmo fenmeno.

    Ao mesmo tempo que constri, tambm construda por ela em um processo dialtico e

    constante. O espao comum vivenciado por um grupo de indivduos favorece a construo de

    uma memria oficial do leprosrio.21

    Pude constatar a mutabilidade e fluidez da memria, quando retornei pela terceira vez

    residncia de um dos entrevistados. Apesar de j termos realizado uma sesso de entrevista

    anteriormente, fui surpreendido com memrias que antes no haviam sido mencionadas e que,

    algumas vezes, contrariavam o relato inicial, evidenciando a existncia de um discurso

    19

    Um dos livros capazes de oferecer instrumentos ou recursos a esses questionamentos a obra: THOMPSON,

    Paul. A voz do passado. So Paulo: Paz e Terra, 1992.

    20

    CAMARGO, Aspsia. Apresentao. Quinze anos de Histria Oral: Documentao e metodologia. In:

    ALBERTI, Verena. Histria Oral: a experincia do Cpdoc. Rio de Janeiro: Centro de Pesquisa e Documentao

    de Histria Contempornea do Brasil, 1989. p.09.

    21

    POLLAK, Michael. Memria, esquecimento, silncio. In: Estudos Histricos. Rio de Janeiro, v. 2, n.3, 1989. pp.03-15 e THOMPSON, Paul. THOMPSON, Paul. A voz do passado. So Paulo: Paz e Terra, 1992. pp.9-19.

  • 29

    pronto. A partir do momento que as conversas aconteceram de uma forma descontrada e

    informal, foram revelados fatos, por exemplo, de carter afetivo que antes no foram

    mencionados. importante ressaltar que, na maioria das vezes, este processo de confiana e

    segurana do depoente em relao ao entrevistador, vai se estabelecendo aos poucos e a

    tendncia irem se estreitando laos com o passar do tempo e a continuidade das gravaes e

    o elo estabelecido. Outro fato curioso foi quando o entrevistado apresentou seu acervo de

    fotografias. Este aspecto foi antes omitido e as fotografias se apresentaram como um

    excelente painel de aspectos do cotidiano do leprosrio em suas primeiras dcadas,

    contrariando inclusive a suposta rigorosidade de um cdigo disciplinar, imposto pela

    administrao da Colnia.

    Como no h obrigao legal em tornar pblico as fontes orais por mim produzidas,

    optei preservar o sigilo dos dados e no identificar os sujeitos de pesquisa, utilizando para

    isso pseudnimos (bblicos) a fim de manter o anonimato e no prejudicar os depoentes.

    Estrutura da dissertao

    O presente trabalho est dividido em trs captulos onde se apresentam anlises

    especficas dentro da cada temtica em funo do recorte temporal escolhido. No entanto, em

    determinados momentos recuei ou avancei diante dos marcos cronolgicos pr-estabelecidos,

    a fim de compreender ou criticar elementos presentes em fontes consultadas.

    No primeiro captulo, intitulado De coadjuvante a papel principal: a transformao da

    lepra em endemia nacional procurei mostrar ao leitor o processo que transformou a lepra em

    flagelo nacional, favorecendo, inclusive, a adoo de medidas profilticas segregacionistas

    que visavam combater o avano da molstia. Priorizo a anlise dos discursos sobre a

    doena, privilegiando o papel desenvolvido pela classe mdica, como representantes da

    cincia. Ainda no captulo 1, focalizo a discusso em torno da consolidao da poltica

    isolacionista, que s foi concretizada a partir da gesto de Gustavo Capanema como Ministro

    da Educao e Sade Pblica em 1934, quando foi elaborado o Plano de Combate Lepra em

    1935, cujos objetivos eram a construo de uma extensa rede asilar com, pelo menos, um

    leprosrio em cada estado, alm de outras aes.

    No segundo captulo, O debate sobre o leprosrio no Estado do Rio de Janeiro,

    busco analisar as iniciativas pblicas em torno do combate lepra no Rio de Janeiro, fazendo

    breves consideraes sobre a trajetria histrica do municpio de Itabora, local escolhido para

    construo do leprosrio fluminense. Privilegio a questo da memria coletiva em torno dos

  • 30

    impactos das febres de Macacu, alm de evidenciar os embates polticos ocorridos atravs

    do enfrentamento dos poderes local e regional, aps a escolha de Itabora como local de

    instalao do referido leprosrio.

    Finalmente, no terceiro captulo, intitulado Colnia do Igu: O chamariz da

    desgraa ou cidade da esperana?, o objetivo ser de analisar o principal mecanismo de

    combate lepra: o leprosrio. Para isso, trato da Colnia de Igu, a partir de seu projeto de

    construo, que foi baseado em um modelo de Colnia agrcola, vislumbrado como uma

    verdadeira cidade em miniatura. Sua organizao, as regras de convvio, atividades

    culturais, entre outros, so aspectos abordados nesse captulo. Alm disso, realizo um breve

    histrico do papel da Sociedade Fluminense de Assistncia aos Lzaros e Defesa Contra a

    Lepra na realizao da Campanha de Solidariedade, em prol da construo do Preventrio

    Vista Alegre, instituio filantrpica destinada a cuidar dos filhos sadios dos doentes.

    Finalmente, demonstro que, ao contrrio do que foi veiculado por lideranas locais em

    Itabora contrrias instalao do leprosrio naquele municpio, a Colnia de Igu acabou por

    tornar-se uma instituio importante na cidade, sendo utilizada pelo poder local, inclusive,

    como instrumento de barganha na conquista de importantes benefcios para a populao,

    como a instalao do servio de luz e melhorias no fornecimento de gua ao municpio.

  • 31

    1 DE COADJUVANTE A PAPEL PRINCIPAL: A TRANSFORMAO DA LEPRA

    EM ENDEMIA NACIONAL

    1.1 A Sade na Primeira Repblica e a formao de uma ideologia da higiene

    Com o advento da proclamao da Repblica no Brasil, foi promulgada a nova

    Constituio Federal em 1891 e que no apresentou nenhuma modificao no que se refere s

    polticas pblicas de sade e saneamento. O federalismo da Repblica deu poderes aos

    estados, permitindo grande autonomia e fortalecimento das oligarquias em relao ao poder

    central. Desta forma, as questes relativas sade eram responsabilidade dos estados e

    municpios. Entretanto, com a exceo de So Paulo que criou uma organizao sanitria

    estadual na maioria dos estados tais aes no ultrapassavam as capitais. A impossibilidade

    de enfrentamento desses problemas na maioria dos estados e sem o apoio do poder central,

    contribuiu para que a Repblica somente intervisse diretamente nos estados em momentos

    epidmicos, abrindo inclusive, espaos para o estabelecimento de parcerias internacionais,

    como foi o caso dos convnios com a Fundao Rockefeller.22

    As primeiras medidas sanitrias basicamente de carter urbano ocorreram durante

    os governos de Prudente de Moraes (1894-98) e de Campos Salles (1898-1902). Em 1897, foi

    criada a Diretoria Geral de Sade Pblica (DGSP)23

    , com a funo de unificar os servios de

    higiene da Unio. ela cabia o tratamento e profilaxia das doenas transmissveis em todo o

    territrio nacional, alm de ser responsvel pela distribuio de soros e vacinas e pela

    organizao e direo do servio sanitrio dos portos. Apesar destas atribuies, sua atuao

    foi extremamente limitada, restringindo-se assistncia pblica em tempos de epidemias, ou

    seja, em casos de calamidade pblica.24

    22

    CASTRO SANTOS, Luiz Antonio. Poder, Ideologias e Sade no Brasil da Primeira Repblica: ensaio de

    sociologia histrica. In: HOCHMAN, Gilberto; ARMUS, Diego. Cuidar, controlar, curar: ensaios histricos

    sobre sade e doena na Amrica Latina e Caribe. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2004. pp. 249-293; HOCHMAN,

    Gilberto. A era do saneamento - As bases da poltica de sade pblica no Brasil. So Paulo: Hucitec/ANPOCS,

    1998. pp. 96-97.

    23

    Criada em 1897, a Diretoria Geral de Sade Pblica tinha como atribuies: dirigir os servios sanitrios e

    fluviais; fiscalizao do emprego da medicina e farmcia; pesquisas sobre doenas infecto-contagiosas;

    realizao de censo e formulao de estatsticas sanitrias e auxiliar aos Estados.

    24

    HOCHMAN, Gilberto (1998). pp.98-101.

  • 32

    Durante boa parte do sculo XIX, as epidemias assolaram a capital federal e outras

    regies do pas. Refiro-me principalmente s epidemias25

    de febre amarela em 1850 e de

    clera em 1855, que elevaram consideravelmente as taxas de mortalidade e colocaram na

    ordem do dia a questo da salubridade pblica, em geral, e das condies higinicas das

    habitaes coletivas, em particular. Segundo Sidney Chalhoub, foi a partir desses

    acontecimentos que teve incio o surgimento de uma ideologia da higiene.26

    Diversas medidas foram tomadas na capital da Repblica, reforando a poltica

    higienista que se caracterizou por uma forte interveno no espao pblico e privado. A

    derrubada do cortio Cabea de Porco, no centro da cidade do Rio de Janeiro em fevereiro de

    1893, um exemplo destas modificaes, que abriu caminho para uma mudana

    paradigmtica ocorrida na administrao de Pereira Passos (1902-1906), conhecida como

    bota-abaixo.27

    Durante o perodo de 1904 a 1919, duas grandes reformas sanitrias ocorreram sob a

    direo de Oswaldo Cruz e Carlos Chagas, com grande atuao atravs do Instituto Oswaldo

    Cruz.

    O chamado movimento sanitarista registra dois momentos de grande importncia

    para se compreender o processo de elaborao de polticas pblicas e o desenvolvimento de

    servios de sade para o combate s endemias. Em um primeiro momento, a Reforma

    Sanitria iniciada em 1903, pelo diretor-geral de Sade Pblica Oswaldo Cruz e promulgada

    pelo decreto n 5.156, de 8 de maro de 1904, transformada em Regulamento Sanitrio da

    Unio pelo ministro da Justia e Negcios Interiores J. J. Seabra. No segundo semestre de

    1904, Oswaldo Cruz apresentou ao Congresso Nacional um projeto de vacinao e

    revacinao contra a varola, considerada obrigatria desde fins do sculo XIX.28

    25

    Julgo destacar que alm destas epidemias que se notabilizaram por seus impactos sociais, h tambm o registro

    de epidemias que assolaram regies fora dos centros urbanos. Apesar de ocorrerem em menor escala foram

    responsveis por ocasionarem um considervel nmero de bitos, influenciando tambm a percepo de que era

    preciso modificar as aes sanitrias. A ttulo de exemplificao, cito a prspera regio da Vila de Santo Antnio

    de S, no Rio de Janeiro, que sofreu um grande surto epidmico de malria no final da dcada de 1820.

    Denominada de febres de Macacu foi descrita pelos memorialistas e historiadores locais como uma das causas de decadncia econmica da regio. No prximo captulo, retomaremos essa questo.

    26

    CHALHOUB, Sidney. Cidade Febril: cortios e epidemias na corte imperial. 3Ed. So Paulo: Companhia das

    Letras, 2004. pp.25-30.

    27

    BENCHIMOL, J. Pereira Passos: Um Haussmann Tropical. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura,

    Turismo e Esportes/Departamento Geral de Documentao e Informao Cultural, 1992. (Biblioteca Carioca).

    pp. 205-206

    28

    Coleo de leis. Decreto n 5.156, de 8 de maro de 1904 http://www.camara.gov.br/sileg/integras/468191.pdf.

    Acessado em 10/02 /2014.

  • 33

    Foram criados servios de profilaxia para as molstias infectuosas que compreendia

    a obrigatoriedade de notificao; isolamento, desinfeco e vigilncia mdica. A lepra, as

    doenas venreas e a tuberculose ganharam servios especificamente voltados para o seu

    combate. No caso das duas primeiras, o regulamento sanitrio determinou a criao de uma

    Inspetoria de Prophilaxia29

    .

    Ocorrida num momento decisivo de transformao da sociedade brasileira, a Revolta

    da Vacina (1904) demonstrou, segundo Sevcenko, o alinhamento do Brasil s mudanas

    ocorridas no palco internacional, ditadas pela revoluo cientfico-tecnolgica.30

    A

    insurreio, ocorrida na cidade do Rio de Janeiro, demonstrou a importncia de uma ao

    integrada dos servios de sade na capital federal.31

    As sucessivas epidemias de febre amarela

    que ocorreram na cidade e em diversos outros locais do pas, ao longo do sculo XIX,

    despertaram nas classes mais abastadas a percepo da interdependncia sanitria entre os

    diferentes extratos sociais.32

    Os impactos de doenas como tuberculose e peste bubnica

    tambm motivaram aes do poder pblico, alm de outras medidas de combate adotadas ao

    longo desse perodo.33

    No que se refere s aes voltadas para as doenas que se pegam,

    destacamos o pacto firmado entre os estados para o combate lepra, no qual cada estado teria

    que construir seu prprio leprosrio para evitar que os doentes de lepra no migrassem em

    busca de tratamento.34

    Ocorridas na primeira Repblica essas aes demonstram uma mudana na

    mentalidade dos gestores pblicos e evidenciam que a sade j era identificada como um

    problema nacional, mas no como um direito garantido constitucionalmente como hoje temos

    29

    Ibidem.

    30

    SEVCENKO, Nicolau. A Revolta da Vacina: mentes insanas em corpos rebeldes. So Paulo: Brasiliense.

    1984, pp. 3-5.

    31

    A Revolta da Vacina foi um fato histrico que apresenta vrias leituras a partir de diferentes anlises

    historiogrficas. Dentre dessas abordagens, destacamos: BENCHIMOL, J. L. (1990, 2001); CARVALHO,

    J.M.(1996); CHALOUB, S.(1996); SEVCENKO, N.(1984).

    32

    Hochman utiliza esse conceito e demonstra que no haveria soluo individual e local para os problemas de

    sade e saneamento. A interdependncia demandou a constituio de uma autoridade capaz de implementar

    polticas em todo pas, desconhecendo as fronteiras estaduais, sobre toda a populao, restringindo, quando

    necessrio, a liberdade individual e o direito de propriedade. HOCHMAN, Gilberto. (1998).pp.81-82.

    33

    Um exemplo dessas aes (Decreto n 422, de 15 de maio de 1903) para evitar a propagao da tuberculose,

    tornou-se obrigatrio o uso de escarradeiras em todos os recintos pblicos; proibiu-se tambm escarrar nos

    veculos de transporte de passageiros, exigindo-se das companhias a lavagem do assoalho com soluo anti-

    sptica. In: BENCHIMOL, J. Idem. p. 285.

    34

    HOCHMAN, Gilberto. (1998).pp.159-159.

  • 34

    a partir da Constituio de 1988. A sade j despontava como importante elemento de

    construo nacional atravs da redescoberta do pas via endemias rurais, despertando,

    assim, nas autoridades a necessidade de uma poltica sanitria efetiva.35

    A segunda fase do movimento sanitarista foi determinante para a ruptura do

    pensamento social brasileiro que at ento se fundamentava na categoria raa para pensar o

    atraso do pas. A partir deste segundo momento, a categoria doena passa a ser a chave

    interpretativa do pas, testemunhando que suas mazelas no eram em funo da inferioridade

    racial do povo brasileiro, mas sim do abandono e miserabilidade em que se encontravam as

    populaes sertanejas sobretudo, vitimadas pelas doenas e ausncia do poder pblico.36

    O movimento sanitarista, com seu diagnstico do Brasil como imenso hospital37, vai

    apontar uma alternativa para a modernizao do pas atravs da incorporao dos sertes e

    dos sertanejos ao conjunto da nao. A (re)integrao dos sertes civilizao do litoral

    representava o grande desafio para o fortalecimento da nacionalidade, como destaca Castro-

    Santos: populao doente = raa fraca = nao sem futuro. Entretanto, ainda que com pouco

    alcance e reduzida eficcia, a legislao e as polticas de sade do perodo foram capazes de

    lanar as bases para as campanhas subsequentes e minar a resistncia das oligarquias rurais.38

    O incremento da pesquisa bsica laboratorial no Brasil, principalmente a partir da

    atuao da Fundao Rockefeller em 1917, que iniciou suas atividades no Brasil com a

    fundao de alguns postos de sade, ganhou impulso no Distrito Federal, Rio de Janeiro e no

    interior de So Paulo. Consolidou-se um novo paradigma em termos de institucionalizao do

    saber mdico baseado na escola norte-americana, contribuindo inclusive para a evoluo do

    movimento sanitarista. Nesse contexto, o estado que mais se destacou foi So Paulo, que se

    35

    As viagens cientficas promovidas pelo Instituto Oswaldo Cruz entre 1912-1916 ao interior do Brasil,

    revelaram um pas doente e miservel, desconstruindo uma viso determinista baseada na questo racial e

    climtica como grande obstculo civilizatrio do pas como vigia o pensamento social no sculo XIX. Iniciou-se,

    a partir da, um amplo movimento poltico e intelectual que proclamava a doena como principal barreira

    civilizao. Para maiores informaes: CASTRO-SANTOS, Luiz Antnio de. O pensamento sanitarista na

    primeira repblica: uma ideologia de construo da nacionalidade. In: DADOS. Revista de Cincias Sociais, Rio

    de Janeiro, v. 28, n.2, pp.193-210, 1985. HOCHMAN, Gilberto. (1998). LIMA, Nisia Trindade. Um serto

    chamado Brasil. Intelectuais e representao geogrfica da identidade nacional. Rio de Janeiro: IUPERJ/Editora

    Revan,1999.

    36

    HOCHMAN, Gilberto. 1998; LIMA, Nisia Trindade. 1999; CASTRO-SANTOS.1985.

    37

    Essa expresso foi proferida em um discurso realizado pelo mdico e professor Miguel Pereira na Academia

    Nacional de Medicina em 1916. 38

    SANTOS, Luiz Antonio de Castro. (1985). pp.10-11.

  • 35

    organizou e montou com o Instituto Pasteur e Butantan, uma rede de pesquisa com apoio da

    Rockefeller.39

    As elites polticas dos estados foram se conscientizando da interdependncia sanitria,

    pois no adiantava mais a soluo poltica de culpar o vizinho. Era necessria a adoo de

    uma poltica centralizadora, com capacidade de coordenao e coero a fim de impedir que

    as outras partes deixassem de cooperar, ou atuando diretamente nestas reas implementando

    com isso as aes necessrias. O problema seria quem arcaria com os recursos e somente por

    meio de negociaes entre estados e Governo Federal isso seria possvel, pois, do contrrio

    cada um teria que cuidar do problema de maneira individualizada.40

    No caso do estado de So Paulo essa no era a principal questo j que era um estado

    que possua recursos para financiar suas prprias polticas de sade pblica, mas por

    diferentes interesses41

    participou e apoiou a interveno federal nos outros estados desde que

    sua autonomia poltica fosse preservada42

    . O maior obstculo a ser enfrentado pela Unio na

    adeso dos estados, dizia respeito autonomia regional e local, fundamentada em um sistema

    oligrquico que dominou por boa parte da Primeira Repblica.43

    Romper a barreira da

    autonomia no foi fcil, pois demandou articulao poltica entre Unio, estados e municpios.

    O empenho do movimento sanitarista pela reforma da sade, principalmente na

    segunda fase durante a dcada de 1910, foi fundamental para a definio da autoridade do

    estado nacional no campo da sade. Alguns desses atores que protagonizaram tais aes,

    como Belisrio Pena e Artur Neiva, identificaram as grandes endemias como empecilho ao

    39

    CUETO, Marcos. Los ciclos de la erradicacin: la Fundacin Rockefeller y la salud pblica

    latinoamericana,1918-1940. In: CUETO Marcos (org). Salud, cultura y sociedad em Amrica Latina. Instituto de

    Estudos Peruano, pp. 179-201; SANTOS, Luiz Antonio de Castro. (1985). pp.14-15.

    40

    HOCHMAN, Gilberto. 1998. pp. 157-162.

    41

    Hochman chama ateno para a questo das epidemias e doenas contagiosas, ocorridas ao longo do sculo

    XIX, que acabaram por estimular polticas emergenciais e surtos de solidariedade. Foi nesse contexto que ocorreu o encontro entre conscincia e oportunidades. A preocupao social das elites e seus interesses particulares levou ao surgimento de polticas de sade pblica, onde os males pblicos ocasionados pela

    precariedade sanitria no poderiam ser solucionados individualmente. HOCHMAN, Gilberto. Idem. pp. 149-

    153.

    42

    A Constituio de 1891 definia que a responsabilidade pela higiene e saneamento dos estados era atribuio

    das esferas estadual e municipal, cabendo Unio os cuidados dos portos martimos e fluviais. Idem, p.167.

    43

    Trata-se da poltica do caf com leite que favorecia os interesses das chamadas oligarquias de primeira grandeza que eram So Paulo e Minas Gerais. Sua manuteno era garantida por um sistema poltico fraudulento e frgil, regido pela poltica dos governadores que favorecia a perpetuao no poder das lideranas regionais e consequentemente do governo federal. Um liberalismo excludente garantido por um federalismo que

    favorecia uma pequena parcela da populao. LESSA, Renato. A inveno Republicana: Campos Sales, as bases

    e a decadncia da Primeira Repblica Brasileira. So Paulo: Vrtice, Editora Revista dos Tribunais: Rio de

    Janeiro: Instituto de Pesquisas do Rio de Janeiro, 1988. Pp. 99-136.

  • 36

    desenvolvimento do pas. No quadro das doenas que faziam parte das grandes endemias

    destacavam-se a leishmaniose, a turberculose, a sfilis, as disenterias, a ancilostomase, a

    malria e a febre amarela. Elas atacavam com maior virulncia as populaes pobres e

    desassistidas das reas rurais. A lepra no fazia parte dessa enumerao e ser alada a

    problema de sade pblica nacional, a partir de um movimento que ser analisado a seguir.

    1.2 Lepra: A filha mais velha da morte

    A inteno aqui apresentar uma anlise de como a lepra alcanou o status de

    endemia nacional, propiciando a criao de um amplo aparelhamento profiltico especfico

    para seu controle.

    A filha mais velha da morte foi uma expresso utilizada por Oswaldo Cruz em seu

    relatrio, quando ocupava a direo da DGSP. Segundo Dilma Cabral, a percepo de que a

    lepra representava um perigo crescente demonstra o esforo de Oswaldo Cruz, assim como de

    outros atores, para dar visibilidade a uma doena que no rol de tantas outras, no se

    configurava ainda como prioridade para a agncia sanitria do Governo neste perodo.44

    As ltimas dcadas do sculo XIX, marcaram um momento singular na histria da

    lepra quando foi alcanada uma nova compreenso cientfica a seu respeito. Esse novo vis,

    deve-se principalmente s pesquisas e descobertas realizadas por cientistas como Rudolf

    Virchow, pioneiro na patologia celular; Robert Koch, descobridor do bacilo causador da

    tuberculose em 1884; e Gerhard Henrik Armauer Hansen, o primeiro a identificar o agente

    etiolgico da lepra em 1873, batizando-o de Mycobacterium leprae. Atravs destas novas

    descobertas, o caminho estava aberto para afirmao da tese do contgio em detrimento da

    crena na hereditariedade da lepra. No entanto, isso demandou tempo, alm de muitas

    divergncias cientficas, at porque a teoria bacilar no foi convertida de imediato em nica

    causa da doena.45