A Oralidade Da Literatura de Cordel

Embed Size (px)

Citation preview

  • 7/21/2019 A Oralidade Da Literatura de Cordel

    1/12

    A ORALIDADE DA LITERATURA DE CORDEL

    NA OBRA DO ESCRITOR NEI LEANDRO DE CASTRO

    AS PELEJAS DE OJUARA

    ALUNO SANDEMBERG OLIVEIRA DE ALMEIDA

    ORIENTADORA ILANE FERREIRA CAVALCANTE

    CURSO DE LETRAS UNIVERSIDADE POTIGUAR

    RESUMO: A importncia do fenmeno da literatura de cordel no quadro das literaturasIbricas evidencia a fora da transmisso oral, estruturas e temas advindos das narrativasmedievais. As caractersticas do anti-heri e a difuso do fantasioso e maravilhoso, presentes naliteratura brasileira athoje, caso do romance As pelejas de Ojuara (2006) do escritor NeiLeandro de Castro como objeto desta pesquisa. A proposta deste trabalho de divulgar oresultado de pesquisa considerando a matriz carolngia dos folhetos que tem sua origem naIdade Mdia, e que vem se difundindo e ganhando caractersticas com a regionalidade e opopular nordestino, na medida em que elenco dados de exposio literria, interpretao defenmenos sociais e anlise da criao potica. tambm, sobretudo, uma tentativa de, a partirdestas abordagens e de levantamentos de dados, compreender como se da intertextualidade, aoralidade, as fortes caractersticas do anti-heri no personagem de Ojuara, alm do picaresco e omaravilhoso na obra. Ojuara percorre traos caractersticos dos romances cavalheirescosclssicos. O picaresco, sem dvida, o fato de que os pcaros no guardam rigorosa fidelidadeaos seus antepassados, que vo se adaptando aos tempos. Dentre vrios eixos de conservao-renovao, tambm a reduo do elemento maravilhoso como uma das mais marcantescaractersticas. H neste mundo lgico de conservao pelo imaginrio e o fabuloso, uma

    espcie de atributo permanente e desenfreado da realidade. O carter conclusivo deste trabalhose datravs de questionamentos diante da interdisciplinaridade que comparece na leitura deuma obra literria, abrangendo texto e contexto em suas hipteses, na anlise da construo domaterial e no levantamento de questes que abrangem teoria e criao.

    Palavras-chave: Cordel; Oralidade; Intertextualidade; Picaresco

  • 7/21/2019 A Oralidade Da Literatura de Cordel

    2/12

    I INTRODUO

    A importncia do fenmeno da literatura de cordel no quadro das literaturasIbricas evidencia a fora da transmisso oral, que carrega consigo estruturas e temasadvindos das narrativas medievais: as caractersticas do anti-heri e a difuso dofantasioso e maravilhoso, presentes na literatura brasileira athoje, caso do romance

    As pelejas de Ojuara (2006) do escritor Nei Leandro de Castro. Esse ensaio busca

    perceber a presena desses elementos sem deixar de elaborar, entretanto, uma reflexosobre o popular e o erudito. Percorre contextos da literatura de folhetos de cordel desde

    suas origens, transportada cultura popular do serto nordestino. Procura focar,atravs da obra de Nei Leandro de Castro, a presena dos cordelistas Moyss Sesyome Chico Doido.

    Mote: O peido que a doida deu Quase no cabe no cu.

    Glosa: Eu canto o que sucedeu

    Na sombra da gameleira:

    Foi um tiro de ronqueira

    O peido que a doida deu.

    Toda terra estremeceu,

    Abalou Assuau!

    Ela mexendo um angu,

    Puxou a perna de lado,

    Deu um peido to danado, Quase no cabe no cu.(CASTRO, ANO 2006, p. 93).

    Ao observar a presena de determinados componentes que se repetem e que sefazem, portanto, invariantes no rol de possibilidades de intertextualidade no cordel,

    esse ensaio estabelece uma observao que concentraria mais significativamente ocordel dentro da intertextualidade e da oralidade, tentando acompanhar alguns

    mecanismos recorrentes da obra.

    Destaco, assim, a oralidade no objeto em anlise, a sua funo dentro de umanarrativa assumida num conjunto estrutural como prprio projeto do texto, sua notvelpresena como fonte e referncia de autores nordestinos da estirpe de Ariano Suassuna,Hermilo Borba Filho, Luiz Berto, Nei Leandro de Castro.

    Senti tambm necessidade de, ao longo deste estudo, comparar os universosenvolvidos na obra do escritor, antes de atingir o ponto em que se passa ao constitutivo

    definidor eleito: a oralidade. Passei anlise dos vrios ingredientes, sua receita, paraver os planos de significao e de realizao, tendo sempre presente a noo de queentender significa conhecer os mecanismos, os materiais com que o escritor trabalhou

    sua obra, relacionando a forte oralidade presente com os folhetos de origem medieval.

    A proposta metodolgica uma pesquisa bibliogrfica, na medida em queelenco dados de exposio literria, interpretao de fenmenos sociais e analiso a

    criao potica. tambm, sobretudo, uma tentativa de, a partir destas abordagens e de

  • 7/21/2019 A Oralidade Da Literatura de Cordel

    3/12

    levantamentos de dados, compreender como se da intertextualidade1, o heri e o anti-heri, alm do picaresco e o maravilhoso na obra. Os andamentos de sua realizaoocasionam, no entanto, a instalao de um desafio, a revelao de um enigmapermanente, um fato social, canal importante de transmisso de fatos que compreendeetnograficamente o registro cultural.

    1. INTERTEXTUALIDADE

    Como se pode notar na constituio da prpria palavra intertextualidade, elarepresenta uma intrnseca relao entre textos. Considerando-se, segundo MikhailBakthin em seu livro Problemas da potica de Dostoivski (1981) como um recorte

    significativo feito no processo ininterrupto de construo cultural, isto , na ampla redede significaes dos bens culturais, pode-se afirmar que a intertextualidade inerenteproduo humana. O homem sempre lana mo do que jfoi feito em seu processo

    de produo simblica. Falar em autonomia de um texto , a rigor, improcedente, umavez que ele se caracteriza por ser um momento que se privilegia entre um in cio eum final escolhidos. Assim sendo, o texto, como objeto cultural, tem uma existnciafsica que pode ser apontada e delimitada. Entretanto, esses objetos no esto aindaprontos, pois se destinam ao olhar, conscincia e recriao dos leitores.

    Cada texto constitui uma proposta de significao que no est inteiramenteconstruda. Assim, o processo de construo que ocorre na obra mostra toda umareflexo sobre a contextualizao presente no romance. A intertextualidade acontece apartir dos aspectos scio-culturais do protagonista, coincidindo com a vivncia real eparalela fico aos olhos do leitor. A significao se dno jogo de olhares entre o

    texto e seu destinatrio. Este ltimo um interlocutor ativo no processo designificao, na medida em que participa do jogo intertextual tanto quanto o autor. Aintertextualidade se d, pois, tanto na produo como na recepo da grande redecultural, de que todos participam.

    Dentro desse conjunto de caractersticas, possvel fazer um paralelo com outrasobras como a que elabora Mrio de Andrade no ensaio introdutrio para a edio de1941 do romanceMemrias de um sargento de milcias(1852), de Manuel Antonio de

    Almeida. Mrio de Andrade vno livro certa transferncia da prpria pessoa do autor,o que tambm possvel encontrar na obra de Nei Leandro que, por conhecer to bemo regionalismo dentro de toda uma diversidade cultural, direciona o personagem

    ideologicamente e indiretamente para um mbito intertextual.

    [...] junto com esses livros, margem das literaturas, que havemos desituar as Memrias de um sargento de milcias. Que incorpora a

    linguagem das ruas, fugindo aos padres romnticos da poca, onde Aexperincia de ter tido uma infncia pobre contribuiu para que ManuelAntnio de Almeida desenvolvesse a sua obra [...] (ANDRADE, 1852,p.315).

    02. O ANTI-HERI

    1Intertextualidade: dilogo existente entre o texto da obra e outros textos, inclusive o texto hist rico,influenciado pela interseco da obra com paisagens, figuras e acontecimentos vividos pelo autor.

  • 7/21/2019 A Oralidade Da Literatura de Cordel

    4/12

    O estilo de vida apresentado pelo protagonista do romance o de um homem semnenhum tipo de fixao em classes predominantemente sociais. Ojuara percorre traoscaractersticos dos romances cavalheirescos clssicos, desvendando seus prpriosideais. Anti-heri o termo que se emprega para algum que protagoniza

    atitudes referentes s do heri clssico, mas que no possuem vocao herica ou querealizam as faanhas por motivos egostas, de vaidade ou de quaisquer gneros que nosejam altrustas.

    O conceito de anti-heri surgiu aps vrios autores modernos de Literaturaapresentar viles complexos, com caractersticas que criam empatia com o leitor ouespectador. So personagens no inerentemente maus e que, s vezes, atpraticam atosmoralmente aprovveis. Contudo, algumas vezes difcil traar a linha que separa oanti-heri do vilo; no entanto, note-se que o anti-heri, diferente do vilo, sempreobtm aprovao, seja atravs de seu carisma, seja por meio de seus objetivos muitasvezes justos ou ao menos compreensveis, o que jamais os torna lcitos.

    A malandragem, por exemplo, uma ferramenta tipicamente anti-herica,caracterstica marcante no personagem do romance, permeando seus anseios para arealizao de seus feitos e de seus ideais. A trajetria do protagonista no estvinculada a planos jtraados e, sim, a realizao de seus feitos sem cunho crticosocial. , todavia, com a pardia que a figura do anti-heri mais se afirma, rompendocom o retrato exemplar dos heris tradicionais. Tais caractersticas citadas soveementemente presente no personagem Ojuara, distinguindo-o como anti-heri dentrodo contexto apresentado, marcando sua passagem pelo romance.

    [...] Saiu a boca da noite, bonito como um raio leitoso de lua, um

    cavalo. O animal vinha chispando e, ao chegar aos ps de Ojuara,esbarrou, cobrindo tudo de poeira. Quando a poeira foi levada pelovento, Ojuara pode apreciar a beleza do animal, que era escritozinho

    esses cavalos das histrias de antigamente. E como todo cavalo dehistria todo ele tem que ter nome, o caboclo o batizou de Panguassu,que quer dizer caminho grande. [...]

    03. A TRADIO PICARESCA

    Ao analisar a construo literria apresentada na obra, foi possvel admitir uma

    leitura luz do picaresco. O fenmeno picaresco surge na Espanha do Sculo de Ouro,definida por Pierre Villar (1982, p. 15) como:

    Uma sociedade consumida pela histria, um pas no auge dascontradies internas, no momento em que uma crise aguda mostra emcheio toda a sua indigncia, pas onde o vadio improdutivo, o indivduoque vivia de rendas e agora estse arruinando, o bandido fascinante e omendigo desempregado andam pelas ruas e pelas estradas.

    A primeira coisa a se falar do picaresco , sem dvida, o fato de que os pcaros

    no guardam rigorosa fidelidade aos seus antepassados, vo se adaptando aos tempos,modificam-se, insistem mais numa do que noutra caracterstica gentica, podem at

  • 7/21/2019 A Oralidade Da Literatura de Cordel

    5/12

    mudar de nome, guardam afinidades, perdem algumas caractersticas na definio dognero, ou seja, de um estilo. No fcil, no entanto, a tentativa de conceituar oromance picaresco, que parte de princpios como o da perspectiva moral, social epsicolgica. Porm, genericamente, pode-se compreender o conjunto das obraspicarescas entre a publicao de Lazarilho de Tormes (1554) e a edio de Vida y

    hechos de Estebanillo Gonzlez(1646).O fenmeno do romance picaresco no se limita, no entanto, Espanha, onde suas

    manifestaes clssicas terminam com o aparecimento de Estebanillo Gonzles. Oprimeiro desses textos aparece na Alemanha. Trata-se de Der abenteuerliche

    Simplicissimus (O aventureiro Simplicissimus), publicado pelo autor, Hans Jacob

    Christoffel Von Grimmelshausen (1621? 1676), em Nuremberg, em 1669. O

    segundo romance de Grimmelshausen, publicado em 1670 com o ttulo de DieLandstrtzerin Courashe (A vivandeira Courashe), tambm um romance que deveser considerado como picaresco, com a particularidade de ter uma mulher como

    protagonista. No obstante, Ojuara segue uma linha bem prxima desse estilo, no

    tanto um marginal sociedade quanto um marginal burguesia, modelo do picarescoespanhol e, sim, a sua constante busca em conquistar novos horizontes e aventurasvoltadas ao romance e ao incerto, cujos meios de ascenso social o personagem rejeita.

    A saga da personagem Ojuara consiste em sua busca constante por prazeres e na

    no fixao em ideais, a no ser em seu ideal, que a realizao de seu prprio eu.Nesse horizonte social do pcaro, fugindo de um modelo de uma sociedade burguesa,ressalta-se um mbito popular no cenrio da obra, uma mudana do romance de NeiLeandro de Castro em relao ao modelo clssico.

    Talvez aesteja o sentido mais independente da obra, sentido que no aparece, noentanto, explcito. O protagonista va si mesmo como um cavalheiro errante, portador

    de uma ideologia liberal.O que talvez seja mais importante ressaltar emAs pelejas de Ojuarao fato deque, na sociedade em que transita a personagem, no contexto apresentado como pcaro,huma diferena de classe social que ocupa o espao entre o povo e a aristocracia. Opcaro aparece, normalmente, como um marginal a essa burguesia, que lhe oferececaminhos de integrao social prprios dos mecanismos ascensionais por elainstaurados. E ser tambm norma que os pcaros sejam assim resgatados de suamarginalidade. Com isso, fica estabelecida uma diferena substancial em relao picaresca clssica espanhola, mesmo que seja inegvel o parentesco, que, em maior oumenor grau, pode ser estabelecido.

    O carter de aventureiro desclassificado do pcaro se traduz na sua mudana decondies, o seu ponto de vista descobre a sociedade na variao dos lugares, dosgrupos, das classes estas, vistas freqentemente das inferiores para as superiores, emobedincia ao sentido da eventual ascenso do pcaro. Hum moralismo corriqueiro,mas pouca ou nenhuma inteno realmente moral nessas narrativas. Sem seremlicenciosos nem sentimentais, os romances picarescos so freqentemente obscenos eusam vontade do palavro. E sua stira abrange o conjunto da sociedade.

    Notoriamente, essas caractersticas so plausveis Ojuara comumenterelacionado ao pcaro clssico, pois apresenta a origem humilde e irregular e o fato deter decidido vagar pelo mundo, alm de uma submisso a uma causalidade externacom o viver ao sabor da sorte.

    Ojuara encarna, predominantemente, um aspecto bsico do pcaro: um vadio. Esua vadiagem, pelo fato de originar-se de uma relao diferente daquela do pcaro com

  • 7/21/2019 A Oralidade Da Literatura de Cordel

    6/12

    uma sociedade tambm diferente, torna-se seu trao dominante, a ponto de anularoutros traos: vadio do comeo ao fim, no sofre outro conflito que no aquele de sepreservar. Mas esse afde se preservar faz com que se perceba nele outro trao, que oaproxima definitivamente do pcaro clssico: o amor pela liberdade.

    Esse amor pela liberdade leva a que, com relao aos pcaros, no se acredite

    que o final da histria possa significar o ponto final das aventuras do protagonista.

    04. O MARAVILHOSO

    Dentre vrios eixos de conservao-renovao, a reduo do elementomaravilhoso uma das mais marcantes. Hneste mundo lgico de conservao pelo

    imaginrio e o fabuloso, uma espcie de atributo permanente e desenfreado darealidade.

    Os vrios acontecimentos contidos so de contingente maravilhoso adequando-se s realidades concretas de um relato objetivo. Ao longo do percurso percorrido pelopersonagem, pude observar caractersticas que remetem tradio novelesca ibrica doRenascimento. A imaginao exercida dentro de um padro do sem medida permitidapela orientao do imaginrio cavalheiresco.

    Na anlise que fiz das caractersticas do personagem Ojuara observei, nosmesmos moldes identificados por Jerusa Pires Ferreira (ano 1993), em seu estudo

    sobre o cordel, uma tendncia ntida em tornar concreta, real e verossmil a narrao,

    intervindo inclusive nas glosas e motes dos cordis citados.

    [...] O narrador desta edificante histria, por sugesto do mesmo riquede Campos, sai um pouco do nicho que lhe confere uma cmodaonipresena e resolve discutir o assunto Ojuara luz de outrosconhecimentos e erudies. Os exegetas de Ojuara dividem-se emvrias correntes, cheias de muitos elos de interpretaes, bemfundamentadas [...]. (CASTRO, ANO 2006, p. 40).

    Tratei, tambm, de observar as tendncias de aproximao com as histrias

    populares, que o autor funde sempre, no molde de sua realidade, s viagens dopersonagem Ojuara, por exemplo, buscando a terra de So Saru. Os episdiosvivenciados pelo protagonista e por demais personagens da obra transitam pelo

    maravilhoso popular como: Chico Rabel, Miguel de Se Pedro Bala que, na obra,contaram sobre a histria de Pantanha, fbula, como afirmam os personagens,apresentada na cidade de Pau dos Ferros.

    [...] Segundo Chico Rabel Pantanha quando menino atirou no queviu, matou o que no viu, foi fazer um giro, fez um jirau, jogou verde,colheu maduro, ensinou padre-nosso a vigrio, foi aos cajus e voltoudas castanhas, arranjou sarna para se coar, meteu a mo em cumbuca,

    brincou com fogo e mijou na rede, aprendeu com quantos paus se faz

  • 7/21/2019 A Oralidade Da Literatura de Cordel

    7/12

    uma jangada, choveu no molhado, malhou em ferro frio[...]. (CASTRO,

    ANO, p. 66 e 67).

    Esse episdio presente na narrativa da obra, dentre tantos outros, mostra a

    presena do fabuloso na cultura nordestina, abrangendo um contingente maravilhoso,ou seja, o encantamento dos personagens fantasiosos e fictcios com o real, numa visomitolgica. De um lado o heri destinado a cumprir sua misso na busca pelo seuideal, sem subestimar os perigos, em sua maioria fantasioso; de outro lado, aps todosos combates, o objetivo principal de sua busca e de sua luta a chegada a uma terra

    maravilhosa.

    Todos estes fatos nos levam afirmao de que a tradio situa-se, muitas vezes,nas profundidades invisveis do espao potico, mas hmomentos em que dentro detoda esta conservao, disposta a emergir sob as mais variadas maneiras, a criaoinaugura novos elementos e aciona, para alm de simples palavras, tanto invenoquanto conservao culta e popular.

    Encontramos na obra tanto uma srie de aluses a fatos passados quecompreendem a mitologia universal, quanto a fatos que percorrem a formao dacultura brasileira, que teriam, de certa forma, provocado ou in-fluenciado os episdiosda narrativa.

    O nome de alguns personagens como Chico Rabel. A referncia Rabelais2sintomtica, pois ele, em sua obra, misturou elementos de diversos gneros narrativosem seus livros - crnica, farsa, dilogos, comentrios, etc., temperando-os com umhumor bem popular. Suas idias e anedotas enaltecem os prazeres fsicos da vida: acomida, a bebida e o sexo, e satirizam o ascetismo religioso.

    evidente que as personagens apresentadas na obra so revestidas de um carter

    de fico, relacionadas a fatos reais, a passagens de cunho literrias e embebidas emreferncias de carter cultural.

    II - DA NECESSIDADE DO COTEJO DA OBRA COM A ORALIDADE DO

    CORDEL

    Analisando o cordel na obra, a matria que se conta arraigada de tradiocultural. A interpretao de fenmenos culturais relativos produo, em letra, seexplicita em alcanar a importncia e o grau de interferncia desses mecanismos queesclarecem e definem o processo de apropriao da matria do cordel no Brasil.

    H, no entanto, uma complexa teia desde os folhetos portugueses do sculoXVIII presentes nos registros literrios, segundo a escritora Jerusa Pires Ferreira (ano1993, p.270) quando diz que cada texto a precipitao de muitos outros. Comfortes e explcitos resqucios presentes na obra, coadjuvncia de vrias realizaes ata decantao do apontado imaginrio sertanejo, e da para as criaes que seoriginaram e ainda se originam, como a presena viva de uma oralidade atuante daobra. A partir do cotejo compreendido e referido na obra, por parte dos poetas

    implcitos, elabora-se a conscincia do entendimento dos recursos estabelecidos nos

    2. No se sabe ao certo quando Franois Rabelaisnasceu. O ano mais provvel o de 1484, na cidade de Chinon, no oeste daFrana. Segundo algumas fontes, seu pai era proprietrio de vinhedos, segundo outras, advogado. Da mesma maneira, no existeminformaes precisas sobre a infncia de Rabelais e o perodo em que ele foi enviado Abadia de Seuillpara estudar.

  • 7/21/2019 A Oralidade Da Literatura de Cordel

    8/12

    cordis, relacionados com um texto matriz utilizado to fielmente quanto utilizvel poroutros, a expressividade.

    Afirmo que esta obra representa, de fato, a justificativa e a continuao daapontada consistncia histrica e ainda mais, a sntese da cavalaria como vocaotransmissvel e ajustvel a uma situao social. Como se pressente, a avaliao do

    mecanismo adaptativo, digo a construo da linguagem, deveracompanhar qualquerabordagem que se faa, tendo-se forosamente de levar em conta as condies desituao e produo.

    Esta etapa de investigao se afigura mais importante, quando se observa, nocorpo desta criao, um vnculo to direto e no intencional que o autor aborda naobra, com a matriz dos folhetos medievais. que corrente afirmar, por exemplo, quea trova portuguesa que vaga pelo serto nada tem de origem seno a ndole;identificado e confundido no amlgama da linguagem comum. (MOTA, 1975).

    O cotejo vai, acima de tudo, revelar ndices muito sugestivos de onde, se no osabendo, poder-se-ia enveredar por aferies incompletas, sem esquecer que outros

    relacionamentos intertextuais difusos tm de ser levados em conta para acomplementao do quadro interpretativo.Vejo que, se a passagem, digo, a linguagem abordada no romance, abrange as

    caractersticas da oralidade do cordel que consta to textualmente da matriz e ssepoderia refletir e inferir a partir do tratamento dado a ela pelo poeta popular, assim

    como, fato que pode ter significao o de o autor ter selecionado uma dentre muitasoutras passagens possveis.

    Outro exemplo de como um dado etimolgico poderia sugerir inusitado ealtamente criativo trabalho de poeta popular, em sua envolvncia rtmica e em seuprimitivismo enquanto concepo, embora nada mais seja do que a primitividade

    criativa da novela de cavalaria medieval, atravs da novela culta ibrica, em seusandamentos.Hoje, diante das pesquisas jrealizadas nesta rea, de convvio com o universo

    popular e com as teorias que nos permitem enfrent-lo, para melhor perceber a riqueza,a complexidade e os trnsitos no contnuo cultural, penso que a transposio dosromances de cavalaria para o cordel foi o marco primeiro e talvez o mais importante

    dessa trajetria.O cotejo de uma matriz popular que deu origem literatura de folheto com sua

    origem nas cavalarias medievais portuguesas nos leva a tratar do folclore

    especificamente. Verifica-se uma continuidade cultural ligando presente e passado

    com a mediao do texto matriz. Uma variabilidade que emana de impulsos criadores euma seleo onde se determina, de forma concreta, como sobrevive a manifestao ecomo se realiza. Um cotejo diretamente matricial leva-nos a perceber a realizao dascategorias do cavalheiresco, permitindo avaliar a intensidade e o teor da inventiva do

    poeta popular.

    III - DA LITERATURA DE FOLHETO MEDIEVAL CONTEMPORNEA

    Diante de toda a diversidade de temas abordados e analisados na obra, a

    retomada dos folhetos da trova portuguesa medieval notvel. Mas, dentro de um

    percurso crtico, preciso acompanhar a incidncia mltipla de outras experincias,uma espcie de rio que vai engrossando ao receber caudais vrios aqui e alm. Onde

  • 7/21/2019 A Oralidade Da Literatura de Cordel

    9/12

    constato que, embora seja fortssima a medievao formal da matriz, inequvoca aaproximao com o esprito da primitiva gesta medieval, hoje enriquecida emodificada atpela transmisso oral do relato cavalheiresco.

    Os folhetos de cordel, por terem uma origem de difuso predominantementeoral, so impressos, geralmente, em papel pardo, de mqualidade, medindo de 15 a 17

    x 11 cm. Os folhetos publicados entre 1904 e 1930 apresentam, na sua maioria, capasilustradas com vinhetas. Estas so utilizadas como moldura ou para separar os ttulosdos poemas e outras informaes. Variam de simples traos a rebuscados desenhos,sendo algumas delas figurativas. So encontradas tambm no interior dos folhetos, noincio e no final dos poemas. Nas capas se estampam o nome do autor, os ttulos dospoemas, o nome da tipografia e outros dados.

    possvel analisar o estudo desses folhetos reunindo-os em grupos,possibilitando uma melhor compreenso de sua trama. O primeiro abrange os desafiosque comumente compreendem marcos, descries geogrficas alm de desafios,designao genrica encoberta por uma variedade de narrativa. O segundo grupo

    constitudo por romances e histrias. O terceiro grupo, sendo o mais numeroso, constitudo pelos poemas de poca, comporta pelo menos dois agrupamentos. Noprimeiro estariam os poemas sobre movimentos sociais e polticos.

    Assim, com histrias fabulosas e alguns ttulos descomunais, os cordelistasconquistaram os eruditos e espalharam pelo Brasil sua irreverente arte poticanordestina, num nordeste com forte cheiro de Idade Mdia, dominado pelo misticismoe por crenas impregnadas do atavismo da gesta carolngia.

    No mltiplo olhar, preciso perceber a difuso, aquilo que foi distribudo eaquilo que foi conservado da matria de cordel, aes intrnsecas obra de NeiLeandro de Castro. O autor vislumbra a riqueza que compreende a estrutura

    cavalheiresca medieval, ao considerar o tom clssico da poesia sertaneja amorosa. Esserespaldo adaptativo se manifesta das mais diversas maneiras, e acaba sempre porinterferir como ajuste da significao mais ampla, moldando as passagens de umuniverso lgico a outro, e possibilitando a abertura das frestas por onde se realizammais intensos os fenmenos criativos (folhetos cordel) com a introduo deelementos contextuais significativos.

    O que no se pode, no entanto, deixar de comparar essa realizaoprimitivamente medieval dos folhetos com a multiplicidade atuante da oralidade, que

    constitui a literatura de cordel de hoje, sua contribuio cultural atuante, que tantopermite ao poeta popular criar seus versos, que se afasta do conjunto tradicional e

    afirma a sua potica, no importa se culta ou popular, por endereo, mas criaoindividual por destino e conseqncia.

    No caso desta produo popular preciso ainda lembrar que, se por um lado semanifesta a participao constante do leitor como ouvinte e recontador, o carter daespecificidade da letra (corpo) vincado na potica dos folhetos e retomado nacontempornea produo literria dos autores.

    IV CONCLUSO

    A concluso desse trabalho se dno com um carter conclusivo, mas atravs dequestionamento diante da interdisciplinaridade que comparece na leitura de uma obra

  • 7/21/2019 A Oralidade Da Literatura de Cordel

    10/12

    literria, abrangendo texto e contexto em suas hipteses, na construo dainterpretao do material analisado e no levantamento de questes que abrangem teoriae criao.

    Foi, antes de tudo, necessrio definir o terreno pisado, analisando a construoda poesia popular, da intertextualidade plausiva na construo da obra, do anti-heri,

    da tradio picaresca e do maravilhoso, artifcios to atuantes na construo doromance, retomando pontos clssicos da discusso sobre literatura.

    Diante deste territrio hbrido, o servilismo a um contratexto matriciador, secontrape referncia ao processo de criao dos folhetos e, ao mesmo tempo, a umaoperao criadora atuante, ao exerccio de uma potica de regime prprio, o queremete explicao do fato literrio. Do confronto gentico resultou a observar de umaatuao, que tipifica o poeta popular e uma verdadeira volta Idade Mdia, gesta eaos seus propsitos e andamentos.

    Vale ressaltar que bastante complexo o problema da explicao da IdadeMdia no Brasil e que, se por um lado, por exemplo, se faz a aproximao deste

    conjunto de criao popular do trovadoresco europeu medieval da gesta pica, poroutro lado, sei que teria havido uma retomada por afinidade ou uma florao pelaexistncia de situaes de aproximao scio-cultural irrecusvel.

    Do ponto de vista literrio, ocorre a constatao da intertextualidade vria decontratextos e paratextos que traceja atas vias de comunicao modernas e atuantesde hoje. Quanto caracterstica do anti-heri em seu conjunto de aes, seu ajusteinconteste a uma tica feudal e a revelao dos ndices apontados atesta evidentementeuma relao do tipo pessoal, considerando uma relao de contexto que se implicacomo uma fora constitutiva daquilo que transformado em texto, daquelacomunicao que performa o universo narrado. Evidenciando a produo de seu

    carter de marginalidade, de cultura no oficial e letrada, investida da renovao demodelos arcaicos em todos os nveis.Foi possvel constatar, alm de tudo que jfoi dito, a dominante prtica mesmo

    no corpo do relato maravilhoso, um carter de medida e relaes precisas. Humagrande quantidade de dados concretos que permitem acompanhar toda uma concepode mundo para alm do modelo retrico, do clichcavalheiresco, do processo ritual aretido. Do cordel cavalheiresco, se vque no hsituaes mais simples; hvariantesa oferecer toda a possibilidade de interpretao de uma arquitipificao prvia de umlegado cultural. A obraAs pelejas de Ojuaratraz uma linha permeada de riqueza e seu

    autor se supera ao transmitir todo esse conjunto de um legado cultural, cortando a linha

    do tempo e do espao e os sintomas de uma sociedade que costumamos mascarar.

  • 7/21/2019 A Oralidade Da Literatura de Cordel

    11/12

    REFERNCIAS

    BAKTHIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem. Trad. Michel Lahud e Yara F.

    Vieira. So Paulo: Hucitec, 1981.

    ________. Problemas da potica de Dostoivski.Trad. Paulo Bezerra. Rio de Janeiro:Forense Universitria, 1973.

    CASTRO, Nei Leandro de : As pelejas de Ojuara: o homem que desafiou o diabo 4

    ed. So Paulo: Arx, 2006.

    CANDIDO, Antonio. Dialtica da malandragem caracterizao das Memrias de umSargento de Milcias. In: Revista do Instituto de Estudos Brasileiros daUniversidade de So Paulo, So Paulo, 1970, n 8, p. 67-89

    CAVALCANTE, Ilane Ferreira. O Romance da Besta Fubana: festa, utopia e

    revoluo no interior do Nordeste. Recife: Bagao, 2008. 199p.

    FERREIRA, Jerusa Pires. Cavalaria em cordel. 2 ed. So Paulo : EDITORA Hucitec,

    1993.

  • 7/21/2019 A Oralidade Da Literatura de Cordel

    12/12

    GONZLEZ, Mario M. A saga do anti-heri : estudo sobre o romance picarescoespanhol e algumas de suas correspondncias na literatura brasileira. So Paulo: NovaAlexandria, 1994.

    TERRA, Rute Brito Lemos. Memrias de lutas : literatura de folhetos do Nordeste(1893 a 1930) So Paulo : Global Ed., 1983.