A NOVA VELHA HISTÓRIA: O RETORNO DA HISTÓRIA · PDF fileEstudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 5, n . 10, 1992, p. 265-271. 3 Outro ponto a ser destacado nesse movimento de renovação

  • Upload
    hangoc

  • View
    217

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

  • Estudos Histricos, Rio de Janeiro, vol. 5, n . 10, 1992, p. 265-271.

    1

    A NOVA "VELHA HISTRIA":O RETORNO DA HISTRIA POLITICA

    Marieta de Moraes Ferreira

    Depois de ter desfrutado de um amplo prestgio durante todo o sculo XIX, a histriapoltica entrou em processo de declnio. A fundao da revista Annales em 1929 na Frana e acriao da VI Seo da cole Pratique des Hautes tudes, tendo como presidente LucienFebvre, em 1948, iriam dar impulso a um profundo movimento de transformao no campodo conhecimento histrico. Em nome de uma histria total, uma gerao de historiadorespassou a questionar a hegemonia do poltico e a defender uma nova concepo de histriaonde o econmico e o social deveriam ocupar lugar fundamental.1

    Desejosa de ir ao fundo das coisas, de apreender o mais profundo da realidade, essanova histria sustentava que as estruturas durveis so mais reais e determinantes do que osacidentes de conjuntura. Seus pressupostos eram que os fenmenos inscritos em uma longadurao so mais significativos do que os movimentos de fraca amplitude, e que oscomportamentos coletivos tm mais importncia sobre o curso da histria do que asiniciativas individuais. As realidades do trabalho e da produo, e no mais regimes polticos,deveriam ser objeto da ateno dos historiadores. Enfim, o fundamental era o estudo dasestruturas: o importante no aquilo que manifesto, aquilo que se v, mas o que est portrs do manifesto. Tudo o que manifesto ao mesmo tempo mais superficial.

    A histria poltica era a anttese dessa nova proposta, pois estava voltada para osacidentes e as circunstncias superficiais e negligenciava as articulaes dos eventos com ascausas mais profundas: era o exemplo tpico da histria dita vnementielle. Ao privilegiar onacional, o particular, o episdico, a histria poltica privava-se da possibilidade decomparao no espao e no tempo e mostrava-se incapaz de elaborar hipteses explicativas ouproduzir generalizaes e snteses que do s discusses do historiador sua dimensocientfica. Era uma histria que permanecia narrativa, restrita a uma descrio linear e semrelevo, concentrando sua ateno nos grandes personagens e desprezando as multidestrabalhadoras.

    A histria poltica reunia portanto um nmero infindvel de defeitos - era elitista,anedtica, individualista, factual, subjetiva, psicologizante -que uma nova gerao dehistoriadores desejava liquidar. Era chegada a hora de passar de uma "histria dos tronos e dasdominaes para aquela dos povos e das sociedades". Segundo Ren Remond, em seu livroPour une histoire politique, no se tratava apenas de criticar uma dada maneira, equivocada,de se fazer histria poltica. O que estava em questo era um conjunto de postulados sobre anatureza do poltico e o sentido de suas relaes com os outros nveis da realidade social. Paraa nova histria, "a poltica era uma pequena coisa na superfcie do real".2

    1 Ver Franois Furet, entrevista publicada na revista Estudos Histricos, Rio de Janeiro, vol. 1, n 1, 1988, p.152; Gerard Noiriel, "Enjeux: une histoire sociale du politique est-elle possible?", Vingtime sicle - Revued'Histoire, n 24, oct-dc. 1989, p. 81-85; Lucien Febvre, Histria, em Carlos Guilherme Mota (org), Febvre,So Paulo, tica, 1978, p.7-31; Brigitte Mazon, Aux origines de l'cole des Hautes tudes en Sciences Sociales:le role du mcnat americain, Paris, Les Editions du Cerf, 1988.2 Ren Remond (org), Pour une histoire politique, Paris, Seuil, 1988, p. 14. Ver tambm Jacques Julliard, "Apoltica", em Jacques Le Goff e Pierre Nora, Histria: novas abordagens, Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1976,p. 181-193.

  • Estudos Histricos, Rio de Janeiro, vol. 5, n . 10, 1992, p. 265-271.

    2

    Ainda nos primeiros tempos dos Annales, as crticas dirigiam-se mais "histriatradicional". Marc Bloch e Lucien Febvre, em seus trabalhos, deixavam espaos para anlisespolticas, estudos biogrficos etc., embora evidentemente a nfase recasse sobre oeconmico. Mas ao longo dos anos 50, com a transformao da VI Seo da cole Pratiquedes Hautes tudes em cole des Hautes tudes en Sciences Sociales, por Braudel, os espaospara os estudos relacionados ao poltico fecharam-se. Para Braudel, o essencial na histria eraexplicado pelas grandes pulsaes econmicas. Alm disso, sua teoria dos trs nveis - longadurao, mdia durao e curta durao - tambm descartava o poltico como instnciarelevante.3

    Foi nos anos 60, quando o marxismo conheceu uma grande expanso na Frana, e seaprofundaram os contatos entre esta doutrina e os Annales que a dimenso poltica dos fatossociais foi especialmente marginalizada. Esta postura deveu-se essencialmente formulaode inmeras criticas ao papel do Estado, visto como mero instrumento da classe dominante,sem nenhuma margem de autonomia. O poltico passava a ser um reflexo das injuneseconmicas, destitudo de dinmica prpria. Alain Touraine declarou a esse respeito quedurante longos anos ocorreu uma interdio na historiografia e nas cincias sociais ao estudodo Estado.

    A convergncia desses diversos fatores explica o descrdito da histria poltica e adifuso da idia de que este era um tipo de histria ultrapassado, anacrnico e condenado pelaascenso das massas e a chegada da democracia. Esse tipo de crtica foi exposto de maneiraexemplar na obra clssica de Pierre Goubert, Louis XIV et vingt millions de franais.4

    Contudo, lentamente este quadro foi alterado, a dimenso poltica dos fatos sociaiscomeou a ganhar novos espaos, num processo chamado por Remond de "renascimento dahistria poltica". Segundo este autor, essa tendncia deve ser entendida em ligao com duasordens de fatores: as transformaes sociais mais amplas, que propiciaram o retorno doprestgio ao campo do poltico, e a prpria dinmica interna da pesquisa histrica.

    As crises constantes que desregularam os mecanismos das economias liberais elevaram o Estado a intervir, ampliando seu raio de ao e dando lugar ao desenvolvimento depolticas pblicas, vieram indicar que as relaes entre a economia e a poltica no tinham umsentido nico. Se no havia dvida de que a presso dos interesses organizados se refletia naimplementao das polticas pblicas, a recproca tambm era verdadeira: a deciso polticapodia mudar o curso da economia. O alargamento da. competncia do Estado foi assimacompanhado da extenso do domnio da ao poltica. As fronteiras que delimitavam ocampo do poltico ampliaram-se significativamente, incorporando novas dimenses e abrindoespao para o surgimento de novos objetos de estudo. A idia de que o poltico tinhaconsistncia prpria e dispunha de uma certa autonomia em relao a outras instncias darealidade social ganhava credibilidade.5

    Ao lado desses fatores exgenos, Remond ressalta as condies internas queimpulsionaram a renovao da histria poltica. As rigorosas crticas que ao longo de dcadasforam dirigidas a esse tipo de histria acabaram por estimular uma reflexo profunda quesuscitou a iniciativa de retomar e redescobrir as grandes contribuies do passado, como as deCharles Seignobos, Andr Siegfried, George Weil, Jean Jacques Chevalier e Jean Touchard.6

    3 Ver Brigitte Mazon, op. cit., e Franois Furet, op. cit., p.150-151.4 Pierre Goubert, Louis XIV et vingt millions de franais, Paris, Fayard, 1966.5 Ver Ren Remond, op. cit., p. 19-21, e Pascal Balmand, "Le renouveau de I'histoire politique", em G. Bourd eHerv Martin, Les coles historiques, Paris, Seuil,1989, p. 363.6 Ren Remond, op. cit., p. 22-27.

  • Estudos Histricos, Rio de Janeiro, vol. 5, n . 10, 1992, p. 265-271.

    3

    Outro ponto a ser destacado nesse movimento de renovao o contato da histriacom outras disciplinas, como a cincia poltica, a sociologia, a lingstica ou a psicanlise,que abriu novos campos e trouxe novos aportes. A pluridisciplinaridade possibilitou o uso denovos conceitos e tcnicas de investigao, bem como a construo de novas problemticas.O ncleo inicial dessa renovao partiu da Fondation Nationale de Sciences Politiques e daUniversidade de Paris X - Nanterre, que funcionaram como espaos de integrao paraespecialistas de origens e formaes diversas. Entre eles, destacamse os nomes de RenRemond, Serge Berstein, Jean-Pierre Rioux, Philippe Levillain, Michel Winock e AntoineProst.

    O eixo central da renovao proposta por esses historiadores decorre do intercmbiocom a cincia poltica, permitindo que o tema da participao na vida poltica ocupe umespao fundamental na histria. Assim, os estudos sobre processo eleitoral, partidos polticos,grupos de presso, opinio pblica, mdia e relaes internacionais tm se expandidoconstantemente. Os contatos com a sociologia, a lingstica e a antropologia tambm tmfrutificado, atravs do desenvolvimento de trabalhos sobre a sociabilidade, anlises dediscurso e histria da cultura. Como exemplos importantes de trabalhos inovadores nessescampos podem ser citados Christophe Charle, Antoine Prost, Raoul Girardet e Serge Berstein.Charle, em seu estudo sobre as elites francesas de 1880 a 1900, influenciado pelos trabalhosde Bourdieu, prope uma anlise prosoprogrfica para acompanhar esse segmento dasociedade. J Antoine Prost, em seu artigo sobre as "Palavras", chama a ateno para asrelaes entre histria e lingstica e mostra como esta abordagem enriquece a percepo dostextos histricos. Girardet, por sua vez, busca renovar a histria poltica atravs do estudo doimaginrio poltico, enfatizando a importncia dos mitos e mitologias polticas comoinstrumentos para se descobrir a inteligibilidade das sociedades. Serge Berstein, preocupadoem entender os comportamentos polticos, chama a ateno para a importncia da culturapoltica: "A cultura poltica unia chave. Ela introduz a diversidade, o social, ritos, smbolos,l onde se acredita que reina o partido, a instituio, o imutvel. Ela permite sondar os rins eos coraes dos atores polticos. Seu estudo mais que enriquecedor, indispensvel."7

    Sem perder de vista a con