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5 A Oeste Nada de Novo Erich Maria Remarque Tradução de Luís Miguel Coutinho A presente obra respeita as regras do Novo Acordo Ortográfico.

A Oeste Nada de Novoa usar combinações de seda e a tomar banho antes de conversarem com alguém com o posto de capitão ou superior; e, em quarto lugar, eu, Paul Bäumer. Temos,

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A Oeste Nada de NovoErich Maria Remarque

Tradução de Luís Miguel CoutinhoA presente obra respeita as regras do Novo Acordo Ortográfico.

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N O T A D O T R A D U T O R

A tradução inglesa, que serviu de base à versão portuguesa, foi feita a partir da primeira edição de Im Westen Nichts Neues, de Erich Maria Remarque. O original foi publicado em 1929, em Berlim, pela editora Propyläen, do grupo Ullstein. O título em língua inglesa porventura mais conhecido desta obra de Remar-que surgiu em 1929, pela pena de A. W. Wheen. Ora, este título («All Quiet on the Western Front»), não segue exatamente o do texto alemão (original), pois, neste caso, a tradução literal en-cerraria, na língua referida, um tipo de ironia diferente. Conse-quentemente, o título de Wheen tornou-se, com toda a justiça, parte integrante da língua inglesa. Contudo, parece-me que o problema da ironia não se coloca no título português, pelo que este segue literalmente o original alemão e é aqui mantido.

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Esta obra não pretende ser uma acusação nem uma confi ssão, mas simplesmente uma tentativa de descrever uma geração destruída pela guerra... incluindo aqueles que sobreviveram aos bombardeamentos.

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Estamos no acampamento, cerca de oito quilómetros aquém da linha da frente. Os nossos reforços chegaram ontem e temos as barrigas cheias de carne enlatada e feijões. Comemos o sufi ciente e estamos saciados. Até

deu para cada um de nós encher uma marmita para mais tarde e tam-bém há rações dobradas de salsichas e pão, o que nos ajudará a aguen-tar. Há muito tempo que não tínhamos um golpe de sorte como este! O sargento cozinheiro — o do cabelo ruivo — está mesmo a distribuir comida, acenando com a sua concha a quem se aproxima, e a servir doses monumentais. Está a fi car um pouco preocupado, porque receia não conseguir esvaziar o tacho. Tjaden e Müller conseguiram arranjar alguns alguidares algures e convenceram-no a enchê-los até à borda, para lhes servirem de reserva. Tjaden faz este tipo de coisas por pura ganância, mas no caso de Müller trata-se de precauções. Ninguém sabe onde é que Tjaden mete toda aquela comida, pois é — e sempre foi — um pau de virar tripas.

Mas o mais importante é que as rações de tabaco também são a do-brar: dez charutos, vinte cigarros e dois pedaços de tabaco de mascar para cada um, o que já é bom! Propus a Katczinsky trocar os seus cigarros pelo meu tabaco de mascar, fi cando eu com quarenta cigarros, o que chega a dar para um dia!

Para cúmulo, não temos realmente direito a tudo isto, pois o exército nunca é assim tão generoso connosco. Só obtivemos esta bênção por engano.

Há catorze dias, fomos enviados para a linha da frente como reforços. As coisas estavam bastante tranquilas no nosso setor, pelo que o despensei-ro requereu apenas a quantidade necessária de víveres até ao dia em que es-tava previsto voltarmos. Contudo, abasteceu toda uma companhia de cento e cinquenta homens. Porém, no último dia fomos apanhados de surpresa pelo bombardeamento de longo alcance da artilharia pesada do inimigo.

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Os canhões ingleses dispararam sem cessar sobre a nossa posição, causan-do-nos pesadas baixas. Dos que éramos inicialmente, só oitenta voltaram.

A noite já tinha caído quando voltámos, e a primeira coisa que fi -zemos foi prepararmo-nos para uma longa noite de sono. Katczinsky tem razão quando diz que a guerra seria muito menos difícil se pudéssemos dormir mais. Mas, na linha da frente, isso é impossível, e duas semanas de cada vez na frente é muito tempo.

Já era meio-dia quando o primeiro de nós saiu da barraca. Meia hora depois, todos os homens tinham as suas marmitas nas mãos e faziam bicha ao pé da cozinha de campanha, de onde se desprendia um odor a comida a sério, cozinhada em boa gordura. Como é evidente, os mais esfomeados estavam na dianteira da fi la: o pequeno Albert Kropp, que é o mais esperto de nós e foi o primeiro a tornar-se arvorado; Müller — um dos cinco rapa-zes com esse nome na nossa escola —, que ainda anda com os livros atrás e sonha com formar-se mais tarde, ao abrigo da legislação especial (chega a estudar fórmulas de Física sob os bombardeamentos cerrados do inimigo!); Leer, que usa barba, é obcecado pelas raparigas das lojas reservadas aos ofi -ciais e jura mesmo que estas são obrigadas, pelo regulamento do exército, a usar combinações de seda e a tomar banho antes de conversarem com alguém com o posto de capitão ou superior; e, em quarto lugar, eu, Paul Bäumer. Temos, os quatro, dezanove anos de idade e saímos todos da mes-ma turma diretamente para o campo de batalha.

Logo atrás de nós, estão os nossos amigos: Tjaden, um serralheiro magricela da nossa idade, que também é o maior glutão da companhia. Antes de se sentar a comer é magro, mas quando volta a levantar-se já tem uma grande pança; Haie Westhus, que também tem a mesma idade que nós, não pode ver um rabo de saia e facilmente agarra num pão de ração do exército, com uma das suas enormes manápulas, para nos dizer: «Adivi-nhem lá o que é que eu tenho na mão!»; Detering, agricultor, que só pensa no seu terreno e na mulher; e, por fi m, Stanislaus Katczinsky, líder do nosso grupo, duro, astuto, manhoso, com quarenta anos de idade, uma cara gros-seira, olhos azuis, ombros descaídos e uma capacidade extraordinária para arranjar problemas, boa comida e trabalhos fáceis.

O nosso grupo estava à cabeça da fi la da comida. Estávamos a fi car impacientes porque o sargento cozinheiro não sabia o que se passava e con-tinuava à espera.

Por fi m, Katczinsky gritou-lhe:— Despacha-te, companheiro! Abre lá a cozinha! Já toda a gente per-

cebeu que os feijões estão cozidos!Mas ele limitou-se a abanar a cabeça, indolente.— Têm de se pôr todos na fi la primeiro!

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— Mas estamos todos aqui! — exclamou Tjaden, fazendo uma careta.O sargento cozinheiro continuou a não perceber.— Isso era o que tu querias, não era?! Deixem-se de tretas, onde é que

estão os outros?— Não vão ser servidos por ti hoje. Alguns estão num hospital de

campanha qualquer, outros numa vala comum algures.O cozinheiro fi cou bastante abalado quando ouviu o que se passara.

Já não estava tão seguro.— Mas eu cozinhei para cento e cinquenta homens!— É por isso que, desta vez, vamos comer o sufi ciente! — disse Kro-

pp, dando-lhe uma cotovelada nas costelas. — Agora, despacha-te!De repente, uma luz acendeu-se nos olhos de Tjaden e toda a sua cara,

pontiaguda como o focinho de um rato, se iluminou. A astúcia afi lou-lhe o olhar, as bochechas tremeram-lhe e ele aproximou-se.

— Caramba, nesse caso também deves ter requerido rações de pão para cento e cinquenta homens, ou não?

Confuso e sem pensar, o sargento cozinheiro fez um gesto afi rmativo com a cabeça.

— E de salsichas também? — quis saber Tjaden, puxando-lhe pela túnica.

Mais um gesto afi rmativo de Ginger 1.— E de tabaco?O queixo de Tjaden tremia.— Sim, de tudo!Tjaden olhou em redor, com a cara espelhando felicidade.— Valha-nos Deus, isto é o que se chama um golpe de sorte! Quer

dizer que tudo isto é para nós! Toda a gente leva... esperem... É isso! Toda a gente leva o dobro de tudo!

Ao ouvir aquilo, o sargento cozinheiro cabeça de cenoura percebeu o que se estava a passar e disse-nos que não era como pensávamos.

Começámos a fi car um pouco nervosos e avançámos.— Porque é que não é como nós pensamos, cabeça de cenoura? —

quis saber Katczinsky.— Porque oitenta homens não podem ter as rações de cento e cin-

quenta.— Já veremos se podemos ou não — rosnou Müller.— Eu não me importaria de vos dar a comida, mas as outras rações

têm de ser as normais para oitenta homens — insistiu Ginger.Katczinsky começou a fi car irritado.

1 Trata-se de uma alcunha com base na cor do cabelo (ruivo). (N.T.)

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— Estará na altura de te reformares? Não requereste provisões para oitenta homens, mas para a Companhia B, e mais nada! Nós somos a Com-panhia B, portanto podes distribuí-las!

Começámos a cercá-lo. O tipo não era muito popular, pois graças a ele, quando estávamos nas trincheiras, muitas vezes recebíamos a comi-da demasiado tarde — e, mesmo assim, fria! — só porque ele não se dava ao incómodo de se aproximar o sufi ciente com a cozinha de campanha quando ouvia alguns disparos de artilharia. Isso signifi cava que os nossos homens tinham de fazer percursos muito mais longos do que os das outras companhias para irem buscar comida. Nesse capítulo, Bulcke, da Compa-nhia A, era muito melhor. É verdade que era gordo como um hamster no inverno, mas levava os tachos até à linha da frente pelo seu próprio pé, se fosse preciso!

Já estávamos a fi car pelos cabelos e o ambiente teria certamente aque-cido se o comandante da nossa companhia não tivesse chegado entretanto. Perguntou a que se devia aquele burburinho e, naquele momento, limi-tou-se a dizer que tínhamos sofrido pesadas baixas no dia anterior.

— A feijoada parece estar pronta — comentou, olhando para o tacho.— Foi cozinhada em gordura e até tem carne — disse Ginger, acenan-

do com a cabeça.O tenente olhou para nós. Sabia o que nos passava pela cabeça e tam-

bém sabia muitas outras coisas, pois chegara à companhia como ofi cial su-balterno e evoluíra na carreira juntamente connosco. Tornou a levantar a tampa do tacho e cheirou.

— Sirva-me uma boa dose a mim também. Ah, e distribua as outras rações, que bem precisamos delas!

Ginger fez uma careta e Tjaden dançou à sua volta.— Ninguém te está a tirar nada que seja teu! Este gajo porta-se como

se o depósito de provisões fosse sua propriedade pessoal! Despacha-te lá com isso, velho sovina, e vê lá se cumpres as ordens à risca!

— Vão bugiar! — atirou Ginger.Tinha sido derrotado, e isso simplesmente era demais para ele.

Tudo se tinha virado de pantanas. Acabou por distribuir também du-zentos e poucos gramas de mel de Ersatz por cabeça, por sua própria iniciativa, como que para demonstrar que já não se importava com nada daquilo.

Hoje é realmente um bom dia! Até temos correio! Quase toda a gente rece-beu algumas cartas e jornais. Portanto, dirigimo-nos ao campo por detrás

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das casernas. Kropp leva a tampa redonda de uma caixa de margarina de-baixo do braço.

No extremo direito do campo foi construído um enorme bloco de latrinas, um edifício sólido com telhado. Mas é utilizado apenas pelos re-crutas que ainda não aprenderam a retirar o máximo partido de tudo. Nós buscamos algo melhor e, espalhadas um pouco por todo o lado, existem pequenas sanitas portáteis que desempenham exatamente a mesma fun-ção. São quadradas, limpas, feitas de boa madeira, estão próximas umas das outras e têm tampos realmente confortáveis. Também estão equipadas com pegas laterais, para poderem ser transportadas.

Juntámos três em círculo e instalamo-nos confortavelmente. Não nos levantaremos dali durante as próximas horas.

Ainda me lembro de como fi cávamos envergonhados, ao princípio, quando ainda éramos recrutas e tivemos de começar a usar as latrinas co-muns. Não têm portas, pelo que vinte homens tinham de se sentar lado a lado, como se viajassem num comboio. Dessa forma, podiam ser vistos num relance e, claro, os soldados têm de estar permanentemente sob su-pervisão.

Desde essa altura, aprendemos mais do que apenas a lidar com algum pudor. À medida que o tempo foi avançando, os nossos hábitos foram-se alterando bastante.

Aqui, ao ar livre, a coisa torna-se um verdadeiro prazer. Não sei por-que é que costumávamos sempre contornar estas coisas de maneira tão nervosa. No fi m de contas, é uma necessidade tão natural como comer ou beber. E talvez não fosse preciso falar disto se esta realidade não tivesse de-sempenhado um papel tão importante nas nossas vidas e não tivesse sido uma novidade tão grande para nós. Quanto aos outros homens, há muito que já se tinham habituado.

O estômago e o sistema digestivo são coisas muito mais caras a um soldado do que a qualquer outra pessoa. Aliás, três quartos do seu vocabu-lário provêm desta área e, quer pretenda exprimir grande alegria ou extre-ma indignação, recorrerá sempre a alguma explicação pungente relaciona-da com essa zona do corpo. É impossível uma pessoa exprimir-se de forma tão clara e sucinta de qualquer outra forma. As nossas famílias e os nossos professores fi carão bastante surpreendidos quando voltarmos, mas aqui esta é apenas a linguagem que toda a gente usa.

O facto de sermos obrigados a fazer tudo em público levou a que, do nosso ponto de vista, o ato de defecar tenha readquirido a inocência original. Mas, na verdade, a questão vai até mais longe. Isto tornou-se uma coisa tão natural para nós que a realização «comunitária» desta atividade em particular se tornou tão apreciada como, digamos, uma mão imbatí-

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vel num jogo de cartas. Não foi por nada que a expressão «conversas de latrina» acabou por signifi car todo o tipo de mexericos. Estas latrinas são o equivalente castrense da esquina da rua ou do bar favorito.

Neste momento, estamos mais felizes do que estaríamos num lava-bo luxuoso, com azulejos brancos e tudo! O máximo que um lugar desses pode ser é higiénico, mas isto aqui fora é lindo!

São horas passadas numa despreocupação maravilhosa. Temos o céu azul por cima. No horizonte, avistamos os balões de observação amarelos, com o sol refulgindo sobre eles, e os riscos brancos do fumo das balas trace-jantes. Por vezes, vê-se uma barragem repentina dessas munições erguer-se no ar, tentando atingir algum avião.

O ribombar abafado da frente de batalha não é mais do que um tro-vejar longínquo. Até o ruído dos abelhões diminui.

À nossa volta, os campos estão em fl or. As ervas abanam e as bor-boletas das couves esvoaçam, fl utuando ao sabor das brisas cálidas do fi nal de verão, enquanto nós lemos a nossa correspondência e os jornais e fumamos. Tiramos as boinas, pousamo-las ao nosso lado e o vento brinca com os nossos cabelos, com as nossas palavras, com os nossos pensamentos...

As três sanitas portáteis erguem-se por entre papoilas vermelhas res-plandecentes. Pousamos a tampa da caixa de margarina sobre os joelhos e usamo-la como tampo sólido para jogarmos às cartas com o baralho trazi-do por Kropp. A cada par de rodadas, jogamos uma para ver quem conse-gue a pontuação mais baixa. Podíamos fi car ali para sempre!

Houve-se o som de um acordeão vindo das camaratas. Uma e ou-tra vez pousamos as cartas e olhamos uns para os outros. Então, alguém diz: «vou dizer-vos uma coisa, rapazes...» ou «Daquela vez, a coisa podia ter-nos corrido mal...», depois o silêncio impõe-se por momentos. Há uma necessidade muito forte de contenção em todos nós. Todos o sabemos e não é preciso dizê-lo. Podia muito bem ter-se dado o caso de não termos tido a oportunidade de nos sentarmos nas nossas sanitas hoje, visto que nos safámos por uma unha negra. Por esse mesmo motivo, tudo nos pare-ce novo e cheio de vida: as papoilas vermelhas, a comida boa, os cigarros, a brisa de verão...

— Algum de vocês tornou a ver o Kemmerich? — perguntou Kropp.— Está no hospital de St. Joseph — respondi.Müller confi rma que o pobre levou um tiro em cheio na coxa, que lhe

deixou uma ferida capaz de lhe valer o regresso a casa.Decidimos ir visitá-lo à tarde.— O Kantorek manda cumprimentos — anunciou Kropp, acenando

com uma carta.

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Rimo-nos todos.— Quem me dera que fosse ele a estar aqui! — disse Müller, atirando

a beata fora.

Kantorek fora nosso professor. Era um homem de estatura baixa, e muito rigoroso, que usava uma sobrecasaca cinzenta e tinha uma cara de pou-cos amigos. Tinha, mais ou menos, a mesma altura e compleição física do cabo Himmelstoss, o «terror das casernas de Klosterberg». Fazendo um parêntesis, é curioso como, muitas vezes, as desgraças do mundo são causadas por pessoas baixas. São mais temperamentais e de mais difícil relacionamento! Sempre tentei evitar as companhias com comandantes baixos, pois, normalmente, são uns perfeitos estupores!

Kantorek massacrou-nos o juízo nas aulas de Educação Física até toda a turma marchar, sob a sua liderança, até ao centro de recrutamento local e se alistar. Parece que ainda o estou a ver, com os olhos brilhando ao olhar para nós através dos óculos e a voz trémula de emoção ao pergun-tar-nos: «Vão alistar-se, não vão, rapazes?».

Os professores parecem ter sempre os sentimentos à mão de semear, guardados nos bolsos dos coletes. Afi nal, têm de os demonstrar aula após aula. Mas, naquela altura, isto não nos ocorreu nem por um segundo.

Na verdade, um dos da nossa turma até se mostrou relutante e nem queria ir connosco. Era Joseph Behm, um tipo forte e alegre. Porém, no fi m, lá se deixou convencer, pois a sua situação tornar-se-ia insustentável se não fosse connosco. Talvez outros sentissem o mesmo, mas não era fácil evitarmos a tropa, pois, naquela altura, até os nossos pais cuspiam a palavra «cobarde» à menor oportunidade. As pessoas pura e simplesmente não fa-ziam a mais pequena ideia do que estava para vir. Curiosamente, as pessoas mais pobres e simples eram as mais sensíveis, pois consideraram a guerra uma catástrofe desde o início, enquanto as que viviam melhor andavam encantadas com a situação, embora fossem quem estava em muito melhor posição para avaliar as consequências.

Katczinsky costuma dizer que isto é fruto da instrução, que amo-lece o cérebro. E quando Kat diz alguma coisa, é porque já pensou sobre isso!

Estranhamente, Behm foi um dos primeiros a tombarem em comba-te. Foi atingido num olho durante uma carga do inimigo e demo-lo como morto. Não o pudemos levar connosco porque tivemos de bater em retira-da com a maior rapidez possível. Nessa tarde, ouvimo-lo gritar de repente e vimo-lo rastejar pela terra de ninguém. Tinha apenas fi cado inconsciente

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e como não conseguia ver e a dor o enlouquecia, foi abatido pelo inimigo antes de alguém ter conseguido ir buscá-lo.

É claro que isto não está diretamente relacionado com Kantorek... Em que mundo viveríamos se a sua incitação contasse como culpa?! Fosse como fosse, havia milhares de Kantoreks, todos convencidos de que esta-vam a fazer o melhor, da forma que lhes era mais confortável.

Porém, na nossa opinião essa é justamente a raiz da falência moral de toda essa gente.

Supostamente, eram eles quem nos ajudaria a nós, jovens de dezoito anos, a fazer a transição; quem nos guiaria na passagem para a vida adulta, para o mundo do trabalho, um mundo de responsabilidades, de comporta-mentos civilizados e de progresso... Seriam eles quem nos apontaria o futu-ro. Muitas vezes, ridicularizávamo-los, pregávamos-lhes partidas, mas, ba-sicamente, acreditávamos neles. Nas nossas mentes, a noção de autoridade — que era o que eles representavam — implicava um maior discernimento e uma sabedoria mais humana, Contudo, essa convicção estilhaçou-se nos nossos espíritos ao vermos a nossa primeira vítima da guerra. Fomos obri-gados a reconhecer que a nossa geração era mais honesta do que a deles. Só levavam vantagem sobre nós no palavreado e na esperteza. A nossa primei-ra experiência com o fogo da artilharia pesada revelou-nos quão enganados estávamos, e a visão da vida que os seus ensinamentos nos tinham transmi-tido desfez-se em pedaços sob aquele bombardeamento.

Enquanto eles continuavam a escrever e a fazer discursos, nós víamos hospitais de campanha e homens a morrer; enquanto eles apregoavam o serviço à pátria como o ato mais grandioso, nós aprendíamos que o medo da morte era ainda maior. Isto não fez de nós rebeldes nem desertores, nem nos transformou em cobardes — e eles estavam sempre prontos a usar estas palavras — porque amávamos o nosso país tanto como eles e isso atira-va-nos para diante, com toda a bravura, a cada carga do inimigo. Mas pas-sámos a conseguir distinguir as coisas com maior clareza, porque os nossos olhos foram abertos de repente. E vimos que nada restava do mundo deles. De repente, sentimo-nos terrivelmente sós... e também tivemos de suportar esse sentimento sozinhos.

Antes de irmos visitar Kemmerich, reunimos as suas coisas, pois haveria de gostar de as levar para casa.

A confusão é grande no hospital de campanha. Cheira a ácido carbó-lico, pus e suor, como de costume. Uma pessoa habitua-se a muitas coisas nas casernas, mas este ambiente consegue, ainda assim, dar-nos a volta ao

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estômago. Fomos pedindo informações a várias pessoas até darmos com Kemmerich. Está numa enfermaria comprida e faz-nos uma saudação dé-bil, com um olhar que transmite prazer e, ao mesmo tempo, uma agitação desesperada. É que, enquanto estivera inconsciente, alguém lhe roubara o relógio!

— Eu bem te disse para não andares com um relógio tão bom conti-go, não disse? — admoesta-o Müller, abanando a cabeça.

Müller é algo mandão e falta-lhe tato, caso contrário ter-se-ia man-tido calado, pois é óbvio para toda a gente que Kemmerich jamais sairá vivo desta enfermaria. Tanto faz que recupere o relógio como não, porque, quando muito, poderíamos enviá-lo à família dele em seu nome.

— Como é que vai isso, Franz? — pergunta Kropp.— Mais ou menos, acho eu... — responde Kemmerich, deixando cair

a cabeça para trás. — O raio do pé é que me dói que se farta!Olhamos, de relance, para a cobertura da cama. A perna dele está sob

uma armação de ferro, o que faz com que a colcha suba. Dou um toque no tornozelo de Müller, pois ele seria bem capaz de dizer a Kemmerich o que o enfermeiro nos dissera antes de entrarmos: que Kemmerich já não tinha pé porque a perna lhe fora amputada.

Kemmerich está com um aspecto terrível, com a pele amarelada e pálida, e a sua cara começa já a ganhar aquelas rugas estranhas com que estamos tão familiarizados, pois já as vimos centenas de vezes. Na verdade, não são rugas, mas sinais do que se aproxima. Sob a sua pele já não pulsa qualquer réstia de vida, pois esta foi empurrada para as extremidades do corpo e a morte já o invade, espalhando-se a partir do centro. Já lhe che-gou aos olhos. Ali está o nosso camarada Kemmerich, o amigo com quem fritámos bifes de cavalo e que se agachou connosco, no buraco aberto por uma bala de canhão, há não muito tempo. Ainda se vê que é Kemmerich quem ali está, mas já não é verdadeiramente ele... A sua imagem desbotou, esbateu-se como uma chapa fotográfi ca gasta depois de muito usada. Até a sua voz soa a cinzas.

Recordo o dia em que recebemos ordem de marcha. A mãe, uma se-nhora agradável e robusta, foi despedir-se dele à estação. Passou o tempo a chorar e tinha a cara inchada. Isto fez com que Kemmerich se sentisse embaraçado, porque a mãe era a menos composta de todas as senhoras presentes e quase se desfez em gordura e lágrimas. Mas o mais curioso é que ela concentrou-se em mim e não parava de me agarrar o braço, implo-rando-me para que olhasse por Franz quando cá chegássemos. De facto, ele tinha uma fi sionomia bastante jovem e os seus ossos eram tão macios que, passado apenas um mês de mochila às costas, já tinha ganho pés chatos. Mas como é que se olha por alguém num campo de batalha?

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— Com isto, vais para casa — diz Kropp. — De outra forma, terias de esperar mais três ou quatro meses antes de poderes ir de licença.

Kemmerich acena coma cabeça. Não consigo olhar para as mãos dele... Parecem feitas de cera! O pó das trincheiras mantém-se entranhado debaixo das suas unhas e é de um cinzento azulado, como veneno. Pen-so em como aquelas unhas continuarão a crescer durante bastante tem-po, como sinistras raízes subterrâneas, até muito depois de Kemmerich ter parado de respirar. Vejo-as na minha mente, crescendo... crescendo e retorcendo-se em espirais, como saca-rolhas. E na sua caveira descarnada, os cabelos seguir-lhes-ão o exemplo, como relva crescendo em terra fértil... exatamente como a relva. Como é que isto tudo está a acontecer?

— Trouxemos as tuas coisas, Franz — diz Müller, curvando-se.Kemmerich faz-lhe um gesto com a mão.— Põe-nas debaixo da cama.Müller faz o que ele pediu e Kemmerich volta a queixar-se por causa

do relógio. Como é que podemos acalmá-lo sem lhe levantarmos suspei-tas?

Müller torna a erguer-se, agora com um par de botas de aviador da melhor qualidade inglesa nas mãos, feitas de couro amarelo macio, com cano até ao joelho e atacador até acima... Um par de botas realmente ape-tecível! A imagem daquelas botas empolga Müller, que encosta as solas às suas próprias botifarras.

— Vais levar estas botas contigo, Franz? — perguntou.Pensamos os três a mesma coisa: mesmo que Kemmerich melhore,

só poderá usar uma bota, pelo que o par não lhe servirá para nada! E da maneira como as coisas andam, seria uma pena deixá-las aqui, à mercê dos enfermeiros, que as surripiarão assim que ele morrer.

— Porque não as deixas cá? — repete Müller.Kemmerich não quer separar-se delas, pois são o que tem de melhor.— Podias fazer uma troca — sugere Müller, voltando à carga. — Aqui,

poderias trocá-las pelo que quisesses.Mas Kemmerich não se deixa levar.Dou um toque com o pé a Müller e ele volta a pôr o esplêndido par de

botas debaixo da cama.Conversamos um pouco mais e acabamos por nos despedirmos.— Força aí, Franz!Prometo-lhe que volto amanhã. Müller diz que também voltará. Ain-

da está a pensar nas botas de aviador e quer mantê-las debaixo de olho.Kemmerich geme com febre. Encontramos um enfermeiro no exte-

rior e tentamos convencê-lo a dar uma injeção de morfi na ao nosso cama-rada de armas.

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— Se fôssemos a dar morfi na a toda a gente, precisaríamos de quanti-dades industriais dela... — respondeu ele, recusando.

— Só a dão aos ofi ciais, não é? — rosnou Kropp.Apresso-me a intervir e a primeira coisa que faço é oferecer um cigar-

ro ao enfermeiro, que o aceita. Em seguida, pergunto-lhe:— Está autorizado a dar injeções?— Se acha que não tenho, para que é que pergunta? — indagou ele,

algo irritado.— Era um favor que nos fazia... — insisti, passando-lhe mais alguns

cigarros para a mão.— Bem... está bem — cedeu.Kropp entra com o enfermeiro porque não confi a nele e quer vê-lo

dar a injeção. Nós esperamos cá fora.— Servir-me-iam como luvas! — comentou Müller, voltando ao as-

sunto das botas. — Com estas botifarras até as minhas bolhas ganham bo-lhas! Achas que ele dura até voltarmos, amanhã? Se morre durante a noite, lá se vão as botas...

— Não achas que... — começou Albert, voltando.— Já percebi — atalhou Müller, acabando o assunto ali.Voltamos ao acampamento e penso na carta que terei de enviar à mãe

de Kemmerich, amanhã. Tremo, e não me importaria nada de beber algu-ma coisa cheia de álcool. Müller arranca algumas ervas enquanto masca o caule de uma. De repente, o pequeno Kropp atira o cigarro fora, pisa-o como louco, lança um olhar perturbado e desfocado em redor, e exclama:

— Merda! Merda! Tudo isto não passa de uma montanha de merda!Caminhamos durante algum tempo e Kropp acalma-se. Todos sabe-

mos o que se passa: é apenas a tensão por estarmos na linha da frente. To-dos temos estas reações de vez em quando.

— O que é que o Kantorek dizia na carta? — pergunta Müller.Ele ri-se.— Chama-nos a «juventude de ferro»!Isto arranca-nos uma gargalhada aos três, mas não por ter piada. Kro-

pp pragueja. Está feliz por conseguir falar outra vez...E é isto... sim, é isto que eles pensam, os tais cem mil Kantoreks. «Ju-

ventude de ferro»... Jovens? É verdade que nenhum de nós tem mais de vinte anos de idade. Mas daí a sermos jovens... Isso já foi há muito tempo. Agora somos velhos.

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É estranho pensar que, em casa, numa gaveta, tenho guardada a primeira parte de uma peça intitulada Saul, que uma vez comecei a escrever, tal como um monte de poemas. Passei muitas tardes com aquilo. Todos fa-

zíamos coisas destas, mas tudo se tornou tão irreal para mim que já nem consigo imaginar-me a fazê-las.

Quando viemos para aqui, fi cámos desligados de tudo o que tí-nhamos feito até então, independentemente da nossa vontade. Muitas vezes, tentamos encontrar um motivo ou uma explicação para este fe-nómeno, mas nunca o conseguimos inteiramente. As coisas são par-ticularmente confusas para os jovens de vinte anos, como o Kropp, o Müller, o Leer e eu — aqueles a quem Kantorek chamou «juventude de ferro». Os mais velhos mantêm laços fi rmes que os prendem às suas vidas anteriores: as suas propriedades; as esposas; os fi lhos; os empre-gos e outros interesses... E estes laços são tão fortes que a guerra não os consegue quebrar! Mas nós, que só temos vinte anos, temos apenas os nossos pais e, no caso de alguns, as namoradas. Isto não é grande coisa, pois nas nossas idades a infl uência dos pais está no seu nível mais baixo e as mulheres ainda não são o ponto fulcral das nossas vidas. Para além destas coisas, não temos, de facto, muito mais. Talvez algum interesse ocasional por qualquer coisa, alguns passatempos, a escola... As nossas vidas ainda não tinham ido muito além disto. Agora, já nem destas coisas sobra o que quer que seja!

Kantorek diria que ainda estávamos no princípio da vida, o que não deixa de ser uma grande verdade, pois ainda não tínhamos tido a oportu-nidade de criar quaisquer raízes. Porém, a guerra ceifou-nos. Para os outros — os homens mais velhos —, a guerra é apenas uma interrupção, e conse-guem pensar para lá do fi m do confl ito. Mas nós fomos varridos pela guer-ra e não conseguimos vislumbrar como é que as coisas vão correr. Tudo o

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que sabemos, de momento, é que, de algum modo estranho e melancólico, endurecemos, apesar de isso já não nos entristecer.

O facto de Müller querer fi car com as botas de aviador de Kemmerich não o torna mais insensível do que alguém que considerasse tal pensamento demasiado indigno para sequer levar em consideração. O que acontece é que ele consegue separar as coisas na sua cabeça. Se as botas tivessem algu-ma utilidade para Kemmerich, Müller preferiria caminhar descalço sobre arame farpado a pensar em fi car com elas por um instante que fosse. Mas, neste caso, as botas são objetos que já nada têm a ver com a condição em que Kemmerich se encontra. Porém, seriam úteis a Müller. Kemmerich vai morrer de qualquer forma, portanto, porque não haveria ele de tentar fi car com elas? Afi nal, tem mais direito às botas do que um enfermeiro qualquer! Contudo, quando Kemmerich morrer, já será demasiado tarde para as ob-ter. É por isso que Müller se mantém de olho nelas.

Perdemos toda a capacidade de ver as coisas de outras formas, porque as outras formas são artifi ciais. Para nós, só os factos contam, e um bom par de botas é algo difícil de encontrar.

Não fomos sempre assim. Dirigimo-nos ao centro de recrutamento local quando ainda éramos uma turma de vinte jovens e, em seguida, deslocá-mo-nos em massa, todos emproados, ao barbeiro — alguns de nós pela primeira vez —, antes de pormos os pés numa parada. Não tínhamos planos sérios para o futuro e muito poucos de nós pensavam em carrei-ras ou trabalhos sufi cientemente seguros para poderem signifi car algu-ma coisa em termos práticos. Por outro lado, tínhamos as cabeças cheias de ideias vagas que transmitiam um brilho fantasioso e quase romântico à vida e até à guerra.

Tivemos dez semanas de recruta e isso mudou-nos de uma forma mais radical do que dez anos na escola. Aprendemos que um botão da farda polido é mais importante do que um monte de livros de fi losofi a. Acabá-mos por nos aperceber — a princípio com espanto, depois com amargura e, por fi m, com indiferença — de que, aparentemente, o mais importante não era o intelecto, as ideias ou a liberdade, mas o escovilhão de limpar a arma, o sistema e o treino. Alistáramo-nos com entusiasmo e boa vontade, mas o exército fez tudo para extirpar estes sentimentos de nós. Após três semanas, já não nos parecia estranho que um antigo carteiro com um par de divisas

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tivesse mais poder sobre nós do que alguma vez tiveram os nossos pais — ou os professores, e até toda a civilização, desde Platão a Goethe. Com os nossos olhos jovens e arregalados, percebemos que a noção clássica de patriotismo que aprendêramos com os nossos professores signifi cava, em termos práticos — naquele momento —, pormos de parte a nossa persona-lidade individual de uma forma mais absoluta do que alguma vez poderí-amos acreditar ser possível, mesmo nos mais servis dos moços de recados. Fazer continência, com os olhos fi xos; marchar; apresentar armas; rodar para a esquerda ou para a direita; pormo-nos em sentido; sofrermos in-sultos e adquirirmos um leque interminável de pensamentos sangrentos... Imagináramos que a nossa missão seria bastante diferente de tudo isto, mas descobrimos que estávamos a ser treinados para sermos heróis da mesma forma como são adestrados os cavalos dos circos e depressa nos habituá-mos a isso. Chegámos até a compreender que algumas destas coisas eram necessárias, enquanto, pela mesma lógica, outras eram totalmente supér-fl uas. Os soldados depressa aprendem a distinguir umas das outras.

A nossa turma foi distribuída pelos diferentes pelotões em grupos de três ou quatro, misturando-se com pescadores das Ilhas Frísias, agricultores, trabalhadores e artesãos. Depressa nos tornámos seus amigos. Kropp, Mül-ler, Kemmerich e eu fomos colocados no Nono Pelotão, comandado pelo cabo Himmelstoss.

Este cabo era considerado o maior estupor de todo o exército, distin-ção de que se gabava. Era um tipo baixo e entroncado, com doze anos de experiência na reserva, um bigode arruivado de pontas enceradas e, na sua vida civil, era carteiro. Implicava especialmente comigo, com Kropp, com Tjaden e com Westhus porque pressentia o nosso velado desafi o.

Certo dia, tive de lhe fazer a cama catorze vezes! E, de todas elas, ele encontrou sempre defeitos que bastassem para eu ter de a desfazer. Em ou-tra ocasião, passei vinte horas — com intervalos, claro — a polir um par de botas velhas e duras como pedra até fi carem moles como manteiga, e fi -lo de tal forma bem que nem Himmelstoss encontrou qualquer ponta por onde pegar. Às suas ordens, esfreguei também o soalho da messe dos cabos com uma escova de dentes! Foi igualmente às suas ordens que, uma vez, eu e Kro-pp passámos pela experiência de varrermos a neve do chão da parada com uma vassoura e uma pá do lixo e teríamos continuado até morrermos con-gelados se não tivesse aparecido um tenente que nos mandou para dentro e deu uma tremenda «descasca» a Himmelstoss. Infelizmente, isso só serviu para o virar ainda mais contra nós. Por isso, durante um mês fui posto de

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guarda aos domingos e o cabo fez de mim seu criado de quarto durante esse mesmo período. Tive de praticar o «De pé! Marche! P’ró chão!» com todo o equipamento — incluindo a arma — num lamaçal até me transformar num monte de lama e cair exausto. Quatro horas depois, tinha de me apresentar a Himmelstoss, para a inspeção, com o equipamento impecavelmente limpo, apesar de ter as mãos esfoladas e a sangrar. O Kropp, o Westhus, o Tjaden e eu éramos obrigados a mantermo-nos em sentido, sem luvas, sob um frio gélido e cortante, e com as mãos nos canos das espingardas, enquanto Him-melstoss andava à nossa volta, tentando notar o menor movimento para nos poder castigar ainda mais. Uma ocasião, tive de subir e descer entre o último andar e o rés-do-chão das casernas a correr oito vezes, de roupa interior, às duas da manhã, porque as minhas ceroulas ultrapassavam um centímetro e pouco mais do que deviam a borda do banco onde mantínhamos a roupa dobrada. Enquanto cabo de serviço, Himmelstoss correu ao meu lado, pi-sando-me. No treino com a baioneta, eu fazia regularmente equipa com ele e tinha de usar uma arma pesada, de ferro, enquanto ele usava uma imitação de madeira para lhe ser mais fácil encher-me os braços de nódoas negras. Não obstante, certa vez enfureci-me tanto que, cego de raiva, atirei-me a ele e desferi-lhe tamanha pancada no estômago que o fi z cair de costas. Quando apresentou queixa de mim, o comandante da companhia limitou-se a rir e a dizer-lhe para ter mais cuidado. É que já conhecia Himmelstoss de longa data e não pareceu importar-se com o facto de o cabo ter sido apanhado de surpresa. Consegui ser dos melhores nas escaladas do curso de assalto e quase fui o melhor nos outros exercícios físicos.

Certo domingo, quando eu e Kropp fomos destacados para trans-portar os baldes das latrinas pela parada pendurados num pau que ambos levávamos aos ombros, aconteceu que Himmelstoss passou por nós todo aperaltado e pronto para sair. Deteve-se diante de nós e perguntou-nos se estávamos a divertir-nos. Perante isto, fi ngimos tropeçar — apesar de estar-mos parados — e entornámos um balde de imundícies por cima das pernas dele. Ficou furibundo, mas nós já tínhamos chegado ao ponto em que não aguentávamos mais.

— Hão de ir parar à prisão por isto! — vociferou.Mas Kropp já estava farto dele.— Não antes de ser instaurado um inquérito, e aí é que vamos contar

toda a verdade! — retorquiu.— Como se atreve a dirigir-se a um ofi cial nesses termos?! — rugiu

Himmelstoss. — Acaso enlouqueceu?! O senhor só fala quando lhe derem autorização para isso! O que é que disse que ia fazer?!

— Disse que contaria toda a verdade sobre o cabo Himmelstoss, nos-so cabo! — respondeu Kropp, pondo-se em sentido.

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Himmelstoss percebeu o recado e virou costas sem responder, embo-ra não tenha resistido a resmungar, antes de desaparecer, que nos faria pa-gar a todos por isto. Porém, aquele episódio representou o fi m do seu poder sobre nós. Durante o treino de campo, voltou a tentar massacrar-nos com os seus «P’ró chão! De pé! Marchar!». Obedecíamos a todas as suas ordens, claro, pois ordens são ordens e têm de ser cumpridas, mas cumpríamo-las com tal lentidão que quase o levámos ao desespero. Fazíamos tudo a um ritmo lento e confortável, ajoelhando-nos, depois deitando-nos sobre os cotovelos, e por aí adiante. Quando acabávamos de cumprir a ordem dada, já ele tinha debitado outra, enraivecido. Ficou rouco antes de nós termos começado sequer a transpirar.

A partir daí, deixou-nos em paz. É claro que continuou a chamar-nos «porcos miseráveis», mas já se lhe notava um certo respeito na voz.

Não faltavam cabos decentes no exército, homens mais razoáveis. Eram até a maioria. Cada um pretendia, principalmente, manter os seus trabalhos seguros na vida civil durante o maior período de tempo possível, e só o poderiam conseguir sendo duros para com os recrutas.

Neste processo, provavelmente tivemos de suportar os exercícios de parada até ao mais ínfi mo pormenor e, muitas vezes, fi cámos tão ir-ritados que quase gritámos. Aqueles exercícios deixaram muitos de nós doentes e um — Wolf — chegou a morrer de pneumonia, mas teríamos sentido vergonha de nós próprios se tivéssemos desistido. Tornámo-nos duros, desconfi ados, insensíveis, vingativos e brutais — o que acabou por ser bom, pois aquelas eram características de que necessitávamos. Se nos tivessem enviado para as trincheiras sem este tipo de treino, prova-velmente a maior parte de nós teria enlouquecido. Assim, fi cámos pre-parados para o que nos esperava.

Não desencorajámos, antes nos adaptámos. O facto de termos ape-nas vinte anos ajudou-nos nesse processo, apesar de ter tornado outras coi-sas tão difíceis. Mas o mais importante de tudo é que desenvolvemos um sentimento de solidariedade fi rme e prático, que, no campo de batalha, se transformou na melhor coisa que a guerra produzia: a camaradagem em combate!

Estou sentado ao pé da cama de Kemmerich. O seu estado vai piorando a olhos vistos. A azáfama à nossa volta é grande, pois acabou de chegar um comboio de feridos e o pessoal hospitalar vai identifi cando os feridos que podem ser transferidos. Um médico passa pela cama de Kemmerich e nem olha para ele.

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— Para a próxima, Franz — digo-lhe.Levanta-se, apoiando-se num cotovelo e encostado à almofada.— Amputaram-me a perna...Acabara por se aperceber... Aceno-lhe que sim com a cabeça e, em jeito

de resposta, digo-lhe que devia dar-se por feliz por só lhe ter acontecido aquilo.Kemmerich não me responde e continuo a falar.— Podias ter fi cado sem as duas pernas, Franz. O Wegler perdeu o

braço direito, o que é muito pior! Além disso, isto signifi ca que vais para casa.— Achas mesmo que vou? — pergunta ele, olhando para mim.— Claro que acho!— Achas mesmo? — insiste.— Claro que vais voltar para casa Franz! Só precisas de recuperar da

operação, mais nada...Franz faz-me sinal para me aproximar um pouco mais. Debruço-me

sobre ele.— Não me parece que chegue a ir para casa — sussurra-me.— Não digas esses disparates, Franz! Daqui a uns dias já verás como

tenho razão! Uma perna amputada não é assim uma coisa tão grave... Hoje em dia os médicos fazem operações muito piores!

— Olha só para os meus dedos — diz, erguendo a mão.— Isso é tudo por causa da operação. Come decentemente e vais ver

como engordas logo outra vez! Eles estão a alimentar-te como deve ser?Franz aponta para um prato meio cheio e eu começo a preocupar-me.— Franz, tens de comer! Comer é o mais importante para te curares e

a comida é muito boa, aqui.Abana a cabeça.— Eu sonhava tornar-me guarda-fl orestal... — disse pouco depois,

arrastando a voz.— Ainda podes vir a ser — respondo-lhe, tentando tranquilizá-lo. —

Hoje em dia, fabricam próteses extraordinárias... Mal se nota que são pró-teses! Fixam-nas aos músculos e as pessoas até conseguem mexer os dedos de uma mão artifi cial e usá-la normalmente, até para escrever! Além disso, a tecnologia está sempre a evoluir.

Franz permanece calado durante algum tempo, depois diz:— Podes levar as minhas botas de aviador e dá-las ao Müller.Assinto com a cabeça e tento dizer-lhe alguma coisa que o anime.

Tem os lábios pálidos, a boca tornou-se maior e os dentes sobressaem-lhe bastante, como se fossem feitos de giz. A carne está a desaparecer-lhe e a sua testa é agora mais alta e os ossos da cara mais salientes. O esqueleto vai emergindo... Já tem os olhos encovados e, dentro de algumas horas, tudo terá terminado.

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Franz não é o único que vi naquele estado, mas crescemos juntos e isso torna sempre as coisas diferentes. Copiei trabalhos da escola por ele... Quando éramos estudantes, ele costumava usar um casaco castanho com cinto e partes das mangas coçadas. Além disso, era o único de nós que conseguia elevar o queixo acima da trave, nas aulas de ginástica. O cabelo roçava-lhe a cara como seda, quando o fazia. Kantorek tinha orgulho nele por ser capaz de executar aquele exercício. Porém, não suportava cigarros. Tinha a pele muito alva e qualquer coisa de feminino.

Olho para as minhas próprias botas. São grandes e pesadas e tenho as calças entaladas nos canos. Aquelas fardas largas fazem com que pareçamos sólidos e fortes de pé, mas quando nos despimos para nadar, de repente as nossas pernas tornam-se fi nas e os ombros estreitos. Nessas alturas, deixa-mos de ser soldados para quase voltarmos a ser meninos da escola. Nesses momentos, ninguém acreditaria que podemos com todo o equipamento. É uma coisa mesmo estranha, quando nos despimos: voltamos a ser civis, e quase nos sentimos civis!

Sempre que íamos à piscina, Franz Kemmerich costumava parecer tão pequeno e magro como uma criança. Agora, está ali deitado, naquela cama... e porquê? Toda a humanidade deveria ser obrigada a passar diante da sua cama e ouvir: «Este é Franz Kemmerich. Tem dezanove anos e meio de idade e não quer morrer! Não o deixem morrer!».

Os pensamentos atropelam-se-me na cabeça. O fedor a ácido carbó-lico e a gangrena entope os pulmões como uma papa grossa e sufocante.

Está a escurecer. A cara de Kemmerich está cada vez mais pálida... Sobressai na almofada e já está tão branca que parece luminosa. Faz um ligeiro movimento com a boca e eu aproximo-me.

— Se encontrares o meu relógio, envia-o para minha casa — sussur-ra-me.

Não o contradigo. Já não vale a pena. Já passou do ponto em que eu ainda o podia contradizer. A minha impotência frustra-me. Aquela testa, encovada nas têmporas; aquela boca, que já é só dentes; aquele nariz estrei-to e descarnado... e a mulher gorda e lavada em lágrimas a quem eu teria de escrever... Quem me dera já ter esse dever cumprido!

Os enfermeiros andam de um lado para o outro, carregando botijas e baldes. Um aproxima-se de nós, lança um olhar a Kemmerich e torna a afastar-se. É evidente que está à espera. Talvez precise da cama...

Aproximo-me de Franz e começo a falar, como se isso o pudesse salvar.— Talvez te mandem para aquela enfermaria em Klosterberg, Franz,

onde fi cam as casas grandes. Aí, da janela do teu quarto, poderás observar os campos até às duas árvores que se erguem no horizonte. E agora é a melhor altura, porque o milho está a despontar e os campos fi cam com

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uma cor que parece madrepérola quando lhes dá o sol da tarde. Verás a fi a-da de álamos que existe junto à margem do riacho em que costumávamos apanhar peixes-espinho. Poderás até comprar outro aquário e voltar a criar peixes e sair sem teres de pedir autorização a ninguém e voltar até a tocar piano, se te apetecer...

Debruço-me sobre a sua cara, que já mergulhou na sombra. Continua a respirar, mas a sua respiração é muito débil. Tem a cara húmida porque está a chorar. Valeu bem a pena, a minha estúpida tagarelice!

— Vá lá, Franz...Ponho o braço em torno dos seus ombros e aproximo a minha cara

da sua.— Apetece-te dormir?Não responde. As lágrimas continuam a escorrer-lhe pela cara e eu

gostaria de lhas limpar, mas tenho o lenço demasiado sujo.Passa uma hora e eu ali sentado, tenso, observando cada um dos

seus movimentos, para o caso de ele querer dizer alguma coisa. Se ao menos abrisse a boca e desse um berro! Mas só chora, com a cabeça virada para o outro lado... Não fala da mãe ou dos irmãos e das irmãs... Não diz nada. É possível que já esteja muito para lá de tudo isso. Agora está sozinho, com os seus curtos dezanove anos de vida, e chora porque essa vida está a fugir-lhe.

Esta é a despedida mais dura, mais desesperadamente difícil por que alguma vez passei, apesar de também ter sido difícil no caso de Tjaden, que não parava de gritar pela mãe. Tjaden era um tipo estupendo e duro que manteve o médico afastado da sua cama com uma baioneta e os olhos arregalados de terror até cair para o lado.

Kemmerich geme de repente e ouve-se um farfalhar saindo-lhe da garganta.

Levanto-me de repente e corro lá para fora.— Onde está o médico?Vejo uma bata branca e agarro-a.— Por favor, venha depressa ou Franz Kemmerich morre!— O que é que se passa aqui?! — pergunta o médico a um enfermeiro

que se encontrava próximo, libertando-se de mim.— Cama vinte e seis — responde-lhe o enfermeiro. — Amputação

pela parte superior da coxa.— Como é que eu havia de saber?! — atira o médico. — Já fi z cinco

amputações de pernas, hoje!Depois, afasta-me da sua frente e diz ao enfermeiro:— Trate você disto! — ordenou, apressando-se na direção da sala de

operações.

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Sigo o enfermeiro, estremecendo de fúria.— Isto tem sido uma operação atrás da outra, desde as cinco da ma-

nhã — disse o homem, virando a cabeça para olhar para mim. — Uma loucura, digo-lho eu! Só hoje, já sofremos mais dezasseis baixas, e o seu homem será a décima sétima! Esperamos pelo menos vinte...

Sinto-me desfalecer. De repente, deixei de conseguir continuar. Já nem sequer me apetece praguejar... Não vale a pena... Só me apetece dei-tar-me e nunca mais me levantar.

Chegamos à cama de Kemmerich. Está morto. Tem a cara húmida das lágrimas e os olhos, semiabertos, parecem tão amarelos como aqueles botões de osso antiquados.

— Vai levar as coisas dele? — pergunta o enfermeiro, dando-me um toque com o cotovelo.

Faço sinal que sim com a cabeça.— Temos de o mudar imediatamente — prossegue. — Precisamos da

cama. Já os temos deitados no chão, lá fora!Pego nas coisas e desprendo a chapa de identifi cação de Kemmerich.

O enfermeiro pergunta pela caderneta militar, mas não está junto com as suas coisas. Respondo-lhe que deve estar na casa da guarda e saio. Atrás de mim, os enfermeiros embrulham-no já numa lona.

Ao chegar ao exterior, a escuridão e o vento são uma bênção. Inspiro o mais que posso e sinto o ar mais quente e suave na cara do que nunca. Passam-me pela cabeça, numa sucessão rápida, imagens de raparigas, cam-pos de fl ores e nuvens brancas. Os meus pés avançam, dentro das botas. Vou mais depressa, vou a correr. Soldados avançam na minha direção e oiço as suas palavras, embora não compreenda o que dizem. Toda a Terra transpira energia, uma energia que me percorre, entrando-me no corpo pelas plantas dos pés. A noite estala de eletricidade e ouve-se um troar sur-do, vindo da linha da frente, como um concerto para timbales. Os meus membros movem-se facilmente e as minhas articulações revelam pujança enquanto a minha respiração se vai tornando ofegante com o esforço. A noite está viva! Eu estou vivo! Sinto fome, mas é uma fome que ultrapassa o simples desejo de comer...

Müller espera-me diante das camaratas e eu entrego-lhe as botas de aviador. Entramos e ele experimenta-as. Servem-lhe na perfeição!

Procura algo entre o seu equipamento e dá-me um bom naco de sala-me. E também há chá quente com rum.

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Estamos a receber reforços. Os buracos nas fi leiras estão preenchidos e as tarimbas com colchões de palha das camaratas não tardam a ser ocupa-das. Alguns dos recrutas recém-chegados são soldados experientes, mas

a nossa companhia também recebeu vinte e cinco jovens acabados de sair dos centros de recrutamento. São quase um ano mais novos do que nós.

— Já viste os putos? — pergunta-me Kropp, dando-me uma cotove-lada.

Faço sinal que sim com a cabeça. Pavoneamo-nos um bocado por ali, fazemos a barba no recinto da parada, pomos as mãos nos bolsos, olhamos para os novos recrutas e sentimo-nos como se já tivéssemos sido incorpo-rados há mil anos.

Katczinsky junta-se a nós. Deambulamos pelos estábulos e depara-mo-nos com os recrutas, que recebem, neste instante, as suas máscaras an-tigás e algum café. Kat diz a um deles — o mais novo — que até apostava que não viam comida decente há bastante tempo.

— Comemos pão de nabo ao pequeno-almoço — responde o recru-ta, fazendo uma careta —, nabos ao almoço e «costeletas de nabo» com salada de nabo ao jantar.

Katczinsky solta um assobio de aprovação.— Pão de nabo?! Têm muita sorte, por que já o andam a fazer com

serradura! E quanto a feijões? Já ia uma boa colherada, não?— Também não é preciso estares a gozar! — exclama o jovem solda-

do, corando.— Traz lá a tua marmita — limita-se a responder-lhe Katczinsky.Seguimo-lo, curiosos, e ele levou-nos até um grande caixote que esta-

va ao pé da sua tarimba. É claro que estava meio cheio de feijões com carne enlatada. Katczinsky pôs-se diante dele, como um general, e disse:

— «Olho vivo e dedo furtivo», é o lema do exército!

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Estamos espantados!— Caramba, Kat, como é que deste com isto?! — pergunto-lhe.— O velho Ginger fi cou feliz por se ver livre disto. Dei-lhe três peda-

ços de seda de paraquedas em troca. Bem, os feijões são bons, mesmo frios!Dito isto, serve uma porção ao soldado jovem com uma vénia gene-

rosa e diz-lhe:— Na próxima vez em que apareceres aqui com a marmita, trazes

também um charuto ou algum tabaco de mascar na outra mão, estás a per-ceber?

Depois, vira-se para nós:— É claro que vocês levam a vossa porção de graça!

Não conseguiríamos sobreviver sem o Katczinsky... É que ele tem uma espécie de «sexto sentido». Há homens como ele em todo o lado, mas não os conseguimos identifi car só de olharmos para eles. Todas as com-panhias têm um ou dois, mas Katczinsky é o mais esperto que conheço. Acho que é sapateiro de profi ssão, mas isto não quer dizer nada, pois o homem é mestre em tudo! É bom ser-se amigo dele! Eu e o Kropp so-mos e o Haie Westhus também pertence mais ou menos ao grupo, mas é apenas um instrumento ao serviço de Kat para as situações em que é preciso um bom braço direito. Nesses casos, é sempre bom ter o Westhus por perto.

Por exemplo, certa noite fomos dar a um sítio que desconhecíamos completamente, um depósito miserável que se via logo que tinha sido des-pojado de tudo o que não estava aparafusado a algum lado. Ficámos aquar-telados num edifício pequeno e escuro que acabara de ser preparado para ser usado. Tinha camas — ou melhor, armações de camas que mais não eram do que duas tábuas unidas por uma rede.

Ora, as redes eram duras e não dispúnhamos de cobertores para as cobrirmos, pois precisávamos dos que tínhamos para nos taparmos. E a lona era um material demasiado fi no.

Kat avaliou o espaço e disse a Haie Westhus: «Vamos». E lá foram eles, embrenhando-se na noite daquele lugar que nos era completamente desconhecido. Meia hora depois, voltaram com os braços carregados de palha. Kat encontrara alguns estábulos e fora daí que trouxera a palha. Já poderíamos dormir mais aconchegados, se não tivéssemos tanta fome!

Kat perguntou a um artilheiro que andava por aquela zona havia já algum tempo se havia por ali alguma cantina.

O homem riu-se.

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— Nenhuma! Aqui não existe nada! Nem uma côdea de pão encon-trarão por estas bandas!

— Então quer dizer que não sobra nenhum natural deste lugar?— Ah, sim — responde o artilheiro, cuspindo para o chão —, há uma

ou duas pessoas, mas limitam-se a circundar qualquer cozinha de campa-nha que avistem e a roubar o que podem.

Eram más notícias, porque signifi cavam que teríamos de apertar o cinto até à manhã seguinte, altura em que receberíamos as rações.

É então que vejo Kat pondo o bivaque na cabeça.— Aonde é que vais, Kat?— Vou dar uma espreitadela por aí — respondeu, inclinando-se para sair.— Espreite à vontade — retorquiu o artilheiro, com um sorriso sar-

cástico. — Veja lá, não se canse muito a apanhar tudo o que encontrar.Deitámo-nos, dececionados, pensando em se deveríamos atacar as

nossas rações de emergência ou não. Mas não queríamos arriscar-nos a fi -carmos sem elas, pelo que, em vez disso, tentámos passar pelas brasas.

Kropp partiu um cigarro ao meio e deu-me metade. Tjaden pôs-se a descrever a sua especialidade no que se referia aos pratos típicos da sua região: favas cozidas com bacon. Criticou as pessoas que tentavam cozinhar aquele prato sem as ervas moídas adequadas. A questão era que todos os ingredientes tinham de ser cozidos ao mesmo tempo. As batatas, as favas e o toucinho jamais deviam ser cozidos separadamente! Nesse momento, alguém resmungou que o cortaria aos bocados e o misturaria com as ervas adequadas se ele não se calasse imediatamente. Depois, instalou-se o silên-cio naquele espaço enorme. Só algumas velas tremeluziam em gargalos de garrafas vazias e o artilheiro cuspia de vez em quando.

Começávamos a adormecer quando a porta se abriu e vimos surgir Kat. Julguei estar a sonhar: trazia duas carcaças debaixo do braço e uma saca ensanguentada, cheia de carne de cavalo, na mão.

O artilheiro deixou cair o cachimbo da boca e apalpou o pão.— Acabadinho de cozer! É pão a sério e ainda está quente!Foi tudo o que Kat disse. Trazia pão e isso era quanto bastava. Nada

mais importava. Tenho a certeza de que, se o deixassem no deserto, ar-ranjaria uma refeição de tâmaras, carne grelhada e vinho no espaço de uma hora.

Depois, deu uma ordem curta a Haie.— Corta alguma lenha.Em seguida, tirou uma frigideira de baixo do casaco e um punhado

de sal e um pedaço de gordura de um bolso. Pensara em tudo! Haie acen-deu uma fogueira no chão. O crepitar dos cepos ouve-se por toda a fábrica. Arrastámo-nos para fora das tarimbas.

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O artilheiro não sabia muito bem o que fazer. Perguntou a si mesmo se deveria ou não felicitar Kat. Se o felicitasse, talvez tivesse direito a uma porção. Porém, Katczinsky nem reparou nele. O homem até podia ser invi-sível. Portanto, o soldado afastou-se, praguejando.

Kat tem jeito para cozinhar carne de cavalo de maneira a esta fi car realmente tenra. Não a podemos pôr logo na frigideira porque fi ca dema-siado dura. Primeiro, tem de cozer ligeiramente em alguma água. Sentá-mo-nos em círculos, de facas nas mãos, e enchemos as barrigas.

Kat é assim mesmo! Se houvesse algum lugar no mundo em que se pudesse encontrar alguma coisa para comer apenas numa determina-da hora do ano, ele apareceria exatamente nesse momento, como se fosse guiado até ao local por uma espécie de instinto. Depois, poria o bivaque na cabeça, sairia, daria meia dúzia de voltas e encontraria a comida.

Aquele homem consegue encontrar qualquer coisa: fogões de cam-panha e lenha quando faz frio; feno e palha; mesas e cadeiras; mas sobre-tudo comida! Ninguém sabe como é que ele faz aquilo... É como se fi zesse aparecer as coisas do nada! A sua obra-prima consistiu em quatro latas de lagosta. E vejam lá que, na verdade, até teríamos preferido banha!

Esticámo-nos no lado solarengo do acampamento. Cheira a alcatrão, a ve-rão e a pés transpirados. Kat está sentado ao meu lado porque gosta de con-versar. Esta tarde passámos uma hora a praticar a continência porque Tja-den saudou um major de forma descuidada e Kat não esquece o assunto.

— Cuidado, rapazes — diz ele —, que ainda perdemos a guerra por sermos demasiado bons na continência!

Kropp aproxima-se de nós descalço e com as calças enroladas para cima. Tinha lavado as meias e pô-las a secar, estendidas na relva. Kat fi ta o céu, larga um daqueles bem ruidosos e diz, meio a dormir e à laia de comentário:

— Meus meninos, todos os feijõezinhos nos fazem sempre soltar al-guns gases!

Kropp e ele começam a discutir. Ao mesmo tempo, apostam uma garrafa de cerveja no resultado do combate entre dois aviões, que decorre sobre as nossas cabeças.

Kat mantém o ponto de vista que, soldado experiente como é, resu-me na seguinte rima: «rações iguais, soldos iguais/Adeus guerra, que já lá vais!».

Kropp, por outro lado, é mais fi losófi co e opina que todas as declara-ções de guerra deveriam ser transformadas numa espécie de festival, com

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cobrança de bilhetes e música, como nas touradas. Depois, os ministros e generais dos dois países entrariam na arena com calções de boxe e armados com bastões de borracha e desatariam à pancada uns aos outros. O país de quem, no fi nal, permanecesse de pé seria declarado vencedor. Isso seria mais simples e mais justo do que as coisas são por aqui, onde as pessoas erradas andam a matar-se umas às outras.

Esta hipótese agrada-nos. Entretanto, a conversa diverge para a ins-trução militar e vem-me à cabeça uma imagem: é meio-dia e o sol brilha na parada das casernas de Klosterberg. O calor paira por lá e tudo se mantém em silêncio. As casernas parecem mortas. Tudo dorme. A única coisa que se ouve é o rufar dos tamborileiros praticando. Instalaram-se em algum lado e praticam sem muita arte, monótona e desinteressadamente. O calor do meio-dia, a parada e os tamborileiros praticando... Que trio!

As janelas das casernas encontram-se vazias e às escuras. Em algu-mas, veem-se calças de combate penduradas, secando. Lançamos olhares lânguidos às camaratas, cujos quartos estão frescos.

Oh, camaratas de pelotão escuras e bafi entas, com as vossas tarim-bas, as vossas roupas de cama axadrezadas e os vossos cacifos altos, com os bancos diante! Até vós podeis ser objetos de desejo! Vistas daqui, chegais a adquirir a maravilhosa aura do lar, apesar dos vossos enormes espaços coletivos cheios dos odores a comida retardada, a sono, a fumo e a roupa transpirada!

Katczinsky descreve-as em tons garridos e com grande fervor. O que não daríamos para voltarmos àquelas camaratas! Não nos atrevemos a ir mais além nos nossos pensamentos.

Oh, instrução com armas, logo de manhã! «Como é que se desmonta uma espingarda de uso corrente?». Oh, sessões vespertinas de treino físico! «Que desapareçam daqui todas as fl ores de estufa! Direita, volver! Apresen-tem-se nas cozinhas para descascarem batatas!».

Dedicamo-nos, com prazer, às nossas memórias. De repente, Kropp solta uma gargalhada e diz:

— «Transbordo em Löhne»!Era o nome do exercício favorito do cabo Himmelstoss. Löhne é uma

estação de caminhos-de-ferro onde temos de mudar de comboio e Him-mesltoss fazia-nos treinar a mudança de plataformas na caserna. O objetivo era aprendermos que, naquela estação, apanhávamos o comboio de ligação passando por um túnel subterrâneo. Ora, as nossas tarimbas representa-vam esse túnel e todos tínhamos de nos pôr em sentido no lado esquerdo. Depois, era dada a ordem «Transbordo em Löhne!» e toda a gente tinha de passar o mais rapidamente possível por debaixo da tarimba e sair pelo outro lado. Praticávamos aquilo durante horas a fi o...

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Entretanto, um avião alemão foi abatido e cai agora como um cometa, deixando um rasto de fumo atrás de si. Kropp perdeu uma garrafa de cer-veja e paga-a com uma graciosidade pouco sincera.

— Tenho a certeza de que o Himmelstoss é um tipo porreiro nas fun-ções de carteiro — digo eu, depois de Kropp se recompor da sua desilusão —, portanto como é possível que seja um sacana como cabo?!

A pergunta torna a animar Kropp.— Não é só o Himmelstoss. Há muitos como ele. Assim que se apa-

nham com um par de divisas ou uma ou duas estrelas tornam-se pessoas completamente diferentes e começam a comportar-se como se comessem barras de ferro ao pequeno-almoço.

— Queres dizer, então, que é o uniforme que os faz mudar? — per-gunto.

— Mais ou menos — responde Kat, sentando-se para desenvolver o assunto. — Os verdadeiros motivos são algo diferentes. Repara numa coisa: se treinares um cão para comer só batatas e passado algum tempo lhe de-res um pedaço de carne, ele comê-lo-á à mesma, pois é esse o seu instinto natural. Se ofereceres algum poder a um homem, sucederá o mesmo: ele agarra-o logo! É uma coisa instintiva, porque, no fi m de contas, o Homem é basicamente um animal que, a certa altura, recebe uma camada de decên-cia da mesma forma como barras um pouco de gordura no teu pão. O que acontece no exército é que há sempre pessoas com poder para mandar nos outros. O problema é que todas elas têm demasiado poder: um cabo pode chatear um soldado; um tenente pode dar cabo da paciência a um ofi cial subalterno e um capitão pode atenazar o juízo a um tenente até dar com ele em doido. E como todos eles têm consciência disto, todos acabam por se habituar à ideia. Vejamos o exemplo mais simples: voltamos da parada e estamos completamente estoirados. Dão-nos uma ordem para cantarmos. A cantoria não é muito alegre porque já nos damos por felizes por conse-guirmos manter as espingardas na mão sem as deixarmos cair. Quando damos por nós, o batalhão recebe a ordem de «Meia-volta, volver!» e somos submetidos a uma hora de exercícios militares de castigo. Ao voltarmos, é-nos de novo ordenado que cantemos, e, então, cantamos a sério. Qual é o objetivo de tudo isto? O objetivo é mostrar que o homem no comando levou a dele avante porque tem poder para isso. Ninguém o vai admoestar! Pelo contrário, ganha a reputação de ofi cial intransigente! E este é apenas um exemplo trivial, porque eles têm várias outras formas de nos massacra-rem. Por isso, pergunto: independentemente da profi ssão que um homem tenha na sua vida civil, em que outro trabalho poderia ele ter este tipo de comportamento sem levar um murro na cara? A única instituição onde isto é possível é o exército! Estás a ver aonde é que eu quero chegar? O poder

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sobe-lhes sempre à cabeça! E quanto mais rebaixados tiverem sido nas suas vidas civis, tanto mais o poder lhes sobe à cabeça quando chegam a ofi ciais do exército!

— Eles dizem que a disciplina é uma coisa necessária... — intervém Kropp, pouco convicto.

— Eles arranjam sempre justifi cações — resmungou Kat. — E isso até pode ser verdade, mas não é preciso massacrar as pessoas. Vai lá tentar explicar isso aos serralheiros, aos moços das cavalariças ou ao trabalhador... Tenta explicar isso ao raio da infantaria! Afi nal, eles sempre são a maioria, no exército... A única coisa que estas pessoas veem é que lhes estão a mas-sacrar o juízo e que, depois, são enviadas para a frente de combate. Mas sabem perfeitamente o que é necessário e o que não é. Só vos digo é que me espanta como é que os soldados continuam na frente de batalha! É es-pantoso!

Todos concordamos, pois todos sabemos que só quando nos encon-tramos, de facto, nas trincheiras, é que os exercícios militares na parada são interrompidos, para serem retomados antes de tornarmos a percorrer o tal quilómetro e meio atrás das trincheiras, por mais inúteis que nos possam parecer as continências ou a marcha em formação. É que existe uma regra inquebrável: um soldado tem de estar sempre ocupado!

Mas eis que surge Tjaden, afogueado. Está tão nervoso que até gague-ja, mas, ainda assim, consegue falar, com uma careta espalhando-se-lhe por toda a face:

— Vem aí o Himmelstoss! Foi enviado para a frente!

*

Tjaden não suporta Himmelstoss porque o cabo decidira dar-lhe uma lição à sua maneira «especial» na caserna. Tjaden urina na cama. Isto é, quando está a dormir, aquilo simplesmente acontece-lhe... Mas Himmelstoss insis-tia em que a situação se devia a preguiça pura e simples, e não havia quem o convencesse do contrário. Consequentemente, engendrou um método para curar Tjaden que era realmente típico da sua pessoa.

Descobriu outro soldado que também urinava na cama numa das ou-tras casernas — tratava-se de um homem chamado Kindervater — e pô-lo a dormir no beliche de Tjaden. A caserna onde fazíamos os exercícios mi-litares tinha os beliches habituais, com uma tarimba por cima da outra, e a parte de baixo de cada cama era feita de rede. Himmelstoss arranjou manei-ra de os dois homens fi carem juntos, um na tarimba de cima e o outro na de baixo. É evidente que o que dormia na parte de baixo tinha um problema... bastante chato! Para compensar, trocavam de lugar todas as noites e o que

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tinha fi cado na tarimba de baixo na noite anterior tinha a oportunidade de se vingar na seguinte. Era este o conceito de autoajuda de Himmelstoss.

Era uma ideia mal-intencionada, mas sã em termos lógicos. Infeliz-mente, não resultou porque as premissas básicas estavam erradas: não era a preguiça que causava aquele problema aos dois homens. Toda a gente percebia isso só de olhar para as suas caras adoentadas. Tudo aquilo acabou com eles a dormirem no chão à vez e o que dormia no chão arriscava-se seriamente a morrer de frio.

Entretanto, chega Haie, que se senta ao pé de nós. Lança-me um olhar de relance, enquanto esfrega, pensativo, as suas enormes manápulas. Parti-lhámos ambos o melhor dia das nossas carreiras militares. Foi na noite an-tes de termos sido enviados para a frente de combate. Fôramos integrados num dos regimentos que tinham acabado de ser formados, mas antes disso tínhamos recebido ordens para voltarmos à guarnição para recebermos o equipamento. Não era o centro de recrutamento, mas uma das outras caser-nas. Estava previsto que partíssemos muito cedo, na manhã seguinte. Nessa noite, vingámo-nos de Himmelstoss. Já tínhamos jurado fazê-lo semanas antes. Kropp até tinha dito que, depois da guerra, tentaria arranjar um tra-balho administrativo nos correios para que, mais tarde, viesse a ser chefe de Himmelstoss, quando este voltasse a ser carteiro. Pintou um quadro fl orido de como o arrasaria. Aqui está o verdadeiro motivo por que Himmelstoss nunca conseguiu vergar-nos: é que tínhamos a certeza de que acabaríamos por nos vingar dele algum dia, nem que fosse depois da guerra.

Entretanto, contentar-nos-íamos com dar-lhe uma valente sova. O que poderia acontecer-nos se ele não nos visse? De qualquer forma, já tí-nhamos ordem de marcha para a manhã seguinte...

Sabíamos qual era o bar que ele frequentava à noite e, para voltar des-se bar para a caserna, teria de passar por um caminho escuro, sem quais-quer edifícios. Montámos-lhe a emboscada atrás de um monte de rochas. Eu tinha uma manta feita de retalhos comigo e todos tremíamos de ante-cipação, perguntando-nos se viria sozinho ou não. Ouvimos, fi nalmente, os seus passos. Era um som que conhecíamos muito bem, pois tínhamo-lo ouvido vezes sufi cientes de manhã, antes de o homem escancarar a porta à bruta e berrar: «De pé!».

— Vem sozinho? — sussurrou Kropp.— Vem.Tjaden e eu contornámos, agachados, o monte de pedras. Víamos já

o luar refl etindo-se na fi vela do seu cinto. Himmelstoss parecia um pouco «tocado» e vinha a cantarolar. Passou por nós sem dar por nada.

Agarrámos bem a manta, avançámos em silêncio, passámo-la por cima da cabeça dele — por detrás — e puxámo-la para baixo, de forma que

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ele fi cou ali como que metido dentro de um saco branco e impossibilitado de mexer os braços.

A cantoria morreu-lhe nos lábios...No instante seguinte, já Westhus estava ao pé de nós e afastou-nos,

abrindo os braços, desejoso de ser ele a ter a honra de dar início à «cerimó-nia». Pôs-se em posição com um ar extremamente sádico, levantou o braço como uma cancela de linha férrea — com uma mão do tamanho de uma pá na ponta — e desferiu um murro no saco branco que teria derrubado um boi!

Himmelstoss perdeu o equilíbrio, rebolou meia dúzia de metros e co-meçou a gritar. Também tínhamos previsto essa possibilidade e levámos uma almofada connosco. Haie agachou-se, pousou a almofada no joelho, agarrou a manta onde lhe pareceu que estaria a cabeça de Himmelstoss e enfi ou-a na almofada. O ruído foi abafado imediatamente. Haie deixava-o respirar de vez em quando e o que saía da garganta do cabo era um maravi-lhoso guincho agudo que era logo interrompido.

Depois, Tjaden desprendeu-lhe os suspensórios e puxou-lhe as calças para baixo, com um batedor de carpetes de cana entre os dentes. Em segui-da, levantou-se e pôs-se em ação.

Foi uma cena maravilhosa: Himmelstoss no chão; Haie debruçado sobre ele com a cabeça do homem entre os joelhos, um sorriso diabólico na cara e a boca aberta, numa expressão deliciada; as ceroulas baixadas, retor-cendo-se, e as pernas apertadas uma contra a outra, com as calças ao nível dos tornozelos, fazendo movimentos espetaculares a cada golpe desferido! Tjaden, que não mostrava sinais de cansaço, debruçava-se sobre Himmels-toss como um lenhador. No fi m, tivemos literalmente de o empurrar para também termos direito à nossa vez.

Por fi m, Haie tornou a erguer Himmelstoss e encarregou-se pesso-almente do último ato. Puxou o braço direito tão atrás antes de desferir o murro que parecia querer arrancar estrelas do céu noturno. Himmelstoss foi ao chão, Haie tornou a erguê-lo e a levantá-lo e desferiu-lhe um segundo e magnífi co murro com a mão esquerda. O cabo soltou um gemido e caiu de gatas, com o seu rabo de carteiro nu brilhando ao luar.

Depois, fugimos o mais depressa que pudemos.Haie olhou em redor e disse, com ar de satisfação, mas num tom algo

estranho:— A vingança é deliciosa como um festim!Na verdade, Himmelstoss deveria ter fi cado contente, pois o princípio

— que lhe era tão caro — de que nos devíamos formar uns aos outros dera os seus frutos quando o aplicámos nele. Revelámo-nos alunos aplicados e rápidos a aprendermos os seus métodos.

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Nunca soube a quem é que tinha de agradecer por aquilo. De qual-quer forma, ainda fi cou a ganhar uma manta, pois meia hora mais tarde, quando voltámos para a irmos buscar, tinha desaparecido.

Essa noite foi o motivo de nos termos mostrado razoavelmente bem-dispostos no início da manhã seguinte. Por causa deste episódio, um dos soldados mais velhos mostrou-se tão emocionado que se referiu a nós como «jovens heróis»!

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Fomos enviados para a frente de combate com a missão de colocarmos arame farpado. Os camiões aparecem para nos virem buscar assim que começa a escurecer. Subimos a bordo. A noite está quente, o crepúsculo

é como um cobertor que nos envolve e sentimo-nos confortáveis com esta proteção. É algo que nos aproxima. Até Tjaden, que, normalmente, é um pouco avarento, me dá um cigarro, depois de o acender.

Viajamos de pé, como sardinha em lata, e ninguém pode sentar-se. De qualquer forma, também não estamos habituados a sentar-nos. Finalmente, Müller está outra vez bem-humorado: tem as suas novas botas calçadas!

Os motores aceleram e os camiões chocalham com estridor. As estra-das estão desgastadas e cheias de buracos. Não é possível circular de luzes acesas, pelo que passamos por buracos e quase somos atirados para fora do camião. É uma possibilidade que não nos preocupa muito. Afi nal, o que interessava? Sempre era melhor um braço partido do que um buraco na barriga e, na verdade, muitos de nós aceitaríamos de bom grado essa opor-tunidade de sermos mandados para casa.

Ao nosso lado, passam colunas intermináveis de camiões carregados de munições. Vão com pressa e ultrapassam-nos constantemente. Grita-mos piadas aos homens que neles viajam, e eles respondem-nos.

Avistamos uma parede que pertence a uma casa um pouco afastada da estrada. De repente, arrebito a orelha. Será possível?! Torno a ouvir o ruído, desta feita claramente. Gansos! Olho de relance para Katczinsky e ele faz o mesmo comigo. Compreendemo-nos bem.

— Kat, acho que estou a ouvir um candidato ao tacho...Katczinsky confi rma com a cabeça.— Apanhamo-lo quando voltarmos. Conheço bem a zona.É claro que conhece bem a zona! Até aposto que conhece as coxas de

todos os gansos num raio de quilómetros!

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Os camiões chegam à zona dos disparos. Os esconderijos dos canhões estão camufl ados com arbustos e ramos de árvores para não serem vistos pelos aviões de reconhecimento e tudo aquilo parece uma versão militar daquelas festividades judaicas em que eles constroem pequenas cabanas no exterior. Estas «cabanas» frondosas até pareceriam inofensivas se não tives-sem canhões dentro.

A atmosfera começa a tornar-se brumosa, com o fumo dos canhões e o nevoeiro e a cordite provoca-nos um sabor amargo na boca. O troar dos disparos de artilharia fazem estremecer o camião. O eco propaga-se após cada disparo e tudo estremece. As nossas expressões alteram-se de forma impercetível. Não temos de ir para as trincheiras, pois a nossa missão é apenas estender o arame farpado, mas lê-se em todas as caras que aquilo é a frente de combate; que estamos ao alcance dos bombarde-amentos inimigos.

Não se trata de medo... por enquanto. Quem já esteve na linha da frente tantas vezes como nós acaba por criar uma carapaça contra isto. Só os recrutas mais novos se mostram nervosos e Kat resolve dar-lhes uma aula:

— Este foi um disparo de um canhão de 300 mm. Reconhece-se pelo barulho... Daqui a alguns segundos ouvirão a explosão.

Mas não é possível ouvir o rebentar surdo dos projéteis a esta distân-cia. Tudo é engolido pelo estridor da frente de combate. Kat põe-se à escuta.

— Vai haver festa, esta noite!Pomo-nos todos à escuta. O combate é incessante, na frente.— Os bifes já estão aos tiros — comenta Kropp.O ribombar dos canhões é perfeitamente audível. São as baterias in-

glesas, à direita do setor onde nos encontramos. Estão a começar uma hora mais cedo. Os nossos bombardeamentos nunca começam antes das dez em ponto.

— O que é que se passa com aqueles gajos?! — atira Müller. — Têm os relógios adiantados, ou quê?!

— Vai haver festa, digo-vos eu! Sinto-o nos ossos! — exclama Kat, encolhendo os ombros.

Três canhões disparam mesmo ao nosso lado. O clarão dos disparos aponta na diagonal, para o meio do nevoeiro, e a artilharia ruge com gran-de estrondo. Estremecemos, felizes por amanhã de manhã voltarmos ao acampamento.

As nossas caras não estão mais coradas nem mais pálidas do que o habitual, nem as nossas expressões mais alerta ou mais relaxadas. Porém, estão diferentes. Sentimos que algo dentro de nós, no nosso sangue, se acendeu. Não se trata de palavras ocas, mas de factos. Foi a frente de com-

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bate, a perceção de estarmos nela que provocou essa descarga elétrica. No preciso momento em que ouvimos o assobiar dos primeiros projéteis ou em que o ar se enche do relampejar dos disparos de artilharia, as nossas veias, as nossas mãos, os nossos olhos enchem-se, repentinamente, de uma expectativa tensa. É um estar pronto, um estado de alerta aumentado, uma estranha leveza dos sentidos. Num ápice, os nossos corpos entram num estado de alerta total.

Muitas vezes, tenho a impressão de que é o ar agitado e vibrante que se abate sobre nós de repente, com uma força silenciosa, ou a própria frente de combate que envia a sua eletricidade, colocando em estado de alerta to-das as terminações nervosas adormecidas.

Isto passa-se sempre da mesma forma: quando partimos para a frente somos apenas soldados — e podemos estar macambúzios ou bem-dispos-tos —, mas quando chegamos ao pé dos primeiros canhões, cada palavra que proferimos adquire outro peso.

Se Kat disser, diante das camaratas, que «vai haver festa» aí trata-se apenas da sua opinião e nada mais do que isso. Porém, quando o diz aqui, as suas palavras tornam-se acutilantes como baionetas à luz do luar, cor-tando por entre os mecanismos do funcionamento normal do cérebro. Tornam-se mais imediatas e têm um impacto direto sobre aquele elemento desconhecido que já cresceu dentro de nós, com o seu signifi cado tenebro-so. «Vai haver festa»... Talvez seja o nosso instinto mais secreto e íntimo que estremece e se prepara para se defender.

Para mim, a frente de combate é tão sinistra como um turbilhão. Mesmo quando nos encontramos longe do seu centro, em águas calmas, continua-mos a sentir a sucção puxando-nos lenta e inexoravelmente, apesar da nos-sa fraca resistência.

Contudo, a força para nos defendermos volta a invadir-nos os corpos, vinda da terra e do ar... sobretudo da terra! A terra é um elemento mais importante para o soldado do que para qualquer outra pessoa. Quando o militar se atira para o chão, num mergulho violento; quando se apressa a enterrar-se no solo com a cara e com os membros, debaixo de fogo e com o medo da morte pairando sobre si, a terra torna-se o seu único amigo, o seu irmão, a sua mãe. Então, o soldado geme o seu terror e grita para dentro do silêncio e da segurança da terra, que absorve tudo e lhe dá mais dez segun-dos de vida, dez segundos para correr. Depois, a terra torna a apoderar-se dele, por vezes para sempre...

Terra, terra, terra!

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Terra, com os teus sulcos, buracos e cavidades para onde um homem se pode atirar, onde um homem se pode esconder! Terra, na agonia do terror, na explosão da morte, no troar mortífero dos rebentamentos dos projéteis deste-nos aquela recrudescência maciça da vida reconquistada! A loucura, a tempestade de uma existência que quase foi feita em pedaços tornou a fl uir de ti para as nossas mãos, por isso enterrámo-nos fundo na tua segurança e, no terror mudo e no alívio por termos sobrevivido ao mo-mento, os nossos dentes cravaram-se nas tuas entranhas!

Ao primeiro disparo de artilharia, uma parte do nosso ser projeta-se mil anos no passado e um instinto animal guia-nos e protege-nos. Não é uma coisa treinada, mas algo muito mais rápido, muito mais preciso e muito mais fi ável do que o pensamento consciente. É algo que não se pode explicar. Precipitamo-nos para diante, sem pensar em nada, e no momen-to seguinte estamos dentro de um buraco, no chão, com estilhaços voan-do por cima da nossa cabeça. Mas não nos lembramos de ter ouvido o silvo da bomba aproximando-se ou de termos pensado em abrigar-nos. Nestas ocasiões, transformar-nos-íamos em inúmeros pedaços de carne se as nossas ações se baseassem no pensamento consciente. O que nos ati-ra para o chão e nos salva sem que nos apercebamos disso é uma coisa diferente, um instinto presciente, subconsciente, que existe dentro de nós. Se não fosse isto, há muito que não restaria um só homem vivo entre a Flandres e os Vosges.

Partimos soldados — e até podemos estar macambúzios ou bem-dis-postos — mas, ao chegarmos à zona onde começa a frente de combate, transformamo-nos em animais humanos.

Penetramos num bosque algo destruído e passamos pelas cozinhas de cam-panha. Descemos dos camiões à saída do bosque e estes voltam para a ca-serna. Virão buscar-nos antes da alvorada.

Na campina, o fumo e a névoa provocados pela artilharia e ilumina-dos pelo luar chegam-nos ao peito. As tropas deslocam-se pela estrada. Os capacetes de aço desprendem um refl exo baço do luar. Da névoa branca sobressaem cabeças e espingardas... cabeças que acenam e canos de espin-gardas que vão balançando.

Mais adiante, a névoa desaparece. As cabeças tornam-se caras nítidas e as camisas, calças e botas emergem da névoa como de uma piscina de leite. Formam uma coluna, e a coluna marcha, sempre em frente, e as caras formam uma linha e já não se consegue distinguir cada homem, apenas se vê aquela linha sombria avançando e tornando-se cada vez mais estranha,

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com as cabeças e as espingardas balançando ao longo do lago de nevoeiro. Não são homens, apenas uma coluna.

A artilharia ligeira e os vagões das munições juntam-se-lhes, vin-dos de uma estrada secundária. Os dorsos dos cavalos brilham ao luar e é bom ver os seus movimentos, cabeceando, com os olhos a brilhar. Os canhões e os vagões passam por eles como se deslizassem e sobressaem num fundo indistinto, como que de uma paisagem lunar, enquanto os homens da cavalaria, com os seus elmos de aço, parecem cavaleiros de antanho, com as suas armaduras... De certa forma, é uma imagem como-vente e espetacular.

Dirigimo-nos ao depósito do equipamento. Alguns dos nossos ho-mens erguem os postes de ferro angulosos e pontiagudos aos ombros, en-quanto os outros enfi am barras de ferro lisas em cilindros de arame farpado para os transportarem. São cargas pesadas e difíceis de levar.

O terreno vai-se tornando mais acidentado e começam a chegar-nos informações sobre o caminho adiante: «Vejam por onde caminham; há um buraco de obus fundo à esquerda»; «Cuidado com a trincheira»...

Mantemos os olhos bem abertos e vamos apalpando o chão com os pés e com as barras a cada passo. A coluna para de repente, damos com a cara no rolo de arame farpado transportado pelo homem da frente e praguejamos.

Alguns camiões abatidos barram-nos o caminho e recebemos uma nova ordem:

— Apaguem os cachimbos e os cigarros!».Estamos perto das trincheiras da frente de combate.Entretanto, a noite escureceu por completo. Contornamos uma pe-

quena mata de árvores baixas e avistamos o nosso setor, adiante.Vê-se um brilho avermelhado e ténue a toda a largura do hori-

zonte. É uma luminescência cuja intensidade muda constantemente, pontuada pelos clarões dos disparos de artilharia pesada. Foguetes luminosos elevam-se no ar, muito acima dessa linha brilhante. São bolas vermelhas e prateadas que explodem numa chuva de estrelas brancas vermelhas e verdes. Também são lançados «foguetes france-ses», daqueles com paraquedas que lhes permitem descer muito de-vagar. Iluminam tudo com uma luz tão forte como a do próprio dia, e a sua luminosidade chega até nós com tal intensidade que vemos as nossas sombras projetadas no chão. As luzes pairam no céu durante vários minutos de cada vez, depois apagam-se e novos foguetes são imediatamente lançados por todo o lado, fazendo voltar as estrelas verdes, vermelhas e azuis.

— Isto não vai ser fácil — opina Kat.O troar dos canhões vai-se tornando cada vez mais forte até se trans-

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formar apenas num rugido surdo, depois torna a decompor-se em disparos individuais. Ouve-se o matraquear rouco das metralhadoras e, por cima das nossas cabeças, o ar uiva, assobia e sibila, carregado de uma ameaça invisível. São os ruídos das armas ligeiras, mas, de vez em quando, ouve-se o som profundo dos grandes projéteis explosivos da artilharia pesada cru-zando a escuridão e despenhando-se, com estrondo, atrás de nós, a grande distância. Produzem um ruído como um bramido cavernoso e distante, qual veado no cio, e passam muito acima dos uivos e silvos dos projéteis mais pequenos.

Os holofotes começam a varrer o céu negro. Deslizam pela abóbada celestial como ponteiros gigantescos afunilados na base. Um deles fi xa-se, estremecendo um pouco. Logo de seguida, outro se coloca numa posição paralela. Quando se cruzam, vê-se um inseto alado encurralado e tentando escapar. É um avião. Abana, ofuscado, e cai.

Fixamos os postes de ferro com fi rmeza a intervalos regulares. Ficam sem-pre dois homens a segurar o rolo, enquanto os outros esticam o arame far-pado. É aquele arame horrível com muitas farpas longas e juntas. Perdi a prática de o esticar e fi co com as mãos cheias de golpes.

Terminamos em poucas horas e temos de esperar o retorno dos ca-miões. A maior parte de nós deita-se e dorme. Tento fazer o mesmo, mas está demasiado frio. Uma pessoa apercebe-se de que não está longe do mar porque está sempre a acordar por causa das baixas temperaturas.

Não obstante, a certa altura mergulho num sono profundo. Ao acor-dar de repente, em sobressalto, não sei onde estou. Vejo as estrelas e os fo-guetes e imagino ter adormecido no jardim, em casa, durante alguma festa com fogo-de-artifício. Não sei se é de madrugada ou se anoiteceu, e perma-neço aninhado no pálido berço do crepúsculo, esperando ouvir palavras doces que, sem dúvida, me seriam ditas. Seriam palavras gentis e recon-fortantes. Estarei a chorar?! Levo a mão à cara e... é espantoso! Serei uma criança?! Pele suave... Mas a minha confusão dura apenas o segundo que levo a reconhecer a silhueta de Katczinsky. Está ali sentado, calmamente, como soldado experiente que é, fumando o seu cachimbo. É um daqueles de fornilho com tampa, claro.

— Aquilo sobressaltou-te — comenta, ao reparar que acordei. — Foi só um detonador e passou sibilando para o meio daqueles arbustos, ali ao fundo.

Sento-me e sinto-me terrivelmente sozinho. É reconfortante ver Kat ali. Olha, pensativo, para a frente de combate e diz:

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— Que fogo-de-artifício espetacular! Se, ao menos, não fosse tão pe-rigoso...

Uma bomba despenha-se atrás de nós, fazendo com que alguns re-crutas inexperientes saltem, aterrorizados. Poucos minutos depois, outra bomba aterra mais perto.

— Cá vamos nós! — exclama Kat, apagando o cachimbo.Começou o bombardeamento à nossa posição. Rastejamos o mais

depressa que podemos e a bombarda seguinte despenha-se no meio de nós.Alguns homens gritam. Foguetes verdes elevam-se no horizonte. Le-

vanta-se pó e estilhaços zunem pelo ar. Ouvimo-los pousar muito depois da explosão.

Perto de nós está um recruta. É um miúdo louro e está aterrorizado. O capacete caiu-lhe. Apanho-o e tento pôr-lho na cabeça. Ele olha para cima, empurra o capacete e abriga-se sob o meu braço, como uma criança, com a cabeça contra o meu peito. Tem os ombros estreitos a tremer... São ombros como os que tinha Kemmerich.

Deixo-o estar, mas tento dar algum uso ao capacete colocando-lho sobre o traseiro. Não se trata de gozar com ele mas de lho proteger, pois é a área mais exposta. Embora a carne do traseiro seja sólida, uma ferida nessa área do corpo pode ser uma coisa bastante dolorosa. Além disso, obriga a pessoa a passar vários meses numa cama de hospital, de barriga para baixo, e é certo que se fi ca com uma mazela para toda a vida.

Algum alvo foi atingido em cheio não muito longe de onde nos en-contramos, pois ouvimos gritos por entre as explosões.

Por fi m, os gritos acalmam. Os disparos varreram o ar por cima de nós, na direção da última linha de trincheiras. Aventuramo-nos a espreitar. Foguetes vermelhos cruzam o céu, tremeluzentes. Provavelmente, aproxi-ma-se uma carga.

O local onde estamos permanece tranquilo.— Já passou, miúdo — digo eu, sentando-me e abanando o recruta

pelos ombros. — Safámo-nos outra vez!Ele olha em redor, apavorado.— Hás de habituar-te a isto — digo-lhe.Entretanto, repara no capacete e põe-o na cabeça. Começa a voltar

a si lentamente. De repente, fi ca escarlate e na sua cara estampa-se uma expressão envergonhada. Lentamente, leva a mão ao traseiro e lança-me um olhar agonizante. Compreendo-o imediatamente: a barragem de fogo fi zera-o borrar as calças. Não fora por isso que eu pousara o capa-cete naquele ponto do seu corpo, mas reconforto-o de qualquer forma.

— Não é preciso fi cares envergonhado. Antes de ti, já muitos soldados se aliviaram nas calças quando se viram debaixo do fogo inimigo pela pri-

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meira vez. Vai para trás daquele arbusto, livra-te das ceroulas e não se fala mais nisso...

O puto afasta-se. Tudo fi ca mais calmo, mas os gritos é que não param.— O que é que se passa, Albert? — pergunto.— Algumas colunas mais adiante foram atingidas em cheio.Os gritos continuam, imparáveis. É impossível que sejam homens,

pois estes não soltariam urros tão pavorosos.— São cavalos feridos — diz Kat.Nunca ouvi os urros de dor dos cavalos e mal posso acreditar naquilo. É

um som que transporta um inferno de dor, a própria criação sob tortura, uma agonia selvagem e horripilante! Empalidecemos todos. Detering senta-se.

— Pelo amor de Deus abatam-nos, cabrões!Detering é agricultor, está habituado a lidar com cavalos e isto im-

pressiona-o bastante. Como que de propósito, os disparos terminam qua-se completamente e os urros dos animais tornam-se muito mais audíveis. Já não conseguimos identifi car de onde vêm, no meio daquela paisagem prateada e imóvel. São invisíveis, fantasmagóricos... Enchem todo o espaço entre o céu e a terra, aqueles urros horríveis que se adensam incomensura-velmente.

— Abatam-nos, pelo amor de Deus, abatam-nos! — berra Detering, quase enlouquecido.

— Têm de evacuar os homens feridos primeiros — diz Kat.Levantamo-nos e tentamos ver onde estão, pois será mais fácil supor-

tar aquilo se conseguirmos ver os animais. Meyer tem um par de binóculos de campanha e conseguimos avistar um grupo de enfermeiros com macas e, em seguida, vultos maiores, montes negros que se contorcem. São os ca-valos feridos... mas não todos, pois alguns galopam um pouco, caem e tor-nam a galopar. Um dos cavalos fi cou com a barriga aberta e vai arrastando as tripas. Tropeça nelas, cai e volta a levantar-se.

Detering levanta a arma e aponta-lha.— Estás doido?! — atira Kat, empurrando-lhe o cano para cima.Detering estremece e atira a arma para o chão.Sentamo-nos, comprimindo os ouvidos com as mãos, mas continua-

mos a ouvir os gemidos e urros terríveis, que tudo trespassam.Todos conseguimos suportar muita coisa, mas aquilo provoca-nos

suores frios. Naquela situação, uma pessoa só deseja levantar-se e fugir para qualquer lado onde já não oiça aquela afl ição. E nem sequer são homens, apenas cavalos...

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Mais algumas macas se afastam da massa negra, depois ouvem-se alguns tiros. Os vultos enormes têm o último estertor, depois tornam-se menos proeminentes... fi nalmente! Mas ainda não acabou. Ninguém con-segue apanhar os animais que fugiram espavoridos, com as bocas abertas e cheias daquela dor. Um dos vultos pousa um joelho em terra... um tiro... um cavalo cai... depois outro. O último cavalo apoia-se nas patas dianteiras e desloca-se em círculo, como um boneco de um carrossel. Anda às voltas, arrastando a garupa pelo chão, com as patas da frente rígidas. É possível que tenha a espinha partida... O soldado corre na sua direção e abate-o. O animal tomba lenta e humildemente.

Destapamos os ouvidos e constatamos que os urros terminaram, pai-rando no ar apenas um longo suspiro de morte. Voltam a ouvir-se e a ver-se apenas os foguetes, os silvos dos projéteis e as estrelas, tal como antes, e a atmosfera é quase sinistra.

Detering põe-se a deambular, praguejando.— Só gostava de saber que mal é que aqueles animais fi zeram a al-

guém para merecerem aquilo!Mais tarde, volta à carga com o mesmo tema. Tem a voz agitada e

parece proferir um discurso:— Só vos digo isto: arrastar animais para a guerra é a coisa mais des-

prezível que se pode imaginar!

Voltamos. Está na altura de tornarmos ao local onde embarcaremos nos camiões. O céu desanuviou ligeiramente. São três da manhã, o vento sopra fresco e, a esta hora lívida, as nossas caras adquirem um tom pardacento.

Avançamos por entre as trincheiras e os buracos abertos pelos obuses num lenta fi la indiana e, por fi m, chegamos novamente à zona da neblina. Katczinsky está nervoso, e isso é mau sinal.

— O que é que se passa, Kat? — pergunta Kropp.— Quem me dera que já estivéssemos em casa.Com a palavra «casa», Katczinsky refere-se ao acampamento.— Já não falta muito, Kat.— Não sei... não sei.... — responde ele, nervoso.Chegamos às trincheiras de comunicação e, em seguida, à charneca.

Temos o pequeno bosque diante e já conhecemos cada centímetro do ter-reno, nesta área. Avistamos já as sepulturas da brigada de infantaria, com os montes de terra ainda protuberantes e as cruzes negras.

Neste preciso instante, ouvimos um silvo atrás de nós, que vai aumen-tando de intensidade. Depois, o barulho de algo caindo e uma explosão. Já

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estávamos no chão e, cerca de cem metros mais adiante, ergueu-se uma muralha de fogo.

No momento seguinte, parte do bosque eleva-se acima do topo das outras árvores, sob o impacto do segundo obus, que atira mais três ou qua-tro árvores ao ar, fazendo-as em pedaços, Os projéteis seguintes já descem com um sibilo semelhante ao de uma válvula de segurança. É fogo de arti-lharia pesada.

— Cubram-se! — grita alguém. — Cubram-se!A charneca é plana e o bosque está muito longe e é um local perigoso.

O único sítio onde nos podemos proteger é o cemitério militar, por entre os montes das sepulturas. Avançamos aos tropeções pela escuridão e, num ápice, cada homem se atirou para o chão, atrás de um monte.

Foi por uma unha negra! A escuridão transforma-se em loucura! Es-tremece e enfurece-se e vagas de coisas escuras — mais escuras do que a própria noite! — precipitam-se na nossa direção, passando por cima de nós e despenhando-se mais adiante. As explosões iluminam o cemitério.

Não temos como fugir dali. Aproveitando o clarão de uma das explo-sões, arrisco-me a olhar de relance para o descampado. É como um mar pi-cado por uma tempestade, com as chamas dos impactos esguichando como fontes. É absolutamente impossível alguém conseguir atravessar aquilo.

O bosque desaparece, estilhaçado, desfeito, esmagado... Temos de permanecer no cemitério.

A terra explode à nossa frente, e grandes pedaços dela chovem so-bre nós. Sinto um sacão. Uma das minhas mangas foi rasgada por esti-lhaços. Cerro o punho e não sinto dor, mas isso não me consola, porque as feridas só começam a doer passado algum tempo. Passo a outra mão pelo braço. Foi arranhado mas ainda está inteiro. Depois, sou atingido na cabeça e tudo se torna desfocado. Mas invade-me um pensamento, rápido como um relâmpago: «Não podes desmaiar». Afundo-me na lama negra, mas torno a levantar a cabeça imediatamente. O meu capa-cete fora atingido por um estilhaço, mas este viera de tão longe que não chegou a perfurar o aço. Limpo a lama dos olhos e vejo que se abrira um buraco no chão, mesmo à minha frente, embora eu mal o distin-ga. Como não é comum dois projéteis caírem no mesmo sítio, quero esconder-me dentro daquele buraco. Sem parar, serpenteio o mais ra-pidamente que posso na sua direção, colado ao solo como uma enguia. Oiço outro sibilar. Encolho-me rapidamente, apalpo o chão em busca de outro esconderijo, sinto algo à minha esquerda e espalmo-me contra um objeto. Este dá de si, eu gemo e a terra é de novo dilacerada, com a explosão troando nos meus ouvidos. Rastejo para debaixo do que quer que tenha dado de si quando lhe toquei e puxo a coisa para cima de mim. É madeira,

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tecido, cobertura, cobertura... uma proteção muito fraca contra a chuva de estilhaços.

Abro os olhos. Os meus dedos tinham-se fi ncado numa manga, num braço... Seria um soldado ferido? Grito-lhe e não obtenho resposta. Deve estar morto. Continuo a apalpar com a mão e dou com mais madeira... É então que me lembro que nos abrigámos num cemitério!

Os bombardeamentos são mais fortes do que qualquer coisa... Var-rem todas as outras considerações e eu limito-me a rastejar cada vez mais para debaixo do caixão para que este me proteja, apesar de a própria morte já lá morar.

O buraco aberto pelo obus encontra-se diante de mim e eu fi xo os olhos nele, quase tocando-lhe só com o olhar. Tenho de me meter lá dentro de um salto!

De repente, sinto um golpe na cara e uma mão agarrando-me pelo ombro. Teria o morto voltado à vida?! A mão abana-me, eu viro a cara e, num clarão que dura apenas um segundo, dou por mim a olhar para a cara de Katczinsky. Tem a boca escancarada e grita-me, mas não ouço nada. Torna a abanar-me e aproxima a cara da minha. O ruído diminui por ins-tantes e consigo distinguir a sua voz.

— Gás — gááás — gááááás! Passa a palavra!Retiro o estojo da máscara de antigás... Alguém jaz um pouco afasta-

do de mim e só consigo pensar que tenho de o avisar do gás.— Gááás... gáááás! — grito-lhe, rastejando até ele e batendo-lhe com

o estojo da máscara.Porém, ele parece não dar por isso e torno a bater-lhe uma vez e outra,

mas só se encolhe. É um dos novos recrutas. Em desespero, olho para Kat, que já tem a máscara posta. Arranco a minha do estojo e coloco-a, atiran-do o capacete para o lado. Depois, chego-me ao homem, cujo estojo está ao alcance da minha mão, pego na sua máscara e ponho-lha na cabeça. O recruta pega nela, eu largo-o e, com um salto repentino, estou novamente dentro do buraco.

As pancadas surdas das bombas de gás misturam-se com os rebenta-mentos violentos dos explosivos mais potentes. Entre explosões, uma sirene lança o aviso; gongos e chocalhos espalham a palavra: «Gás — gás — gáás»!

Oiço o barulho de pessoas caindo atrás de mim uma vez, duas... Lim-po o visor da máscara antigás. São Kat, Kropp e outro homem. Somos qua-tro naquele buraco, todos tensos, à espera, controlando o mais possível a respiração.

Os primeiros minutos com a máscara indicam-nos se viveremos ou morreremos. Está hermeticamente fechada? Conheço os sinais terríveis, pois já vi soldados que inalaram o gás sufocando durante dias a fi o no hos-

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pital de campanha, enquanto iam cuspindo aos poucos os pulmões quei-mados.

Tenho cuidado ao respirar, com a boca apertada em torno do bocal. O gás já serpenteia, pairando rente ao chão e entranhando-se nos bura-cos. Insinua-se na nossa cratera ondulando como uma alforreca grande e macia. Dou um toque a Kat: é melhor rastejarmos para fora do buraco e mantermo-nos deitados no chão lá em cima do que fi carmos ali, onde o gás se concentra mais. Mas não o podemos fazer, pois começou uma nova saraivada. É como se não fossem os canhões a troar, mas a própria Terra em fúria.

Oiço o barulho de algo despenhando-se ao nosso lado. Uma coisa preta voara na nossa direção... Um caixão fora atirado pelos ares!

Vejo Kat mexer-se e rastejar na direção do objeto. O caixão despe-nhara-se sobre o braço esticado do quarto homem que se encontrava no nosso buraco. O homem tenta retirar a máscara antigás com a outra mão, mas Kat chega ao pé dele a tempo, torce-lhe o braço para trás das costas e mantém-no preso.

Eu e Kat começamos a tentar soltar-lhe o braço ferido. A tampa do caixão fi cou solta e danifi cada e conseguimos abri-la facilmente. Atiramos o corpo para fora do féretro, que cai pesadamente no chão, e tentamos re-tirar o resto do caixão.

Felizmente, o homem desmaia e Albert pode vir ajudar-nos. Já não precisamos de ter tanto cuidado e esforçamo-nos como loucos até o caixão dar de si com um ruído como que de um suspiro quando lhe metemos as pás por baixo.

Agora, está mais leve. Kat arranca um pedaço da tampa do caixão, co-loca-o sob o braço partido e enrolamo-lo em ligaduras retiradas de todas as nossas mochilas de combate. De momento, não podemos fazer mais nada.

A minha cabeça pulsa e zune sob a máscara, quase explodindo. O ar estagnado, sobreaquecido e pesado que respiramos oprime-nos os pulmões, as veias das nossas têmporas incham e pensamos que vamos sufocar...

Uma luz pardacenta infi ltra-se no nosso buraco e o vento varre o ce-mitério. Arrasto-me para a borda da cratera. Ali, diante de mim, à luz baça da madrugada, vejo uma perna que foi arrancada, com a bota ainda intacta... Num instante, vejo tudo nitidamente. Mas eis que, a alguns metros de dis-tância, alguém se levanta. Limpo os óculos da máscara mas, devido à minha agitação, estes tornam a embaciar-se imediatamente. Porém, não deixo de olhar, e verifi co que o homem que ali está já não tem a máscara posta.

Espero mais alguns segundos mas ele não cai, antes olha em volta com cautela e dá mais alguns passos. O vento dispersara o gás, limpando o ar. Também eu arranco a máscara da cara arfando, e os meus joelhos dão

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de si. O ar invade-me como água fria e os meus olhos parecem querer saltar das órbitas. Depois, a vaga percorre-me o corpo todo e mergulha-me na escuridão.

O bombardeamento parou. Volto à cratera e aceno aos outros, que se levan-tam com difi culdade, arrancando as máscaras. Erguemos o ferido, com um de nós a segurar-lhe o braço com a tala, e, juntos, afastamo-nos, cambale-ando, o mais depressa que podemos.

O cemitério foi totalmente destruído. Há caixões e cadáveres por todo o lado. Foram mortos pela segunda vez... Mas cada cadáver desfeito salvou a vida a um de nós!

A cerca também foi desfeita e os carris da linha da frente de combate, do outro lado, foram arrancados e fi caram dobrados para cima, apontando para o céu. Alguém jaz no chão, à nossa frente. Paramos e Kropp prossegue, carregando o ferido sozinho.

O homem que está no chão é um recruta e tem sangue espalhado na zona da anca. Está tão cansado que pego no meu frasco de chá com rum. Kat detém-me a mão e inclina-se sobre ele.

— Onde é que levaste com ela, companheiro?O homem limita-se a mexer os olhos, demasiado enfraquecido para

responder.Cortamos-lhe as calças com cuidado e ele geme.— Está tudo bem, tudo bem. Não tardarás a fi car melhor...Se foi atingido no estômago, não poderá beber nada. Mas vomitou, e

isso é bom sinal. Destapamos a zona da anca. Está reduzida a uma polpa de carne moída e ossos partidos. Foi atingido na articulação. Este companhei-ro nunca mais voltará a andar...

Humedeço os dedos e passo-lhos pela testa, depois dou-lhe de beber. Os seus olhos adquirem alguma vida e só agora nos apercebemos de que também está a sangrar do braço direito.

Kat espalha duas compressas de campanha o mais que consegue, de forma a cobrir a ferida. Olho em volta em busca de tecido para prender levemente as compressas. Não temos nada, por isso rasgo mais um pedaço das calças do ferido para poder usar algum tecido das ceroulas como liga-dura. Contudo, o homem não tem ceroulas... Olho-o mais de perto. É o rapaz louro que encontrei antes.

Entretanto, Kat arranjou mais algumas compressas, que estavam nos bolsos dos soldados mortos, e colocamo-las cuidadosamente sobre as feri-das. O rapaz fi xa o olhar em nós.

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— Agora vamos buscar uma maca.Mas ele abre a boca e sussurra:— Fiquem aqui...Kat responde-lhe que voltaremos num minuto, que vamos buscar

uma maca para o transportarmos.Não nos é possível saber se compreende o que lhe dizemos ou não.— Fiquem aqui... — geme ele, como uma criança, quando nos afas-

tamos.Kat olha em redor e sussurra-me:— Não seria melhor pegarmos numa arma e libertá-lo da miséria em

que se encontra?O mais provável é que o rapaz não sobreviva ao transporte e, mes-

mo que sobreviva, resistirá, no máximo, um par de dias. Além disso, tudo aquilo por que ele passou até agora não será nada, comparado com o so-frimento dos poucos dias que lhe restarão até morrer. Neste momento, não sente nada porque ainda está em estado de choque. Dentro de uma hora, transformar-se-á numa massa de carne contorcida, torturada por dores insuportáveis. E os dias de vida que lhe restam serão apenas uma tortura ininterrupta e cada vez mais terrível. Que mal fará a alguém ele não ter de passar por isso?

— Tens razão, Kat — concordo, assentindo com a cabeça. — O me-lhor para ele é mesmo uma bala.

— Dá-me uma arma — diz-me, estacando.Vejo que está decidido a fazê-lo. Olhamos em volta... mas já não esta-

mos sozinhos. Um pequeno grupo junta-se a nós e há cabeças emergindo dos buracos e das trincheiras.

Levamos uma maca e Kat abana a cabeça.— Rapazes tão novos... — diz, repetindo — tão novos e inocentes...

As nossas baixas não são tão pesadas como se poderia esperar: cinco mor-tos e oito feridos. Foi apenas uma curta barragem de fogo. Dois dos nossos mortos jazem numa das sepulturas reabertas; apenas temos de a tornar a encher de terra.

Voltamos. Percorremos o caminho numa fi la indiana silenciosa, uns atrás dos outros. Os feridos são levados para o posto de socorro. A manhã apresenta-se enevoada, os enfermeiros andam numa roda-viva com chapas e números e os feridos gemem. Começa a chover.

No espaço de uma hora, chegamos ao camião e subimos a bordo. Agora, temos mais espaço do que antes.

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A chuva começa a cair com mais força. Abrimos os oleados e esten-demo-los por cima das nossas cabeças. As gotas tamborilam neles e fi os de água escorrem pelos lados. Os camiões vão chapinhando pelos buracos da estrada e nós oscilamos para diante e para trás, meios adormecidos.

Na dianteira do camião, dois homens seguram varas bifurcadas com-pridas. Mantêm-se atentos aos cabos das linhas telefónicas que pendem tão baixo ao longo da estrada que poderiam carbonizar-nos as cabeças. A sua função é apanharem esses cabos com os paus bifurcados e erguê-los acima das nossas cabeças. Ouvimo-los gritar «Cuidado com os cabos!» e, meio adormecidos, baixamo-nos, endireitando-nos em seguida.

Os camiões avançam, numa marcha monótona, as chamadas de aten-ção são monótonas, a própria chuva é monótona. Cai sobre as nossas ca-beças; sobre as cabeças dos mortos, na parte da frente da caixa de carga do camião; sobre o corpo do pequeno recruta com uma ferida demasiado grande para a sua anca; sobre o túmulo de Kemmerich e nos nossos cora-ções.

Ouvimos o rebentamento de um projétil algures e endireitamo-nos de repente, com os olhos arregalados e as mãos prontas a ajudarem-nos a saltar por cima das tábuas laterais da caixa do camião, para o fosso aberto à beira da estrada.

Mas não tornamos a ouvir mais rebentamentos, apenas os avisos mo-nótonos: «Cuidado com os cabos!». Baixamo-nos, e eis-nos de novo meio adormecidos.