A Nova Rodada ou, : as quatro qualificações da palavra arte

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  • 7/28/2019 A Nova Rodada ou, : as quatro qualificaes da palavra arte

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    A nova rodada de cartas, ou:As quatro qualificaes da palavra "arte"

    Thierry de Duve

    Quando se comeou a falar, nos anos sessenta, de interdisciplinaridade na arte,com expresses como "mixed media", "intermdia art" ou "multimedia art", tratava-se,sobretudo de criar espao a prticas novas e muito diversas que no entravam na scategorias tradicionais da pintura e da escultura. Os novos nomes possuam um carterjornalstico que no acarretava maiores consequncias. O mesmo vale para os termos"performance" e "instalao", novos na poca. No entanto, um debate terico mais sriose desenhava simultaneamente em torno da arte minimal e conceituai, debate por trs doqual se experimentava a influncia crescente de Duchamp sobre essa gerao de artistas,e o impacto do readymade sobre as teorias da arte. Ao final da dcada, o debate tinhaalcanado os meios universitrios. Os filsofos que raramente colocam os ps em umagaleria puseram-se a interrogar-se sobre o conceito de arte, em geral, apoiando-se emcasos limites, ora reais, como os readymades de Duchamp ou outros "objes rottvs'\ora fictcios, como os cinco monocromos vermelhos idnticos, mas com ttulosdiferentes, imaginados com bastante humor por Arthur Danto, no incio de seu livro,The Transfigurationofthe Commonplace.

    Os vinte anos que se seguiram confirmaram a legitimao das novas prticaslanadas nos anos sessenta, tendo como resultado que o debate terico girando em tornodo conceito de arte, em geral, parecia ter perdido sua atualidade. Depois de alguns anos,apareceram signos de um aumento de interesse por essas questes, que indicam odesejo, em alguns, de recolocar um pouco de ordem, de classificao, e at dehierarquia, na divertida desordem da arte "ps-media". Noes que se acreditava

    relegadas ao esquecimento, como "gnero" e "mtier" reaparecem sob diversas penas.Em um pequeno livro, bastante perverso, mas fortemente inteligente, sobre Warhol,Hector Obalk vai at reabilitar a distino "arte maior / arte menor" 2. E uma terica dealto nvel, como Rosalind Krauss, que no se pode acusar de conservadora, interroga-semuito seriamente sobre a necessidade de reintroduzir a categoria media na panpliacrtica para barrar a falta de rigor e o laxismo que denota, segundo ela, o pluralismo

    1 Arthur Danto, La transfiguration du banal. Une philosophie de l'art Seuil, Paris, 1989. Na traduobrasileira, A transfigurao do lugar comum. Uma filosofia da arte. So Paulo: Cosac & Naify, 2006.2 Hector Obalk, Andy Warhol n 'estpas un grand artiste, Flammarion, Paris, 2001.

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    circundante 3. Aconteceu que meus prprios trabalhos relativos ao readymade levaram-me, na virada dos anos oitenta, a trabalhar sobre a relao entre a pintura, em particular,e a arte, em geral, e, em seguida, a desenvolver uma teoria esttica da arte como nome

    prprio, que resultou de um encontro, antes inesperado, entre Kant e Duchamp4

    . O queme motivou na poca foi uma mistura de entusiasmo e inquietude diante da situao quedecorria claramente do sucesso critico do readymade, a saber, da abertura radical da arte(no singular) consecutiva dissoluo das fronteiras entre as artes (no plural). Gostariahoje de fazer algumas proposies terminolgicas capazes de, sendo aceitas, clarificar odebate, retomando o que escrevi em 1989, na contracapa de Au nom del'arte: 'TSfuncadeveramos parar de nos maravilhar ou de nos inquietar, de que nossa poca acheperfeitamente legtimo que qualquer um seja artista sem ser pintor, escritor, msico,

    escultor, ou cineasta... Ter a modernidade inventado a arte em geral?".

    Proponho denominar arte em geral, ou arte no sentido genrico do termo, apossibilidade a priori, para uma coisa qualquer, de ser arte. um conceito vazio, poisno contm mais do que entidades possveis e no reais, mas um conceito histrico,datado, que descreve a situao na qual nos encontramos conscientemente desde alegitimao dos readymades de Duchamp pela histria da arte. No , pois, nem ummdium, nem um gnero, nem um estilo. A arte em geral no vem juntar-se s media

    tradicionais como a pintura e a escultura; no se distingue dos gneros tradicionaiscomo a paisagem ou o nu; no representa uma categoria estilstica que se poderiareconhecer por um ou outro trao comum, como os "ismos", dos quais o sculo XX foifecundo. Ao contrrio, a pintura e a escultura, a paisagem e o nu, e todos os "ismos" dosculo XX fazem parte da arte em geral, pois a arte em geral nada exclui. Com efeito, oteor da expresso o seguinte: no presente, tecnicamente possvel e institucionalmentelegtimo fazer arte com tudo, no importa o qu. Claro, nem tudo arte. A arte em geralno faz mais que registrar a potencialidade para o no importa o qu de ser arte,

    potencialidade que caracteriza o mundo da arte de hoje. A arte em geral o nome,pode-se dizer, da nova rodada de cartas, que foi provavelmente colocada "depois deDuchamp". Ele substitui a antiga denominao genrica "Belas Artes", que reinava nomundo da arte "antes" de Duchamp.

    A diferena entre a nova rodada de cartas e a antiga salta aos olhos: a arte emgeral absolutamente sem limites, enquanto as belas artes formam um sistema limitado

    3 Ver especialmente, de Rosalirtd Rrauss: '"... And Then Turn Away?' An Essay on James Coleman"October, n 81, t 1997; "Reinventing the Mdium", Criticai Inquiry, n 25, hiver 1999; "A Voyage ontheNorth Sea", Art in the Age ofthe Post-MediumCondition, Thames & Hudson, Londres, 1999.4 Thierry de Duve, Au nom de 1'art. Pour une archologie de Ia modernit, Minuit, Paris, 1989; Rsonancesdu readymade. MareeiDuchamp entre avant-garde et tradition, Jacqueline Chambon, Nmes, 1989; Kantafter Duchamp, MIT Press, Cambridge, Mass., 1996.

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    por fronteiras internas e externas, Internas, uma vez que o sistema compreende ejustape, sem mistur-las, apintura, a escultura, a arquitetura, o desenho, a gravura, etc.,e as separa das outras artes como a literatura, a msica e o teatro. E externas, porque elaexclui uma quantidade de coisas que, no entrando nem na pintura, nem na literatura,nem na msica, etc., ficam na impossibilidade de pertencer categoria "arte". De resto,a categoria "arte", no singular, no existe no sistema das belas artes. Um homem dosculo XIX pode por certo exclamar diante de um quadro que ele ache bem sucedido,"Ah! Isso arte", ele exprime a sua apreciao esttica, mas isso no introduz o quadroem urna categoria qual ele no pertencia antes de nosso homem julg-lo bemsucedido. claro que uma roda de bicicleta, uma p de neve ou um urinol estoexcludos a priori do sistema das belas artes, porque impossvel classific-los dentro

    de uma das artes em particular. Eles no respeitam as convenes de nenhuma dentreelas e no so, por consequncia, comparveis s produes de nenhuma delas. Poroutro lado, o pior quadro do sculo XIX est includo a priori no sistema, porquerespeita um certo nmero de convenes que permitem constatar, sem outra forma deprocesso, que ele comparvel a outros quadros e pertence pois arte particular dapintura. Os limites internos e os limites externos das belas artes so co-extensivos: elesopem uma pluralidade de prticas artsticas bem delimitadas ao vasto domnio do queno arte. por isso que, quando se tratou de legitimar as obras que haviam sido

    anteriormente julgadas como no podendo entrar em nenhuma das belas artes, a"categoria" no-arte foi inventada. A arte, no singular, logo apareceu sob umadenominao negativa. No-arte foi o nome paradoxal dado a todas as obras que noera possvel comparar s obras que pertenciam s belas artes, mas que tambm no eradesejvel rejeitar "para fora da arte", da arte tout court.

    Acabei de introduzir um novo termo: arte tout court, arte no singular. No , demodo algum, a mesma coisa que a arte em geral. Acabamos de ver - no exemplo de

    nosso homem do sculo XIX que exclama "Ah! Isso arte", diante de um quadro queele ache bem sucedido - que a arte tout court o enunciado de seu juzo esttico e queele exprime o teor afetivo, o que no de modo algum o caso da arte em geral, quedescreve uma situao: aquela, recordo-a, na qual ns nos encontramos, pelo menosdesde que os readymades de Duchamp mostraram que se podia fazer arte com noimporta o qu. Quando a frase de nosso homem, ou, mais sbrio, a frase "Ah! Isso arte", aplica-se antes ao exemplo histrico dos readymades do que a um quadro dosculo XIX, acrescenta-se um elemento novo: no apenas essa frase exprime o juzo

    esttico do qual ela a resultante, mas ela produz a reclassificao do objeto designado.Com efeito, por intermdio dessa frase que os readymades tornaram-se arte. Nosendo comparveis aos produtos de qualquer uma das belas artes, eles no podiam ser

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    apreciados como boa ou m arte sem serem chamados de arte arte tout court antes, ou ao mesmo tempo. Diante de um caso limite como esse dos readymades, noh mais meio de fazer a distino entre a arte no sentido classificatrio e a arte no

    sentido avaliativo do termo para empregar a terminologia de George Dickie, Amesma coisa vale para toda arte autorizada pelos readymades e que tenha rompido seuslaos com a pintura, a escultura ou qualquer outra prtica que tenha seu lugar entre asbelas artes. Em todos esses casos, a frase "Isso arte" um batismo, donde a teoria queeu fiz minha: a arte (arte tout court} um nome prprio, e no um conceito. Osnomesprprios no tm sentido, somente referentes, e mesmo que algumas vezes tenhamsentido, no para significar que so empregados, mas para designar. Quando umobjeto qualquer se v tirado da grande no man 's land que a arte em geral e d lugar a

    um juzo esttico o gnero de juzo que atribui um valor positivo ao fato de que esseobjeto nega a arte existente, ou, para dizer um pouco melhor, o gnero de juzo quereconhece uma qualidade artstica no fato de que o objeto no comparvel arteexistente , esse objeto v-se designado por um nome que, como os nomes prprios,se refere a qualquer coisa, mesmo no tendo sentido determinvel fora do sentidoesttico subjetivo atribudo experincia. A arte tout court no descreve nem qualificaa experincia que exprime. O que vocs querem dizer e exprimem ao exclamar 'Isso arte" permanece inacessvel aos outros. Alm disso, aquilo a que vocs se referem poressa frase fica igualmente inacessvel, no somente aos outros, mas tambm, em grandeparte, a vocs mesmos. Como todos os nomes, prprios e comuns, J'arte tout court agecomo um index que permite apontar em direo a qualquer coisa em sua ausncia, isto, sem estar obrigado a mostr-la. E vocs no mostram a arte qual se referem aodizer "Isso arte". Como no mostram o sentimento de ligao com a arte que os leva ase exprimirem assim. A frase "Isso arte" contm ento dois index: a palavra "isso",designador mvel que aponta para a obra da qual se fala, que se move de uma obra aoutra, e que a mostra; a palavra "arte", designador "rgido" (segundo a teoria do nomeprprio de Saul Kripke 5), que nada mostra e que aponta em direo a... que? arte emseu conjunto.

    Ainda uma expresso nova. Denomino arte em seu conjunto (art dam sonensemble)as obras de arte que o termo "arte" designa na frase "Isso arte", empregadapara exprimir um juzo esttico. Isso pode parecer um pouco estranho, porque notemos conscincia de estar vendo claramente alguma coisa ao pronunciar a palavra"arte". Temos antes conscincia de aplicar critrios de avaliao a isso que julgamos

    artstico. Na realidade, o juzo esttico comparativo (mesmo quando compara

    5 Saul Kripke, Naming an d Necessity,Harvard University Press, Cambridge, Mass., 1980; trad. francesa:La logiqueds nomspropres, Minuit, Paris, 1982.

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    incomparveis 6), e forjamos o que acreditamos serem nossos critrios ao longo de todasas experincias estticas que acumulamos ao frequentar obras de arte durante nossaexistncia. Nossa cultura artstica mais ou menos rica, mais ou menos sofisticada,segundo a quantidade, a diversidade e a intensidade dessas experincias. Mais do quecritrios, o que essa cultura acumulada produz em ns so expectativas, o que a estticaclssica chamava um gosto. Julgamos por relao a essas expectativas, o que significaque assim que uma coisa apresentada como candidata arte (tout court\ comparamosessa coisa espontnea, e at inconscientemente, s obras que j conhecemos. Maisexatamente, comparamos a experincia subjetiva que nos causa o "isso" que temos sobos olhos lembrana de um grande nmero de experincias subjetivas semelhantes,experimentadas pelo passado diante de obras de arte que aprendemos a apreciar. Se

    exprimimos ento nosso juzo esttico por "Isso arte", fica claro que o termo "isso"designa a coisa apresentada e que o termo "arte" designa o conjunto de coisas que jportam o nome de arte na memria sedimentada de nossas experincias estticas e queagem como padres de comparao. O contedo da arte em seu conjunto varia ento deindivduo para indivduo, e um contedo definido unicamente em extenso e no emcompreenso, isto , ele feito de coisas e no de significaes.

    Portanto, a arte em seu conjunto no merece jamais verdadeiramente seu nome.Para que ela o merea, seria necessrio imaginar um amador ideal da arte que tivesseforjado seu gosto em contato com o inteiro patrimnio artstico da humanidade, edispusesse assim da base de comparao absoluta (no relativa) para seu juzo esttico.Julgar que uma coisa, tirada do grande reservatrio a priori que a arte em geral., ,com efeito, arte, o mesmo que pretender t-la comparado arte em seu conjunto ereivindicar, com base nisso, o direito de inseri-la no patrimnio artstico comum. Nesseestgio, espero ter levantado em seus espritos um certo nmero de objees que tratamda autoridade de toda pessoa que se arrogaria assim, com base na sua cultura pessoal enas suas experincias subjetivas, o direito de permitir ou recusar a entrada de uma dadacoisa no patrimnio artstico comum. A questo da autoridade e a da legitimidade destaautoridadeesto no corao da nova rodada de cartas, como o sabe bem quem quer queesteja familiarizado com o mundo da arte contempornea e com a crtica institucional,colocadas ao mundo da arte por certas prticas da arte conceituai. Como essas questesde autoridade e de legitimidade so demasiado complexas para serem abordadas agranel e devero ser tratadas cada uma a seu tempo, enquanto isso, proponho umapequena fico que as supe resolvidas da seguinte maneira. Imaginemos que o amador

    Ver Thierry de Duve, "Comparer ls incomparables, ou: comment collectionne-t-on ?", in Actes ducolloque, La place du gosto dons Ia production philosophique d s conceitos et leur destincritica,Archivesde Ia Crtica d'art, Rennes, 1992.

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    ideal da arte exista. Essa pessoa teria forjado seu gosto no contato com o patrimnioartstico inteiro da humanidade, do qual ela seria a garantia legtima porque s para elahaveria a arte em seu conjunto merecedora do nome. Imaginemos tambm que esse

    patrimnio legitimado possa efetivamente ser reunido, empiricamente, maneira domuseu imaginrio de Malraux, por exemplo. A arte em seu conjunto seria ento como acoleo de todas as colees de obras de arte, mas constituda unicamente do que nossoamador ideal da arte julgou digno desse nome. Ela seria domiciliada no Museu,imaginrio ou no, mas com um grande M. Suponhamos enfim que a humanidade,democraticamente consultada, tenha nomeado nosso amador ideal da arte como o chefeda conservao do Museu com um grande M. Essa pessoa encarnaria sozinha o tribunalesttico supremo do gnero humano e seria a nica a estar legitimamente habilitada a

    pronunciar o juzo esttico liminar, que conduz uma dada coisa ao registro dopatrimnio artstico comum. Todos os artistas do mundo viriam submeter-lhe suasprodues, e ele decidiria: "Isso arte", "Isso no o ". S ele batizaria. Bem, na casadessa pessoa, a arte tout court exprimiria a comparabilidade em teor afetivo, quer dizerem qualidade esttica subjetiva, da coisa candidata arte com a arte em seu conjunto,toda a media misturada, quer dizer com a coleo universal sobre a qual essa pessoa tema responsabilidade. A essa comparabilidade universal das obras de arte entre si, emoutros termos, a essa congruncia afetiva da arte tout court (encarada em termos decompreenso) com a arte em seu conjunto (encarada em termos de extenso), eu dou onome de arte em si.

    Sejam indulgentes e guardem suas objees para um pouco mais tarde, porfavor. O interesse dessa pequena fico mais ou menos insincera personificar ainstituio artstica como se ela fosse nica e unnime certamente o que o fantasmado Museu com um grande M postula. Como conceber essa personificao de maneiracrtica uma questo crucial, mas temo que ela ultrapasse a visada da presente

    exposio. Da minha pequena fico, maneira de curto-circuito. Cada vez que oMuseu introduz uma nova pea em suas colees, ele decreta : "Isso arte", e,reciprocamente, cada vez que estima que uma coisa merea ser chamada de arte artetout court , ele declara que o candidato transps o limiar da admissibilidade nacoleo artstica mundial, em outras palavras, que isso tem um nvel esttico suficientepara ser comparvel em qualidade (o que no quer dizer igual em qualidade) a tudo oque a humanidade nomeou como arte at agora. Que isso seja uma ^ande arte oumesmo uma boa arte no est necessariamente em questo. Em todo caso, a questo que

    divide o Museu no momento em que ele coleciona essa do nvel mnimo decomparabilidade. Nomomento em que o Museu expe sua coleo (a outra de suas duasfunes maiores), ele apresenta isso a seus visitantes enquanto arte, mas ele no mais

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    decreta, ele cita: "Isso arte", A frase est entre aspas e significa: "Foi dito que isso arte". O Museu mostra o objeto em nome do teste comparativo, passado com sucesso,por isso aqui, isto , em nome da congruncia afetiva da arte tout courtcom o pretensosentimento compartilhado por todas as obras includas na arte em seu conjunto. OMuseu age nesse momento, legitimamente, em nome da arte em si.

    Levantam-se aqui, estou certo disso, outras objees. A arte em si\ O que devese entender por isso? A verdadeira essncia metafsica da arte, ou uma afirmao depura ideologia? Nem uma nem outra. A arte em si uma ideia, nada mais. a ideia daarte ou a arte como ideia. Com efeito, a congruncia da arte tout court com osentimento da arte em seu conjunto no deveria ser mais do que uma ideia.Acrescentarei para os filsofos: uma ideia no sentido kantiano e no no sentido

    platnico ou claramente mais importante para o destino da esttica hoje em dia nosentido hegeliano. Essa ideia supe, postula, exige, que em cada uma das coisas quepassaram no teste com sucesso se encontre uma qualidade que ela compartilhe comtodas as outras, uma qualidade que no , todavia, nem mostravel nem demonstrvel.Ela no sequer, propriamente falando, unia qualidade, no sentido de propriedadeobjetiva ou objetal. Ela o unicamente enquanto o Museu pretende ligar a todas asobras que compem a arte em seu conjunto o teor afetivo do juzo qualitativo expressocaso a caso pela arte tout court, como se, de volta, os afetos ligados a cada um doscasos que ele apresenta enquanto arte (tout court) fossem a expresso de uma qualidadecompartilhada universalmente por todas as obras de arte no mundo. Muitos pensadoresda arte, e no os menores perderam-se ao confundir a arte em si com a essncia da arte.Essa confuso conduz ao idealismo, que atraiu nos pensadores materialistas toda sortede rplicas visando denunciar a arte em si como pura ideologia essencialista. Eles fazema mesma confuso. Mas a arte em si no essa misteriosa qualidade essencial que todasas obras de arte do mundo teriam em comum, ela simplesmente a ideia de que todas asobras de arte do mundo devem possuir alguma coisa em comum. A arte em si nomeia aideia, a simples ideia, da comparabilidadeuniversal das obras de arte, na ausnciamesmo de toda propriedade comum mostravel ou demonstrvel, na ausncia, portanto,de predicados estticos verificados. A ideia de que todas as obras de arte do mundodevam possuir alguma coisa em comum sempre tem regulado o juzo esttico sobre aarte. A passagem do sistema das belas artes arte em geral revela o que essa ideia temde escandalosa. Com efeito, os readymades de Duchamp, que assinalam a passagem,no eram comparveis a nada, absolutamente nada, do que a arte em seu conjunto

    englobava em 1917. Eles so uma forma de thoughtexperimentque substitui a incerteza\da comparabilidade das obras de arte entre si pela certeza de sua incomparabilidade. A

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    passagem histrica das belas artes arte em geral corresponde passagem esttica deuma ideia pr a uma ideia ps-duchampianna da arte em si.

    Falta fechar o crculo e articular a ideia da arte em si ao conceito da arte emgeraL Vocs ho de convir que minha pequena fico insincera , ao mesmo tempo,entusiasmante e inquietante, o que me remete ao momento em que escrevi a contracapade Au nom de l'arte. E fcil ver porque ela inquietante. No sendo o ideal algo dessemundo e o gosto do poder sendo o que , melhor no confiar a um indivduo omonoplio do juzo esttico, nem alis do que quer que seja, Coloquem-se no lugar dosartistas: quem aceitaria ir submeter sua produo a um tal ditador do gosto, mesmo seele fosse eleito democraticamente? Mas pelas mesmas razes que o ideal no dessemundo e o gosto do poder o que , no pensem que temos de recear que minhapequena fico "ideal" torne-se realidade, mesmo se o fantasma do Museu com umgrande M saltita na cabea de alguns e mesmo que seja verdade que a instituioartstica tem uma deplorvel tendncia ao monoplio. o lado entusiasmante da ficoque merece reflexo. impossvel no se maravilhar diante de um tal acordoespontneo da humanidade inteira, resultando na eleio democrtica, para chefiar oMuseu com um grande M, de uma pessoa capaz de representar todos os humanos noque cada um, pessoalmente, possui de mais ntimo. H apenas uma explicao para o

    fato de que ela tenha ganhado as eleies: a humanidade inteira teria reconhecido nessapessoa no s um conhecimento enciclopdico exaustivo e de primeira mo dopatrimnio artstico mundial, mas tambm uma prodigiosa empatia com os humanos, nainteira diversidade de suas subjetividades, de suas experincias estticas, de seus gostos,de suas culturas, de seu nvel de educao, de suas identidades nacionais, lingusticas,tnicas e sexuais, e de suas posies sociais. Foi assim que ela teria ganhado, emerecido, sua incrvel posio de poder no seio do mundo da arte. Sua autoridade serialegtima porque fundada em sua representatividade frente espcie humana. Se essa

    pessoa existisse, no lhe viria a ideia de rejeitar o que um artista lhe propusesse sem7submet-lo a um teste comparativo universal, um teste que, dado o carter catlico de

    seu gosto, seria ao mesmo tempo idealmente aberto e idealmente severo. Nosso amadorideal da arte examinaria tudo o que lhe fosse proposto sem o menor preconceito, mas sdeixaria entrar no Museu aquilo que exprime e encarna esse todo, quer dizer, nossacomum humanidade. E seus juzos seriam justos, pois sua prodigiosa empatia permitir-lhe-ia deslizar alternadamente na pele de cada ser humano sobre o planeta, desposarseus gostos e compreender suas culturas a partir do interior, ao identificar-se com aquilo

    que todos os humanos tm globalmente em comum.

    j"Catholique" em francs tem tambm o sentido de "douteux", de carter duvidoso. Mais apropriado

    parece ser o significado grego original de "universal", "totalidade", "logos para/de todos" (nt).

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    Mas isso no tudo. Para imaginar que uma pessoa to excepcional venha a ser

    eleita democraticamente pela humanidade inteira, preciso imaginar uma humanidade

    to excepcional quanto essa pessoa: uma humanidade perfeitamente insensvel

    demagogia e ao clientelismo e, em compensao, sensvel ao extremo s qualidadespropriamente humanas dos candidatos eleio. Se minha pequena fico fosse desse

    mundo, cada um teria por seus semelhantes a mesma empatia que o chefe da

    manuteno do Museu imaginrio mundial. Ora, o paraso na terra. Mas ento, porque

    ele ou ela de preferncia a mim? Porque apelar democracia representativa como

    processo de eleio e representatividade como conceito operatrio fundador? Todo

    mundo e qualquer um seria o conservador, ou, o que d estritamente na mesma, depois

    de Duchamp, todo mundo e qualquer um seria artista. Com efeito, diante de um

    readymade, o chefe da manuteno, o artista, o Senhor ou a Senhora Todo Mundo esto

    em p de igualdade, tecnicamente. Nenhum deles ou ningum fez o objeto com suas

    mos; todos os trs s tm uma coisa a dizer: "Isso arte" ou "Isso no o ". Em suma,

    se minha pequena fico fosse desse mundo, tudo e qualquer coisa seriam

    potencialmente da arte, porque todo mundo e qualquer um desfrutariam a cada instante

    da liberdade de julg-la e julgariam com conhecimento de causa. Eis-nos de volta

    nova rodada de cartas, pois no nosso mundo da arte ps-duchampiana, todo mundo e

    qualquer um desfrutam, com efeito, dessa liberdade. No porque minha pequena fico

    tenha se transformado em utopia e que estejamos agora todos dotados de uma

    prodigiosa empatia por nossos congneres, mas porque o sentido de thought experiment

    encarnado pelo readymade o de ter nos tornado todos iguais diante dele, todos

    igualmente desarmados. A base de comparao a mais universalmente exaustiva no

    prestando qualquer socorro diante de um readymade, porque ele incomparvel ao quequer que seja artstico, o super-funcionrio da manuteno do museu imaginrio

    mundial no est mais livre dos preconceitos do que o comum dos mortais. Todo mundo

    e qualquer um podem julgar a arte, assim como tudo e qualquer coisa so, com efeito,

    potencialmente arte. No apenas tcnica, mas tambm institucionalmente, pelo menos

    em princpio. Essa , eu relembro, a prpria definio que dei da arte em geral.

    Entre os princpios e a realidade, h evidentemente uma margem. Nessa margem

    engolfam-se todos os conflitos de poder e lutas de influncia em curso no mundo da

    arte, como no resto do mundo, toda concorrncia econmica do mercado da arte, todas

    as disputas ideolgicas entre tendncias, todo o pluralismo dos gostos e toda a variedade

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    das instituies artsticas. Todas as coisas fortemente salutares na democracia e que no

    deveriam levar-nos a preferir o ideal ao real. Tambm preciso ver bem que a diferena

    entre os princpios e a realidade no aquela entre o ideal e o real, mas aquela entre o

    transcendental e o emprico. Sobre isso, ver Kant. essa diferena que faz com que acongruncia em teor afetivo da arte tout court com a arte em seu conjunto, qu e

    denominei de arte em si, seja uma ideia e nada alm disso quero dizer, deve ser e

    deve permanecer uma ideia, e ser pensada como nada mais que uma ideia: a ideia

    reguladora em nome da qual o Museu com um grande M apresenta suas colees. E

    essa mesma diferena entre o transcendental e o emprico que deve fazer com que a arte

    em seu conjunto no venha ser reduzida arte em geral. Se fosse esse o caso, a arte

    seria efetivamente qualquer coisa, ou vinda de qualquer coisa, como pretendem certosadversrios reacionrios da arte contempornea.

    Estou bem consciente de abrir a caixa de Pandora ao colocar Kant na jogada. Em

    A u nom de 1'art (E m nome da Arte) e Kant after Duchamp (Kant depois de Duchamp),

    defendi passo a passo a ideia de que a Crtica da faculdade de julgar, com emendas em

    certos pontos, no perdeu um miligrama de sua atualidade para a esttica. No posso

    retomar aqui o argumento desses dois livros. Mas, guisa de nota minha exposio de

    hoje, e de maneira a provocar o debate, permitam-me compartilhar com vocs as razes

    estratgicas de minha escolha das palavras, j que decidi, depois de alguma hesitao,

    chamar a congruncia da arte tout court com a arte em seu conjunto pelo nome de arte

    em si em alemo, Kunst an sich. No h trao de Kunst an sich, nem de Schnheit an

    sich (beleza em si, nt), na terceira Crtica, e eu gostaria de dizer aos kantianos dentre

    vocs, se os houver, que tenho conscincia de consignar Ding an sich da primeira

    Crtica a funo reflexiva de uma ideia regulativa que s se tornou clara no esprito de

    Kant com a terceira Crtica. Poderia seguir-se uma discusso quanto ao modo de

    conservar a fidelidade a Kant, para aqueles e aquelas a quem isso interessa.

    Entrementes, o que estratgico nessa escolha de palavras, o seu deliberado anti-

    hegelianismo. Se no fossem suas conotaes kantianas, a expresso Kunst an sich,

    sobretudo se ela lida apoiada na minha pequena fico, que pretende que todos os

    juzos estticos estejam concentrados nas mos de um super-funcionrio da manuteno

    do Museu com um grande M, pode ser interpretada como anunciando o momentotipicamente hegeliano, no qual a frase "Isso arte" pronunciada pelo esprito do

    mundo tornado absoluto. Esse momento o do fim da arte. Ora, como vimos, Kunst an

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    sich a ideia da congruncia da arte tout courtcom a arte em seu conjunto. A arte tout

    court exprime o contedo subjetivo da palavra "arte" na frase "Isso arte", e a arte em

    seu conjunto designa a reunio universal dos referentes objetivos da mesma palavra. A

    abordagem kantiana percebe a congruncia dos dois fazendo uma ponte entre umsentido existencial e o conjunto emprico das coisas via a ideia de uma comunidade de

    o

    afetos (sensus communis),que respeita a heterogenidade dos dois domnios. Definindo

    a arte como "das sinnliche Scheinender Idee" ("o aparecer sensvel da ideia", nt), a

    abordagem hegeliana pe uma passagem dialtica entre esses dois domnios

    heterogneos. Ela considera os referentes da arte em seu conjunto como "a encarnao

    de um sobre-o-que" 9 (an embodimentof aboutness, para parafrasear a frmula de Hegel

    nos termos de Arthur Danto), e alinha-os segundo um telos histrico que conduz

    inexoravelmente realizao da arte em si, medida que a arte em seu conjunto v seu

    esprito objetivo sendo progressivamente aufgehoben pelo esprito absoluto. Tanto para

    a abordagem kantiana quanto para a hegeliana, a arte em seu conjunto refere-se a tudo a

    que a humanidade denominou arte ao longo de sua histria, e continua a denominar

    como tal. Mas do ponto de vista hegeliano do esprito absoluto, seria um conjunto

    fechado, ao qual nada poderia ser acrescentado conceitualmente. Os artistas podem

    continuar inutilmente a produzir obras, o conceito de arte atingiu sua completude.

    nisso que implica a noo hegeliana do fim da arte, do mesmo modo que, penso, "a arte

    ps-histrica", segundo Arthur Danto, ou "o fim da histria da arte", segundo Hans

    Belting 10. Minhas observaes se oferecem como uma alternativa a esses pontos de

    vista, uma alternativa que, ao mesmo tempo, reconhece que se aprecia a arte

    inevitavelmente por comparao com a arte anterior e deixa completa abertura

    inovao artstica autntica. Como ideia regulativa, a arte (arte em si) no nem umconceito acabado nem uma coisa do passado. Como coleo de coisas, a arte (a arte em

    O sensus communisaparece aqui como um a espcie de "ponte" que liga o conjunto emprico da s obrasde arte (uma das margens) a "um senso existencial afetivo, a um conjunto de afetos ou de sentimentos quefazem sentido" (a outra margem), conforme esclareceu o autor tradutora (nt).

    Seguimos a traduo brasileira da obra de Daato, Transfiguration of the Common Place (Atransfigurao do lugar comum},onde "aboutness" foi traduzido como "sobre-o-que", emboraDe Duveentenda "aboutness" como "reference", referncia (nt).10

    Ver Arthur Danto, After the EndofArte, Princeton UniversityPress, Princeton,N. J., 1997 (Na traduobrasileira, Aps o fim da arte. S o Paulo: Edusp/Odysseus, 2006); trad. ir. L 'arte contemporain et Iaclture de l'histoire, Seuil, Paris, 2000; Hans Belting, Das Ende de r Kunstgeschichte,Eine Revision nachzehn Jahren,Verlag C.H. Beck, Minchen, 1995 (Na traduo brasileira, O fim da histria da arte. S oPaulo Cosac & Naify, 2006); trad. francesa, L'histoire de l'arte est-elle finie ?, Jacqueline Chambon,Nmes, 1999.

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  • 7/28/2019 A Nova Rodada ou, : as quatro qualificaes da palavra arte

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    se u conjunto) no nem um conjunto fechado nem uma base de comparao

    transformada em medida absoluta de apreciao. Como a expresso de juzos estticos

    reivindicando o assentimento universal, a arte (arte tout couri) no est imunizada

    contra a contaminao pelas manifestaes de preferncias idiossincrticas de todas as

    culturas e de todos os nichos da sociedade. Muito pelo contrrio, disso que ela feita.

    E como condio na qual se encontra nossa cultura contempornea, a arte (arte em

    geral} a situao a mais aberta imaginvel, a qual no poderamos nem deveramos

    evitar num futuro previsvel.

    Thierry de DuveAout 2001 -juin 2002 - juillet 2004 - novembre 2005 - janvier-mai 2007

    Traduo de Imaculada KangussuReviso de Virgnia Figueiredo

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