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44 O texto aqui apresentado resulta do agregar dos vários temas abordados na palestra proferida pelo investiga- dor Paulo Duarte, no passado dia 1 de Dezembro de 2016, no Instituto Internacional de Macau, em Macau. O autor agradece profundamente quer o convite, quer a amabilidade, simpatia e extraordinário acolhi- mento de que foi alvo no âmbito da palestra proferida, com um especial obrigado ao Dr. José Lobo do Ama- ral e ao Dr. Jorge Rangel. A Nova Rota da Seda chinesa é de- nominada Uma Faixa, Uma Rota, in- cluindo uma componente terrestre e uma componente marítima (figura 1). 1 A Nova Rota da Seda chinesa assenta, entre outros aspetos, num reforço das relações económicas com a Ásia Central e a Europa. Tem em si subjacente a ideia da criação de um espaço económico suscetível de abranger um vasto mercado de aproximadamente 4,4 mil milhões de pessoas, ou 63 por cento da po- pulação mundial, com potencial para se tornar o mais longo e pro- missor corredor económico do mundo. Mas quais as principais motivações e aspirações da China no seio da sua Nova Rota da Seda? Pequim vê aí uma forma de encontrar novos mercados, reduzir as assimetrias de desenvolvimento entre as suas pro- víncias costeiras e o interior pobre, bem como de preservar a estabili- dade nacional e a das regiões vizi- nhas. E, nesse sentido, a Nova Rota da Seda é, em grande parte, guiada pela estratégia de desenvolvimento e estabilização do Xinjiang, que Pe- quim quer acautelar de toda a as- piração terrorista, garantindo que esta província continuará a fornecer ao resto do país os recursos naturais essenciais ao crescimento da sua economia. Considerando a proximi- dade do Xinjiang face aos países centrasiáticos e o acesso do Xin- jiang às águas quentes do Índico, os líderes políticos chineses adota- ram a política do Go West comple- mentada pelo que vários especia- listas chamam de diplomacia de infraestruturas da China. Esta as- A Nova Rota da Seda: A Convergência da Terra e do Mar na (Re)emergência da China Paulo Duarte Doutorado pela Université Catholique de Louvain, autor de Metamorfoses no Poder: rumo à hegemonia do dragão? Doutorando na Université Catholique de Louvain e Investigador convidado na Cheng-chi University, Taipé ORIENTEOCIDENTE Figura 1. A Nova Rota da Seda chinesa (mar e terra). Fonte: http://insight.amcham-shanghai.org/wp-content/uploads/OBOR1.png _________________ 1 Embora a Nova Rota da Seda chinesa assente na criação de vários corredores marítimos e terrestres (ao invés de um só corredor terrestre e/ou marítimo), optei, na prática (para facilitar a compreensão do leitor), por apresentar o mapa da figura 1, embora consciente de que este é, por natureza, incompleto.

A Nova Rota da Seda - anrs.pt · da internacionalização da indústria de construção chinesa, incentivando as exportações, e atraindo o inves-timento para o interior do país

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O texto aqui apresentado resulta doagregar dos vários temas abordadosna palestra proferida pelo investiga-dor Paulo Duarte, no passado dia 1de Dezembro de 2016, no InstitutoInternacional de Macau, em Macau.O autor agradece profundamentequer o convite, quer a amabilidade,simpatia e extraordinário acolhi-mento de que foi alvo no âmbito dapalestra proferida, com um especialobrigado ao Dr. José Lobo do Ama-ral e ao Dr. Jorge Rangel.

A Nova Rota da Seda chinesa é de-nominada Uma Faixa, Uma Rota, in-cluindo uma componente terrestree uma componente marítima (figura1).1 A Nova Rota da Seda chinesaassenta, entre outros aspetos, numreforço das relações económicascom a Ásia Central e a Europa. Temem si subjacente a ideia da criaçãode um espaço económico suscetívelde abranger um vasto mercado deaproximadamente 4,4 mil milhõesde pessoas, ou 63 por cento da po-pulação mundial, com potencialpara se tornar o mais longo e pro-missor corredor económico domundo.

Mas quais as principais motivaçõese aspirações da China no seio dasua Nova Rota da Seda? Pequim vê

aí uma forma de encontrar novosmercados, reduzir as assimetrias dedesenvolvimento entre as suas pro-víncias costeiras e o interior pobre,bem como de preservar a estabili-

dade nacional e a das regiões vizi-nhas. E, nesse sentido, a Nova Rotada Seda é, em grande parte, guiadapela estratégia de desenvolvimentoe estabilização do Xinjiang, que Pe-quim quer acautelar de toda a as-piração terrorista, garantindo que

esta província continuará a fornecerao resto do país os recursos naturaisessenciais ao crescimento da suaeconomia. Considerando a proximi-dade do Xinjiang face aos países

centrasiáticos e o acesso do Xin-jiang às águas quentes do Índico,os líderes políticos chineses adota-ram a política do Go West comple-mentada pelo que vários especia-listas chamam de diplomacia deinfraestruturas da China. Esta as-

A Nova Rota da Seda:A Convergência da Terra e do Mar na(Re)emergência da China

Paulo DuarteDoutorado pela Université Catholique de Louvain, autor de Metamorfoses no Poder: rumo à hegemonia do dragão?

Doutorando na Université Catholique de Louvain e Investigador convidado na Cheng-chi University, Taipé

ORIENTEOCIDENTE

Figura 1. A Nova Rota da Seda chinesa (mar e terra).Fonte: http://insight.amcham-shanghai.org/wp-content/uploads/OBOR1.png

_________________1 Embora a Nova Rota da Seda chinesa assente na criação de vários corredores marítimos e terrestres (ao invés de um só corredor terrestre e/oumarítimo), optei, na prática (para facilitar a compreensão do leitor), por apresentar o mapa da figura 1, embora consciente de que este é, pornatureza, incompleto.

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A Nova Rota da Seda ...

senta na construção de elos logísti-cos, que visam fazer das províciasremotas da China centros económi-cos na ligação entre Ásia e Europa.Uma outra razão que justifica a im-portância da Nova Rota da Seda,enquanto instrumento de defesa epromoção dos interesses chineses,tem que ver com o impulso queeste projeto poderá trazer à econo-mia chinesa, nomeadamente atravésda internacionalização da indústriade construção chinesa, incentivandoas exportações, e atraindo o inves-timento para o interior do país. Porconseguinte, a Nova Rota da Sedaconstitui, metaforicamente, uma viade dois sentidos, quer por meio doestímulo à expansão das empresaschinesas mundo fora, quer no con-vite aos investidores estrangeiros aapostar no mercado chinês. A NovaRota da Seda pode revelar-se umaalavanca importante face ao abran-damento da construção na China,proporcionando às empresas deconstrução chinesas oportunidadesde rentabilidade promissora no es-trangeiro.

Todos estes motivos são necessáriospara se compreender o interesse chi-nês na revitalização da Rota da Seda,embora haja uma outra razão, tãoou mais importante: a energia. Naverdade, a cooperação energética ea construção de infraestruturas serãonovos motores para a cooperaçãoentre a China e os países da ÁsiaCentral. E, entre estes, destaquemosa especial importância do Cazaquis-tão no quadro da diversificaçãoenergética (exportador de petróleo

e gás) e da securitização2 física, bemcomo logística (enquanto ponte parao continente europeu).

A Nova Rota da Seda terrestre

Face aos demais elos de ligação noseio da Nova Rota da Seda, as redesferroviárias revelam-se uma alterna-tiva logística importante, suscetívelde ajudar a China a reforçar os seuslaços com os mercados europeus,através da construção de várias in-fraestruturas (por exemplo, linhasférreas de alta velocidade ao longoda Ásia Central), para escoar deforma mais eficiente os produtos chi-neses, proporcionando-lhes uma viacomplementar ao transporte aéreo(caro) e ao transporte marítimo (cujamorosidade é ainda agravada peloforte congestionamento dos portoschineses). As mercadorias chinesasexpedidas por comboio para a Eu-

ropa Ocidental demoram apenas 16dias a chegar ao seu destino, en-quanto o transporte marítimo neces-sita de aproximadamente cinco se-manas, com atrasos, em algunscasos, significativos. A opção ferro-viária permite uma securitização eco-nómica e logística mais eficaz no tra-tamento de mercadorias sensíveis àhumidade, perecíveis ou de elevadovalor, e dificilmente transportáveispor via aérea devido ao seu volumee/ou peso. A aposta na construçãode ferrovias é tão ou mais prementena medida em que estas oferecemuma rota alternativa aos produtoschineses, permitindo-lhes chegaraos mercados europeus sem teremde transitar por território russo. Aeste respeito, alguns autores consi-deram que a principal razão de serdos esforços chineses em desenvol-ver os corredores terrestres é evitara Rússia, quebrando o monopólio

ORIENTEOCIDENTE

Figura 2. A linha férrea China-Ásia Central-Europa. Fonte: Lanjian & Wei, 2015.

_________________2 O vocábulo ‘securitizar’ é proveniente da teoria da securitização da célebre Escola de Copenhaga. Securitizar significa elevar determinadoassunto da esfera da política dita normal ao da chamada high politics. Tal fenómeno verifica-se essencialmente quando se encontra em causauma matéria (ameaça é a palavra mais indicada, segundo a Escola de Copenhaga) sensível aos interesses de determinado ator. Por exemplo,questões como a segurança energética, alimentar, mas também as disputas envolvendo a soberania territorial são, em geral, concebidascomo pertencentes ao domínio das high politics, o que justifica que determinado ator (o caso da China) recorra a políticas dotadas decontornos de exceção (que podem envolver o uso da força militar, mas não necessariamente), bem como de um caráter temporário com vistaà sua de-securitização, ou seja, ao seu regresso à esfera da política dita normal. Ver Buzan, Waever e de Wilde (1998) Security-A NewFramework for Analysis, Colorado: Lynne Rinner Publishers, Inc., Boulder.

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de que esta beneficia no trânsito demercadorias entre Oriente e Oci-dente (Sárvári e Szeidovitz, 2016).Mas porquê evitar a Rússia? Porqueos decisores políticos chineses estãocientes de que se as relações entrea Rússia e a União Europeia se agra-varem, o poder de Moscovo face aPequim tenderia a aumentar signifi-cativamente. Ora, Pequim não be-neficiaria de todo de uma tal con-juntura.

A utilização dos caminhos de ferroé um mecanismo de securitizaçãoextraordinário. Contudo, a NovaRota da Seda em Aço não se confinaà Ásia Central. Na verdade, ela con-siste num projeto de caráter mun-dial, suscetível de revolucionar a in-fraestrutura de comunicações etransporte de pessoas e bens à es-cala planetária, literalmente. Emboraseja prioritário para a China começarpor securitizar o seu acesso ao con-tinente europeu – o que permitiráligar Londres a Pequim em apenas48 horas (figura 2) – Pequim, aspira

a longo prazo, a desafios mais am-biciosos, como unir, por via férrea, aChina à América do Norte3, ou,ainda, o Pacífico ao Atlântico4 (figu-ras 3 e 4). Dito isto, não é descabidoespecular que a estratégia chinesanas próximas décadas (não anos) po-derá não se limitar apenas a um re-forço dos elos logísticos Oriente-Ocidente, mas, lato sensu, a umaaposta nos corredores que ligam aChina ao resto do mundo, fazendodo país uma ‘mega-cidade’ global,para onde tenderão a convergir to-dos os caminhos.

Além das razões já enumeradas, oscaminhos de ferro desempenhamum papel de extrema importânciaao nível da securitização militar e logística no seio da Nova Rota daSeda chinesa, na medida em quesão parte da estratégia de defesa eprojeção de poder da China na Eu-rásia, protegendo silmultaneamenteas linhas de abastecimento. A Chinaestá disposta a adotar ações milita-res proativas ao longo de vários tea-

tros. Neste sentido, a ‘militarização’das vias férreas, no seio da NovaRota da Seda em Aço chinesa, temcomo objetivo assegurar uma céleremobilização de tropas em caso denecessidade. Este aspeto da securi-tização militar – associado à NovaRota da Seda terrestre da China –torna os caminhos de ferro instru-mentos estratégicos à disposição doExército Popular de Libertação (EPL).Refira-se, a este respeito, que o EPLjá utilizou o comboio de alta veloci-dade na China para o transporte detropas, apontando a prática comoum meio ideal de mobilização depessoal e equipamento ligeiro noquadro de operações militares quenão sejam de guerra.

Apesar das vantagens de uma NovaRota da Seda que privilegia os ca-minhos de ferro, deve notar-se queo transporte marítimo ainda repre-senta mais de 95% do comércio demercadorias entre a China e a Eu-ropa. Mas ainda há uma questãorelevante associada à otimização dopotencial da ferrovia. Com efeito,se os comboios que ligam a Chinaaos mercados europeus partemquase sempre cheios de mercado-rias, no seu regresso à China, vêmfrequentemente vazios. Tal deve-se,em parte, ao facto de a China com-prar muito pouco às empresas eu-ropeias.

Não é descabido afirmar que a di-ferença nas bitolas ao longo do per-curso ferroviário que liga a China àEuropa ocidental também afeta aperfomance global da opção ferro-viária como via de transporte. OsEstados da antiga União Soviéticautilizam uma faixa larga com uma

ORIENTEOCIDENTE

Figura 3. A linha férrea China-América do Norte. Fonte: Lanjian & Wei, 2015.

_________________3 Construindo, para o efeito, um túnel subaquático, com cerca de 200 Km, no Estreito de Bering. A linha inteira percorrerá, no total, cerca de13 000 km, ligando Pequim, Nova York e mesmo Washington D.C., a uma velocidade de 350 km, em menos de dois dias (ver a figura 3).

4 A linha férrea Dois Oceanos refere-se ao projeto de construção de uma ferrovia suscetível de atravessar a América do Sul, ligando a costa doPerú (no Pacífico) à do Brasil (no Atlântico), percorrendo cerca de 5 000 km (ver a figura 4).

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A Nova Rota da Seda ...

bitola de 1.520 mm, enquanto aChina, o Irão, a Turquia e a Europacontinental utilizam a bitola padrão(com 1.435 mm). Ora, daqui resultaque nos pontos de cruzamento en-tre os sistemas ferroviários, os con-tentores devem ser descarregadosde um comboio e carregados paraoutro (usando rodas de calibres di-ferentes). Por conseguinte, é funda-mental que as várias bitolas aolongo dos percursos ferroviáriostransasiáticos sejam harmonizadasnuma única bitola, de forma a oti-mizar-se todo o potencial da NovaRota da Seda em Aço, reduzindo otempo de ligação entre Oriente eOcidente. Por fim, a rede ferroviáriatransasiática deve ultrapassar um

dos seus maiores obstáculos: a bu-rocracia. Com efeito, com os com-boios a atravessar seis ou sete ad-ministrações ferroviárias diferentes,a simplificação dos acordos adua-neiros ao longo da rota é premente.Por outro lado, é fundamental quehaja um combate eficaz à corrupçãonos postos fronteiriços.

A Nova Rota da Seda marítima

Concomitantemente à aposta na re-vitalização dos corredores terrestrestransasiáticos, a China tem vindo adinamizar a promoção de uma NovaRota da Seda marítima, que assentana busca de acessos estratégicos arecursos naturais, mercados e vias

de escoamento e transporte. Mar eterra são dois espaços geopolíticose geoestratégicos complementarese interdependentes na formulaçãode uma estratégia holística de se-gurança energética.

Pequim apoia a construção de umcanal através do istmo de Kra. Ape-sar de não ser recente, tal ideia temcomo objetivo criar uma espécie de‘Canal do Panamá asiático’ (com 102km), num momento em que o con-gestionamento e insegurança no Es-treito de Malaca se revelam alta-mente sensíveis. Com um tempo deconstrução de cerca de 8 a 10 anos,o Canal de Kra teria um impactoextraordinariamente positivo ao ní-vel da segurança energética chinesa,encurtando o tempo e a distânciade expedição entre o mar de Anda-man e o mar da China Meridionalrespetivamente em 72 horas e emcerca de 1200 km (figura 5).

Contudo, a construção do dito canalé vista com uma certa suspeição porparte da Tailândia e de outros Esta-dos da região. Na prática, o controlode um canal no istmo de Kra geraapreensão quanto ao facto de Pe-quim vir a optar, quiçá, por recusara passagem de navios ao seu crité-rio, arrastando potencialmente a Tai-lândia para uma situação desagra-dável. Além disso, vários países daregião demonstram profundas reser-vas quanto ao facto de a Nova Rotada Seda marítima vir a ser verdadei-ramente win-win tanto para essespaíses como para a China.

Daqui resultam duas importantesconsequências: apesar da especu-lação por parte de alguns meios decomunicação, o Canal de Kra é, nocurto e médio prazo, inviável. Emsegundo lugar, fruto da incertezados vizinhos face às (reais) inten-ções navais da China, a Nova Rotada Seda marítima tem registado

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Figura 4. A linha férrea Dois Oceanos. Fonte: Lanjian & Wei, 2015.

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avanços menos significativos que aNova Rota da Seda terrestre, estasim recebida com entusiasmo querpelos países da região, quer peloOcidente. Apesar do ênfase quePequim coloca nas vantagens daNova Rota da Seda para os Esta-dos-membros da Associação deNações do Sudeste Asiát ico(ANSA), a realidade é que, parado-xalmente, o agravamento das dis-putas marítimas no mar da ChinaMeridional e a modernização damarinha de guerra chinesa têmvindo a aproximar os países daANSA dos EUA, assistindo-se na re-gião a uma corrida ao armamentonaval.

À semelhança do que tem vindo asuceder com as vias férreas que in-tegram a Nova Rota da Seda chi-nesa, a China também procura do-

tar as infraestruturas portuárias deuma dimensão militar, além da suautilidade civil. Ora, militarizar os por-tos significa apetrechá-los com umconjunto de utensílios que lhes per-mitam servir para ‘operações mili-tares que não sejam de guerra’. Eque utensílios são esses? No casoda necessidade de mobilização detropas chinesas para uma zona deinstabilidade, como em África, su-blinhemos a construção de aeródro-mos para uso militar e civil, com instalações de apoio associadas (terminais, hangares, armazena-mento de combustível) capazes desuportar pesados aviões de trans-porte, bem como a modernizaçãode instalações portuárias estratégi-cas. As operações militares que nãosejam de guerra têm uma dupla ver-tente: defender os interesses daChina no estrangeiro e providenciar

bens públicos à comunidade inter-nacional.

Há um aspeto importante na formacomo a China se serve da sua mari-nha de guerra para proteger os in-teresses chineses no mar. Contraria-mente à marinha dos EstadosUnidos, que utiliza uma abordagemessencialmente militarista, a People’sLiberation Army Navy (PLAN) recorrea um modelo mais subtil, marcadopor um misto de diplomacia e co-mércio, na forma como opera eacede aos portos marítimos estran-geiros. Esta é, na verdade, uma ca-raterística inerente a regimes comoo do Partido Comunista chinês, noqual o Governo controla importan-tes entidades, de que são exemploas National Oil Companies, ou gran-des empresas de transporte marí-timo, como a China Ocean ShippingCompany (COSCO). O que quer istodizer em termos de securitização noâmbito da Nova Rota da Seda marí-tima da China?

Dado que o Partido Comunista chi-nês controla entidades como aCOSCO, a PLAN (braço armado dopartido) tem, por conseguinte,acesso prioritário aos portos onde aCOSCO está presente, tornando-sedesnecessário para a China possuirbases navais permanentes, uma vezque a PLAN tem acesso a tais portospor outros meios. É, por conse-guinte, compreensível que as em-presas chinesas se mostrem ativasna construção, ampliação e gestãode portos um pouco por todo omundo. O porto de Pireu, na Grécia,é um exemplo bastante ilustrativo aeste respeito, não só pela extraordi-nária logística (já que este é o prin-cipal projeto de infraestruturas por-tuárias da China no Ocidente), mastambém pela geopolítica a si subja-cente, enquanto porta de entradapara os contentores chineses comdestino à Europa.

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Figura 5. O Canal de Kra. Fonte: www.bangkokpost.com/print/584473/

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A Nova Rota da Seda ...

O chamado Colar de Pérolas é fun-damental no contexto da militariza-ção da rede portuária, bem comoda proteção dos corredores maríti-mos da Nova Rota da Seda chinesa.Uma vez que a China receia, emcaso de conflito, um embargo pe-trolífero por parte dos Estados Uni-dos, Pequim tem apostado na cria-ção de bases terrestres, responsáveispela segurança das suas rotas deabastecimento. Trata-se de um ‘lito-ral artificial’, formado por pontos deapoio logísticos ao longo das prin-cipais rotas de navegação (desde oMyanmar até ao Estreito de Ormuz),que permite à China vigiar o OceanoÍndico (figura 6).

Ao negociar tal projeto com os paí-ses do Oceano Índico – para garan-tir uma vigilância permanente das linhas marítimas do Índico, e a longadistância, das bases chinesas – aChina está, contudo, a entrar numaesfera que a Índia entende ser o seuestrangeiro próximo. Daqui resulta,

que a cada tentativa chinesa de se-curitizar o acesso a portos-chave doÍndico, Nova Deli responde, por suavez, por meio de uma contraofensivadiplomática, de soft power (que in-clui frequentemente o apoio econó-mico aos Estados da região), no sentido de conter a securitização lo-gística, energética e militar chinesa.Por conseguinte, o ‘Colar de Pérolas’assemelha-se a uma espécie de‘jogo do gato e do rato’ entre Chinae Índia, em que cada potência pro-cura conter os avanços da outra noÍndico, sendo que os principais be-neficiados desta competição geo-política são os Estados como oMyanmar, Bangladesh, Maldivas,

Paquistão, Sri Lanka, Seychelles, queprocuram maximizar os seus interes-ses económicos.

As incursões marítimas chinesas noOceano Índico não são um fenóno-meno recente. As operações decombate à pirataria marítima no

Golfo de Aden, bem como nas res-tantes rotas marítimas que ligam oÍndico ao Suez, explicam o aumentodas atividades navais chinesas noOceano Índico. Ou, pelo menos, ex-plicam em parte, uma vez que talpresença oculta, no entanto, outraquestão que vai muito além da lutacontra a pirataria: o domínio dos ca-nais de comunicação. Na verdade,assistimos atualmente a uma disputatácita entre as grandes potênciaspelo controlo das rotas marítimasque vão desde o Estreito de Bab elMandeb5 ao Estreito de Malaca, ar-térias do comércio mundial. Ditoisto, a China, enquanto grande po-tência, quer projetar o seu poder,tanto mais que se trata de um paísque não está diretamente presenteno Oceano Índico. A pirataria marí-tima é, neste contexto, um argu-mento ‘útil’ para que Pequim se po-sicione mais facilmente numa regiãoque é a zona de influência naturalda Índia.

Qualquer iniciativa em interpretar oque pretende a China do mar, o por-quê de um Colar de Pérolas6 no Ín-dico, os motivos que levam Pequima modernizar a sua marinha, a cons-trução de ilhas artificiais no Mar daChina Meridional, ou, em sentidolato, a proteção das linhas maríti-mas, deve ter presente a evoluçãoda doutrina naval chinesa. Na ver-dade, assistimos hoje a uma mu-dança física (no sentido de umacrescente modernização dos meiosmilitares), que é acompanhada poruma evolução da reflexão estraté-gica. Esta inspira-se, por sua vez,nas teses do americano Alfred Ma-han, segundo o qual o comércio ne-cessita de uma marinha mercante ede uma marinha de guerra para aproteger, bem como de pontos de

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Figura 6. O ‘Colar de Pérolas’.Fonte: http://broadmind.nationalinterest.in/wp-content/uploads/2015/10/i—e1444035160760.png

_________________5 Este estreito separa a Península Arábica de África e liga o Mar Vermelho ao Golfo de Aden, no Oceano Índico.6 Embora o discurso e documentos oficiais chineses neguem categoricamente a existência de uma qualquer estratégia de Colar de Pérolas.

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apoio (abastecimento e reparação)nas vias marítimas. A respeito destespontos de apoio, comungo de umavia média (ou moderada) segundoa qual o modelo de instalação lo-gística de dupla utilização é o maissensato para apoiar futuras opera-ções navais chinesas no Oceano Ín-dico. Contudo, por que está a Chinainteressada em algo mais do quemeras instalações logísticas aolongo dos principais portos? Ouseja, como justificar que Pequim seprepare para inaugurar aquela queserá a sua primeira base naval noestrageiro (no Djibuti)? É uma ques-tão complexa para a qual não existeuma resposta evidente, já que opróprio discurso e documentos ofi-ciais chineses são extremamenteopacos e lacónicos em determina-das questões-chave.

Acredito que apesar de os portosmarítimos no Oceano Índico pode-rem vir a satisfazer as necessidadesda marinha de guerra chinesa, a suautilização tenderá a ser em grande

parte reativa, baseada no receio dePequim face à conjuntura regional,em vez de se pautar por uma estra-tégia (bem) planeada. Por fim, de-fendo a via moderada de que a PaxSinica – no caso do Oceano Índico– pressupõe uma crescente militari-zação das linhas marítimas, contudorelativamente subtil e gradual, ten-dendo a acompanhar a expansãoda atividade comercial chinesa. Noquadro dos esforços de securitiza-ção inerentes ao Colar de Pérolas,que é, por sua vez, uma compo-nente importante da Nova Rota daSeda marítima chinesa, consideropertinente falar de duas ‘pérolas’particularmente relevantes: Gwadare Djibubi.

Gwadar é um dos portos do Índico,com ligações por terra ao flanco oci-dental e meridional da China, sus-cetível de ajudar o Império do Meioa evitar (ou, pelo menos, mitigar) asconsequências do chamado ‘dilemade Malaca’. Além da dinamizaçãoeconómica, o Corredor Económico

China-Paquistão (figura 7), que li-gará Kashgar, no Xinjiang, ao portode Gwadar no Paquistão pressupõe,igualmente, uma securitização fí-sica/militar do Xinjiang. De facto, aoproporcionar ao Xinjiang um acessoao mar – contribuindo simultanea-mente para fazer de Kashgar e deGwadar importantes hubs comer-ciais – Pequim concebe o CorredorEconómico China-Paquistão comoum instrumento suscetível de ate-nuar os sentimentos separatistasque minam a estabilidade do Xin-jiang. Note-se também que o Pa-quistão proporciona à China um cor-redor de comércio e energia, porGwadar, através do qual o petróleoproveniente do Médio Oriente – earmazenado em refinarias em Gwa-dar – chegará à China através deoleodutos e caminhos de ferro. Estecorredor oferece um trajeto maiscurto entre a Ásia Ocidental e aChina, o que permitirá poupançasconsideráveis quer em tempo, querem despesas de frete, uma vez quea rota atual para o transporte de pe-tróleo desde a Ásia ocidental atéaos portos do leste da China, atra-vés do Estreito de Malaca, é decerca de 12 000 km. Acresce aindaum percurso de 3 500 km, por viaterrestre, desde os portos chinesesaté ao Xinjiang. Comparativamente,a rota Gwadar - Xinjiang é de ape-nas 3 000 km.

Em termos de ‘operações militaresque não sejam de guerra’, a logísticainerente ao Corredor EconómicoChina-Paquistão pode contribuirpara que a China securitize os seusinteresses, através de uma rápidamobilização de tropas e equipa-mento militar, a partir dos portos ma-rítimos para o interior, ou desde oscaminhos de ferro em direção aosportos e, posteriormente, para na-vios que se deslocarão, em seguida,para um teatro de guerra offshore.Ainda no plano militar, Gwadar po-

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Figura 7. Gwadar e o Corredor Económico China-Paquistão. Fonte: ww.offiziere.ch/?p=26318

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A Nova Rota da Seda ...

derá proporcionar um posto de ob-servação – e inclusivé um ponto deapoio – para o Exército Popular deLibertação, uma vez que está estra-tegicamente localizado fora do Es-treito de Ormuz, através do qual circula 40 por cento do tráfego pe-trolífero mundial. Podemos resumiros interesses da China face ao portode Gwadar em três grandes objeti-vos: solidificar os seus laços com oPaquistão, diversificar e aumentar asegurança das suas rotas para a im-portação de petróleo e gás natural,e expandir a sua presença noOceano Índico.

Adotando uma postura crítica (queadmite o contraditório), julgo serpertinente apresentar a visãooposta, ou seja, a de que Gwadarnão é tão fundamental quantopossa, eventualmente, parecer noâmbito da Nova Rota Seda chinesa.Faço-o, todavia, sem tomar partidopor nenhuma das visões em con-fronto, pois estou convicto de queas duas se complementam. Ditoisto, alguns especialistas acreditamque mais do que fazer parte do re-ferido Colar de Pérolas da China,Gwadar tenderá, ao invés, a ser umcolar de perigos para a China. Comefeito, de entre os obstáculos a queGwadar se venha a tornar um cen-tro económico chinês, destaque-sea insurgência no Baluquistão (ondeGwadar se situa) e por onde pas-sarão os oleodutos e gasodutospropostos, e também o facto devários líderes tribais se oporem aoinvestimento externo em larga es-cala, temendo que tal traga umafluxo de estrangeiros. Mas existemoutras barreiras: a corrupção endé-mica, a instabilidade política, osatrasos ao nível da burocracia noPaquistão, as recorrentes falhas deeletricidade no país e um historialde não pagar o dinheiro prometidoaos credores externos. Perante es-tes inconvenientes, alguns especia-

listas sugerem que, caso a Chinapretenda utilizar um porto paquis-tanês para fins militares, o porto deKarachi é uma alternativa perfeita-mente viável face a Gwadar, em-bora, do ponto de vista estratégicotenha como desvantagem a suaproximidade relativamente à Índia.Em conclusão, para os partidáriosdesta visão – que critica a sobre-avaliação da importância de Gwa-dar para a China – o porto aindatem um longo caminho a percorrerantes de estar plenamente opera-cional enquanto instalação de trân-sito internacional.

Analisemos agora a importância deDjibuti no âmbito da Nova Rota daSeda marítima da China. A escolhade Djibuti para hospedar a primeirabase naval chinesa no estrangeirotem em si subjacente uma lógica desecuritização logística, comercial,energética, política, militar e de softpower. Antes de mais, a escolha dolocal – no Corno de África – encaixageostrategicamente nas operaçõesde combate à pirataria marítima e,portanto, de proteção das linhas ma-

rítimas. Com efeito, a localizaçãogeográfica de Djibuti confere-lhe,como fronteiras marítimas, o MarVermelho e o Golfo de Aden, arté-rias cruciais no trânsito de navios emrota de/para África, Ásia e Europa(figura 8).

Do ponto de vista técnico-logístico,a primeira base militar chinesa noestrangeiro será edificada num país(o Djibuti, cuja área é menor que ada cidade de Chicago) que albergasimultaneamente outras forças mi-litares estrangeiras – francesas, ja-ponesas, alemãs, italianas e ameri-

canas. O que explica que este localde África seja (tão) atrativo para aspotências militares mundiais? Porum lado, a relativa estabilidade deque beneficia o Djibuti face a umenquadramento securitário regionalconsideravelmente volátil. Por ou-tro, a já referida localização geo-gráfica do país, estratégica não sóno âmbito da proteção das linhasmarítimas, como também terrestres.Além de a geografia ter inquestio-navelmente determinado a escolha

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Figura 8. Mapa do Djibuti. Fonte: www.bbc.com/news/world-africa-33115502

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do Djibuti, por parte da China,acrescente-se que a partir de Dji-buti, os aviões de patrulha maríti-ma chineses poderão sobrevoar amaior parte da Península Arábica edo norte e centro de África sem rea-bastecer.

A construção da primeira base mili-tar da China no estrangeiro (nestecaso, Djibuti) proporciona certa-mente várias leituras geopolíticas, asquais são, por sua vez, influenciadaspelo prisma de valores, entre outros.No entanto, qualquer iniciativa eminterpretar os motivos que levam aChina a modernizar a sua marinha,ou a construir ‘ilhas artificiais’, ou,em sentido lato, a securitizar as li-nhas marítimas, deve ter presente aevolução da doutrina naval chinesaa que anteriormente nos referimos.De entre os elementos que atestamum continuum lógico da securitiza-ção dos interesses navais (e que aju-dam a perceber a razão de ser deuma base naval chinesa, assim comoo porquê de um segundo porta-aviões chinês) atentemos, em espe-cial, no conteúdo do 12º Plano Quin-quenal, que traz uma nova perspetivasobre o mar. O 12º Plano Quinque-nal reflete, na prática, a necessidadede o país garantir a segurança daslinhas marítimas. A China, que atéentão havia privilegiado a terra so-bre o mar, passaria a ser um Estadohíbrido terra-mar, reconhecendo queterra e mar são complementares.

Em termos operacionais, Pequim in-veste cada vez mais numa estraté-gia de sea denial7, afastando-segradualmente, por conseguinte, dasimples defesa das costas chinesas.Mas, para realizar operações mili-

tares em oceano aberto (o que re-quer uma marinha de águas azuis8),existem algumas etapas quantitati-vas, qualitativas, espaciais e tem-porais que devem ser gradual-mente ultrapassadas. É por isso queo Pacífico Sul, embora remoto, éimportante no contexto da prote-ção das linhas marítimas e da ditaprojeção de poder. Com efeito,num contexto em que a marinha

chinesa já indicou a sua intençãode operar regularmente para alémda primeira cadeia de ilhas, que separa os mares do Sul da China,da China Oriental e Amarelo, doOceano Pacífico, as ilhas do Pacíficoservem como uma segunda cadeiade ilhas, suscetíveis de restringir aliberdade de manobra global damarinha do Exército Popular de Li-bertação (figura 9). Por conse-

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Figura 9. A 1ª e 2ª Cadeia de Ilhas. Fonte: www.nippon.com/en/editor/f00021

_________________7 Sea denial é um termo militar que designa as tentativas de negar a um inimigo a capacidade de utilizar o mar (geralmente através debloqueios navais e/ou portuários). Trata-se de uma estratégia muito mais fácil de executar do que a do sea control, uma vez que requer asimples existência de uma marinha.

8 Ou seja, uma marinha capaz de operar em alto mar.

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guinte, do ponto de vista geoestra-tégico, a superação espacial da se-gunda cadeia de ilhas é essencialpara a China. Por um lado, porquenum potencial cenário de hostili-dade, ela permitirá a Pequim impe-dir qualquer tentativa de contençãoda sua marinha de guerra (por partede uma potência rival) e, por outrolado, porque o controlo da segundacadeia de ilhas é indispensável àtransformação da marinha chinesana dita ‘marinha de águas azuis’ (fi-gura 9).

Embora a literatura foque predomi-nantemente as vias marítimas con-vencionais como as artérias, por ex-celência, do comércio mundial, averdade é que as alterações climá-ticas (o célere derretimento do gelopolar) têm vindo a captar gradual-mente a atenção dos especialistaspara a eventual possibilidade de osnavios mercantes poderem utilizaruma rota polar, em complementoàs vias marítimas ditas ‘tradicionais’.Contudo, as visões sobre a eficiên-cia da rota marítima do Ártico nemsempre se afiguram consensuais.Com efeito, não obstante ser in-questionável que a travessia do Ár-tico diminui (em cerca de quarentapor cento) a distância entre Xangaie a Europa, a verdade é que esta éuma visão demasiado redutora deavaliar os benefícios de uma poten-cial Nova Rota da Seda polar. Im-porta, pois, considerarmos outrosfatores para se compreender porque é que alguns autores se mos-tram céticos face às ‘vantagens’ queo cruzamento marítimo do Árticopode proporcionar aos navios mer-cantes chineses. Por exemplo, Varga(2013) estima que a navegação noÁrtico não será economicamenteviável mesmo sob condições ideais.Outros especialistas, tais como Vi-dal, sublinham que até 2040 conti-nuará a ser mais económico efetuartrocas comerciais entre a Europa e

o Oriente através do canal de Suez,desmotivando, por conseguinte, ouso de uma rota polar em detri-mento das linhas marítimas conven-cionais. Esta tese contraria a visãootimista da utilização da chamadaRota do Mar do Norte, segundo aqual além da redução do tempo deviagem (12 a 15 dias menos) com-parativamente à rota tradicional doSuez, a utilização da Rota do Mardo Norte permitiria ainda aliviar otráfego marítimo no Suez, bemcomo nos vários portos ao longo darota convencional que liga a Chinaà Europa.

O especialista Malte Humpert(2013) desvaloriza a importância daRota Marítima do Norte (a azul, na

figura 10), argumentando que asrotas marítimas do Ártico não serãocapazes de competir com as gran-des rotas de comércio mundiais,tendendo a permanecer apenasvias de transporte sazonais. Hum-pert (2013) defende que a constru-ção iminente de navios porta-con-tentores de última geração iráproporcionar uma economia de es-cala bastante melhorada e reduziráos custos ao ponto de a navegaçãodo Ártico não ser economicamenteviável mesmo em condições ideais.Acrescente-se que existem poucosportos ao longo da Rota Marítimado Norte, bem como escassosmeios de salvamento e cartas ma-rítimas suficientemente avançadas.Além disso, no Mar de Laptev, por

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Figura 10. A Rota do Mar do Norte (a azul).Fonte: http://undertheangsanatree.blogspot.tw/2014/09/the-northern-sea-route.html

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exemplo, existem dois estreitosque limitam o calado dos navios a12-15metros, o que impede que anova geração de navios de carga –com um comprimento de mais de366m, uma largura de mais de 49me um calado superior a 15,2m –possa utilizar a rota marítima po-lar.

Em caso algum a travessia do Árticodeve susbstituir-se integralmente àsrotas marítimas convencionais. Nomeu entendimento, quer as rotasmarítimas tradicionais, quer as po-lares devem ser entendidas numaperspetiva de complementaridade.Não quero com isto excluir radical-mente a eventual utilidade sazonalde uma rota marítima polar, mas, porora, num contexto de devir tecnoló-gico e climático, parece ser dema-siado imprudente tirar conclusõessobre matérias que ainda carecem,no curto e médio prazo, de mais ex-perimentação.

Notas finais

Apesar da apreensão da Índia faceao chamado Colar de Pérolas, nãoconsidero que este seja um com-portamento ‘anormal’ numa grandepotência como a China. Na ver-dade, se tivermos em conta a(re)emergência chinesa e o forte na-cionalismo que marcam a China daatualidade, é expetável que o paísconceba o Oceano não só comoum instrumento de securitizaçãoenergética, já que a esmagadoramaioria do petróleo que importapor ele transita, mas também comoum meio de projeção de poder. E,neste sentido, a China adota umcomportamento semelhante ao queoutras potências marítimas tiveramno passado. Muito se especula so-bre a natureza dos interesses chi-neses no porto de Gwadar e na-quela que será a primeira basenaval chinesa no estrangeiro (Dji-

buti). Contudo, o grande ‘efeito sur-presa’ que tal despoleta, no meuentendimento, não reside tanto nodesejo de construir bases no estran-geiro, mas sim no facto de a políticaexterna chinesa ser, na sua essência,uma política de não-interferência.Mas, mesmo aqui, há que ter pru-dência. De facto, embora a ‘nova’China de Xi Jinping já tenha dadoprovas de que a sua conceção dasRelações Internacionais é dinâmicae pragmática, não será admissívelque o país se preocupe em prote-ger a diáspora e interesses chinesesmundo fora?

Neste sentido, encaro Djibuti nãocomo uma verdadeira base militar,nem como uma espécie de provo-cação belicista ao domínio militarde potências como os EUA, masmais como uma instalação logísticasuscetível de servir para operaçõesmilitares que não sejam de guerra,e enquanto símbolo do interesselegítimo de uma potência que sepreocupa em securitizar os fluxosenergéticos numa região minadapela pirataria marítima. Em últimaanálise, a Nova Rota da Seda chi-nesa almeja a (re)emergência pací-fica de uma China nostálgica de umpassado de feitos gloriosos, em-bora imbuída de um nacionalismoexacerbado e de uma busca da le-gitimação de um regime cuja con-tinuidade e credibilidade são in-quietantes. Nesse sentido, a NovaRota da Seda é feita não só de in-fraestruturas e investimentos, deconetividade e de ‘sede’ de recur-sos, mas também de uma narrativaque o Governo compõe para ‘con-sumo interno’, e para apaziguar osreceios da comunidade internacio-nal face às intenções da Chinaneste século.

A nível económico, a China pre-tende proporcionar momentum aoseu yuan face ao dólar americano.

A China quer (re)aproximar a Eu-ropa do Heartland de Mackinder,enfraquecendo assim o longo mo-mentum transatlântico. Ao nível mi-litar, os caminhos de ferro permitemuma projeção de hard e soft powerextraordinários, sendo capaz demobilizar o Exército Popular de Li-bertação para teatros vários, emoperações militares que não sejamde guerra. Por sua vez, no planomarítimo, Gwadar e Djibuti sãopontos de apoio logísticos parauma marinha de guerra que, inspi-rada em Mahan, necessita de pro-teger a marinha mercante e de su-perar a primeira e segunda cadeiade ilhas. Ao nível político, a NovaRota da Seda é uma narrativa queo Partido Comunista chinês constróipara legitimar a sua continuidade.A One Belt One Road é a respostade uma China pragmática e nostál-gica face à instabilidade interna e àdesaceleração económica, propor-cionando margem de manobra auma China que marcha rumo a Oci-dente, num contexto em que o seuflanco leste se encontra mergu-lhado em tensões com os vizinhos(nos mares da China meridional eoriental).

Não obstante o projeto da NovaRota da Seda estar nos seus primór-dios, há várias questões relevantesque o mundo necessita ver respon-didas, dado o seu impacto econó-mico, político, cultural e geoestra-tégico. Uma dessas questões, queno imediato me vem ao espírito,tem que ver com a possibilidade, alongo prazo – à medida, portanto,em que a Nova Rota da Seda chi-nesa progredir – de o dólar e outrasmoedas internacionais, principal-mente as regionais (da periferia asiá-tica da China) virem a ser substituí-das pelo yuan, a moeda chinesa.Uma só moeda faz todo o sentidoenquanto facilitador das trocas co-merciais. Outra questão, a qual me

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incomodou particularmente no ‘SilkRoad Economic Belt Cities Interna-tional Forum’9, no qual estive pre-sente a convite da Embaixada daChina em Portugal, enquanto ora-dor10 – por ter sido repetida váriasvezes, quer pelo ex-Primeiro Minis-tro espanhol José Rodriguez Zapa-tero, quer por outros convidadose/ou oradores.

Passo a explicar. Creio que os chi-neses, mas também outros, terão fi-cado com a perceção de que o fimda longa linha ferroviária entreOriente e Ocidente é Madrid. Não!Portugal tem de estar atento. Só es-tavam dois portugueses no Fórumde Yiwu, eu e o Dr. Rui Lourido, Pre-sidente do Observatório da Chinaem Portugal, sendo que ambos fi-zemos questão de desmistificar aideia de que a Europa continental(não me refiro às regiões insulares)

termina em Espanha. Em vez deMadrid, é Lisboa que deve reter aatenção dos decisores políticos chi-neses, na medida em que Lisboapossui portos marítimos, fluviais,aeroportuários, rodoviários e ferro-viários. É em Lisboa (e não em Madrid) que a Europa continentalabraça o Atlântico, ora rumo aÁfrica, ora rumo às Américas. Lisboapode perfeitamente servir de centrologístico/rede multimodal no âm-bito do esforço chinês de ligar ospovos e as culturas num projeto deprosperidade coletiva e win win.

Termino com uma recomendação(construtiva, espero) com vista ao su-cesso da Nova Rota da Seda chi-nesa. É fundamental que a língua oulínguas não sejam uma barreira aoprojeto chinês. O mundo deve ousaraprender o mandarim (por muito exi-gente que este seja), implemen-

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tando cursos vários nas universida-des, mas também ao nível escolar,já que o mandarim é uma língua defuturo. Porém, o esforço deve sermútuo. Do que pude constataraquando das minhas deslocações àChina, é igualmente crucial que oschineses melhorem o seu inglês (nãome refiro apenas ao chinês comum,mas também, e essencialmente, aosfuncionários públicos, hoteleiros, lo-gísticos, forças de segurança nasruas, entre outros). Ainda há muitadificuldade para um chinês em falarou compreender o inglês. Temo quese não forem feitas diligências mú-tuas, num esforço coletivo para seultrapassar as barreiras linguísticas,o comércio e o Grande Projeto chi-nês possam apenas produzir ganhosparciais, quando o que se pretendeé, no fundo, rentabilizar ao máximoos proveitos de uma cooperação co-letiva.

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_________________9 Que teve lugar nos dias 18 e 19 de junho de 2015, em Yiwu, uma cidade na província chinesa de Zhejiang, a cerca de 300 Km de Xangai.10 Fui falar sobre a construção do mega-canal de Nicarágua, por parte da China.