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1 A Nova Rota da Seda: a fundamentação geopolítica e as consequências estratégicas do projeto chinês. Ricardo Lopes Kotz 1 Resumo: A Nova Roda da Seda, denominada como Belt and Road Initiative (BRI) consiste em um plano de investimentos proposto pela China, englobando 65 países, compreendendo aproximadamente 62% da população e 30% do PIB global. A BRI é a principal iniciativa de política externa do governo Xi Jinping, resultando em uma visão estratégica para a integração da Eurásia. A pesquisa pretende identificar os interesses da China nesta região. A riqueza de recursos energéticos, a importância geopolítica da Eurásia e a possibilidade de consolidação de uma esfera de influência regional são os pontos mais relevantes. Portanto, embora seja consolidada através de fluxos econômicos, a BRI possui uma fundamentação estratégica que deverá se tornar importante para a manutenção do crescimento da economia chinesa no longo prazo. Adicionalmente, o plano permitirá uma conexão terrestre direta entre a China e a Europa, através da construção de infraestrutura. Palavras-chave: China; Eurásia; Belt and Road. Abstract: The New Silk Road, called the Belt and Road Initiative (BRI), consists of an investment plan proposed by China, encompassing 65 countries, comprising approximately 62% of the population and 30% of global GDP. BRI is the main foreign policy initiative of the Xi Jinping government, resulting in a strategic vision for the integration of Eurasia. The research aims to identify China's interests in this region. The availability of energy resources, the geopolitical importance of Eurasia and the possibility of consolidating a regional sphere of influence are the most important points. Therefore, although it is consolidated through economic flows, BRI has a strategic foundation that should become important for the long-term growth of the Chinese economy. In addition, the plan will allow a direct land connection between China and Europe through the construction of infrastructure. Key Words: China; Eurasia; Belt and Road. 1 Introdução: No século XXI, a Ásia emerge como uma das regiões mais importantes da economia mundo (ARRIGHI, 2009), compreendendo 29.7% do produto interno bruto global (WORLD BANK DATABASE, 2017). A ascensão econômica da China se destaca neste cenário. O processo foi impulsionado pelo período de reformas e abertura introduzido pelo governo de 1 Bacharel em Relações Internacionais pela Universidade Federal do Pampa (UNIPAMPA), especialista em Estratégia e Relações Internacionais Contemporâneas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e mestrando do Programa de Pós Graduação em Relações Internacionais da Universidade Federal de Santa Catarina.

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A Nova Rota da Seda: a fundamentação geopolítica e as consequências estratégicas do

projeto chinês.

Ricardo Lopes Kotz1

Resumo:

A Nova Roda da Seda, denominada como Belt and Road Initiative (BRI) consiste em um plano

de investimentos proposto pela China, englobando 65 países, compreendendo aproximadamente

62% da população e 30% do PIB global. A BRI é a principal iniciativa de política externa do

governo Xi Jinping, resultando em uma visão estratégica para a integração da Eurásia.

A pesquisa pretende identificar os interesses da China nesta região. A riqueza de recursos

energéticos, a importância geopolítica da Eurásia e a possibilidade de consolidação de uma

esfera de influência regional são os pontos mais relevantes. Portanto, embora seja consolidada

através de fluxos econômicos, a BRI possui uma fundamentação estratégica que deverá se tornar

importante para a manutenção do crescimento da economia chinesa no longo prazo.

Adicionalmente, o plano permitirá uma conexão terrestre direta entre a China e a Europa, através

da construção de infraestrutura.

Palavras-chave: China; Eurásia; Belt and Road.

Abstract:

The New Silk Road, called the Belt and Road Initiative (BRI), consists of an investment plan

proposed by China, encompassing 65 countries, comprising approximately 62% of the

population and 30% of global GDP. BRI is the main foreign policy initiative of the Xi Jinping

government, resulting in a strategic vision for the integration of Eurasia. The research aims to

identify China's interests in this region. The availability of energy resources, the geopolitical

importance of Eurasia and the possibility of consolidating a regional sphere of influence are the

most important points. Therefore, although it is consolidated through economic flows, BRI has a

strategic foundation that should become important for the long-term growth of the Chinese

economy. In addition, the plan will allow a direct land connection between China and Europe

through the construction of infrastructure.

Key Words: China; Eurasia; Belt and Road.

1 – Introdução:

No século XXI, a Ásia emerge como uma das regiões mais importantes da economia

mundo (ARRIGHI, 2009), compreendendo 29.7% do produto interno bruto global (WORLD

BANK DATABASE, 2017). A ascensão econômica da China se destaca neste cenário. O

processo foi impulsionado pelo período de reformas e abertura introduzido pelo governo de

1 Bacharel em Relações Internacionais pela Universidade Federal do Pampa (UNIPAMPA), especialista em

Estratégia e Relações Internacionais Contemporâneas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e mestrando do Programa de Pós Graduação em Relações Internacionais da Universidade Federal de Santa Catarina.

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Deng Xiaoping (1978-1989), resultando em um período de 30 anos onde o país alcançou uma

média de crescimento de 10% ao ano e retirou 500 milhões de pessoas da linha de pobreza

(BANCO MUNDIAL, 2013, p. 23). O acelerado desenvolvimento econômico e o aumento da

projeção internacional da China nas últimas décadas reforçam a importância de que sejam

produzidas análises críticas em relação à estratégia chinesa.

A Nova Roda da Seda, também denominada como Belt and Road Initiative (identificada

sob o acrônimo “BRI”) foi oficialmente anunciada pelo presidente chinês Xi Jinping no ano de

2013. O projeto compreende a Silk Economic Road (componente terrestre), passando pela Ásia

Central, pelo Oriente Médio, pela Rússia e chegando até a Europa, incluindo basicamente o

território da Eurásia. A rota terrestre é complementada pela Maritime Silk Road, uma rota

marítima que ligará os portos chineses no sudeste asiático com países da Costa Africana,

passando pelo Oceano Índico, pelo Canal de Suez e chegando até o Mediterrâneo (STATE

COUNCIL OF THE REPUBLIC OF CHINA, 2015).

A BRI consiste em um vasto plano de integração econômica e de infraestrutura que

engloba em torno de 65 países2, compreendendo aproximadamente 62% da população global e

30% do PIB mundial (CHIN & HE, 2016). Desde o ano de 2013, 900 projetos entraram em

negociação, com valores que chegam ao montante de US$ 890 bilhões. A China afirma que os

investimentos na iniciativa alcançarão o montante de aproximadamente US$ 4 trilhões

(ECONOMIST, 2016).

A iniciativa se divide em seis corredores econômicos: 1) a Nova Ponte Terrestre

Eurasiática (que chegará até o território europeu); 2) o eixo China-Mongólia-Rússia; 3) o eixo

central China-Ásia Ocidental (perpassando o Oriente Médio); 4) o eixo da Península China-

Indochina; 5) o eixo do Corredor Econômico China-Paquistão e, finalmente, 6) o Corredor

Econômico Bangladesh-China-Índia e Mianmar. Relatórios estratégicos elaborados pela

academia chinesa apontam que o projeto deverá se estender por um período de 30 a 40 anos

(HONG, 2016).

O presente artigo se situa no tema da inserção internacional da China com foco nos

interesses projetados por este país através da Belt and Road Initiative. O objeto desta pesquisa

2 Este número corresponde a uma estimativa advinda dos projetos atualmente em negociação. As declarações do

presidente Xi Jinping enfatizam o caráter aberto do plano, sendo que novos países podem se integrar a BRI em

qualquer momento (CHIN e HE, 2016). Para uma análise específica dos projetos, além de previsões quanto aos

possíveis riscos, ver The Economist (B), 2016.

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será a Nova Rota da Seda, com foco em sua dimensão terrestre. Este projeto abrange

principalmente a Eurásia continental, sendo que esta região será apresentada através de sua

relevância geopolítica e estratégica. A metodologia utilizada consiste na revisão bibliográfica e

análise documental, buscando integrar a visão de teóricos ocidentais à visão de analistas chineses

sobre o tema. Utilizam-se igualmente pronunciamentos e discursos oficiais do governo da

República Popular da China. As conclusões preliminares permitem inferir que esta iniciativa

deverá se tornar importante para a manutenção do ritmo de crescimento da economia chinesa no

longo prazo, fator que está diretamente ligado à estabilidade política e à coesão social do país.

Pontualmente, a primeira seção tratará sobre a fundamentação geopolítica da iniciativa,

que está diretamente ligada à relevância da massa continental da Eurásia, abordando sua

importância estratégica e as suas reservas de hidrocarbonetos. A próxima seção trata da Belt and

Road Initiative, realizando uma discussão geral acerca dos seus princípios, da sua execução e de

suas implicações. A última seção aborda as consequências estratégicas da Iniciativa, que inclui

sobretudo o estabelecimento e a expansão da esfera de influência regional da China.

2. A fundamentação geopolítica:

Uma visão teórica através das lentes da geopolítica pode prover importantes explicações

acerca das grandes tendências estruturais do sistema internacional. Compreendemos a estrutura

histórica como a correlação de forças presentes em determinada região ou no sistema como um

todo, em determinado momento histórico, constrangendo e influenciando a capacidade de

agência estatal (COX, 1986; 1993). Portanto, a inter-relação entre as características geográficas e

os interesses que guiam as interações políticas e econômicas entre os Estados constitui uma das

bases analíticas deste artigo.

Em essência, a capacidade de agência estatal é limitada pelos parâmetros físicos impostos

pela geografia política, porém não se trata de um fatalismo determinista, como Kaplan (2012,

p.30, tradução nossa) se preocupa em demonstrar:

“A geografia informa, mas não determina. A

geografia, portanto, não é sinônimo de um

determinismo. Ela age como a distribuição

de poder econômico e poder militar,

constituindo um grande constrangimento

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e/ou um grande instigador na ação dos

Estados”.

Assim, é possível perceber a importância da geografia e da geopolítica para as Relações

Internacionais, partindo de um ponto de vista analítico que trabalha com a longa duração,

conceito definido por Fernand Braudel, como lentos movimentos cumulativos, apresentando um

ritmo secular e gradual de transformações que agem sobre elas mesmas e, por sua vez,

influenciando a mudança da realidade social. Através deste arcabouço teórico e passando ao

largo de análises que habitam o ambiente do tempo curto, a história dos acontecimentos (histoire

événementielle) e as análises conjunturais - relativas a ciclos de décadas (BRAUDEL, 1985;

1998), fica mais clara a compreensão da importância geopolítica de um plano de investimentos

que se estende pela região da Eurásia, caso que se apresenta na Nova Rota da Seda idealizada

pela China (STATE COUNCIL OF THE REPUBLIC OF CHINA, 2015).

O nível mais amplo das estruturas geopolíticas que influenciam a ação humana consiste

na diferenciação que se estabelece entre regiões marítimas e plataformas continentais ou regiões

terrestres. Estas estruturas tendem a produzir civilizações, culturas, instituições e visões

geopolíticas fundamentalmente diferentes. Ambientes com acesso ao mar normalmente se

beneficiam de um aporte adequado de chuvas e clima moderado, muitas vezes tendo uma parcela

de suas fronteiras protegida pela água. O comércio e migração disponibilizados nestes ambientes

costumam levar a produção de ambientes culturalmente diversificados, favorecendo a

especialização produtiva na configuração econômica do território, ao passo que é possível formar

uma complementaridade com outras unidades políticas (COHEN, 2015).

Cenários continentais costumam apresentar variações climáticas maiores. Historicamente,

fatores geográficos como montanhas, desertos e a própria distância dos Oceanos produziu nestes

locais sociedades que viviam de forma mais isolada, com economias menos especializadas e

mais focadas na autossuficiência. O isolamento em relação a novas ideias tende a desenvolver

formas de organização da coletividade, ou regimes políticos mais fechados e, por vezes, mesmo

autocráticos (COHEN, 2015).

2.1 A importância geopolítica da Eurásia.

A região da Eurásia destaca-se pela riqueza e abundância de recursos naturais e

energéticos, além da importância logística e estratégica. A Heartland, inicialmente denominada

por Mackinder (2004) como zona pivô, consiste na área central da Eurásia. De forma

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aproximada, é possível afirmar que a Heartland se estende desde a Europa Oriental até os limites

da Ásia Oriental. De norte a sul seus limites compreendem desde a linha do Círculo Ártico até os

desertos e montanhas da Ásia Meridional. A Eurásia possui massas aquáticas de importância

estratégica e comercial, tais como o Mar Báltico, o Mar Negro, o Mar Cáspio e o Golfo Pérsico.

O território da Heartland torna-se quase que inteiramente coberto pela neve e gelo em sua parte

norte, sendo protegido por desertos e montanhas em sua parte austral e oriental, sendo

igualmente quase inacessível ao poder naval, exceto pela região do mar Báltico e do Mar Negro.

Os diversos estreitos compreendidos na Heartland podem ser protegidos através do poder

terrestre (PETERSEN, 2011).

A visão de Mackinder enfatiza a importância estratégica da Eurásia, e mais

especificamente da sua região central, denominada como Heartland, argumentando que a

potência que seja capaz de exercer influência sobre este território, teria a maior capacidade de

projeção de poder a nível global. O exercício de poder terrestre sobre a Eurásia tem um potencial

de produzir um repositório de recursos e bens que, se associado a um poder marítimo, acarretará

possibilidades de alteração da balança de poder do sistema internacional. Isto permitirá

desenvolver meios para tentar controlar as regiões que possuem áreas costeiras em seus

territórios, produzindo um poder anfíbio, capaz de enfrentar o poder marítimo das potências

insulares: nos primórdios a Grã-Bretanha e posteriormente os EUA. De acordo com esta visão, a

potência que conseguisse dominar a Heartland, teria capacidade de dominar a World-Island, que

se define como a região que engloba a Europa, a Ásia e a África, obtendo consequentemente uma

supremacia de recursos que poderiam ser convertidos em poder efetivo (MACKINDER, 2004).

A organização geopolítica do mundo segundo Mackinder:

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Fonte: Mackinder (2004), p. 435.

Mackinder (2004) tratava de poder definido em termos duros, através de contingente

populacional, recursos militares e a eficiência do uso do poder militar. Entretanto, para os

propósitos desta pesquisa, utilizaremos o conceito de poder que deriva de bases weberianas,

como sendo a capacidade de maximização da própria vontade, independentemente da vontade de

terceiros. Ou seja, a capacidade de influenciar outros atores sociais de modo a atingir objetivos

particulares, resultando muitas vezes em um curso de ação que não seria tomado originalmente

pelos atores terceiros se não houvesse o exercício desta influência. Portanto, o conflito de

vontades leva ao exercício do poder (GUZZINI, 2007).

Devemos ressaltar que para o escopo desta análise, não trataremos de fatores como a

dominação territorial propriamente dita. Usaremos, por outro lado, o conceito de esfera de

influência regional, que não implica em dominação política ou econômica, mas sinaliza um

equilíbrio de forças no qual os Estados pertencentes à determinada região concedem deferências

aos interesses da potência dominante, no que diz respeito à formulação de suas próprias políticas

públicas (BRZEZINSKI, 1997, p. 164).

No que tange ao exercício de poder na Eurásia, Brzezinski (1997) define três frentes

estratégicas basilares que consolidam o domínio sobre este território, quais sejam: a primeira

frente é o território localizado a extremo oeste da Eurásia, precisamente na divisão entre a

Europa Oriental e a Europa Ocidental; a segunda frente basilar consiste no extremo leste da

Eurásia, sendo essencialmente a região da Ásia Oriental e a terceira frente estratégica

corresponde ao sudoeste da Eurásia, partindo dos limites entre o território Indiano e Chinês, se

estendendo pela Ásia Central e Meridional e chegando até o Irã (BRZEZINSKI, 1997, p. 51-61).

Cada frente estratégica possui Estados pinos, que devido aos seus recursos naturais, sua

influência política, ou mesmo a sua posição geoestratégica, consistem nos Estados chave para

que determinada potência consiga exercer sua influência naquela frente. Os Estados pinos

possuem concomitantemente certo grau de vulnerabilidade, normalmente de cunho militar ou

mesmo econômica, que os tornam mais suscetíveis de serem atraídos pela força gravitacional

emanada pela influência de potências maiores (BRZEZINSKI, 1997). Portanto, uma articulação

em relação a certos Estados pinos, poderia consolidar a esfera de influência regional da China.

Mackinder (2004) afirmava que a dominação da Eurásia não havia sido possível devido

ao fato de que anteriormente, os povos nômades desta região dispunham apenas de cavalos para

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realizar sua locomoção em tão vasto território. Na conjuntura contemporânea de sua obra (1904),

o autor afirmava que isto seria possível devido aos avanços tecnológicos e ao advento das

ferrovias (MACKINDER, 1919; 2004). Isto cria um vínculo com um dos principais eixos de

construção de infraestrutura promovidos pela China na BRI, que é justamente a construção de

ferrovias de alta velocidade (STATE COUNCIL OF THE REPUBLIC OF CHINA, 2016). A

construção de grandes projetos de infraestrutura que necessitam do uso intenso de mão de obra

pode ser vista como uma tradição política oriental, herdada das grandes obras hidráulicas da

China Imperial (FAIRBANK & MERLE, 2006).

2.2) A riqueza de recursos energéticos.

No que tange aos recursos energéticos disponíveis na Eurásia, cabe apresentar os dados

acerca das reservas globais de hidrocarbonetos (gás natural e Petróleo):

Reservas globais de Gás natural 2005-2015 (trilhões de pés cúbicos):

Regiões 2005 2007 2009 2011 2013 2015

Eurásia 1.952.6 2.014.8 1.993.8 2.164.8 2.177.8 2000.5

Europa 194.0 180.3 169.1 153.8 145.5

Oriente

Médio

2.522.1 2.566.0 2.591.6 2.686.4 2.823.2 2826.5

Ásia e

Pacífico

386.4 419.6 430.5 537.6 521.8 552.6

América do

Norte

264.0 283.6 315.7 378.5 393.4 450.3

América

Central e

do Sul

250.5 240.7 266.5 268.5 268.9 268.1

África 477.0 485.8 495.1 518.5 514.8 496.7

Total -

Mundo

6.046.6 6.190.9 6.262.4 6.708.2 6.845.2 6599.4

Fontes: LINS (2016, p. 49); elaboração própria da coluna referente ao ano de 2015 com

dados provenientes de BP Global Energy Report (2016).

Reservas globais de Petróleo 2005-2015 (bilhões de barris):

Regiões 2005 2007 2009 2011 2013 2015

Eurásia 77.8 98.9 98.9 98.9 118.9 141.1

Europa 17.6 15.8 13.7 12.1 12.0 14.2

Oriente 729.3 739.2 746.0 725.9 802.2 803.5

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Médio

Ásia e

Pacífico

36.3 33.4 34.0 40.2 45.4 42.6

América do

Norte

215.9 213.9 209.1 210.8 216.8 238.0

América

Central e

do Sul

100.6 102.8 122.7 237.1 325.9 329.2

África 100.8 114.1 117.1 123.6 127.7 129.1

Total -

Mundo

1278.4 1.318.0 1.341.4 1.475.7 1.648.9 1697.6

Fontes: LINS (2016, p. 48); elaboração própria da coluna referente ao ano de 2015 com

dados provenientes de BP Global Energy Report (2016).

Como é possível observar, a Eurásia possui relevantes reservas de hidrocarbonetos,

correspondendo a 32% do total mundial de gás natural e 7% do total global de petróleo. Estes

aspectos evidenciam a importância da visão analítica de Mackinder (2004), que compreendeu a

relevância deste território mesmo não dispondo dos meios necessários para auferir precisamente

fatores como os que estão representados nas tabelas acima. Além disto, uma rede eficiente de

infraestrutura e a projeção de influência sobre a Eurásia facilita o acesso aos recursos naturais

provenientes do Oriente Médio, compreendido na análise de Mackinder (2004) como parte do

crescente marginal interior. O Oriente Médio, por sua vez, representa 41% das reservas mundiais

de gás natural e 48% das reservas mundiais de petróleo.

Na ordem internacional, a posse de recursos energéticos constitui um fator de poder e de

influência (KLARE, 2013). Esse é o contexto da Nova Rota da Seda e também da crescente

presença da China na África. É um pensamento estratégico de longo prazo, executado através das

medidas geoeconômicas, tais como investimentos, ações diplomáticas, lançamento de iniciativas

e criação de instituições multilaterais, estabelecimento de joint ventures, fluxos financeiros de

ajuda para o desenvolvimento, acordos comerciais, entre outros instrumentos. Estas ferramentas

são necessárias para a obtenção do objetivo de assegurar o maior aporte possível de recursos

naturais e energéticos que permitam a continuidade do crescimento da economia chinesa

(BLACKWILL e HARRIS, 2016).

3. A Belt and Road Initiative (BRI):

A Nova Rota da Seda é um projeto estratégico que demonstra a maturidade da inserção

externa da China, sendo a maior iniciativa do país na construção de um modelo de governança

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global rumo à multipolaridade. A China enfatiza uma visão de ordem internacional que respeite a

soberania, as diferenças dos seus integrantes e que seja guiada por preceitos de cooperação para

o desenvolvimento e ganhos mútuos. Esta é a principal iniciativa de política externa do governo

Xi Jinping e resulta em uma visão estratégica para a integração da Eurásia (FERDINAND,

2016).

O presidente Xi Jinping visa promover a visão de uma ordem global com a China

liderando certos espaços, sem tentar substituir a ordem estabelecida pelos Estados Unidos, mas

procurando realizar reformas, sempre que houver conjunturas nas quais isto pareça ser possível.

Neste sentido, a BRI tem um caráter complementar em relação à ordem atual. Para os interesses

chineses, é melhor manter a iniciativa sob o sistema global de defesa dos EUA e a partir dessa

base expandir suas oportunidades econômicas e estratégicas (JI, 2015; SARVÁRI,

SZEIDOVICZ, 2016).

O mapa abaixo sintetiza os caminhos previstos pela iniciativa da Nova Rota da Seda:

Fonte: The Diplomat (2015).

A antiga Rota da Seda era um processo orgânico impulsionado pela demanda de seda e

especiarias produzidas pela China. Ou seja, a China possuía mercadorias e produtos desejados

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pelas demais unidades políticas do sistema internacional da época. Este fato levou ao

estabelecimento e à progressão de rotas comerciais, que, por sua vez, produziram efeitos

dinâmicos de disseminação de tecnologia e cultura (LIU, 2010).

A Nova Rota da Seda tem a característica de ser um processo conduzido pela oferta, ao

passo que agora a China oferece crédito e cooperação para a construção de obras de

infraestrutura nos países da Eurásia. Portanto, a BRI depende da aquiescência e da cooperação

dos demais Estados ao longo de suas rotas, o que deverá ser um desafio para a capacidade de

cooptação e de projeção de influência da China (SARVÁRI, SZEIDOVICZ, 2016).

A iniciativa tem como objetivos o aumento da conectividade do espaço euroasiático, a

alocação eficiente de recursos e a coordenação de políticas econômicas, de modo a promover

uma arquitetura regional de cooperação que seja aberta, inclusiva e que estimule o

desenvolvimento conjunto dos países envolvidos no processo. Estes objetivos serão alcançados

através da construção de capacidades, através da cooperação financeira, da liberalização do

comércio e de investimentos (STATE COUNCIL OF THE REPUBLIC OF CHINA, 2015). Para

isto, o projeto possui cinco principais eixos de atuação: 1) comunicação, 2) conectividade

(infraestrutura de transporte), 3) aumento dos fluxos monetários, 4) facilitação do comércio e 5)

migração, visando à criação de uma área de cooperação que se estende desde o Pacífico Oeste

indo até o mar Báltico (SARVÁRI & SZEIDOVICZ, 2016).

Destaca-se que a BRI não segue o padrão ocidental de estabelecimento de tratados

multilaterais entre todos os países membros da iniciativa. O modelo chinês enfatiza as relações

econômicas. Por esta razão, o plano é conduzido projeto por projeto e possui um caráter

essencialmente bilateral, que acabará por produzir impactos na esfera regional (CLARKE, 2016).

A China procura incentivar as empresas nacionais a acessar novos mercados, auxiliando com

apoio diplomático, com a facilitação de acesso ao crédito no ambiente doméstico, além de

simplificar as normas para a sua expansão internacional. O governo fornece ainda apoio técnico

para investimentos no setor de pesquisa e desenvolvimento no exterior (YEH & WHARTON,

2016).

A construção de ferrovias de alta velocidade parece ser o foco inicial da BRI. A China já

possui experiência neste setor, tendo construído internamente 16.000 km de ferrovias de alta

velocidade que passam pelos mais variados relevos e climas (JI, 2015 p. 506). A China possui

121.000 quilômetros de ferrovias, constituindo 60% do total global e possui o objetivo de

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estender a sua rede de ferrovias de alta velocidade para um total de 30.000 quilômetros,

incluindo os países situados em seu espaço regional imediato (STATE COUNCIL OF THE

REPUBLIC OF CHINA, 2016). A partir da província de Xinjiang, a China está construindo uma

intensa rede de ferrovias e oleodutos, gasodutos conectando ao Afeganistão, Paquistão,

Quirquistão, Tadjiquistão, de modo a consolidar sua esfera de influência regional (KAPLAN,

2012).

O volume de comércio da China com os países que integram a BRI cresceu em uma

média anual de 19% na última década, sendo que no ano de 2013, os aproximadamente 64 países

da BRI representaram 25% do volume total de comércio da China (em um valor de US$ 1.04

trilhões). Adicionalmente, os países ao longo da Rota da Seda já representaram no ano de 2015,

cerca de 20% dos Investimentos Diretos Externos da China. Estima-se que os países situados ao

longo da Nova Rota da Seda tenham uma necessidade de US$ 8 trilhões de investimentos em

infraestrutura para o período de 2010-2020 (JI, 2015, p. 504-505).

A Nova Rota da Seda pode ser vista como um projeto pacífico, porém pragmático de

aumento da zona de influência da China em uma região de grande relevância geopolítica e

econômica como a Eurásia. A BRI é baseada em princípios de ganhos mútuos e pretende

aumentar a contribuição da China em relação ao bem público global. A ascensão de uma nova

potência não depende exclusivamente do poder militar ou econômico, mas é influenciado pelos

interesses e pelo modo como o poder é exercido, constituindo fundamentalmente um processo de

barganhas e negociações. Neste caso, o conceito de potência em ascensão ou potência emergente

é definido como um ator que precisa ser consultado para que haja mudança no status quo, mas

que ainda não é capaz de determinar unilateralmente a sua própria agenda política para o âmbito

sistêmico (NARLIKAR, 2013).

Nesta perspectiva, a Nova Rota da Seda pode ser vista como a agenda política e a

principal contribuição da China para o bem público global durante o seu processo de ascensão. A

adesão dos países menos desenvolvidos da Ásia Central conferiria legitimidade, não visando

suplantar o ordenamento global já estabelecido, mas complementá-lo. O enquadramento e os

princípios da iniciativa servirão como base importante para que a BRI consiga efetivamente

consolidar sua legitimidade perante os países integrantes. Entre os princípios delineados pela

diplomacia chinesa, destaca-se a possibilidade de ganhos mútuos (win-win); o aumento da

conectividade entre as nações; o crescimento dos fluxos de comércio e de investimentos que, por

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sua vez, levariam maior desenvolvimento aos países envolvidos (STATE COUNCIL OF THE

REPUBLIC OF CHINA, 2016). Estes princípios possuem um fundo de incentivo a liberalização

e aprofundamento da globalização, porém, através de sua face material, nomeadamente marcada

pelos fluxos de comércio e de investimento estrangeiro direto.

A China estabeleceu instituições de cunho multilateral que poderiam auxiliar na projeção

política e na execução da BRI. Recentemente foram estabelecidos o Banco Asiático de

Infraestrutura e Investimentos (AIIB) com capital autorizado de US$ 100 bilhões e o Fundo da

Rota da Seda com capital autorizado de US$ 40 bilhões. A título de comparação, o Banco

Mundial possui um capital autorizado de cerca de US$ 260 bilhões. Sustenta-se que a ação destas

instituições multilaterais possa vir a ser um ponto importante para viabilizar uma maior aceitação

da Nova Rota da Seda (SARVÁRI & SZEIDOVICZ, 2016).

O AIIB contou com 57 membros no ato de sua criação, incluindo 37 países da região da

Ásia e do Pacífico, o que pode ser visto como uma forma de aquiescência em relação aos

desígnios chineses sobre a necessidade de construção de infraestrutura a nível regional. (CHAN,

2016, p. 8-9). No que diz respeito a relevância da atuação dos bancos multilaterais na construção

de infraestrutura, aponta-se que os investimentos globais neste setor alcançam o montante

aproximado de US$ 2,5 trilhões anualmente, sendo que seriam necessários US$ 3,3 trilhões

anuais para que o atual ritmo de crescimento da economia global seja mantido (MCKINSEY

INSTITUTE, 2016).

A BRI dependerá da aceitação pelos demais Estados participantes de que os preceitos

pretendidos pela China atendem aos seus interesses. A abundância de recursos materiais não

garante o exercício de influência ao longo da iniciativa. Assim, para ser bem sucedida, deve

haver uma noção geral de que os princípios promovidos pela China beneficiam os outros

componentes do complexo regional. A China deverá empregar um recursos materiais aliados ao

esforço político-diplomático para consolidar a BRI (BLACKWILL e HARRIS, 2016).

As principais incertezas acerca da viabilidade da BRI recaem principalmente sobre três

aspectos: 1) a magnitude dos investimentos anunciados; 2) a grande quantidade de países

envolvidos, implicando uma enorme necessidade de financiamento e articulação de cooperação

internacional para que o projeto se consolide; 3) a possibilidade de oposição de atores

importantes (Estados Unidos, Índia, Rússia, entre outros), que poderiam ver esta iniciativa como

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uma tentativa de alteração da balança de poder regional, através da projeção de influência. Este

último fator se exacerba devido a grande relevância geopolítica da massa continental da Eurásia.

4. As consequências estratégicas:

4.1 A consolidação de uma esfera de influência regional centrada na China.

Para compreender o estabelecimento da zona de influência da China, abordaremos

brevemente o processo histórico de formação do Estado chinês. Parte importante dos recursos

duros da China advém de sua população e das dimensões do seu território, que foi inicialmente

formado como civilização ao longo de grandes rios, o Rio Amarelo, o Rio Wei, o Rio Han e o

Rio Yangtze. Estes rios nascem no Tibete, surgindo no oeste do território chinês e direcionando

suas águas para as terras agricultáveis mais próximas do Oceano Pacífico, ao centro e ao sul do

país. Historicamente, as ameaças à unidade chinesa vieram dos povos nômades provenientes das

estepes da Ásia Central, localizados no norte e noroeste do seu território, em uma linha

semicircular anti-horária partindo da região da Manchúria até o Tibete (KAPLAN, 2012).

Argumenta-se que o senso de unidade e identidade da China enquanto civilização é

resultado de uma estrutura de socialização e diferenciação entre os povos localizados nas

planícies chinesas de agricultura irrigável (centro civilizacional) e os povos nômades da Ásia

Central, que constituíam a periferia do antigo sistema imperial chinês (FAIRBANK &

GOLDMAN, 2006). Este processo de contato e assimilação entre estruturas de centro-periferia

viria a constituir uma organização política manifesta através de vínculos tributários, suscitando

relações de influência e subordinação, à medida que avançava a centralização e formação do

aparato político administrativo da China Antiga, cuja influência veio a se estender através de

zonas concêntricas ao redor do Império Chinês (FOSSAERT, 2011).

O Estado chinês possui territórios desérticos no oeste e terras de solo fértil no centro-sul,

no leste e na região nordeste, demonstrando um processo histórico de longa duração que formou

as bases geográficas do poder chinês. Um dos exemplos mencionados acerca da ação humana

nesse processo é a construção do Grande Canal que liga os Rios Amarelo e Yangtze, ocorrida no

período entre os anos de 605 e 611, que foi importante para ligar a regiões norte - notadamente

sujeita a períodos de escassez de alimentos e fome; a região sul, que podia prover excedentes

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produtivos agrícolas (notadamente o arroz) de modo a possibilitar a formação de um Estado

chinês com maior dimensão territorial (KAPLAN, 2012, p. 117-119).

Sobre o processo de formação do Estado chinês e sua zona de influência, cabe mencionar

que em um período tão recente quanto o ano de 1840, o território da China e sua zona de

influência se estendiam até o estreito de Malacca, incluindo partes do que hoje se denomina

como Bangladesh, partes do Nepal, do Mianmar, do Vietnã (na época a Indochina) e do atual

Cazaquistão, todo o território da Mongólia, a ilha de Taiwan, e, igualmente os territórios

tributários da Coréia, das ilhas Sacalinas, além de territórios no extremo oriente da Rússia. Estes

territórios ou pertenciam inteiramente a China ou pagavam tributos ao Império chinês

(BRZEZINSKI, 1997, p. 164; KAPLAN, 2012, p. 120).

A partir desta perspectiva, a reação chinesa frente ao século das humilhações, período

que se estende dede 1839 até a Revolução Comunista de 1949, justifica o planejamento

estratégico e suas ações no cenário contemporâneo. O Sonho Chinês, conceito criado pelo atual

mandatário Xi Jinping consiste justamente no rejuvenescimento da nação chinesa, por meio da

continuidade do processo de desenvolvimento e ascensão pacífica do país, concomitantemente

com a maior projeção internacional e melhores condições de vida para sua população (JINPING,

2014). Trata-se de uma antiga potência reocupando a posição histórica que ela vê como natural

para si dentro do mundo contemporâneo, e fazendo isto não através da coerção, mas através do

comércio e mais recentemente dos investimentos feitos realizados com o capital acumulado

(ARRIGHI, 2009).

A vasta massa territorial da China ajudou no processo de formação do pensamento de

autossuficiência e isolamento em relação ao espaço externo, que o país adotou no período de seu

fechamento, entre os séculos XIV e XV, tendo influência sobre sua cultura, religião e mesmo no

estabelecimento do sistema burocrático autoritário da nação. Por mais de três milênios da história

da civilização chinesa, a sua orientação geopolítica foi predominantemente continental, na busca

por defesa e no estabelecimento de vínculos tributários em relação aos povos da Ásia Central

(Hunos, Mongóis, Machus, entre outros). Este é um percurso civilizacional marcado pelas

invasões a norte e a oeste em oposição à identidade chinesa surgindo das dinastias do Império do

Meio. Havendo o período de abertura forçada ao comércio marítimo, verificado no século das

humilhações (1839-1949). Adicionalmente, por quase metade do século XX a China focou sua

atenção geopolítica para o espaço da Heartland euroasiática (COHEN, 2015).

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A desintegração da União das Repúblicas Socialistas e Soviéticas (URSS) no ano de

1992 permitiu o acesso e exercício de poder da China sobre a Eurásia. O país permanece sendo

fundamentalmente uma potencia terrestre no que diz respeito ao poder militar. Não obstante, o

seu poderio marítimo vem crescendo. O espaço euroasiático deverá ser influenciado por alguma

combinação do triangulo estratégico formado por China, Rússia e Estados Unidos. (KLIEMAN,

2015; BRZEZINSKI, 2016). Portanto, uma grande mudança geoestratégica ocorreu com o fim da

Guerra Fria e a queda da URSS. A interação entre o triângulo geoestratégico entre China, Rússia

e EUA na Eurásia é oriunda deste movimento e do vácuo de poder deixado pela URSS (COHEN,

2015).

Adicionalmente, as rotas comerciais em vias de construção ligariam diretamente a China

ao território da Europa, diminuindo a dependência estratégica do Mar do Sul da China (zona

sujeita a disputas territoriais a nível internacional), como zona de escoamento dos produtos

chineses. Ressalta-se que passam anualmente mercadorias que representam um valor de

comércio de US$ 5 trilhões pelo estreito de Malacca, localizado no Mar do Sul da China (AL

JAZEERA, 2016).

Neste sentido, a Nova Rota da Seda deve ser compreendida simultaneamente como um

plano econômico, com fundamentação em interesses geopolíticos. A legitimidade do governo

centralizado da China reside na capacidade de manter o crescimento e desenvolvimento

econômico, assim, a BRI pode ser essencial para o projeto de manutenção da estrutura política

chinesa sob o comando do partido comunista. A emergência chinesa deverá continuar de forma

pacífica, a depender da resposta das potências ocidentais aos seus movimentos e também da sua

capacidade de manter o rumo de desenvolvimento, que confere estabilidade política para o

governo (BEESON & LI, 2016).

Além disto, a BRI deverá beneficiar o acesso da China a recursos naturais que são

necessários para a manutenção do crescimento de sua economia no médio e no longo prazo, tais

como alimentos, petróleo e gás natural, além de outros minerais estratégicos. Finalmente, se bem

sucedido, o projeto tem o potencial de alterar a correlação de forças presente na Eurásia, situando

a China de forma mais favorável não apenas nesta região, mas no sistema internacional (JI, 2015;

SARVÁRI & SZEIDOVICZ, 2016).

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Considerações Finais:

Ao final do seu artigo seminal e em obras posteriores, Mackinder (1919; 2004) cita a

possibilidade de a China exercer influência preponderante sobre a Heartland, na ocasião deste

país ser capaz de conquistar a influência na Ásia Central. Conforme afirma o autor, a eventual

dominação chinesa sobre a Heartland teria grandes potencialidades devido ao fato de que a

China possui amplo acesso ao Oceano Pacífico e a partir disto poderia converter de forma mais

eficaz o seu potencial terrestre em conjunto com o poderio marítimo (MACKINDER, 1943;

2004).

O crescimento econômico e tecnológico da China a tornaram um poder global com

impacto geopolítico em toda a Eurásia. O país faz fronteira com 14 Estados e possui fronteira

marítima direta com outros três (Japão, Filipinas, Coréia do Sul e Taiwan – não reconhecido

como um Estado independente). A população dos vizinhos gira em torno de dois bilhões de

pessoas e a população da China é atualmente de 1.4 bilhões, fazendo com que cerca de metade

da população global seja diretamente afetada pelas ações deste país (COHEN, 2015). No que diz

respeito ao exercício de influência nos diversos cenários regionais, destaca-se:

“Os meios para a influência

internacional hoje são mais

diversificados e sofisticados, mas

muitos dos objetivos continuam os

bons e velhos de sempre: segurança

nacional, projeção de poder, controle

do espaço e a busca por

superioridade ou igualdade

estratégica”. (LO, 2008, p. 132, apud

EDER, 2014, p. 33, tradução nossa).

Permanecem questões a serem avaliadas por pesquisas futuras: a Nova Rota da Seda

poderia levar ao aumento do comércio regional e ao adensamento de cadeias produtivas locais no

espaço da Ásia Central e da Ásia Meridional? Aponta-se que os investimentos globais em

infraestrutura alcançam o montante aproximado de US$ 2,5 trilhões anualmente, sendo que

seriam necessários US$ 3,3 trilhões anuais para que o atual ritmo de crescimento da economia

mundial seja mantido (MCKINSEY INSTITUTE, 2016).

Assim, se mostra necessário realizar uma análise acerca das ações dos Bancos

Multilaterais envolvidos na BRI, no que diz respeito ao financiamento de infraestrutura e os

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possíveis impactos para o comércio regional. Novas pesquisas poderão abordar ainda as

implicações dos corredores econômicos compreendidos pela Nova Rota da Seda para as relações

estratégicas entre os grandes atores em cada tabuleiro regional. Outro possível rumo de pesquisa

seria uma análise dos impactos da BRI no que diz respeito ao Oriente Médio, região que detém

reservas de petróleo que equivalem a 802.2 bilhões de barris e reservas de gás natural que

chegam ao montante de 2.823,2 trilhões de pés cúbicos (LINS, 2016, p. 48-49), demonstrando

sua importância econômica e estratégica.

A geopolítica e a economia costumam andar lado a lado, materializando-se na expansão

militar que anda em conjunto com a expansão econômica, um caminho traçado por todas as

potências surgidas no sistema Westfaliano (FIORI, 2008). Neste sentido, a Belt and Road

Initiative não é apenas um plano para construção de infraestrutura, mas consiste em uma ampla

visão para o futuro da integração da Eurásia. Esta visão estratégica compreende elementos

geoeconômicos e fundamenta-se em fatores geopolíticos. A capacidade de avançar com os

valores e os ideais que envolvem a iniciativa será essencial para a sua consolidação.

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