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A Ordem Internacional Hoje: Globalização, Papel do Estado e Bens Públicos Internacionais 1 E IITI S ATO Professor do Departamento de Relações Internacionais da Universidade de Brasília 1 - ENTENDENDO UM MUNDO EM MUDANÇA O primeiro desafio que se apresenta ao estudioso das relações internacionais é a compreensão da mudança. A mudança é um processo inerente às relações sociais de uma forma ampla, mas geralmente temos dificuldade em compreen- der esse processo por que nossas percepções são formadas basicamente sobre a experiência passada. As mudanças tecnológicas, que se aceleraram de modo exponencial a partir da Segunda Guerra Mundial, produziram transformações substanciais nas relações econômicas, políticas e sociais. Este é um truísmo que se disseminou por todos os campos das investigações em ciências huma- nas e, obviamente, nas relações internacionais não poderia ser diferente. O mundo tornou-se cada vez mais integrado tanto no sentido horizontal quanto verticalmente. Hoje, são muito raras as regiões que não mantém relações signi- ficativamente articuladas com o mundo organizado e o nível de interação entre os povos aprofundou-se gerando, no conjunto, padrões de interdependência jamais experimentados. Esses fatos já seriam suficientes para justificar essa percepção de que, estruturalmente, o cenário das relações internacionais neste início de milênio deve ser observado a partir da perspectiva de que há mudan- ças estruturais em curso. Essa constatação, entretanto, significa que existe uma dificuldade real- mente importante para a percepção do estudioso. A visão que temos do mun- do que nos cerca depende fortemente dos referenciais construídos ao longo de 1 1 Trabalho preparado para o Curso de Política e Estratégia Marítimas da Escola de Guerra Naval (Brasília, março/2001).

A Ordem Internacional Hoje:globalização, papel do estado e bens

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A Ordem Internacional Hoje:

Globalização, Papel do Estado e Bens Públicos Internacionais1

EIITI SATO

Professor do Departamento de Relações Internacionais da Universidade de Brasília

1 - ENTENDENDO UM MUNDO EM MUDANÇA O primeiro desafio que se apresenta ao estudioso das relações internacionais é a compreensão da mudança. A mudança é um processo inerente às relações sociais de uma forma ampla, mas geralmente temos dificuldade em compreen-der esse processo por que nossas percepções são formadas basicamente sobre a experiência passada. As mudanças tecnológicas, que se aceleraram de modo exponencial a partir da Segunda Guerra Mundial, produziram transformações substanciais nas relações econômicas, políticas e sociais. Este é um truísmo que se disseminou por todos os campos das investigações em ciências huma-nas e, obviamente, nas relações internacionais não poderia ser diferente. O mundo tornou-se cada vez mais integrado tanto no sentido horizontal quanto verticalmente. Hoje, são muito raras as regiões que não mantém relações signi-ficativamente articuladas com o mundo organizado e o nível de interação entre os povos aprofundou-se gerando, no conjunto, padrões de interdependência jamais experimentados. Esses fatos já seriam suficientes para justificar essa percepção de que, estruturalmente, o cenário das relações internacionais neste início de milênio deve ser observado a partir da perspectiva de que há mudan-ças estruturais em curso.

Essa constatação, entretanto, significa que existe uma dificuldade real-mente importante para a percepção do estudioso. A visão que temos do mun-do que nos cerca depende fortemente dos referenciais construídos ao longo de

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1 Trabalho preparado para o Curso de Política e Estratégia Marítimas da Escola de Guerra Naval (Brasília, março/2001).

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nossa experiência mais próxima. Com efeito, o fato de CLAUSEWITZ, ter escrito que “a guerra é a continuação da política por outros meios” não deve ser entendido como a afirmação de alguém com espírito belicoso, que prega o armamentismo per se. A obra de CLAUSEWITZ foi escrita a partir de sua experiência de vida, toda ela construída sobre uma realidade européia feita de um contínuo estado de guerra. Desde sua juventude, as campanhas dos exércitos de NAPOLEÃO constituíam uma referência central para a política de sobrevivência dos estados e o próprio CLAUSEWITZ, na condição de oficial do exército prussiano, lutou contra esses exércitos. Além disso, talvez até mais importante, não foram as Guerras Napoleônicas que mergulharam a Europa nesse ambiente de conflitos armados. Ainda no século XVII, no mesmo sentido, HOBBES já havia formula-do a percepção de que os estados vivem em permanente estado de guerra e as lutas religiosas, que se desenvolviam com implacável crueldade desde o início do movimento da Reforma, serviram de base para a “Carta a Respeito da Tolerân-cia” de LOCKE. O historiador PAUL JOHNSON, em sua obra "The Birth of the Mo-dern",2 afirma categoricamente que a modernidade nasceu no período compreendido entre 1815 e 1830. Justificando sua tese, na abertura do livro, JOHNSON explica que muitos historiadores poderiam argumentar que a moder-nidade teria se iniciado ainda na década de 1780, quando a Grã-Bretanha teria conseguido atingir, pela primeira vez, a condição de economia com capacidade de desenvolvimento industrial auto-sustentado. "Mas, argumenta JOHNSON, o real nascimento (da modernidade), retardado pelo longo e destrutivo período de gestação produzido pelas Guerras Napoleônicas, somente pode ter seu início em toda a sua expressão com o advento da paz, quando os novos e imensos recursos nas finanças, na capacidade de gerenciamento, na ciência e na tecnologia, que agora estavam disponíveis, puderam ser postos a serviço de propósitos construtivos". Dessa forma, no tempo de CLAUSEWITZ, toda a experiência acumulada ao longo de gerações apontava para o fato de que a guerra era um fenômeno que ia muito além de uma simples possibilidade. Po-de-se dizer que a guerra, na realidade, fazia parte do cotidiano.

ANOTOL RAPPOPORT no prefácio escrito para uma das edições do "Da

Guerra", de CLAUSEWITZ, capta o sentido de uma importante mudança em cur-so ao afirmar que "nas guerras da Revolução Francesa e nas guerras napoleônicas os exércitos iam para o campo de batalha e manobravam tal como o faziam no século XVIII.

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2 P. JOHNSON, The Birth of the Modern. World Society 1815-1830. Harper Collins Publishers. New York, 1991.

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Mas o significado dessas ações mudou . . . O exército francês era composto não de profissio-nais, nem de recrutas que não tinham qualquer idéia nem compreensão da guerra, mas de patriotas - um conceito novo na política européia . . . muitos deles sentiam que levavam os Direitos do Homem na ponta das baionetas através da Europa".3

É nessa perspectiva que o analista deve olhar a agenda internacional de hoje. Do mesmo modo que RAPPOPORT, é preciso fazer um esforço para ob-servar e perceber o significado de fenômenos internacionais, mesmo daqueles que, como a guerra, são velhos temas de interesse do estudioso mas cujo signi-ficado se altera no tempo. Isto é, há mudanças bastante profundas em curso nos padrões das relações econômicas, políticas e sociais para as quais nem sempre nossa percepção está adequadamente preparada para percebê-las e, principalmente, para assimilá-las. Obviamente, isto não significa que o analista deva desprezar o estudo da história e a experiência acumulada. Ao contrário, em épocas de mudanças e incertezas, o conhecimento dessa experiência tem sua importância aumentada especialmente porque, ao mesmo tempo em que se compreende os padrões que estão sendo substituídos, permite também avaliar melhor o sentido das mudanças e valorizar adequadamente as dimensões mais permanentes na ação política, na estrutura das instituições e na atitude dos homens.

O presente trabalho discute a composição da agenda internacional neste início de século. Uma das características dessa agenda é a grande variedade dos temas que a compõem. Diferentemente do que ocorria até época recente, onde um ou outro assunto se destacava substantivamente dos demais, na atualidade, as atenções têm se voltado para as várias questões com interesse quase equiva-lente: focos de tensão e conflito, terrorismo, comércio e finanças, meio-ambiente, ilícitos e crime organizado, etc. Esses assuntos têm se alternado na agenda de preocupações dos estadistas e da imprensa. Numa analogia com os jornais diários, pode-se dizer que em cada semana ou, no mínimo, em cada mês, um assunto diferente tem freqüentado as manchetes das primeiras pági-nas. Esse fato se reflete na considerável literatura existente que analisa detida-mente as principais questões envolvidas em cada tópico da agenda internacional atual. Neste trabalho de limitadas dimensões, portanto, não po-

33 C. VON CLAUSEWITZ. Da Guerra (p. 14.). Editora Universidade de Brasília, Brasília, 1979.

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deria ser feita uma análise exaustiva de cada item dessa extensa pauta. Desse modo, o objetivo é bem mais modesto e procurar-se-á apenas identificar al-guns elementos que ajudem a compreender a formação dessa agenda complexa e variada e, na medida do possível, a interligação entre os vários temas que a integram.

Recentemente, globalização tem sido uma expressão empregada para de-finir o quadro geral das relações internacionais. Associada a essa noção argu-menta-se que as relações comerciais e financeiras se tornaram mais importantes do que as questões relativas à segurança internacional e que o es-tado está deixando de ser o ator central nas relações internacionais e na pró-pria organização das sociedades, transformando-se instituições anacrônicas. Em que medida essas percepções captam adequadamente as forças que defi-nem a agenda internacional neste início de século e de milênio? Nesse quadro, que perspectivas se apresentam para países como o Brasil? Estas são questões que este ensaio vai procurar analisar. 2 - A CAPACITAÇÃO TECNOLÓGICA E AS RELAÇÕES INTERNACIONAIS A base tecnológica, embora constitua um aspecto essencial das mudanças es-truturais ocorridas nas relações internacionais, geralmente é apenas menciona-da ou simplesmente entendida como dimensão implícita nas estratégias de defesa que se consolidaram a partir da Segunda Guerra Mundial ou no avanço da integração das atividades econômicas em termos globais. Autores como PAUL BAIROCH4 compreenderam o papel central desempenhado pela tecnolo-gia na construção da supremacia da Europa a partir do século XVI e, nos dias de hoje, revisitar esse tema parece de extrema utilidade para se compreender dimensões importantes das relações internacionais neste início de século. A importância essencial da tecnologia na conformação do mundo moderno vai além dos produtos, dos mercados e dos recursos militares. Parece igualmente importante procurar compreender a lógica pela qual, em diferentes países e regiões, o desenvolvimento tecnológico encontra ambiente mais favorável ou

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4 P. BAIROCH & M. LEVI-LEBOYER, Disparities in Economic Development since the Industrial Revolution. Macmillan Press, London, 1981. Ver também Ascensão e Queda das Grandes Potências de P. KENNEDY.

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mais problemático e como, nesse campo, a distinção entre aplicações civis e usos militares não é tão clara.

A destinação sistemática de parte substancial dos gastos com defesa ao financiamento de atividade de pesquisa e desenvolvimento fez parte essencial de mudanças que se refletiram não apenas na qualidade e natureza dos arma-mentos com as correspondentes alterações e redimensionamentos das unida-des de combate, mas se refletiram também sobre a natureza das relações entre potências aliadas e sobre as relações políticas entre os setores de defesa e a so-ciedade civil. O exemplo do Mettalurgical Project que, entre 1942 e 1945, havia produzido a tecnologia da bomba atômica, passou a servir de modelo para i-números outros projetos: aviões-caça, submarinos nucleares, porta-aviões, car-ros de combate, mísseis, sistemas de vigilância e rastreamento, etc. A guerra fria, entre outros produtos, também teve um papel decisivo na articulação do conjunto de forças que ajudou a desencadear a realização de pesquisa e desen-volvimento na área militar de modo sistemático e em escala jamais vista. Esses desenvolvimentos tiveram grande importância porque, juntamente com o e-norme diferencial no volume de gastos, trouxeram também o crescente fosso qualitativo dos meios de defesa entre as potências aliadas que, virtualmente deixaram à superpotência dominante o papel de responsáveis pela manutenção da ordem internacional. Um dos casos mais ruidosos foi o da França de De Gaulle que, embora continuasse parte da aliança, praticamente expulsou a OTAN de seu território. Em outras palavras, não apenas os gastos das super-potências eram substancialmente maiores do que os do resto do mundo, mas também passou a ser cada vez mais importante considerar aspectos qualitati-vos dos sistemas de defesa onde a posse de mísseis equipados com ogivas nu-cleares era apenas a parte mais visível desse fosso qualitativo.

Uma conseqüência significativa dos grandes investimentos em pesquisa e desenvolvimento (P&D) com vistas à construção de sistemas de defesa é que esses investimentos tornaram inevitável o crescente envolvimento das institui-ções de pesquisa civis com tecnologia de defesa. A razão básica é que o conhe-cimento e a capacidade de produção de materiais e equipamentos para fins civis não podem ser separados daqueles destinados a fins militares. Desse mo-do, a pesquisa na área da segurança estratégica não pode ser dissociada da ati-vidade científica e tecnológica mais geral e, em áreas de ponta, essa 5

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característica fica ainda mais evidente. O conhecimento e a tecnologia necessá-rios ao lançamento de um satélite meteorológico ou de um laboratório espacial são, na essência, os mesmos que podem servir para a construção de mísseis balísticos para transportar armas de destruição em massa a longas distâncias. Esse desenvolvimento contribuiu de diversas maneiras para a emergência de novos padrões tanto nos conceitos de segurança estratégica quanto de compe-titividade industrial. Com efeito, nos fins dos anos 50, quando a União Sovié-tica lançava o Sputnik e o primeiro veículo espacial tripulado, ainda que por um animal, os estrategistas americanos viam nesses fatos não apenas a demonstra-ção da competência e liderança soviética na corrida espacial, mas viam com muito mais preocupação a perturbadora capacidade desenvolvida pela URSS de construir mísseis de grande precisão, capazes de transportar ogivas nucleares a distâncias transcontinentais.

Uma outra característica da tecnologia que torna a atividade de pesquisa e desenvolvimento para fins militares indissociável da pesquisa e desenvolvi-mento com fins civis é o fato de que grande parte da capacitação tecnológica encontra-se na indústria e nos centros de pesquisa independentes e não nas instituições de pesquisa oficiais. São amplamente conhecidos os dados que mostram que, nas nações industrializadas, a maior parte da atividade de pes-quisa e desenvolvimento é realizada pela indústria. A proporção média é de mais de dois terços para a iniciativa privada em relação ao setor público. Essa proporção, mantida por anos seguidos, faz com que, inevitavelmente, a capaci-tação tecnológica de ponta se concentre na indústria. Além disso, muitas uni-versidades e instituições públicas de pesquisa desenvolvem boa parte de seus projetos por contrato com a iniciativa privada que, assim, em última instância, detém os direito de uso dos resultados. Dessa forma, boa parte da capacitação tecnológica necessária ao desenvolvimento de projetos para a defesa se situa no âmbito das indústrias que, efetivamente, possuem o conhecimento e os di-reitos de exploração de tecnologias. Razões como essas fazem com que indús-trias e centros de pesquisa independentes sejam sistematicamente contratadas pelas agências governamentais ligadas aos ministérios militares e aos progra-mas estratégicos do governo de uma forma geral. A tabela a seguir mostra da-dos recentes da distribuição dos gastos com P&D realizado por alguns países.

6GASTOS COM P&D - PAÍSES ESCOLHIDOS

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PAÍS (ano) TOTAL % PIB % PIB investido

(US$ bi de 1992) pela indústria

Estados Unidos (1996) 179,4 2,57 1,86 (72,3% do total) Japão (1996) 77,9 2,83 2,01 (71,0% do total) Alemanha (1998) 38,6 2,33 1,61 (69,0% do total) França (1996) 25,4 2,32 1,42 (61,2% do total) Reino Unido (1996) 20,4 1,95 1,26 (64,6% do total) Fonte: Science & Engineering Indicators - 2000

Um campo importante que liga a tecnologia de defesa com as aplicações

civis é o das chamadas tecnologias sensíveis. A designação tecnologias sensí-veis, na essência, é bastante difusa e o termo empregado internacionalmente é dual technology. Em termos mais gerais, todas as tecnologias podem ser duais, isto é, podem ter aplicação tanto civil quanto militar. Há áreas em que o em-prego mais óbvio e corrente se aproxima mais de uma das duas possibilidades mas, na maioria das vezes, essa distinção não se apresenta de modo tão claro. Na indústria química, por exemplo, há substâncias que, isoladamente, são ino-fensivas, mas quando entram em contacto com outra substância, igualmente inofensiva, podem produzir um composto letal utilizável, portanto, na fabrica-ção de armas químicas. Essa questão aparece de maneira bastante evidente nos esforços da Organização Mundial para a Proibição das Armas Químicas (OPCW) instituída em 1997 no âmbito da ONU. Grande parte das dificuldades de implementação da Convenção para a Proibição das Armas Químicas, refere-se aos problemas de identificação e monitoramento da difusa indústria química espalhada pelo mundo.5 Além disso, há dois outros pontos preocupantes: o primeiro é o fato de que a fabricação de algumas armas químicas é feita a par-tir de substâncias largamente empregadas na indústria; o segundo motivo de preocupação é que, de uma forma geral, os custos de produção são bem mais baixos do que o de outras famílias de armamentos.

Essa realidade mostra que resultados de projetos de pesquisa e desen-volvimento originados a partir de demandas da indústria podem ser desdobra-

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5 O atual Diretor Geral da Organização Mundial para a Proibição das Armas Químicas é o Embai-xador José Maurício Bustani, que é brasileiro.

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dos e adaptados para fins militares e vice-versa. Dessa forma, há um efeito composto que torna hoje ainda mais crucial a relação interativa entre o univer-so mais geral da sociedade civil e as estruturas voltadas para a defesa. É inte-ressante lembrar, ainda, o caráter interativo do desenvolvimento tecnológico, isto é, a viabilização de um equipamento ou de um processo de produção ge-ralmente depende da interação de conhecimentos e capacidades espalhados por diferentes especialidades e organizações. Ainda nos primórdios da revolu-ção industrial, a máquina a vapor foi, em larga medida, viabilizada pela coope-ração entre os conhecimentos de física e engenharia de JAMES WATT e as habilidades e competência em metalurgia de MATHEW BOULTON. Do mesmo modo, na atualidade, dificilmente o desenvolvimento de alguma tecnologia re-levante pode ser atribuída a algum “gênio” ou organização trabalhando em ba-ses individuais. Essa talvez seja a principal razão que explica porque o comércio internacional de patentes e licenças esteja tão concentrado no pe-queno grupo de países industrializados. Em resumo, a eficácia de programas de pesquisa e desenvolvimento depende fortemente da interação entre centros e grupos de pesquisa que possuem conhecimento e competência técnica, sejam eles civis ou militares, ligados a universidades ou à indústria.

Em larga medida, pode-se dizer que, cumulativamente, esse fato produ-ziu conseqüências diretas sobre o sistema internacional. Entre essas conse-qüências pode-se apontar a corrosão do poder soviético. Embora possa parecer paradoxal, os avanços da URSS no campo da tecnologia espacial e dos mísseis, acabaram por contribuir para a deterioração de sua condição de su-perpotência mundial em grande parte porque, no caso da URSS, o envolvimen-to da sociedade civil por meio das instituições de pesquisa e da indústria não ocorreu. Todos os projetos de pesquisa e desenvolvimento para os programas de defesa, incluindo-se aí o programa espacial soviético, eram conduzidos pe-los laboratórios governamentais vinculados aos ministérios militares. Esse fato foi de grande importância porque, enquanto nos Estados Unidos a pesquisa na área da defesa abria novos campos e produzia novos materiais e novas tecno-logias nas mais diferentes áreas, sendo quase imediatamente transferidas para a indústria, na URSS, os resultados das pesquisas permaneciam nos arquivos se-cretos das corporações militares. Dessa forma, contrariamente ao que ocorria nos Estados Unidos e seus aliados, na URSS o amplo espectro de possibilida-des representado pela tecnologia não foi desenvolvido e aproveitado. Os avan- 8

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ços e até mesmo a liderança da URSS em áreas de ponta da pesquisa tecnológi-ca não serviram para sustentar a geração de riqueza e o dinamismo industrial e econômico da sociedade. Hoje, a Federação Russa, em termos econômicos, está muito mais próxima dos países do terceiro mundo do que das nações in-dustrializadas e a simples manutenção de um arsenal militar construído em ou-tros tempos tornou-se, para a sociedade, um fardo verdadeiramente difícil de carregar.

No caso da maioria dos países em desenvolvimento, a atividade de pes-quisa e desenvolvimento ainda obedece proporção inversa à dos países indus-trializados, isto é, dois terços dos recursos são originários do setor público. Além disso, os dados mostram que, no total, esses países têm investido anu-almente em P&D algo em torno de 0,8 a 1,0% do PIB. Essa diferença, contu-do, não deve ser entendida como eventual falta moral do empresariado que, por ganância maior do que do empresariado americano, alemão ou japonês, estaria exageradamente interessado em ganhos fáceis e de curto prazo. A ques-tão tem origem em razões bem diversas e complexas relacionadas com o ambi-ente econômico e com a própria situação de um histórico de relativo atraso tecnológico desses países cujos efeitos tendem a ser cumulativos.

O mercado brasileiro, por exemplo, durante muito tempo, manteve-se bastante fechado à competição internacional e os elevados índices de inflação associados à edição sucessiva de planos econômicos, que mudavam continua-mente as regras do jogo, distorciam o ambiente econômico resultando numa combinação bem pouco favorável aos investimentos em pesquisa. Uma vez que os resultados de investimentos em P&D não são certos e geralmente exi-gem prazos mais longos de maturação, investir em inovação num ambiente em que não há garantia de cumprimento de contratos constituía uma atividade de alto risco. Ao mesmo tempo, as distorções do mercado faziam com que as a-plicações financeiras fossem sempre muito mais atraentes do que investimen-tos em novas tecnologias. Com efeito, a criação e comercialização de novos produtos sempre implica riscos e incertezas de ganhos enquanto investimentos em aumento de produtividade nas muitas áreas da indústria são inversamente proporcionais ao nível de sofisticação tecnológica. Dessa forma, esse problema atingia mais diretamente os setores da economia e as empresas mais eficientes

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do ponto de vista tecnológico, onde qualquer ganho de produtividade é difícil e dispendioso.

Os recursos públicos, que no Brasil representam a maior parte dos in-vestimentos em pesquisa e desenvolvimento, são destinados principalmente ao custeio da construção e manutenção da infraestrutura tecnológica. Mesmo nos países industrializados, boa parte dos recursos públicos destinados à rubrica genérica da pesquisa e desenvolvimento refere-se à manutenção da chamada tecnologia industrial básica ou infraestrutura tecnológica, que, além de grandes laboratórios multidisciplinares, compreende também uma série de serviços de suporte à pesquisa: formação de recursos humanos, produção e adoção de normas técnicas, serviços de metrologia e certificação, patentes, serviços de difusão e extensão tecnológica, etc.

As instituições que fazem parte dessa infraestrutura fornecem serviços tipicamente afeitos às funções do estado, regulando e organizando em bases técnicas as relações entre indústrias, serviços de transporte e comercialização, e outros agentes econômicos. Essa atividade reguladora envolve a ação de um grande número de laboratórios especializados, incumbidos de realizar ensaios e análises, incluindo-se a compatibilização da indústria em operação no país com os padrões e normas técnicas vigentes no meio internacional. Nos anos recen-tes, por exemplo, a questão das barreiras técnicas envolvendo aspectos sanitá-rios e de proteção ao meio ambiente tem ocupado grande parte das discussões nos muitos foros de negociação comercial e, assim, esses laboratórios de "cali-bração" das atividades de produção tendem a ter um papel de importância crescente.

Em qualquer país, os grandes laboratórios de pesquisa, por sua vez, ge-ralmente estão engajados em projetos de pesquisa básica, que dificilmente po-deriam, no curto prazo, serem transformados em patentes rentáveis ou, ainda, cujos custos são demasiadamente elevados mesmo para as grandes corpora-ções. O programa espacial é um dos exemplos mais notáveis de nosso tempo: a Estação Espacial Internacional vai sendo construída como produto da coope-ração internacional entre vários países, entre eles o Brasil, e a expectativa é que permita o desenvolvimento de muitas possibilidades nos mais variados campos da ciência e da tecnologia desde biologia e saúde humana até novos materiais e 10

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tecnologia de comunicações que, de muitas maneiras, podem implicar mudan-ças significativas tanto nos padrões de competitividade comercial quanto nos sistemas de defesa.

Além do indiscutível papel desempenhado pela tecnologia no desenvol-vimento econômico,6 para um país com as características do Brasil, a capacita-ção tecnológica pode ter um papel crucial nas questões associadas à ocupação territorial, ao monitoramento das regiões de fronteira e até mesmo ao combate ao narcotráfico e outros ilícitos cujas ramificações internacionais têm aumen-tado O princípio do uti possidetis serviu como base para que a soberania nacio-nal fosse assegurada sobre substancial parte do território que forma o Brasil de hoje. O estabelecimento da jurisdição brasileira sobre regiões distantes, que no passado foi sustentado sobre tratados internacionais, exigem, no entanto, a contrapartida da ocupação real e efetiva com atividade econômica que gere ri-queza e instituições sociais que garantam a cidadania para as populações. A tecnologia pode fornecer ajuda substancial de muitas maneiras, nos mais varia-dos campos: na construção de vias de transporte e comunicações, no aprovei-tamento racional de recursos região, no monitoramento do uso e ocupação do solo, na erradicação de pragas e endemias, na disseminação da educação e de conhecimentos técnicos, etc. 3 - O FIM DA GUERRA FRIA E SEU SIGNIFICADO PARA A ORDEM INTERNACIONAL Um dos fenômenos centrais para se compreender o quadro atual das relações internacionais foi, sem dúvida, a chamada guerra fria. Um conflito continuado sem, no entanto, a luta armada direta entre as grandes potências, que teve seu desfecho há uma década. A guerra como fenômeno não apenas possível, mas também provável na política internacional continua a existir. Houve, no entan-to, algumas modificações importantes no seu significado e, obviamente, na forma de conduzí-la. Nas últimas décadas muitos conflitos armados têm ocor-rido na África, Ásia e mesmo na Europa, entretanto há duas gerações que a

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6 R. SOLOW e E. DENNISON, nos fins da década de 50, divulgaram os resultados de pesquisa pionei-ra feita sobre a importância do fator tecnológico para o desenvolvimento econômico e identificaram um “resíduo tecnológico” que explicaria cerca de 1/3 do crescimento verificado na economia ameri-cana entre 1930 e 1950. (ver R. SOLOW, Technical Change and the Aggregate Production Function. Review of Economics and Statistics, August, 1957, pp. 312-320).

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história não registra uma guerra colocando diretamente as grandes potências em campos opostos no campo de batalha.

Desde o século XIX, o conflito armado entre grandes potências foi se tornando menos freqüente na mesma medida em que, tecnologicamente, esses confrontos se tornavam mais e mais destrutivos para as forças armadas envol-vidas e, principalmente, para a população civil. Conta-se que na batalha de Gettysburg, em julho de 1863, uma das mais sangrentas da Guerra Civil ameri-cana, morreram cerca de 30 mil soldados, além de outros milhares de feridos e mutilados, entretanto, ao longo dos três dias de combate, apenas uma mulher teria morrido em conseqüência de uma bala perdida. Dessa forma, salta aos olhos a enormidade da destruição da população e das instalações civis produ-zida pela Primeira e, sobretudo, pela Segunda Guerra Mundial. Costuma-se lembrar a tragédia de Hiroshima em que a bomba atômica destruiu, de uma só vez, toda uma cidade de 100 mil habitantes, mas muitas outras tragédias tam-bém fizeram parte da contabilidade trágica das perdas humanas e materiais da Segunda Guerra Mundial. Bombardeios em massa de cidades inteiras faziam parte da estratégia de ação tanto das forças aliadas quanto do Eixo. Para as re-lações internacionais, no entanto, compreende-se o destaque que se dá ao bombardeio de Hiroshima em relação aos muitos outros eventos trágicos da Segunda Guerra Mundial por ter marcado o início da era nuclear na política internacional.

O advento da era nuclear não apenas deu mais dramaticidade à tendência exponencial do potencial destruidor dos armamentos e dos conflitos armados, mas também trouxe consigo a possibilidade real de extermínio da espécie hu-mana. A guerra fria que, por mais de quatro décadas, constituiu o referencial básico da política internacional, em larga medida, refletia esse fenômeno. Des-de que a União Soviética realizou sua primeira explosão atômica, em fins dos anos 40, revelando também possuir a capacidade de produzir artefatos nuclea-res, a corrida armamentista passou a concentrar seu foco sobre a posse de ogi-vas nucleares e o domínio da tecnologia de veículos transportadores e outros dispositivos associados ao emprego de armas atômicas. A percepção, no entan-to, do potencial de destruição dessa tecnologia fez com que as várias doutrinas de segurança estratégica desenvolvidas ao longo dessas quatro décadas, de di-ferentes maneiras, colocassem em evidência a noção de que o objetivo básico 12

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das estratégias militares deveria ser o de dissuadir o oponente de recorrer ao uso da força.

Essa percepção acerca do potencial de destruição de um possível confli-to armado na era nuclear, foi também acompanhada de outros desenvolvimen-tos importantes que também ajudaram a refrear a formulação de políticas agressivas por parte de governantes mais ousados e ambiciosos. Entre esses desenvolvimentos, que contribuíram para mudar a atitude política em relação à questão da segurança internacional destacam-se: os custos e os novos padrões dos investimentos em defesa e a disseminação da democracia com o fortaleci-mento da sociedade civil.

Na verdade, o problema dos custos da manutenção de poderosos exérci-tos sempre foi uma questão crucial para as grandes potências. No século XVIII, príncipes relutavam em entrar em combate direto uma vez que, com freqüência, uma derrota ou mesmo uma vitória numa batalha a custa de pesa-das baixas poderia comprometer seriamente a capacidade de recompor e man-ter exércitos em condições de sustentar até mesmo a própria existência do reino no futuro próximo. Os exércitos, em sua maioria, eram compostos por mercenários e sua manutenção dependia diretamente dos recursos que os prín-cipes eram capazes de amealhar. PAUL KENNEDY, em sua "Ascensão e Queda das Grandes Potências", traça a contínua correlação, desde o século XVI, entre o ní-vel de riqueza das nações e a disponibilidade de recursos de poder militar. A tecnologia militar, que emergiu a partir da Segunda Guerra Mundial, contudo, acentuou dramaticamente essa relação. Em termos de valores absolutos, o vo-lume exigido para a manutenção de um padrão de recursos estratégicos compa-tível com a condição de grande potência aumentou de tal forma que a linguagem diplomática foi obrigada a criar uma nova categoria de ator interna-cional, a de super-potência, evitando assim ferir o brio das potências européias tradicionais. O fato é que, ao longo dos anos da guerra fria, os gastos com de-fesa feitos pelos Estados Unidos e pela União Soviética eram várias vezes mai-ores do que o das tradicionais potências européias somadas e os fundos necessários para manter apenas uma das frotas americanas em condições de entrar em combate chega a ser maior do que o total do orçamento público de um número substancial de países de porte médio. No final dos anos 60, por exemplo, enquanto as super-potências gastavam, cada uma, mais de US$ 80 13

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bilhões ao ano em defesa, duas potências tradicionais como a França e a Grã-Bretanha gastavam, cada uma, menos de US$ 6 bilhões ao ano em defesa.

Essas cifras faziam com que as doutrinas mais gerais de segurança inter-nacional formuladas pelas super-potências não servissem para outras nações que, nem de longe, poderiam desembolsar somas tão vultosas. Dessa forma, potências de expressão média teriam de buscar outras alternativas estratégicas que incluíssem, de um lado, a seletividade na escolha de tecnologias e a limita-ção nos gastos e, de outro, a formulação de estratégias diplomáticas de articu-lação política e econômica com outras nações. Entre as potências tradicionais, a Grã-Bretanha, por exemplo, ao mesmo tempo em que dava suporte político à ação americana no plano mais geral da construção de um sistema internacional de segurança, optou por adquirir tecnologia americana no campo nuclear e in-vestir num sistema de limitadas proporções de lançamento de mísseis a partir de sua frota naval.

Na periferia, o problema assumia feições mais complicadas para os go-vernos. Os efeitos da guerra fria se faziam sentir fortemente na política do-méstica. Freqüentemente, constituíam-se em fonte de pressão desestabilizadora da ordem política doméstica e regional. O movimento da descolonização do pós-guerra foi fortemente influenciado pelo jogo de forças da guerra fria. A disputa por áreas de influência fomentava as facções políticas dentro dos países, muitas vezes com conseqüências externas importantes no plano regional. Na África Austral, por exemplo, a África do Sul era considera-da peça importante dos sistema de segurança internacional da Aliança Ociden-tal e essa condição tornava os Estados Unidos e outras potências ocidentais muito mais tolerantes com a política do apartheid. Nem sempre o jogo da guer-ra fria constituía motivo de apoio a programas governamentais de países peri-féricos considerados aliados. No caso do Brasil, por exemplo, o apoio à política da aliança ocidental tanto durante a guerra quanto na implantação das instituições do pós-guerra não resultou em apoio aos esforços de industrializa-ção dos governos brasileiros que se sucederam no pós-guerra. Aparentemente, o fato da região não ser considerada problemática do ponto de vista da con-frontação leste-oeste, fazia com que o Brasil e outros países da região não fos-sem incluídas nas prioridades do Governo Americano. O Governo Dutra ficou definitivamente identificado com a política externa sem resultados. Mesmo no 14

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Governo Juscelino Kubitschek a forma como foi lançada a Operação Paname-ricana e a moratória de 1959 foram, em grande parte, reflexos desse pouco in-teresse dos Estados Unidos que, na época, era a única fonte real de fundos de ajuda ao desenvolvimento. Somente após a tomada do poder em Cuba por Fi-del Castro, os Estados Unidos passaram a considerar o Brasil e os países da América Central e do Sul como peças importantes em sua política externa.

O processo de decadência e colapso do bloco soviético foi acompanha-do pelo ressurgimento da Europa, do Japão e, mais recentemente, da China como polos de poder no mundo. Além disso, alguns países em desenvolvimen-to, particularmente na Ásia e América Latina, avançaram na industrialização e passaram, em alguns casos, a disputar também considerável fatia dos mercados internacionais. Do ponto de vista dos padrões vigentes nas relações interna-cionais, esses desenvolvimentos constituem partes importantes de um deslo-camento bastante radical nas concepções e doutrinas com vistas ao manejo da ordem internacional. De um lado, a questão da segurança internacional deixou de ser vista como o produto de uma aliança ou articulação globalmente conce-bida. De outro, o processo que se poderia chamar de "desideologização" fez com que iniciativas políticas internacionais passassem a ser vistas, cada vez mais, como articulação de interesses e não como implementação de princípios políticos e sociais. Essa combinação foi decisiva para que a construção e ma-nutenção da ordem internacional passasse a ser vista como um empreendimen-to coletivo e, conseqüentemente, a questão da distribuição dos custos (burden sharing) passou a se constituir em tema central de debate nas negociações in-ternacionais.

No auge da guerra fria, JOHN KENNEDY declarava em seu discurso de posse, em janeiro de 1961: "Que todas as nações saibam, quer nos queiram bem ou mal, que estamos dispostos a pagar qualquer preço, a suportar qualquer fardo e a enfrentar qualquer desafio para socorrer todos os nossos amigos e para nos opor aos nossos inimigos para assegurar a sobrevivência e o triunfo da liberdade". O tom de seu discurso refle-tia em toda a extensão a forma com que os Estados Unidos encaravam seu pa-pel no mundo, manifestando sua disposição de assumir até solitariamente custos e riscos em nome da construção de uma ordem mundial baseada em princípios e valores políticos da sociedade americana.

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Contrastando com essa declaração, duas décadas depois, REAGAN assu-mia a Presidência dos Estados Unidos com um discurso cujo tom era manifes-tamente diferente: ". . . responder lealdade com lealdade, lutar pelas relações mutuamente benéficas e não usar nossa amizade para impormo-nos sobre suas soberanias, uma vez que a nossa soberania não está à venda". Na verdade, no início dos anos 70, quando o Presidente NIXON anunciou oficialmente o fim da conversibilidade do dólar, um anúncio que o mundo já esperava, a disposição do governo ame-ricano quanto ao seu papel na ordem internacional pode ser resumida numa de suas afirmações: "we will no longer fight with an arm behind our back".7

Na verdade, o curto governo KENNEDY marcou a culminância de um dos períodos da história americana em que a noção de "destino manifesto" prevaleceu sobre a tendência ao isolacionismo. Essa alternância está presente desde o surgimento dos Estados Unidos como nação independente. GEORGE

WASHINGTON, em seu discurso de despedida, em setembro de 1796, declarava: "A grande regra de conduta para nós a respeito de nações estrangeiras é, ao ampliar nossas relações comerciais, a de manter com elas a menor ligação política possível". A idéia de destino manifesto, isto é, que os Estados Unidos estavam imbuídos de uma missão, no entanto, aparece no fragor da guerra civil, servindo como argumen-to para sustentar a própria existência da nação como tal: ". . . para que esta na-ção, sob a autoridade de Deus, deva renascer em liberdade, e a fim de que o governo do povo, pelo povo e para o povo não pereça na terra". Com essas palavras LINCOLN en-cerra seu mais famoso discurso, proferido em Gettysburg, em 1863. KISSINGER, em seu livro Diplomacia, dedica um capítulo a esse tema da alter-nância das duas tendências na história política americana comparando duas figuras do começo do século XX: THEODORE ROOSEVELT e WOODROW

WILSON.8 As ações e as atitudes desses dois estadistas servem, na análise de KISSINGER, para ilustrar como essa questão continuava presente mas se torna-va mais complexa em face do inevitável envolvimento dos Estados Unidos nas questões internacionais: ROOSEVELT entendia que um equilíbrio de poder em termos globais era impossível sem a participação americana, a maior potência industrial do mundo; para WILSON, a América tinha um papel internacional verdadeiramente messiânico e sua obrigação não era com o equilíbrio de po-

7 "Não lutaremos mais com u'a mão nas costas"

168 HENRY KISSINGER, Diplomacia. Livraria Francisco Alves, S. Paulo, 1997. Capítulo 2, pp. 25-57.

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der, mas com a disseminação pelo mundo dos valores que norteavam a organi-zação política da sociedade americana.

A reconstrução da Europa e do Japão havia sido feita com a ajuda dos Estados Unidos, que viam nesse esforço uma componente estratégica para a consolidação de uma ordem mundial favorável à preservação de seus valores políticos e sociais. A bem sucedida recuperação dessas regiões, de fato, produ-ziu um ambiente favorável aos valores sociais e políticos básicos da sociedade americana, mas produziu também competidores capazes de rivalizar com os Estados Unidos na disputa por mercados em toda parte, inclusive no mercado americano. Os Estados Unidos, desde a Conferência de Bretton Woods, pro-porcionavam à economia mundial os recursos para a sustentação do sistema monetário internacional, cujo objetivo era assegurar, por meio de instituições estáveis, instrumentos operacionais e um ambiente propício à recuperação e crescimento da economia mundial que ainda sofria os efeitos da guerra. O a-bandono da conversibilidade do dólar em 1971 e a prerrogativa estendida à moeda americana de poder flutuar ao sabor do mercado, refletia a nova reali-dade. O reerguimento da economia mundial tornou o sistema monetário inter-nacional um bem público cuja manutenção e operação não mais poderia ser sustentado apenas pelos Estados Unidos e sua moeda. Os custos dessa tarefa excediam a capacidade da economia americana enquanto, por outro lado, tam-bém seu funcionamento não poderia estar em desacordo com os interesses e necessidades dos novos centros de poder comercial e financeiro do mundo. Nesse quadro, as decisões compartilhadas passaram ser acompanhadas de dis-cussões sobre custos compartilhados. Nas sucessivas reuniões que se seguiram ao anúncio do fim da conversibilidade do dólar, as negociações estiveram for-temente centradas nessas questões que continuam presentes nas reuniões do grupo das nações mais ricas do mundo (hoje G-7 + 1).

Politicamente, as questões regionais passaram a ser avaliadas e tratadas a partir do interesse local e regional, onde o nível de envolvimento das grandes potências passa a variar de acordo com os interesses mais próximos e imedia-tos. A eliminação do regime do apartheid na África do Sul, por exemplo, foi a-celerado com o fim da guerra fria. Dentro da nova configuração do jogo de forças, a África do Sul deixa de ter o mesmo papel estratégico que havia de-sempenhado ao longo da guerra fria. A segurança e estabilidade do sul do con- 17

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tinente africano deixam de ser parte de uma estratégia mais geral de segurança internacional manejada pelas duas superpotências para tornar-se uma questão a ser administrada regionalmente, com envolvimento mais direto apenas de na-ções com interesses mais diretos e imediatos. Do mesmo modo, a guerra civil em Angola também sofreu conseqüências parecidas. Tornou-se uma questão a ser resolvida primeiro no âmbito doméstico e, depois, no plano regional e o envolvimento de potências estrangeiras passou a depender do entendimento que cada um tenha acerca dos possíveis desdobramentos da guerra em termos de seus interesses.

Por outro lado, ordem, estabilidade e crescimento econômico global tornaram-se bens públicos cujo fornecimento nenhuma grande potência está mais disposta a prover (e nem está mais em condições de fazê-lo sozinha) a menos que seja feita uma criteriosa avaliação de custos. Essa questão pode as-sumir muitas formas: desde uma intervenção humanitária ou a constituição de uma força de paz até, de maneira mais articulada e duradoura, um regime in-ternacional. De qualquer modo, a questão da distribuição dos custos emerge nas negociações como parte essencial dos acordos e arranjos internacionais. Diferentemente do que ocorreu nas duas primeiras décadas do pós-guerra, quando a supremacia dos Estados Unidos era inquestionável, nas duas últimas décadas do século XX, os Estados Unidos, apesar de continuarem como nação líder, haviam perdido aquela condição de supremacia que lhes permitia arbitrar questões internacionais no âmbito da aliança ocidental, particularmente nas questões econômicas.

Recentemente, a relutância dos Estados Unidos em pagar sua contribui-ção à Organização das Nações Unidas e as pressões do Congresso para que a quota de contribuição americana seja reduzida têm por origem essa nova con-figuração da ordem internacional. A ONU faz parte de um conjunto de institu-ições com o objetivo de prover o meio internacional com um bem comum essencial: a estabilidade, que é uma denominação mais neutra para a paz. Essa questão, no entanto, assume feições semelhantes nas muitas outras áreas cujos reflexos no plano internacional são significativos como aquelas relacionadas com o meio ambiente, com o comércio ou mesmo com as várias formas de ilícitos, notadamente narcotráfico e lavagem de dinheiro. A estabilidade inter-nacional pode ser comparada ao ar limpo, à proteção da camada de ozônio e 18

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ao combate à corrupção. Qualquer um desses elementos constitui componente fundamental para um ambiente propício para que as sociedades possam pros-perar e desfrutar de qualidade de vida condizente com padrões de educação e bem estar considerados saudáveis. A validade de cada um desses elementos não necessita ser demonstrada, todavia, na condição de bens comuns, são cla-ramente definidos em seu significado, porém difuso no que diz respeito a res-ponsabilidades e benefícios. As sociedades, organizadas em estados-nação, procuram promover seus interesses comerciais, políticos e até mesmo culturais sem considerar, ou considerando apenas secundariamente, a preservação ou promoção de bens comuns como esses. Por que o crescimento da economia, que significa mais empregos e melhores ganhos, deve ser contido ou reduzido devido a considerações sobre eventuais danos ao meio ambiente? Por que des-tinar recursos públicos escassos ao combate a ilícitos internacionais se o nar-cotráfico ou a lavagem de dinheiro estão trazendo fundos para o país, especialmente quando se sabe que se o dinheiro oriundo dessas atividades não vierem para este país irão para outros países que não combatem ou simples-mente fingem combater esses ilícitos? Por que patrocinar intervenções huma-nitárias em áreas distantes? Para que sustentar o funcionamento de entidades internacionais que podem, eventualmente, tomar decisões ou envolver-se com questões que não são de interesse direto dos contribuintes que elegeram os titulares de mandatos públicos? 4 - AS RELAÇÕES NORTE-SUL NUMA PERSPECTIVA HISTÓRICA Na agenda internacional, a questão mais geral da pobreza e das diferenças de padrão de vida entre as nações sofreu mudanças na forma como é vista mas continua atual. Uma visão panorâmica da política internacional na segunda me-tade do século XX, revela que o mundo viveu algumas fases marcantes no que tange às percepções dos países periféricos e sua inserção no quadro das rela-ções internacionais. Na verdade, desde a década de 50, essa questão assumiu a forma de relações norte-sul e têm estado presente de muitas maneiras na agen-da internacional despertando maior ou menor interesse ao longo do tempo, dependendo das oscilações da conjuntura internacional.

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Nos primeiros anos que se seguiram ao término da Segunda Guerra Mundial, a enorme superioridade econômica dos Estados Unidos e as esperan-ças de que os padrões de riqueza e bem estar da sociedade americana pudes-sem ser disseminados pelo mundo deram sustentação a uma década de expectativas e acomodações. A afluência da sociedade americana era visível e, além disso, os valores consolidados na vida econômica e política dos Estados Unidos, que democratizavam de forma jamais vista o acesso à riqueza e à as-censão social, constituíam uma prova viva de que esses padrões eram também acessíveis a outras nações.

Na segunda metade da década de 50, essas expectativas atingiram seu auge e se estruturaram em torno de uma verdadeira teoria do desenvolvimento. As premissas dessa visão aparecem pela primeira vez de modo claro e articula-do na obra de W. W. ROSTOW que, em fins dos anos 50, publica na forma de livro o produto de uma série de conferências pronunciadas em 1957 na Uni-versidade de Cambridge a respeito do processo de industrialização. O livro, intitulado "As Etapas do Crescimento Econômico. Um Manifesto Não-Comunista",9 continha em seu argumento duas vertentes. A primeira dizia respeito ao caráter quase determinista do processo de desenvolvimento econômico que, na sua avaliação, inexoravelmente, passava por fases distintas, indo da sociedade agrá-ria e primitiva para a sociedade industrial que permitia a massificação do con-sumo e o estado do bem-estar. A segunda vertente, traduzida no sub-título da obra ("Um Manifesto Não-Comunista") propunha que, essa evolução de etapas tinha por destino a adoção do sistema liberal capitalista no estilo americano.

Com efeito, naquela época, pode-se dizer que a única sociedade em que o consumo de massa já era uma realidade era a americana. Por exemplo, o nú-mero de refrigeradores ou de televisores por grupo de 100 habitantes era mui-tas vezes maior do que o de qualquer outra sociedade e o automóvel já havia se tornado um bem acessível praticamente a toda a imensa classe média do pa-ís. "No decênio inaugurado em 1950, a Europa ocidental e o Japão parecem haver ingres-sado plenamente nesta fase (fase que os EUA haviam vivido na década de 1920), devido em grande parte a um ímpeto de suas economias assaz inesperado nos anos imedia-

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9 O título original da obra era "The Stages of Economic Growth. A Non-Communist Manifesto" e foi publi-cado pela Cambridge University Press em 1959. No Brasil, o livro foi publicado traduzindo-se growth por desenvolvimento (Zahar Editores (RJ) primeira edição publicada em 196, seguindo-se várias edições da obra).

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tamente seguintes à guerra" afirma ROSTOW.10 A obra de ROSTOW foi o início de um grande movimento que se desencadeou em torno do desenvolvimento e-conômico que se espalhou pelas universidades, que forneciam munição teórica, e pelas agências internacionais e pelos governos, que procuravam transformar visões analíticas em políticas públicas.

Ao ligar o tema do desenvolvimento econômico a uma opção ideológica, em larga medida, essa abordagem também ligava as políticas de desenvolvi-mento a estratégias mais gerais de construção de um sistema de segurança in-ternacional. É, portanto, compreensível que, do mesmo modo surgissem percepções alternativas e, em alguns casos, opostas. Do ponto de vista teórico, a expressão mais viva de visões opostas convergiram para a chamada escola da dependência que, nos anos 60, vai argumentar que o mundo vivia uma disputa global pelo poder e que as nações da periferia eram vítimas da expansão do capitalismo das nações centrais. Nessa visão, o passado colonial não havia se acabado, mas havia assumido outras formas e a exploração continuava a ser um impedimento ao desenvolvimento das nações periféricas, que estavam fa-dadas à continuarem na condição de sub-desenvolvidas. Algumas até poderiam conseguir avanços, mas seriam sempre dependentes do centros de poder do capitalismo mundial.11

Politicamente, após os primeiros anos do pós-guerra em que o "modelo americano" exerceu fascínio generalizado, para a grande maioria dos países da periferia a disputa leste-oeste foi perdendo rapidamente interesse enquanto crescia a noção de que a confrontação da guerra fria deveria ser substituída pelo diálogo norte-sul. Com efeito, na medida em que a guerra fria se consoli-dava como padrão condicionante das relações internacionais, a questão norte-sul tomava a forma de uma insatisfação dos países em desenvolvimento cha-mados de “terceiro mundo”. A expressão “terceiro mundo” decorria exata-mente desse desconforto da grande maioria dos países pobres em acomodar-se no âmbito da disputa entre os dois grandes blocos rivais, cuja política se con-centrava na construção de sistemas antagônicos de segurança internacional. As perspectivas de investimento e crescimento econômico dos países em desen-

10 Página 24 da edição de 1978.

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11 Smir Amin, A. Gunder Frank,Theotonio dos Santos, Ruy M. Marini e Fernando Henrique Cardoso estão entre os autores que se destacaram nessa corrente.

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volvimento eram, dessa maneira, fortemente condicionadas pelas estratégias de ação internacional do bloco soviético e da aliança ocidental preocupados em construir, cada qual à sua maneira, um sistema de segurança onde os países periféricos deveriam, em diferentes graus de importância, atuar muito mais como peças desse tabuleiro de xadrez e não como atores com individualidades e interesses distintos.

Nesse quadro, a busca de estratégias de inserção internacional, foi assu-mindo a forma de oposição à confrontação leste-oeste e, como resultado, vá-rios matizes dessa tendência foram se formando. Todas as vertentes mesclavam, de algum modo, o nacionalismo e a busca do desenvolvimento à margem da disputa leste-oeste. A Conferência de Bandung, de 1955, reuniu um número expressivo de países de industrialização incipiente com o objetivo ge-nérico de se construir uma nova aliança internacional onde fatores tradicionais como raça e religião deveriam se compor com a busca do desenvolvimento econômico e alimentar sentimentos de nacionalismo na periferia. Representan-tes de três dezenas de países da África e Ásia projetaram na cena internacional o nome de personalidades como SUKARNO, NEHRU e NASSER. Na abertura da Conferência o Presidente SUKARNO, anfitrião do evento, afirmava: “Nós, os povos da África e Ásia . . . muito mais do que a metade da população mundial, podemos mobilizar o que eu tenho chamado de violência moral das nações em favor da paz . . . Esta é a primeira conferência intercontinental de povos de cor na história da humanidade. Irmãs e irmãos! Quão terrivelmente dinâmico é este nosso tempo! . . . Nações e estados se levanta-ram após um sono de séculos!”12 O historiador PAUL JOHNSON avalia de modo crí-tico esse movimento argumentando que aquele “era ainda um tempo de inocência, em que se acreditava confiantemente que o poder abstrato dos números, e mais, das pala-vras, iriam transformar o mundo”.13

Na verdade, esses sentimentos de nacionalismo exacerbado combinado com demandas por recursos para o desenvolvimento não exerceram o mesmo fascínio em todas as regiões periféricas do mundo, mas a percepção de que as demandas dos países em desenvolvimento não eram objeto de preocupação na agenda internacional atingiu, de um modo ou de outro, todas as regiões do 12 Discurso de abertura da Conferência de Bandung, Indonésia, 18 de abril de 1955. Citado em P. JOHNSON, “A History of the Modern World. From 1917 to the 1980’s” , Weidenfeld & Nicolson, London, 1983.(p. 477)

2213 Idem.

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mundo situadas fora do núcleo da confrontação leste-oeste. Mesmo países como o Brasil, que tradicionalmente se colocavam no âmbito da aliança oci-dental e cujas relações com os Estados Unidos eram, há muito tempo, de in-tensa cooperação, sentiam que suas demandas não faziam parte da agenda de preocupações da política externa americana. No Governo KUBITSCHEK, espe-cialmente nos seus dois anos finais, essa percepção já se tornara evidente em iniciativas como a OPA (Operação Panamericana). Independente do conteúdo substantivo da OPA, muito provavelmente a forma como o Governo KUBITSCHEK fez oficialmente seu lançamento constitui, do ponto de vista di-plomático, o lado mais significativo do projeto. Diferentemente do que vinha sendo a praxe da diplomacia brasileira, desde Rio Branco, de consultar o Go-verno de Washington sobre qualquer iniciativa externa de maior relevância, no caso da OPA, o Departamento de Estado Americano tomou conhecimento do projeto ao mesmo tempo em que Buenos Aires, Lima, Santiago e todas as de-mais chancelarias do Continente eram comunicadas e convidadas a dele parti-ciparem.

Nos primeiros anos da década de 60, a chamada política externa inde-pendente de JANIO QUADROS e JANGO GOULART vai proporcionar uma ex-pressão mais elaborada de uma nova orientação diplomática, reunindo uma base conceitualmente articulada com a formulação de um conjunto de ações coerentes voltadas para a promoção de programas de desenvolvimento nacio-nal desvinculados das disputas que caracterizavam a guerra fria. Nesse quadro, episódio marcante ocorreu em outubro de 1962. No auge da crise dos mísseis de Cuba, o Presidente KENNEDY enviou carta a JANGO GOULART na qual pe-dia que comandantes e chefes militares brasileiros fossem designados para que se reunissem com autoridades militares dos EUA a fim de traçar uma estraté-gia comum para enfrentar o que era considerado pelos estrategistas americanos como ameaça soviética iminente. A resposta do Governo Brasileiro foi de, po-lidamente, rejeitar a sugestão e argumentar que o Brasil ainda acreditava na viabilidade de se encontrar uma solução pacífica que levasse em conta, entre outros pontos, os terríveis efeitos de uma possível confrontação nuclear, a crença de que nem todas as possibilidades de negociação haviam sido explora-das além do respeito ao princípio da auto-determinação dos povos.14 ARAÚJO

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14 Essa troca de correspondência foi publicada na revista PARCERIAS ESTRATÉGICAS, n. 3, ju-nho/1997, pp. 112-122.

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CASTRO, em 1963, perante a Assembléia Geral da ONU, na condição de Minis-tro das Relações Exteriores, externava de maneira mais completa os princípios da chamada política externa independente por meio da doutrina dos três Ds (desenvolvimento, descolonização e desarmamento). O País mantinha-se fiel à tradição política ocidental, mas se colocava claramente à margem da confrontação leste-oeste e, aos três Ds, poder-se-ia acrescentar autodeterminação.

O próprio GATT, nos fins dos anos 50, de certa forma fazendo coro com os economistas da CEPAL, já reconhecia as dificuldades que os países em desenvolvimento encontravam para dar continuidade à estratégia de desenvol-vimento econômico. Na avaliação do GATT, os mercados da Europa e dos Estados Unidos absorviam de modo insuficiente tanto o aumento das exporta-ções de produtos primários quanto de manufaturados que os países em desen-volvimento passaram a fabricar, em grande parte em decorrência de políticas de industrialização recomendadas pelas próprias agências bilaterais e multilate-rais de desenvolvimento.15 A criação da UNCTAD (Conferência das Nações Unidas para o Comércio e o Desenvolvimento), em 1964, marcou entre outros aspectos, a institucionalização desse novo padrão nas relações internacionais, ao levar para o âmbito da ONU as inquietações dos países situados à margem dos grandes centros de poder mundial.

A década de 70 foi uma fase da economia mundial dominada pela crise energética, e as relações norte-sul ganharam especial atenção. Na verdade, po-de-se dizer que a segunda metade dessa década viveu o auge do prestígio da disputa norte-sul no cenário internacional. A grande bandeira do movimento liderado pelo Grupo dos 77 era a demanda por uma "nova ordem econômica internacional". A UNCTAD que até então havia produzido, no plano do co-mércio internacional o SGP (Sistema Geral de Preferências) e, no plano políti-co, a formação do Grupo dos 77, passou a ser a instância principal que dava abrigo à idéia de que deveria ser construída uma nova ordem econômica inter-nacional, onde os países em desenvolvimento passassem a cobrar um “preço justo” não apenas pelo petróleo mas por muitos outros “materiais estratégi-cos” que, no entender de suas lideranças, eram vendidos a preços aviltados provocando o que os economistas da CEPAL denominavam de tendência se-

2415 Vide Relatório Haberler (GATT, Genebra).

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cular de deterioração dos termos de troca no comércio exterior dos países em desenvolvimento.16 O petróleo, que havia decuplicado seu preço no mercado internacional havia sido o primeiro e poderia continuar sendo o mais impor-tante, mas não deveria ser o único. Outras commodities como o ferro, o alumínio ou o nióbio deveriam seguir o exemplo do petróleo e até mesmo os alimentos e a água deveriam ser considerados nessa estratégia.17

Em 1976, refletindo a importância atribuída ao debate norte-sul a As-

sembléia Geral da ONU declara que o grande objetivo das nações deveria ser a construção de uma “nova ordem econômica internacional” e, em seguida, o Banco Mundial constitui um Comitê sob a liderança de WILLY BRANDT, ex-chanceler da República Federal da Alemanha, com o objetivo de avaliar e ela-borar propostas sobre as relações econômicas e políticas entre os países indus-trializados e os países em desenvolvimento. O relatório da Comissão Brandt, publicado em 1979, em seu título, expressava com dramaticidade o sentido dessa disputa: Norte-Sul, um Diálogo para a Sobrevivência. O argumento desenvol-vido pelo Relatório Brandt se concentrava na idéia de que havia uma clara e inescapável relação de interdependência entre o norte industrializado e o sul, ainda predominantemente produtor de bens primários, e que a cooperação en-tre esses dois grupos de países constituía a saída natural para os problemas que o mundo de então enfrentava.

Rapidamente, no entanto, essas percepções sofreram profundas trans-formações. O diálogo norte-sul, já nos primeiros anos da década de 80, entra numa nova fase, assumindo uma feição bem menos otimista para os países em desenvolvimento. O processo de endividamento do terceiro mundo, que havia se expandido na esteira dos programas de desenvolvimento dos anos 60 e iní-cio dos anos 70, havia atingido proporções críticas com a crise energética. Paí-ses como o Brasil que, tipicamente, haviam avançado no caminho da industrialização, também haviam se tornado fortemente dependentes do petró-leo. A impossibilidade de realizar, no curto prazo, transformações em seus pa-drões industriais e de consumo energético aliava-se às dificuldades políticas de 16 O economista Raul Prebisch, que ocupava a Direção da CEPAL foi um dos principais expoentes nessa linha de análise (R. PREBISCH, Commercial Policy in the Underdeveloped Countries, American Eco-nomic Review, Paper and Proceedings, vol. XLIX, n. 2, 1959 )

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17 Ver S. D. KRASNER “Structural Conflict.The Third World against Global Liberalism ”, University of Ca-lifornia Press, 1985.

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se promover ajustamentos que significassem contenção do consumo e redução das taxas de crescimento econômico. Como o Brasil, muitos desses países e-ram administrados por governos autoritários assentados sobre instituições po-líticas frágeis, geralmente com processos democráticos em construção. O fato é que a crise da dívida externa, que atingiu a maioria dos países em desenvol-vimento, tornou-se o tema dominante nas relações norte-sul a partir da mora-tória do México, em fins de 1982, fazendo com que, rapidamente, os foros internacionais deixassem de fazer qualquer referência àquela demanda por uma “nova ordem econômica internacional”.

Os anos 80 foram marcados também por mudanças importantes que a-tingiram em cheio o bloco soviético e a própria União Soviética. Nos meados da década, as dificuldades econômicas e o atraso tecnológico da URSS já as-sumiam proporções tais que não podiam mais ser ocultados à custa de uma máquina repressiva que se tornava cada vez menos eficaz e demasiadamente dispendiosa para a sociedade. Com efeito, desde os anos 50, a União Soviética era chamada de superpotência porque era o único estado a disputar com os Estados Unidos a frenética corrida armamentista na hipótese de que, presumi-velmente, o equilíbrio de forças constituía a única base confiável na estratégia de segurança internacional. Esses gastos, entretanto, representavam um ônus demasiadamente grande para uma economia várias vezes menor que a ameri-cana. Além disso, a burocracia estatal pesada e acomodada sobre o poder in-discutível do Partido Comunista havia gerado padrões de ineficiência incompatíveis com o dinamismo da concorrência característica do mundo situ-ado fora das fronteiras da URSS e do bloco soviético. Com a ascensão de GORBACHEV, a transparência (glasnost) e as reformas econômicas (perestroika) se revelaram insuficientes para promover a recuperação rápida da vitalidade eco-nômica e política da URSS no plano interno e externo. Ao que tudo indica, serviram apenas para acelerar o colapso do regime e das instituições que garan-tiam precariamente a ordem política e social.

Nos anos 90, contrariamente ao que muitos imaginavam, o fim da guerra fria não trouxe um mundo de paz e cooperação internacional. Antigos confli-tos étnicos ressurgiram com virulência na forma de focos de luta armada espe-cialmente no continente africano e na própria Europa. A questão norte-sul, por sua vez, foi diluída no debate sobre o entendimento do conceito de globa- 26

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lização. A associação desse conceito com a crença nas virtudes do mercado e na inexorabilidade da competitividade como regra de ouro do capitalismo, que produzia riquezas e que havia derrotado flagrantemente o socialismo real, fez com que as regiões mais problemáticas, em grande parte situadas na África sub-saariana fossem virtualmente abandonadas. Aos países que emergiram da antiga cortina de ferro, agora chamadas de economias em transição, cabia a-daptar suas instituições e criar outras a fim de se integrarem ao mercado glo-bal. Muitos países em desenvolvimento, como o Brasil, diante da nova realidade, após longa experiência de economias fechadas em razão de políticas de industrialização fortemente baseadas nos conceitos de substituição de importações, deveriam agora abrir seus mercados expondo seu parque produtivo à competição internacional e privatizando muitos setores de atividade tradicionalmente afeitos ao estado. Essa orientação, no entanto tem encontrado algumas dificuldades e, muito embora em muitos casos não houvessem outras alternativas, os resultados têm sido bem mais modestos do

ue os esperados.

q 5 - O PAPEL DO ESTADO E OS DEBATES SOBRE A GLOBALIZAÇÃO A globalização é um processo que se iniciou muito antes dos anos 90, quando a guerra fria deixou de existir como referencial e como condicionante na or-dem internacional. Não cabe aqui retomar a discussão do significado do termo e da controvérsia sobre as origens do processo de globalização que, numa perspectiva mais ampla, teria se iniciado no século XVI, com a revolução co-mercial e se consolidado com a revolução industrial que, desde meados do sé-culo XVIII, tornou-se uma verdadeira revolução permanente integrando em escala mundial, definitivamente, as relações econômicas, políticas e sociais. Em larga medida, do ponto de vista das percepções sobre a ordem internacional, pode-se dizer que a idéia e o discurso da globalização substituiu a guerra fria.18

O fato é que, na atualidade, essa integração internacional atingiu níveis que tornaram a estabilidade e o crescimento econômico muito mais sensíveis

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18 Essa é a tese de Thomas L. FRIEDMAN desenvolvida no livro "The Lexus and the Olive Tree" (1999). FRIEDMAN argumenta que a angústia associada à globalização, que é um processo inexorá-vel, deriva da dificuldade de se equilibrar a nova realidade (lexus), que desconhece fronteiras, com valores e costumes tradicionais e com os custos sociais das rápidas mudanças nos padrões de traba-lho (olive tree).

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às variações da economia internacional, em especial do mercado financeiro. Estruturalmente, torna-se cada vez mais claro que as mudanças tecnológicas têm ocorrido numa velocidade muito difícil de ser acompanhada não apenas pelos padrões de emprego, mas também por todas as instituições sociais em seu sentido mais amplo. Programas de treinamento e atualização não têm sido suficientes para recolocar no mercado o trabalhador que perdeu seu emprego em razão da introdução de novas tecnologias. Esse esforço de readaptação en-volve problemas de ordem social, psicológica e até mesmo cultural que não são resolvidos apenas com programas de treinamento feitos de palestras e aulas. Além disso, o trabalhador que perdeu seu emprego poderá ser reorientado profissionalmente desde que existam outros postos de trabalho e, em toda par-te, os dados mostram que a geração de novos postos de trabalho não ocorre na mesma velocidade com que são eliminados. Obviamente, essa questão assume proporções muito mais críticas nas economias periféricas, onde a moeda, os mercados financeiros e a própria estrutura de produção apresentam precarie-dades e desequilíbrios que reduzem substancialmente sua capacidade de amor-tecer e administrar os efeitos de variações cíclicas da economia internacional. Além disso, para uma grande parte desses países, o endividamento externo re-tira, sistematicamente, não apenas recursos para investimento, que já são es-cassos, mas retira também a própria capacidade de promover ajustamentos. Questões como essas fazem com que o velho debate sobre as disputas e o diá-logo norte-sul reapareça, sob outra roupagem no cenário de um mundo pós-guerra fria.

Diante do fenômeno, que genericamente denominamos globalização, muitos países vêm se distanciando cada vez mais das possibilidades de incor-porar em suas sociedades os padrões que definem a qualidade de vida corrente. De uma lado, o problema da pobreza, que ainda atinge grande parte de uma centena e meia de países, indica que há um imenso déficit de investimentos sociais para que os benefícios da modernidade possam ser estendidos a essas populações. De outro lado, um problema crucial difícil de ser resolvido é a vir-tual incapacidade das sociedades mais pobres de construírem instituições eco-nômicas e políticas com credibilidade suficiente para proporcionar um ambiente propício ao desenvolvimento de atividades produtivas impulsionadas pelas forças do mercado. 28

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Com efeito, a condição de pobreza implica a existência de necessidade de uma série de investimentos básicos cuja concretização não depende da ação das forças de mercado. Essa forças são eficazes apenas onde, efetivamente, existe mercado. Não se pode pensar em forças de mercado impulsionando in-vestimentos em saneamento básico ou educação fundamental para populações muito pobres com atividade econômica precariamente organizada. Essa situa-ção se verifica de maneira mais visível em algumas dezenas de países que estão virtualmente situados à margem da modernidade e que o Banco Mundial classi-fica como "least developed countries".19 Por outro lado, as nações não são unida-des homogêneas e, dentro de um mesmo país, pode-se ter consideráveis parcelas da população com padrões de vida até piores do que a de nações mais pobres convivendo com áreas onde a qualidade de vida é tão elevada quanto a das nações industrializadas. O Brasil tem sido citado, ao longo do tempo, co-mo um desses casos.

Em ambas as situações, o Estado tem ainda um papel essencial: o de propiciar os fundamentos da organização da sociedade. Atividades econômicas mais complexas não surgem e se desenvolvem em sociedades primariamente estruturadas e as grandes corporações empresariais não investem em nações cujas sociedades apresentam elevado grau de anomia. Quanto maiores e mais sofisticados forem os empreendimentos em qualquer área econômica, mais de-pendentes se tornam de instituições estáveis e confiáveis. Nesse sentido, a mo-eda é um dos indicadores mais precisos desse ambiente. A credibilidade a ela associada não depende apenas de fatores estritamente econômicos. Depende, em larga medida, de fatores políticos e sociais que, em última instância, susten-tam no médio e longo prazos a confiança na manutenção dos padrões de segu-rança e estabilidade das instituições.

A prosperidade de uma economia pode ser temporária, quando assenta-

da apenas sobre os elementos frágeis de uma conjuntura econômica favorável. Uma guerra, uma disputa política interna ou a perda de interesse por determi-nado produto podem ser suficientes para comprometer rapidamente a prospe-ridade dessa sociedade. São muitos os exemplos de nações ricas em recursos naturais importantes, que poderiam proporcionar riqueza e bem estar a suas

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19 No "World Investment Report", de 1997, o Banco Mundial inclui 48 países nessa categoria, sendo 32 países da África Sub-Saariana.

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populações, mas cuja economia permanece em condições precárias em função de crises políticas sucessivas. Angola talvez seja um dos exemplos mais mar-cantes. Apesar das conhecidas riquezas do País, a guerra civil, que se prolonga por mais de uma geração, ao lado do balanço trágico de mortes e mutilados, também tem sido um impedimento a qualquer perspectiva de organização da atividade econômica, a não ser aquela essencial para alimentar as facções em luta. Nesses casos, o mercado nada pode fazer. O que se evidencia é uma crise do estado como elemento estruturador da sociedade. A guerra civil prolonga-da, em última instância, significa a incapacidade do estado como princípio e agente de autoridade impor-se sobre a totalidade do território. Situação seme-lhante pode ser identificada na Colômbia, onde o Governo Central não conse-gue impor-se sobre a guerrilha das FARC, ou no Rio de Janeiro onde, embora numa amplitude muito menor, os representantes da autoridade constituída (municipal, estadual ou federal) não conseguem fazer com que normas e regras sociais, oficialmente estabelecidas, sejam cumpridas nas favelas, ficando estas sujeitas à ação de grupos de marginais que impõem suas próprias regras, como se fossem pequenos estados dentro do estado oficial.

Esse fato, no entanto, tem escapado à percepção da maioria dos analis-tas, especialmente na atualidade, em que a retórica da globalização associada à valorização das forças de mercado prevalece. Com efeito, no momento em que a vida no interior das nações vai se tornando cada vez mais articulada com o mundo além fronteiras, tem sido inevitável o surgimento de visões extrema-mente críticas sobre a idéia de soberania, entendida como autoridade do estado sobre um espaço territorialmente definido. Nessa perspectiva, a noção de so-berania, isto é, da ação do estado sobre uma jurisdição definida, é entendida, por princípio, como oposta às forças de mercado e do progresso exigindo, em conseqüência, uma redução do papel do estado nacional. Em outras palavras, num mundo de regiões interdependentes, que se transforma num mundo de relações econômicas, políticas e sociais cada vez mais integradas, as fronteiras são entendidas apenas como obstáculos à eficiente alocação de recursos.20

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20 S. D. KRASNER, em livro recente, ironiza as discussões sobre o tema da soberania: Sovereignty. Organized Hypocrisy (Princeton University Press, 1999). Argumenta que no meio internacional continua valendo a lógica das conseqüências em relação à lógica da jurisdição e que diferenças no poder das nações, e não normas internacionais, continuam sendo explicações mais adequadas para o comportamento dos estados.

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Essa percepção, embora possa ser consistente sob alguns aspectos, não contempla a dimensão mais importante e primária do estado: o de instituição básica na organização das sociedades. MANCUR OLSON, no livro que terminou de escrever pouco antes de sua morte, discute a sempre intrigante questão: por que algumas nações se saem tão bem e prosperam enquanto outras não conse-guem superar a condição de pobreza e atraso crônicos? Na essência, a resposta de OLSON é que o desenvolvimento de mercados ativos e organizados depende da ação do estado. De um lado, o estado é essencial para garantir direitos, en-tre eles o da propriedade e o cumprimento dos contratos; de outro, o estado também é essencial para evitar a ação predatória de indivíduos e grupos.21 Um bando de criminosos quando assaltam lojas numa cidade não está cometendo apenas um crime contra os proprietários desses estabelecimentos, está aten-tando também contra o comércio organizado e o mercado. Esses são papéis cumpridos satisfatoriamente nas nações mais industrializadas permitindo que o mercado floresça, constituindo-se efetivamente numa força impulsionadora do progresso. OLSON, ainda no prefácio do livro, lembra da decepção de muitos analistas políticos diante do colapso da União Soviética. Esses analistas, ainda sob os efeitos do entusiasmo pela "vitória do capitalismo democrático", espe-ravam que, uma vez derrotado o comunismo, as forças de mercado emergiriam florescendo vigorosamente depois de um longo período de dormência sob um regime asfixiante. Quando levantaram a cortina de ferro, contudo, o que surgiu foi a "máfia russa" e uma enorme quantidade de quiosques e ambulantes que se espalharam pela Praça Vermelha e por todos os logradouros públicos ven-dendo todo tipo de produtos contrabandeados ou simplesmente adquiridos de forma ilegal, sem pagar nenhum tipo de tributo e sem servir de estímulo a ati-vidades produtivas no país.

As grandes democracias são entendidos equivocadamente como estados fracos. São, na realidade, estados altamente organizados, com instituições for-tes e consolidadas, capazes de prover a sociedade com a ordem necessária para que outros atores possam surgir e prosperar, notadamente as grandes corpora-ções empresariais e as variadas formas de organização da sociedade civil. RALF

DAHRENDORF discutindo essa questão, chama atenção para o fato de que a ordem constitui uma condição essencial para a liberdade e que nas grandes

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21 MANCUR OLSON, Power and Prosperity. Outgrowing Communist and Capitalist Dictatorships. Basic Books, New York, 2000.

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democracias, o conflito não foi eliminado uma vez que as diferenças de opini-ão e de interesses são inerentes às sociedades livres e plurais. Essas sociedades, na verdade, foram capazes de consolidar instituições que administram positi-vamente os conflitos legitimando, dentro da ordem estabelecida, as opções fei-tas a partir de inevitáveis diferenças de percepções e interesses.22 Na construção desse ordenamento, obviamente, o estado tem um papel central.

Cabe destacar que a idéia de ordem estabelecida não é entendida aqui

como ordem estática. Todas as sociedades organizadas possuem normas e me-canismos para incorporar as inevitáveis mudanças nos padrões da ordem polí-tica, econômica e social vigente. As sociedades mais bem sucedidas em termos de propiciar riqueza e bem estar a seus cidadãos têm sido aquelas cujas institu-ições, em particular o estado, têm se revelado capazes de melhor assimilar o dinamismo das transformações na modernidade. Desse modo, muito embora haja um visível aumento da importância de atores não estatais e das instâncias internacionais, o estado continua sendo um ator central e básico na estrutura-ção da ordem internacional: uma sociedade com instituições precariamente or-ganizadas, independente da riqueza de seu subsolo ou do tamanho de sua população, dificilmente poderá ter presença substantiva no cenário internacio-nal, a não ser como foco de problemas ou objeto de ganância.

A tese do declínio da importância do estado como ator nas relações in-ternacionais se associa à idéia equivocada de que o processo de globalização pressupõe o enfraquecimento da instituição, que estaria perdendo suas funções para outras entidades, inclusive o próprio indivíduo, tornando-se em última instância, uma instituição anacrônica e até mesmo um empecilho ao floresci-mento das forças de mercado, geradoras da riqueza e do progresso. É verdade que a ação do estado pode, em alguns casos, estar efetivamente produzindo esse efeito negativo na forma de excessos de medidas de regulação e controle, de imposição de restrições a iniciativas individuais e coletivas ou no estabele-cimento de prioridades decididas em termos de “interesses do estado”. A Rús-sia e outros países que experimentaram por décadas o socialismo real, sofreram os efeitos desse tipo de ação negativa de muitas formas. A expressão

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22 RALF DAHRENDORF entende anomia como "uma condição onde tanto a eficácia social como a moralidade cultural tendem a zero . . . (e) considerando-se a função das autoridades em apoiar as sanções, a anomia também representa anarquia." (A Lei e a Ordem, Instituto Tancredo Neves, Brasí-lia, 1987, p. 33).

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“economia centralmente planejada” define bem a presunção contida na ordem estabelecida: um estado capaz de controlar e manejar a atividade econômica em consonância com objetivos estabelecidos pelos governantes. Países em de-senvolvimento, por diferentes razões, também exibem um histórico de ordem política que convive sistematicamente com uma combinação aparentemente paradoxal entre estado autoritário e instituições frágeis.

Esses fatos indicam que a idéia de que o estado é uma instituição ana-crônica constitui um equívoco especialmente quando tomado de forma genéri-ca. É preciso qualificar a experiência política da nação. Enquanto em alguns países o estado-nação ainda não conseguiu afirmar-se perante forças desagre-gadoras da ordem, em outros, como nos casos de países que enfrentam uma prolongada e dura guerra civil, pode-se dizer que o estado vive um processo de decadência e colapso iminente. Nos casos menos extremos, o excesso de regu-lação e controle, freqüentemente justificadas por objetivos sociais, pode estar gerando pesadas burocracias, elevando demasiadamente os custos e desestimu-lando novos investimentos. Em todos esses casos a questão que emerge não é o do "excesso" de estado, mas sim de sua precariedade ou disfunção.

O sistema internacional, ainda que tenha efetivamente se "globalizado",

não dispõe de meios para prover os instrumentos de organização e controle das sociedades, isto é, não está em sua natureza servir de substituto do estado. A globalização pode ser um padrão predominante da ordem internacional ca-paz de influenciar e até mesmo condicionar a ação das sociedades organizadas em estados da mesma forma que a guerra fria, até recentemente, também con-dicionava a ação dos estados. Na história européia, por centenas de anos, o cristianismo representou um padrão dominante na ordem política e social, com um poder muito maior de condicionar a ação dos governantes da época. No entanto, reinos e principados se destacavam uns dos outros dependendo da ação dos governantes e outras instâncias de poder locais. Havia, desde então, estados melhor equipados, mais bem organizados, que permitiam que alguns reinos e principados fossem capazes de gerar mais riquezas e serem mais efica-zes em tempo de guerra.

As fronteiras podem ser sempre revistas e seu traçado refeito. Unidades políticas podem juntar-se formando unidades políticas maiores, ou podem ser 33

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fraccionadas. A Alemanha e a Itália foram unificadas nos anos 70 do século XIX enquanto o Império Áustro-Húngaro, na esteira da Primeira Guerra Mundial, se decompôs em várias unidades políticas independentes menores. Recentemente, o fim da guerra fria trouxe consigo uma nova geografia política da Europa. Por outro lado, toda ordem política está sujeita a contestação. Essa contestação pode aparecer na forma de grupos revolucionários que se organi-zam a partir de ideologias ou simplesmente pela disseminação de um processo de entropia da ordem estabelecida. As ideologias que dão sustentação a movi-mentos revolucionários geralmente têm no nacionalismo uma de suas princi-pais forças de mobilização que, dessa forma, associa o movimento revolucionário à idéia de constituição de um estado nacional seja para agregar ou desagregar unidades políticas existentes. O fato é que essa associação é um fenômeno inevitável. Mesmo o movimento comunista, cuja ideologia era es-sencialmente universalista, enquanto foi efetivo não fugiu à regra de estrutu-rar-se a partir de estados nacionais organizados segundo seus princípios.

A diluição da ordem, produto da incapacidade do estado de produzir e fazer cumprir normas de conduta, serve de campo fértil a movimentos políti-cos que podem ir de atos isolados de desobediência civil até a articulação de facções organizadas. Nesse quadro, as tiranias constituem exemplos do fato de que o uso da força não é suficiente para conferir estabilidade à ordem vigente ou, usando-se uma expressão da moda, não é suficiente para que exista a "go-vernabilidade". Independente de juízos de valor acerca do processo de expan-são colonial da Europa, o colonizador europeu, em algumas regiões, revelou-se mais eficaz no estabelecimento de uma ordem do que as populações locais que, após cortar os laços com a potência colonial passaram a viver virtualmente em estado permanente de guerra civil. De qualquer modo, a questão da ordem constitui uma necessidade primária das sociedades e é definida pela legitimida-de e pela amplitude de jurisdição da autoridade, isto é, pela base de sustenta-ção política do poder e pela capacidade de ação efetiva do estado. Essa capacidade inclui também o horizonte de tempo, uma vez que os governos au-tocráticos e autoritários podem até ser eficazes durante um certo tempo, mas não oferecem garantia alguma de que a ordem por eles estabelecida permane-ça.23 A eficácia desse arranjo que estrutura a ordem política e social não é

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23 HOBBES em De Cive argumenta que "os sediciosos, que contestam a autoridade absoluta, em geral não se dão tanto ao trabalho de destruí-la quanto ao de passá-la para outros" (Editora Vozes, 1993, p. 107). A questão, no entanto, é que essa autoridade, por ser absoluta, geralmente revoga, altera e

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condição suficiente para determinar a qualidade da inserção internacional de uma unidade política, mas, indubitavelmente, constitui uma condição impres-cindível.

A ação do estado como fundamento da organização da sociedade, ao longo do tempo, alterna períodos em que essa ação é valorizada com períodos em que o estado é visto com reserva e desconfiança. Essa alternância, contudo, não é uniforme. O ambiente internacional pode, como ocorre na atualidade, valorizar o papel do mercado e minimizar a importância do estado. Entretanto, os países e regiões vivem situações e problemas diferentes e não se encontram igualmente preparadas e equipadas institucionalmente para se moverem com igual desenvoltura nesse meio internacional de relações "globalizadas". Esse parece ser um dos motivos que explicam as inquietações dos países em desen-volvimento. Nos casos mais extremos, o estado ainda não está suficientemente estruturado para prover a sociedade com os bens públicos essenciais para que as forças de mercado possam florescer efetivamente. No caso da maioria dos países que já atingiram níveis consideráveis de desenvolvimento e industriali-zação, há estruturas políticas e de administração pública ultrapassadas e há re-giões e setores que apresentam bolsões de ineficiência ou que simplesmente se encontram à margem da ação efetiva do estado onde a corrupção e outras formas de ilícitos retiram as garantias de segurança e manutenção dos contra-tos. Sob qualquer ângulo, a estabilidade de regras é tão importante quanto a garantia de que serão cumpridas, mas essa não é uma condição simples de ser observada num mundo de mudanças rápidas e essa dificuldade, obviamente, se torna maior para as sociedades com um quadro de instituições ainda precaria-mente organizadas e com pouca experiência acumulada. 6 – OS DESAFIOS PARA A CONSTRUÇÃO DA CREDIBILIDADE: UMA CONCLUSÃO

De uma forma geral, no mundo de hoje, todos os países buscam objeti-vos semelhantes, no entanto, as perspectivas e prioridades podem ser diferen-tes. As economias mais industrializadas tendem a buscar a estabilidade e o crescimento enquanto, as economias periféricas, por sua vez, buscam priorita-riamente o crescimento econômico, ainda que esse crescimento possa ter curta duração por não se assentar em bases mais estáveis. Pode-se argumentar que

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produz leis e regras de conduta agindo, portanto, contrariamente à ordem e à estabilidade das insti-tuições.

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uma economia internacional em expansão é benéfica para todos, e que não é possível uma economia internacional com estabilidade e crescimento sem que as principais economias do mundo estejam relativamente equilibradas e em condições de promover seu próprio crescimento. Nos países em desenvolvi-mento, contudo, a questão do crescimento se afigura muito mais crítica e complicada. As pressões para a incorporação de parcelas significativas da po-pulação ainda à margem da economia formal, vivendo em condições de pobre-za inaceitáveis para os padrões correntes nas sociedades modernas, se refletem sobre as ações dos partidos políticos e sobre as iniciativas governamentais no plano econômico.

O processo de implantação da prática democrática nos países em desen-volvimento não deixa de ser também uma fonte adicional de dificuldade para a implementação de políticas de ajustamento já que, no curto prazo, invariavel-mente significam contenção de gastos e redução nas taxas de crescimento, ou seja, mais frustração e aumento da tensão latente, que se refletem no compor-tamento da classe política. Na maioria das vezes, a fragilidade das instituições torna a ordem política menos resistente à ação de grupos de pressão mais es-truturados que estão dispostos a impor suas preferências, mesmo que signifi-quem perdas para a sociedade como um todo e, no longo prazo, até mesmo para si próprios. Esses aspectos ajudam a explicar porque, em geral, apesar de estabilidade e crescimento serem buscadas tanto pelas economias mais indus-trializadas quanto pelos países em desenvolvimento, as prioridades se apresen-tam diferentes para as duas categorias de países e essa diferença de percepção se manifesta também na preocupação com a distribuição dos custos do esforço de ajustamento da economia internacional.

Com efeito, muito embora todas as economias busquem a estabilidade e o crescimento, diante da evidente assimetria que caracteriza as relações inter-nacionais, inevitavelmente, políticas econômicas são formuladas no âmbito dos centros mais dinâmicos da economia mundial sem levar em conta as possíveis turbulências que essas políticas possam provocar nas economias periféricas. Trata-se, na verdade, de um padrão recorrente. Ocorreu com a Inglaterra em relação à Argentina e outros países mais integrados à economia britânica ao longo do padrão ouro e, nas últimas décadas, tem ocorrido com os Estados Unidos em relação a países como o Brasil, o México e outros países da região. 36

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Em grande parte, essa é uma razão que explica porque, para as economias peri-féricas, a questão do ajustamento internacional desperta suspeita e insatisfação. Mesmo entre as economias industrializadas a questão da distribuição dos cus-tos das medidas tomadas com vistas ao ajustamento aparece não apenas nas disputas sobre políticas de estabilização, mas aparece também em questões mais amplas como aquelas envolvendo a implantação do euro, e sobre políticas comerciais, como no caso dos impasses que marcaram a Rodada Uruguai e, recentemente, as frustrações da reunião de Seattle. A fracasso no lançamento da Rodada do Milênio, que seria feita em Seattle se deveu muito mais às difi-culdades de se obter um acordo entre as grandes potências do que à ação dos ativistas liderados pela Sra. LORI WALLACH.24

Entre outras características da atual dinâmica dos fluxos internacionais de capital, destaca-se o fato de que esses fluxos tornaram-se muito mais sensí-veis a percepções correntes sobre o comportamento das economias. Os meca-nismos que ligam as economias entre si tornaram-se muito mais variados e ativos e também as informações disponíveis a respeito desse comportamento tornaram-se praticamente instantâneas. Nesse sentido, a credibilidade, apesar de sempre ter sido importante na definição dos fluxos financeiros internacio-nais, nos dias de hoje, esse aspecto tornou-se um componente central tanto das crises como das soluções.

Os efeitos da volatilidade dos capitais não se restringem ao mercado fi-

nanceiro, mas afetam o desempenho da economia como um todo. De um lado, o mercado financeiro tornou-se muito mais diversificado e, de outro, o volume dos fluxos monetários internacionais assumiu dimensões que permitem provo-car alterações substanciais nos padrões da economia real estimulando ou redu-zindo a produção e o comércio. Alem do mais, a moderna tecnologia permite que a movimentação desses capitais possa ser feita num ritmo frenético signi-ficando, portanto, que essa movimentação tornou-se muito mais sensível a in-formações e fatos gerados não apenas a partir do mundo da economia, mas também da conjuntura política. Em meados dos anos 80, PETER DRUCKER já identificava esse fenômeno chamando a atenção para o fato de que a movi-mentação de capitais no plano internacional superava em dezenas de vezes o

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24 Ver entrevista com a ativista Lori Wallach em "Why is this Woman Smiling" na revista Foreign Policy, S-pring, 2000 (pp.28-55)

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volume das transações comerciais, significando que os fluxos financeiros po-deriam perfeitamente, induzir os fluxos de comércio.25

A credibilidade, que é o produto mais objetivo das percepções correntes pode ser mensurada e, efetivamente, já é transformada em índices de confiança divulgados por agências de consultoria especializadas que, periodicamente, pu-blicam tabelas classificando os países pelo nível de risco que suas economias apresentam. Apesar de tudo, muito provavelmente, o melhor indicador para esse “índice de credibilidade” seja a própria taxa de juros: as taxas de juros manejadas pelo Federal Reserve nos Estados Unidos, por exemplo, são quase três vezes menores do que a taxa oficial do Banco Central do Brasil mesmo depois de mais de 5 anos de considerável estabilidade monetária. Esse proble-ma é ainda bem mais dramático se forem consideradas as taxas de juros prati-cadas no mercado financeiro. Esse diferencial na taxa de juros varia com o nível de estabilidade econômica e política do país não sendo, no entanto, pos-sível precisar essa relação. Na crise monetária brasileira, no início de 1999, as taxas de juros foram elevadas a quase 50% ao ano e não há como avaliar a efi-cácia dessa medida. Isto é, não está claro se essa medida teve papel determi-nante na contenção da crise e também não há como saber se caso as taxas de juros tivessem sido aumentadas apenas para o nível de 25 ou 30% ao ano os efeitos teriam sido os mesmos. Não parece haver nenhuma dúvida de que o aumento nas taxas de juros era uma medida necessária mas, muito provavel-mente, teria sido inócua se outras medidas e fatores estruturais não estivessem agindo na mesma direção.

Esse fenômeno reflete as dificuldades que as economias em desenvolvi-mento precisam superar. A estabilidade econômica traz credibilidade e ajuda na estruturação das relações econômicas internas e externas. Há entretanto, outros componentes importantes, menos visíveis e, em geral, mais difíceis de serem implementadas, para que essa credibilidade atinja níveis suficientes para reduzir as vulnerabilidades típicas de uma economia emergente. No caso do Brasil, por exemplo, entre esses componentes dois deles parecem mais eviden-tes para o analista: a dívida pública interna e a dívida externa. Na questão da dívida pública interna, as dificuldades são várias e algumas têm sua origem em

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25 P. DRUCKER, “Mudanças na Economia Mundial” (publicado originariamente na revista Foreign Affairs, 1985.

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heranças históricas como os valores elevados de precatórios pagos sobre desa-propriações e indenizações, o pagamento de correções sobre medidas adminis-trativas e planos econômicos ou ainda aposentadorias generosas de servidores públicos, absurdas sob o ponto de vista social (alguns diriam também moral), mas juridicamente sustentadas.

De uma forma geral, a ineficiência dos gastos públicos se reflete, por e-xemplo, na desproporção entre o nível de arrecadação fiscal e os serviços ofe-recidos pelo estado: para uma arrecadação total em torno de 1/3 do PIB, algo próximo do nível americano e japonês, o efetivo do funcionalismo público no Brasil é, no entanto, proporcionalmente bem menor que o americano, japonês ou europeu. Enquanto em muitos países o funcionalismo público representa quase 2% da população, no Brasil essa proporção não chega a 0,5%. Mesmo no caso da Argentina essa desproporção se verifica: embora a arrecadação fis-cal no ano de 1996 tenha ficado em torno de 16% do PIB (isto é, a metade da brasileira), o total de funcionários, incluindo as empresas estatais, é aproxima-damente igual ao do Brasil, para uma população cinco vezes menor do que a brasileira.26 Entre os funcionários públicos, incluem-se educadores, agentes sociais, policiais, juízes e muitos outros profissionais diretamente responsáveis pelo funcionamento da complexa rede de serviços através da qual se desenvol-ve a ação do estado como garante da ordem social, econômica e política. Cer-tamente, no caso do Brasil, o argumento da redução do tamanho do estado não se aplica muito embora possa haver focos significativos de ineficiência. Associado a esse fato, deve-se levar em conta que, juridicamente, é extrema-mente remota a possibilidade de alterar esse panorama de modo significativo no curto prazo. Distorções e ineficiências quando atacadas por meio de "me-didas saneadoras" ou "reformas administrativas", geralmente, além de serem discutíveis quanto ao seu conteúdo substantivo, seus efeitos invariavelmente apenas resultam em ações judiciais ainda mais onerosas para o estado do que a manutenção do status quo. A prudência recomenda que não se faça "reformas do estado" e sim correções de curso que, a médio e longo prazos possam, efe-tivamente, produzir os benefícios desejados. Na verdade, essa é a forma de

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26 O relatório preparado pelo National Performance Review, sob a coordenação do Vice-Presidente Al Go-re, em 1993, informa que somente no nível federal o Governo Americano tinha na época 2,1 milhões de funcionários civis e mais 1,9 milhões de militares, não incluídos nesse total os funcionários dos correios (Creating a Government that Better Works Better & Costs Less, Al Gore, Sept./1993 pag. ). No caso da Argentina, os dados são do Anuário Estadísitico de la República Argentina, de 1997.

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agir predominante nas sociedades mais organizadas e estáveis. Nesse sentido, países como o Brasil ainda têm um longo caminho a ser percorrido.

Os expressivos superávits primários nas contas públicas obtidos nos úl-

timos meses não constituem garantia nem de saneamento das contas públicas e nem de melhoria na eficiência da ação do estado. De um lado, a enorme dívida pública acumulada continua pressionando as taxas de juros que, financeira-mente, anulam os superávits enquanto, de outro lado, as distorções na estrutu-ra das contas públicas continuam perpetuando os focos de ineficiência do estado.

A dívida externa constitui um dos componentes mais visíveis da vulne-

rabilidade externa do País. É possível entender que o nível de endividamento também reflete o grau de confiança externa na economia, no entanto, as di-mensões do estoque da dívida externa, fazem com que as inevitáveis oscilações nos ciclos econômicos e eventuais dificuldades conjunturais na economia in-ternacional sejam transferidos de modo quase imediato para a economia inter-na na forma de movimentos recessivos e pressões inflacionárias. Medidas de ajuste na economia americana afetam todas as economias do mundo, mas os efeitos sobre economias como a brasileira são geralmente bem maiores. Por exemplo, um aumento nas taxas de juros nos Estados Unidos provoca um au-mento da dívida e do serviço da dívida com reflexos imediatos sobre o balanço de pagamentos. Além disso, a credibilidade menor da economia brasileira tam-bém tende a produzir um efeito composto, provocando pressões e movimen-tos especulativos sobre os investimentos internos e externos.

Esse quadro expõe a extensão das dificuldades a serem superadas por

países em desenvolvimento como o Brasil. De certa forma, sugere a ocorrência do que MERTON chamou de "efeito Mateus". O sociólogo ROBERT MERTON su-gere que na ciência ocorre um fenômeno que lembra a parábola dos talentos do Evangelho segundo S. Mateus que diz "porque a todo aquele que tem se lhe dará, e terá em abundância; mas o que não tem, até o que tem lhe será tirado".27 MERTON de-senvolve o argumento de que o cientista de fama, um ganhador de Prêmio Nobel por exemplo, tende a receber os créditos de qualquer trabalho científico

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27 ROBERT K. MERTON, On Social Structure and Science (edited by Piotr Sztompka). The University of Chicago Press. (pp. 318-336)

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feito em colaboração com pesquisadores de menor prestígio. Não apenas insti-tucionalmente essa diferença de reconhecimento se verifica, mas até mesmo a comunidade científica em geral que tende a citar artigos publicados onde cons-ta o nome de um laureado enquanto levará muito mais tempo para prestar a-tenção em trabalhos publicados por cientistas menos famosos. MERTON esclarece que esse raciocínio não pode ser extrapolado de modo tão simples para as questões da riqueza e da pobreza, isto é, que a riqueza e a pobreza ten-dem a se perpetuar. Parece, contudo, inevitável que qualquer cientista social veja nesse argumento indícios de possíveis explicações para a sensação bem pouco confortável de que grupos sociais ou nações mais pobres encontram mais dificuldade para superar essa condição de pobreza do que as nações ricas para se manterem ricas.

____________ EIITI SATO. Mestre em Relações Internacionais pela Universidade de Cambridge (U.K.) e Doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo. Atualmente, é professor de Relações Internacionais na Universidade de Brasília e também coordenador de projetos do Centro de Estudos Estratégicos do Ministério da Ciência e Tecnologia.

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