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Anais do XV Encontro Estadual de História “1964-2014: Memórias, Testemunhos e Estado”,
11 a 14 de agosto de 2014, UFSC, Florianópolis
A obra de Carmézia Emiliano: das lutas indígenas e de gênero
Elisangela Martins1
Resumo:
Partindo de uma revisão bibliográfica, o trabalho pretende expor um panorama sobre a história de
contato entre o povo macuxi e os colonizadores que ocuparam a região do vale do rio Branco, no
extremo norte do Brasil, a partir do século XIX, até a culminância de um movimento indígena na
década 1970 para, em seguida, cotejar as informações com a análise do Portfólio 2013 da artista
plástica Carmézia Emiliano. No conjunto de mais de quarenta telas presentes nessa apresentação
de sua obra, pode-se verificar diversos elementos que fazem referência direta à vida comunitária e
organização tradicional dos nativos com destaque para a presença da mulher. Conclui-se que a
artista, que é indígena Macuxi, vive na cidade de Boa Vista e tem se destacado como nome
importante da arte naif, emite um discurso visual que pode ser tratado como registro mnemônico
das lutas indígenas e de gênero que ainda hoje marcam a vida dos Macuxi e demais povos nativos
de Roraima.
Palavras-chave: Arte; Memória; Gênero;
Já existem, atualmente, muitos e significativos trabalhos que dão conta de aspectos
importantes da história de Roraima. Produzidos na esteira da renovação historiográfica e da
expansão dos programas de pós-graduação no Brasil desde fins do século XX, tais pesquisas
são peças importantes que, ao tratar da formação da atual sociedade roraimense, descortinam
o necessário contexto em que se deve inserir a leitura das manifestações artísticas que são
produto dessa mesma sociedade. É com base nessa premissa que faço aqui um esforço no
sentido de construir, com dados dessa produção historiográfica, geográfica, antropológica e
sociológica, um texto que se assemelhe ao mosaico ou à colcha de retalhos: feito de
fragmentos que, juntos, pretendem traçar um panorama – ainda que precário, devido ao
espaço reduzido desse tipo de comunicação – que nos auxilie e dê pistas para propor
determinada leitura e interpretação da obra da artista plástica indígena Carmézia Emiliano.
A história da ocupação indígena no extremo norte brasileiro, onde hoje se situa o
estado de Roraima, remonta a tempos imemoriais. Os levantamentos antropológicos,
históricos e arqueológicos apontam para a antiquíssima presença de povos de diferentes
etnias, pertencentes a pelo menos dois grandes troncos linguísticos distintos (caribe e aruaque)
muito antes da chegada dos europeus. Praticando a pesca, a caça, a coleta, a agricultura
1 Mestre em História Social. Docente da Universidade Federal de Roraima. Email: [[email protected]]
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rudimentar e o comércio intertribal, esses povos consolidaram sua ocupação tanto no lavrado
quanto na região das serras (CIDR,1989; FRANK,2002.).
O contato desses primeiros ocupantes com os colonizadores europeus é bem mais
recente. A presença dos portugueses no Vale do Rio Branco tem como marco inicial a
instalação de um Forte Militar no ano de 1775. Junto do Forte, os aldeamentos indígenas com
controle europeu foram a principal estratégia de ocupação da região pelos portugueses
(FARAGE, 1991). Entretanto, como a exemplo do que ocorrera em outras regiões da
Amazônia, os aldeamentos gerassem muitos conflitos entre indígenas e portugueses
(SANTOS, 2012), em fins do século XVIII outras estratégias de ocupação foram testadas.
Assim, se instalaram três fazendas reais de criação extensiva de gado nos campos roraimenses
com objetivo idêntico ao dos aldeamentos e fortes: garantir a posse da terra para o Império
Português.
Com a emancipação do Brasil, em 1822, pouco mudou na região do rio Branco. O
surgimento das primeiras fazendas privadas de criação de gado data de meados do século XIX
e foi somente a partir da segunda metade do oitocentos que a produção de gado tornou-se
significativa de fato. Incentivados pelo crescimento dos mercados consumidores em Manaus e
Tefé, de onde naquele momento se extraía borracha, os fazendeiros cresceram em número e as
fazendas se espalharam pelos campos anteriormente ocupados pelos nativos, que foram
largamente empregados na criação de gado bovino, como relata Jacques Ourique em seu
relatório de 1906.
O sucesso econômico da atividade pecuarista, a exemplo do que ocorrera com o
mercado gomífero que a impulsionou, foi efêmero, marcando, na década de 1920, sério
declínio2. Com a crise da borracha e a consequente retração dos mercados, as fazendas
perderam pujança econômica, mas não diminuíram de tamanho, pelo contrário. Mantiveram-
se como grandes propriedades de terra em que o contato entre colonos – sobretudo de origem
nordestina – e indígenas permaneceu intenso (BARROS,1995).
Em toda a história da Amazônia, fazendeiros e missionários se envolveram em
conflitos nos quais o contato/controle com/dos nativos era a maior razão de contenda. O papel
do Estado (português e posteriormente brasileiro) diante dos conflitos foi, em grande medida,
2 São comuns, por exemplo, os relatos de que, dada a ausência de compradores do gado criado em Roraima, os
fazendeiros tiveram de apelar para o expediente de sacrificar o gado velho para liberar pasto, como registram
Dorval de Magalhaes(1986).
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o de intermediar os interesses envolvidos, ora em favor da Igreja – que se manteve por longo
período como interlocutora entre os indígenas e o restante da sociedade, ora em favor dos
colonos. Em meio a essas disputas, os indígenas buscavam conseguir, de forma pontual e não
organizada, relações que lhes assegurassem melhores condições de vida, atendimento à saúde,
amparo, segurança (CUNHA, 2012).
Em Roraima, os colonizadores destinaram aos nativos o papel de mão de obra barata
nas suas atividades econômicas, por isso era comum a figura de indígenas atuando não apenas
como vaqueiros nas fazendas, mas também como garimpeiros, auxiliares em trabalhos
domésticos, etc (VIEIRA, 2003). Nesse contexto, marcando a relação entre nativos e
fazendeiros, segundo Paulo Santilli (2001), tornaram-se comuns a prática do compadrio e do
clientelismo, em que crianças eram adotadas para viver – e trabalhar - na fazenda, bem como
os préstimos de produtos industrializados, carne e leite aos nativos. Isso explicaria em parte
porque, apesar dos conflitos entre nativos/fazendeiros/missionários, foi se estabelecendo, de
modo generalizado, um discurso de ‘integração pacífica’ do indígena à nova sociedade que se
compunha.
No contexto do Regime Militar (1964-1985), a política para a Amazônia favoreceu a
introdução do grande capital estrangeiro voltado para atividades industriais e de mineração.
Os governos injetaram capital público em construções, sobretudo de estradas e hidrelétricas e
atraíram o pequeno capital nacional para empreendimentos agropecuários. Essa articulação de
capital foi envolvida pela ideologia “integrar para não entregar” que considerava a Amazônia
como uma “terra sem homens para homens sem terra”.
Para Roraima, as obras estatais realizadas em 1970 foram de grande impacto na
formação de uma memória hegemônica que trata a ditadura militar de forma positiva
(MARTINS, 2010). Diminuindo o isolamento imposto pela geografia da região, foram
construídas duas grandes estradas, a BR 174, que corta o atual estado de norte a sul ligando-o
à capital do Amazonas, Manaus e a Perimetral Norte, que, perpendicular à primeira, expandiu
a frente de exploração e colonização rumo ao sudeste do estado em direção ao Pará. A
chegada de migrantes, sobretudo da região nordeste, foi intensificada por programas de
colonização que previam distribuição de lotes de terras para agricultores ao longo de estradas
vicinais que, abertas no sistema de ‘espinha de peixe’, caracterizam até os dias atuais a
ocupação de municípios como Rorainópolis, Caroebe, São Luís do Anauá e São João da
Baliza, no sul do estado de Roraima.
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O processo de modernização conservadora promovido pelos governos militares
provocou acirramento dos conflitos pela ocupação de terras em toda a região amazônica e é
nesse contexto que, na virada da década de 1970 para a seguinte, organizaram-se movimentos
de resistência locais que questionaram tanto o processo acelerado de colonização,
denunciando seus impactos ambientais decorrentes da desenfreada ocupação, quanto exigiram
a garantia do acesso à terra como direito dos moradores tradicionais, leia-se indígenas,
seringueiros, castanheiros, pescadores, etc. Manuela Carneiro da Cunha (2012, p.22) aponta,
nesse sentido, que “no fim da década de 1970 multiplicaram-se as organizações não
governamentais de apoio aos índios, e no início da década de 1980, pela primeira vez, se
organiza um movimento indígena de âmbito nacional.”
É nesse grande cenário que os nativos de Roraima, vendo-se ainda como objeto da
disputa entre as diversas instituições que promoviam, há dois séculos, a colonização (Igreja e
agentes do Estado Nacional), diante da cada vez mais agressiva ocupação de suas terras por
novas atividades econômicas, também começaram a se organizar. Um exemplo desse esforço
de resistência fora o surgimento, em diversas comunidades localizadas na região das serras, de
projetos de produção coletiva. Executados pelas comunidades, fomentados pela Diocese de
Roraima, os projetos de ‘corte e costura’, ‘cantinas’, ‘criação de gado’ e ‘roças comunitárias’
pretendiam diminuir a dependência dos nativos em relação aos fazendeiros, garantindo-lhes
meios de subsistência, fosse através da produção agropecuária ou da extração mineral
(SANTILLI, 2001). Como os líderes indígenas das comunidades deviam reunir-se de tempos
em tempos com vistas a tomar decisões coletivas sobre o que havia sido produzido nos
projetos, registra-se, a partir de 1975, o acontecimento de Assembleias de Tuxauas, reuniões
que são consideradas como momento inicial de um Movimento Indígena que finda se
organizando em todo o Brasil.
No ano de 1977, na comunidade do Maturuca, região das serras ao norte de Roraima,
ocorreu uma manifestação organizada pelas mulheres indígenas que ficou conhecida como
“Vai ou Racha”, documentada, pelo Padre Vincent Carelli no vídeo “Vai ou Racha! 20 anos
de lutas”, de 1998. Segundo o vídeo, as mulheres indígenas, preocupadas com a desagregação
familiar resultante do alcoolismo, identificaram que este era causado sobretudo pelo contato
cada vez maior dos homens das aldeias com bebidas alcóolicas trazidas por garimpeiros. A
manifestação foi marcada pela mobilização feminina que, protestando com firmeza, pretendeu
impedir a entrada de garimpeiros e bebidas alcoólicas em sua comunidade.
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Iniciada em Roraima ainda nas primeiras décadas do século XX, feita por meios
artesanais e com pouco investimento (CAVALCANTI, 1949), a extração de ouro e diamantes
seguiu de modo relativamente tímido até o fim da década de 1980. Como aponta Manuela
Carneiro da Cunha (2012), foi nesse momento histórico que o interesse colonizador,
primeiramente voltado para o trabalho e em seguida para o solo, teria se deslocado mais uma
vez, agora para o subsolo indígena. A descoberta de novos veios de ouro em 1987 provocou
grandes investimentos privados em abertura de pistas de pouso no meio da mata, construção
de barracões e, claro, a mecanização da extração mineral pela técnica da lavagem da terra.
Atraídos pela febre do ouro e promessa de enriquecimento rápido, migrantes de todos os
lugares do Brasil se deslocaram rapidamente para Roraima e a população saltou da casa das
sete dezenas para três centenas de milhares de habitantes em poucos anos. Tal crescimento
populacional impactou fortemente não apenas a capital, Boa Vista, mas também aos
habitantes do interior, sobretudo os indígenas, inclusive aqueles que até então viviam sem
contato direto com a sociedade nacional, como é o caso dos Yanomami (ALBERT, 1991;
RODRIGUES, 1996).
Observada nesse contexto, pode-se afirmar que a manifestação das mulheres da Aldeia
Maturuca de algum modo previu a enorme investida que ainda estaria por vir sobre as
comunidades indígenas e que sua celebração, em 1994, reforçaria o posicionamento de
resistência ao garimpo que, para além das estradas e dos assentamentos agrícolas, foi o
elemento que provavelmente mais acentuou os conflitos entre migrantes e indígenas na
região. Para a história do movimento indígena, essa manifestação é um marco da participação
das mulheres que, somando esforços à luta por direito à terra, contra a interferência dos
‘invasores’ e pela preservação de suas tradições, se impuseram como importantes agentes
políticas, como verdadeiras lideranças comunitárias.
A atividade garimpeira, que tanto impactava os nativos, também não melhorou
significativamente a vida daqueles migrantes pobres que aos milhares correram para as serras
de Roraima em busca do sonho de fácil e rápido enriquecimento (SANTOS, 2013), garantindo
lucros para poucos e gerando graves problemas ambientais3. Apesar disso, o governo local
3 Em termos ambientais, levantamentos que combinaram técnicas de realce e geoprocessamento de imagens de
satélite tomadas entre 1987 e 1994 mostraram que até o ano de 1997, após décadas de exploração garimpeira nas
serras do Tepequém, 287 hectares tinham sofrido com as drenagens e erosões intensas provocadas pelo garimpo,
saltando para um total de 532 hectares atingidos no ano de 1991 (MELO,E. , AMEIDA FILHO, R., 1996)
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tinha interesse na expansão da garimpagem em Roraima e desse modo chocou-se diretamente
com o movimento indígena, garantindo que a exploração mineral seguisse nos mesmos
moldes. Com a promulgação da Constituição de 1988, que ampliou o suporte legal à luta pela
demarcação e homologação das terras indígenas, e com a tragédia da morte do ambientalista
Chico Mendes, ampliando a visibilidade dos conflitos por terra na Amazônia, o Movimento
Indígena organizado, cada vez mais articulado com missionários e autoridades católicas bem
como com organizações não governamentais de defesa ambiental, teve êxito na disputa
política que providenciou um desfecho provisório para os conflitos em 1991, quando, apesar
da consequente autonomia político-administrativa do novo ente federativo que se tornara
Estado, ocorreram, não sem enormes protestos, a Homologação da TI Yanomami e, em
seguida, a proibição do garimpo industrial nas serras de Roraima.
O avanço do garimpo foi uma experiência traumática para os indígenas, sobretudo os
Yanomami4, assim como a proibição da atividade garimpeira também foi tida, por parte
importante da população de Roraima, como uma violência que condenava o jovem Estado à
inviabilidade econômica. A tensão entre os indígenas e a chamada sociedade envolvente
seguiu em algo grau no extremo norte do Brasil e um exemplo disso é o conflito de grandes
proporções em torno do reconhecimento e desintrusão da Terra Indígena Raposa Serra do Sol.
A história dessa Terra Indígena, foco recente de muitos meios de comunicação
nacionais e internacionais, envolve interesses militares, religiosos, de preservação cultural e
exploração econômica. O processo de Demarcação/Homologação levou quase trinta anos até
obter um desfecho favorável aos interesses do Movimento Indígena, em 2005. Naquele ano, a
T.I. de grandes proporções foi homologada em sistema de área contínua pela Presidência da
República. Situada na porção norte e nordeste do estado de Roraima, a Raposa está
definitivamente destinada à posse e usufruto exclusivo dos indígenas mas, mesmo com o
número de mais de vinte mil indivíduos de cinco diferentes etnias vivendo na área, ainda
provoca acalorados debates acadêmicos, políticos e jurídicos, demonstrando que a tensão
entre nativos e colonos não diminuiu até os dias atuais.
Todo esse contexto, reconstituído aqui como uma colcha de retalhos, é válido e
necessário para tratar historicamente da obra de Carmézia Emiliano. Indígena Macuxi,
4 Os impactos sociais e ambientais foram bastante estudados no período e para exemplificar destaco dois dados
de diferentes pesquisas. O primeiro exemplo dá conta do impacto social do garimpo entre os Yanomami, entre os
quais a infecção por malária subiu mais de 500% entre 1987 e 1989 (PITHAN,O; CONFALONIERI, U.;
MORGADO,A.1991).
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nascida na comunidade chamada Japó, Carmézia cresceu na região que atualmente compõe a
Terra Indígena Raposa Serra do Sol, mais especificamente nas serras do município de
Normandia. A exemplo do que ocorreu com milhares de indígenas que, com a intensificação
do contato, foram deixando suas comunidades e seu modo tradicional para viver no meio
urbano, sob um universo bastante distinto daquele em que se criaram, Carmézia mudou-se
para a cidade de Boa Vista, capital do estado, em 1988 e, segundo conta, teria começado a
pintar de modo intuitivo algum tempo depois de ter chegado à cidade. Tendo como tema
quase absoluto a vida na comunidade indígena, a obra de Carmézia (considerada aqui como o
conjunto das quarenta e uma telas apresentadas em seu Portfólio 2013) é um testemunho vivo,
ainda que involuntário, das lutas e percalços dos indígenas em Roraima na busca pela
manutenção/preservação dos elementos formadores de sua identidade.
Tratando especificamente do Portfólio, é importante frisar que o mesmo é distribuído
em meio digital e que as imagens dos quadros, sobre as quais aqui me detenho, não trazem
informações como título da obra ou suas dimensões, demonstrando o relativo amadorismo
que envolve a artista no que diz respeito à sua inserção no espaço da arte. Ainda assim,
Carmézia Emiliano conquistou o prêmio da Bienal de Arte Naif do Salão SESC de
Piracicaba-SP por quatro vezes, além do Prêmio Buriti da Amazônia de Preservação do Meio
Ambiente, em 1996, na categoria Revelação. É considerada, portanto, como artista importante
do seguimento Naif, como registra Roseli Anater (2014) em sua dissertação sobre a pintora.
Do ponto de vista histórico duas características do discurso visual de Carmézia sobre a vida
indígena, quais sejam, a questão da tradição econômico-social e a presença da mulher,
interessam especialmente para demonstrar a estreita relação de sua obra com as lutas
indígenas e de gênero.
Em termos da tradição econômico-social, é instigante perceber que Carmézia não se
ocupa do estrangeiro, aqui entendido como o colonizador, o não-indígena. Em geral, seus
indivíduos são representados desnudos ou vestidos com tangas ou roupas rituais feitas de
palha. Não fosse a presença de parcas peças de roupa ocidental (um vestido, uma bermuda),
se poderia afirmar que a vida nativa retratada pela artista é anterior ao contato com o
colonizador. Esse elemento humano que aparece em suas telas surge completamente integrado
à natureza, sua pele tem a mesma cor da terra.
Em duas telas produzidas pela artista os homens aparecem com exclusividade, sem
dividir espaço com mulheres ou crianças: Na primeira, um guerreiro com arco e flecha,
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acompanhado de dois cães, caça porcos do mato e, na segunda, dois homens aparecem
derrubando a “árvore de todos os frutos”, ilustrando um importante evento da mitologia
Macuxi, quando a árvore, presente da natureza àquela tribo, foi profanada, dando origem à
elevação do Monte Roraima. Em geral, entretanto, as telas retratam indígenas que trabalham
na caça, pesca, coleta, fabrico de utensílios e tecelagem e tais atividades são
predominantemente executadas em conjunto por mulheres, homens e crianças, revelando o
caráter comunitário das práticas cotidianas dos indígenas.
Cenas do trabalho comunitário indígena são comuns na obra de Carmézia. Essa tela é de 2009.
Como se viu anteriormente, em Roraima, especificamente, a colonização inseriu nas
terras ocupadas pelos nativos novas atividades econômicas, como a pecuária e o garimpo.
Sabe-se que tais atividades foram, há tempos, dominadas e praticadas pelos nativos em suas
comunidades. Além disso, sabemos também que, desde o início desse século, com a entrada
definitiva em pauta de uma agenda específica dos direitos à saúde e educação indígena, um
número cada vez maior de nativos garante seu sustento nas comunidades trabalhando como
agentes de saúde ou professores. Mesmo assim, a artista não faz, em suas telas, referência
alguma a essas atividades, deixando a sensação de que seu foco está voltado para a tradição
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econômica da vida indígena em comunidade e não para as alterações pelas quais elas possam
ter passado, no passado ou no presente.
Apesar de viver na cidade, Carmézia apresenta, com essa característica discursiva,
profunda coerência com a postura das mulheres indígenas que, vivendo nas comunidades,
estão engajadas em um “Movimento de mulheres” desde fins da década de 1970 e agrupadas
oficialmente em uma “Organização” (OMIR, Organização das Mulheres Indígenas de
Roraima) desde 1999. Em suas Assembleias, realizadas com expressivo número de
representantes de diversas regiões do estado, as principais preocupações femininas
apresentadas são, em seu entendimento, resultado do contato intensificado com a sociedade
não indígena: a desagregação familiar e a desvalorização da tradição cultural. As mulheres
indígenas se responsabilizam, desde o início de história de mobilização, no já citado evento
do Vai ou Racha, por garantir a sociabilidade comunitária baseada na defesa da família e das
tradições da coletividade. Como mulher indígena, mesmo vivendo e produzindo na cidade,
Carmézia demonstra entender e executar bem esse papel, não dando espaço, em sua obra, para
novas atividades econômicas e destacando apenas aquelas que, geralmente executadas de
forma coletiva, marcaram durante séculos, a vida cotidiana nas comunidades indígenas.
As mulheres são destaque na obra de Carmézia, como nessa tela de 2008.
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Mas não é apenas o elogio da tradição que aparece na obra de Carmézia. O destaque
que a artista dá para as mulheres como ela, chega a parecer uma militância. Os números são
contundentes: Vinte e nove telas, ou o equivalente a quase três quartos da sua produção total
até 2013, retratam mulheres. Enquanto isso, pouco mais da metade desse número retrata
homens. Se em dezesseis telas a figura humana presente é exclusivamente feminina, como já
foi dito anteriormente, em apenas duas (das quinze em que a figura masculina aparece) os
homens figuram sozinhos. Esse destaque pode ser entendido como mais do que uma visão
feminina da vida comunitária. É um manifesto da importância da mulher na composição e
manutenção do cotidiano indígena. As mulheres de Carmézia estão presentes em todas as
atividades. Fiam, sozinhas ou em grupo, coletam e carregam os frutos como o caju e a banana,
ralam a mandioca, preparam o beiju, pilam o milho, produzem a cerâmica. Aparecem
pescando com os companheiros, ou no entorno, preparando a damurida5. Dançam, tomam
banho de rio e, numa clara exaltação de seu papel materno, amamentam e carregam os filhos
em praticamente todas essas situações. Nenhum discurso das mulheres em suas assembleias
poderia valorizar, de modo mais completo e persuasivo, a presença feminina para a
manutenção das tradições indígenas.
Trabalho de Carmézia Emiliano selecionado para a Bienal Naif 2012
A valorização da tradição econômica e social, bem como o destaque para a figura feminina
surgem, em cada tela pintada por Carmézia, em verdadeiras janelas abertas para o dia a dia de
uma comunidade indígena. Com a naturalidade de quem olha para algo sempre visto, dado
que ali cresceu e se criou, a artista retrata os momentos de trabalho e de lazer cotidianos
imprimindo força e naturalidade à sociabilidade comunitária retratada. Entretanto, não é só de
atividades comezinhas que se fazem as telas de Carmézia. Em sua obra também estão
5 Comida típica indígena que se caracteriza por um ensopado muito apimentado de carne ou peixe.
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presentes os grandes felinos, as sereias em banho de rio, a exuberância das cores de aves e da
vegetação que, para além do cotidiano, são detalhes que marcam o imaginário de quem vê
essa vida “de fora”. Ao observar esse aspecto da obra foi impossível, para mim, não
relacioná-lo à habilidade de resiliência do indígena às imposições do colonizador, observada
nos sermões do Padre Vieira e analisado brilhantemente por Viveiros de Castro (2002) em seu
texto sobre “a inconstância da alma selvagem”. No conjunto de suas obras, Carmézia concede
a seu expectador uma hábil condução do olhar, num movimento que expõe a assistência tanto
à comunidade ‘real’, que ela pinta de memória, como à comunidade exótica, possivelmente
‘esperada’.
Obra premiada na Bienal 2010
Nas décadas iniciais do terceiro milênio, indígenas de todo o Brasil, homens e
mulheres, continuam enfrentando desafios imensos na luta por mais direitos, maior inserção
social e reconhecimento sem abrir mão da defesa de seu território e dos seus recursos naturais.
Ao mesmo tempo, buscam reafirmar seus valores tradicionais, como a sociabilidade coletiva
que é tão marcante na tradição e na identidade indígena. A obra de Carmézia Emiliano,
indígena Macuxi nascida na maloca, artista dividida entre a comunidade onde residem “seus
parentes” e a cidade de Boa Vista, onde vive casada com um artista circense e não-indígena,
pode ser lida como um discurso visual contundente sobre o enfrentamento desses desafios.
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