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A Ordem Sagrada da Cidade Colonial: Teológica Retórica e Formação das povoações na Capitania de Minas Gerais no Século XVIII Rodrigo Almeida Bastos Doutorando –Universidade de São Paulo Em uma de suas obras mais comentadas – Raízes do Brasil –, Sérgio Buarque de Holanda dedicou um dos capítulos à discussão do processo de urbanização da Améri- ca Ibérica. Posteriormente intitulado O Semeador e o Ladrilhador, no dito capítulo Holanda procurava elucidar o porquê de nossas povoações coloniais apresentarem uma aparente “desordem”, principalmente se comparadas às cidades muito bem “la- drilhadas” pelos espanhóis em seu quinhão continental. Assim como também mais tarde Robert Smith severamente declarou – “os portugueses ignoravam a ordem” –, Holanda escreveu que neles, nos portugueses, estavam patentes o “desleixo” e a com- preensão de que, entre outras coisas, uma urbanização ordenada também “não valia a pena” . A eminente distinção entre os dois modelos de cidade: um, orgânico, aparen- temente desordenado e confuso, o luso-brasileiro, e o outro, hispano-americano, qua- driculado em vias de ortogonalidade evidentemente “racional”, acabou consolidando Arquiteto e Engenheiro civil (e-mail:[email protected]); mestre em arquitetura pela UFMG, doutorando em História e Fundamentos da Arquitetura e do Urbanismo pela FAU- USP (pesquisa realizada com o apoio da FAPESP – Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo). SMITH, Robert. Arquitetura Colonial (As artes na Bahia, I parte): Livraria Progresso, 955. p. . Cf. HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. São Paulo: Cia das letras, 997. Cap. 4: O semeador e o ladrilhador, p. 9-8. Estudiosos têm se dedicado ao exame das ideolo- gias, contradições e métodos subjacentes ao “Raízes do Brasil”, escrito entre 97 e 96; aspectos circunstanciais que teriam condicionado as teorias de Holanda, como por exemplo a compreensão da incipiente urbanização brasileira nos alvorecer da década de 90 e a influência de sua formação intelectual na Alemanha. Para uma apanhado sumário dessas pesquisas, cf. o primeiro capítulo da dissertação de mestrado de TORRÃO FILHO, Amílcar. Paradigma do Caos ou cidade da conversão?: a cidade colonial na América portuguesa e o caso da São Paulo na administração do Morgado de Mateus (1765-1775). Campinas, UNI- CAMP. Dissertação (Mestrado em História), 004.

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A Ordem Sagrada da Cidade Colonial: Teológica Retórica e Formação das povoações

na Capitania de Minas Gerais no Século XVIII

Rodrigo Almeida Bastos� Doutorando –Universidade de São Paulo

Em uma de suas obras mais comentadas – Raízes do Brasil –, Sérgio Buarque de Holanda dedicou um dos capítulos à discussão do processo de urbanização da Améri-ca Ibérica. Posteriormente intitulado O Semeador e o Ladrilhador, no dito capítulo Holanda procurava elucidar o porquê de nossas povoações coloniais apresentarem uma aparente “desordem”, principalmente se comparadas às cidades muito bem “la-drilhadas” pelos espanhóis em seu quinhão continental. Assim como também mais tarde Robert Smith severamente declarou – “os portugueses ignoravam a ordem”�–, Holanda escreveu que neles, nos portugueses, estavam patentes o “desleixo” e a com-preensão de que, entre outras coisas, uma urbanização ordenada também “não valia a pena”�. A eminente distinção entre os dois modelos de cidade: um, orgânico, aparen-temente desordenado e confuso, o luso-brasileiro, e o outro, hispano-americano, qua-driculado em vias de ortogonalidade evidentemente “racional”, acabou consolidando

� Arquiteto e Engenheiro civil (e-mail:[email protected]); mestre em arquitetura pela UFMG, doutorando em História e Fundamentos da Arquitetura e do Urbanismo pela FAU-USP (pesquisa realizada com o apoio da FAPESP – Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo). � SMITH, Robert. Arquitetura Colonial (As artes na Bahia, I parte): Livraria Progresso, �955. p. ��.� Cf. HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. São Paulo: Cia das letras, �997. Cap. 4: O semeador e o ladrilhador, p. 9�-��8. Estudiosos têm se dedicado ao exame das ideolo-gias, contradições e métodos subjacentes ao “Raízes do Brasil”, escrito entre �9�7 e �9�6; aspectos circunstanciais que teriam condicionado as teorias de Holanda, como por exemplo a compreensão da incipiente urbanização brasileira nos alvorecer da década de �9�0 e a influência de sua formação intelectual na Alemanha. Para uma apanhado sumário dessas pesquisas, cf. o primeiro capítulo da dissertação de mestrado de TORRÃO FILHO, Amílcar. Paradigma do Caos ou cidade da conversão?: a cidade colonial na América portuguesa e o caso da São Paulo na administração do Morgado de Mateus (1765-1775). Campinas, UNI-CAMP. Dissertação (Mestrado em História), �004.

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uma tradição historiográfica consagrada nos estudos das povoações coloniais luso-bra-sileiras, presente durante todo o século XX: ao contrário do que fizeram os espanhóis em suas colônias, as povoações que os portugueses implantaram, ou permitiram que se implantassem, em solo brasílico, foram “desordenadas” e “irregulares”.

Para desenvolver seu argumento, o ilustre estudioso se apropriou de um trecho do Sermão da Sexagésima, recitado pelo Padre Antonio Vieira em �655 na Capela Real, culminando na famosa analogia de que os portugueses povoaram como “semeadores”, os espanhóis como “ladrilhadores”. O mais curioso de tudo é que, para construir o seu, Holanda inverteu completamente o argumento de Vieira. Holanda se apropriou aguda-mente das oposições “semeador” e “ladrilhador”, dedicadas pelo jesuíta para caracte-rizar os oradores seus contemporâneos, mas contrariou o verdadeiro sentido de “Or-dem” exposto por Vieira no século XVII. Sérgio Buarque de Holanda louvou a ordem “geométrica” da cidade “ladrilhada”, desmerecendo qualquer outra noção possível de ordem que não se evidenciasse também geometricamente.

Voltemos ao sermão de Antonio Vieira, procurando recompor, assim como no século XVII e primeira metade do XVIII se entendia, uma noção de “ordem” coeva, coerente com o regime teológico-retórico que sustentava não apenas a composição eficaz de sermões, poemas e discursos, como também a disposição conveniente de edifícios e povoações. Será possível começar a entender não somente a “ordem” subjacente ao processo povoador luso-brasileiro, cuja fundamentação é teológico-retórica e não puramente matemático-geométrica, como também defender dessas povoações a sua adequada “regularidade”. É a isso que nos leva também o conhe-cimento de uma noção coeva de “regularidade”, que naqueles tempos era entendi-da sobretudo como “observância” às “regras” e preceitos “da arte”. Afirmo que foram, sim, “observadas” as “regras” luso-brasileiras de se edificar e implantar po-voações (como: ordem, comodidade, conveniência, decoro etc.), em circunstân-cias bastante diversas – físicas, éticas e políticas – das que encontraram e sobre a quais ajuizaram os espanhóis na sua parte americana. Entender esses e outros as-pectos da “ordem” luso-brasileira nos levará a revisar de vez alguns grandes mitos historiográficos, como o da “espontaneidade”, da “irregularidade” e da “desor-dem” das cidades coloniais luso-brasileiras – até mesmo as da capitania de Minas Gerais, reconhecidas como paradigmas dessas atribuições.

O assunto do Sermão da Sexagésima é o próprio gênero retórico-teológico do Sermão. Vieira examina nele as causas prováveis pelas quais os discursos eram ineficazes na “reforma” dos fiéis, e para penetrá-las realizou um exame minucioso e perspicaz4 das circunstâncias que condicionavam a composição e a oração do pregador, “semeador” da palavra de Deus5. Ao desenvolver, então, justamente o

4 João Adolfo Hansen explicou muito bem como a perspicácia era uma das partes do enge-nho, relativa ao exame das definições com as quais se formam conceitos engenhosos. Cf. HANSEN, João Adolfo. Juízo e engenho em preceptivas do século XVII. São Paulo. FFLCH-USP. Notas de aula, s/d. 5 VIEIRA, Antonio. Sermões. (Alcir Pécora org.). São Paulo: Hedra, �00�. Sermão da Sexagé-sima, p. �7-5�.

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“estilo” mais adequado ao sermão do pregador, a quarta de suas cinco “circunstân-cias” (pessoa, ciência, matéria, estilo e voz), Vieira expôs a “Ordem” inerente e adequada à ação de “semear”; uma arte que, embora composta em “regras”, teria aparência mais de “natureza” do que propriamente de arte. Uma referência, segun-do Alcir Pécora6, à tópica poético-retórica da arte em que se observou a “justa medida” e o “decoro”, visando sempre à eficácia e à melhor recepção. Além de observar o preceito do “decoro”, essa “arte sem arte” deveria dissimular o próprio artifício através do qual a arte se perfaz em graça e eficácia, não se consumindo em afetações nem excessos. Assim, “o mais antigo pregador que houve no mundo”, engenhou Vieira, “foi o Céu”:

As palavras são as estrelas, os sermões são a composição, a ordem, a harmo-nia e o curso delas. Vede como diz o estilo de pregar do Céu, com o estilo que Cristo ensinou na terra? Um e outro é semear; a terra semeada de trigo, o Céu semeado de estrelas. O pregar há de ser como quem semeia, e não como quem ladrilha, ou azuleja. Ordenado, mas como as estrelas: Stellae manentes in ordine suo. Todas as estrelas estão por sua ordem; mas é ordem que faz influência, não é ordem que faça lavor. Não fez Deus o Céu em xadrez de estrelas, como os Pregadores fazem o sermão em xadrez de palavras7.

Vieira criticou os pregadores que faziam sermão em “xadrez de palavras”, “ladrilhadores”, referência ao “estilo culto” que estava “em moda” entre os prega-dores dominicanos da corte portuguesa8. Semear deveria ser como tem pregado, desde o princípio, o “Céu”, à maneira também como Cristo ensinou na terra – dig-níssimo de imitação: “como quem semeia, e não como quem ladrilha”. Cada pala-vra deveria ter, portanto, a sua “ordem” e disposição não por determinação lógica abstrata, afetação ladrilhar, não deveria culminar simplesmente no “lavor”, mas sim por conveniência à ordem verossímil do sermão, que era o que lhe conferia sentido, articulação lógica, coerência e efetiva “influência”9. Assim como os ser-mões, as demais produções artísticas, pintura, escultura, arquitetura etc., unificadas pela homologia de procedimentos e preceitos retóricos, obedeciam nesses tempos a uma ordem primordial de adequação e conveniência baseada na verossimilhan-

6 PÉCORA, Alcir. Camões e Vieira: as artes e os feitos. In: Revista do IFAC. Ouro Preto, IFAC/ UFOP n.�, Dezembro de �995. p. �5-�7. 7 VIEIRA, op. cit., p. �9-40. 8 Cf. PÉCORA, op cit. p. ��. 9 A “Influência” aparece, aqui, certamente, como metáfora do efeito que, segundo se com-preendia no XVII, os astros tinham na inclinação dos homens e no destino da história. Neste caso, o discurso do Céu, como primeiro pregador em nome de Deus e à maneira do semea-dor, adiantaria a providente “conversão” e “reforma” de gentios. Assimilada à cultura cristã, a astrologia, carregada de atributos mágicos, alquímicos e platônicos, constituiu referência interessantíssima à teologia e à iconografia artística dos séculos XVI, XVII e XVIII. Cf. SEBAS-TIÁN, Santiago. Contrarreforma y barroco; lecturas iconográficas y iconológicas. Madrid: Alianza, �989.

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ça e no decoro, ou seja, cada parte deveria ter o seu lugar adequado e conveniente nas composições, segundo sua natureza, conveniência e participação proporcional no todo, observando-se sempre as circunstâncias, matérias, gêneros etc., visando sempre à correção da representação e à satisfação das comodidades, dos efeitos e proveitos inerentes à recepção final da obra.

O também jesuíta Raphael Bluteau definiu a Ordem, em seu Vocabulário por-tuguês e latino de �7��, dedicado ao rei Dom João V como um princípio ótimo de “conveniência”, considerado na “disposição” ou “colocação” das cousas nos luga-res “que lhes convém”: “Ordem. Disposição, assento, colocação das cousas no lugar, que lhe convem”. Nalgumas vezes, se pode dizer “dispositio”, recorrendo ao uso que lhe deu o ilustre rétor latino Cícero (séc. I a. C)�0. É por isso que a “ordem” urbana não poderia ser exclusivamente uma qualidade determinada a priori, como induzem as noções de regularidade e ordem estritamente geométricas, a compara-ção com algumas cidades hispano-americanas�� e a grande tradição da historiogra-fia da arte luso-brasileira; porque tudo indica que essa “ordem” deveria ser neces-sariamente “estabelecida” na ação circunstanciada e decorosa de “situar”, de “dispor”, de “assentar”, pois, “convenientemente” a cidade.

Atentei para esta noção coeva de Ordem enquanto estudava justamente o decoro na implantação de novas povoações em Minas Gerais na primeira metade do século XVIII��. Não é por acaso que Alcir Pécora propôs recolocar-se exatamen-te a noção de decoro enquanto comentava o dito sermão de Vieira, um preceito fundamental para o entendimento dessas artes seis e setecentistas, comumente cha-madas “barrocas”. É preciso reconstituir historicamente os preceitos coevos com os quais se sustentavam as fábricas e as artes nesses tempos, ordem, decoro, con-veniência, comodidade etc., a fim de melhor reavermos, historicamente, essas mesmas artes e fábricas.

Como disse anteriormente, a ordenação das partes de qualquer produção visa-va sempre à sua finalidade. E como, nesse mundo católico, Deus é o princípio e o fim de todas as coisas, é de se supor que a noção de ordem possuía, obviamente, uma fundamentação teológica. Poder-se-ia, então, objetar: ora, antes de culminar

�0 BLUTEAU, Raphael. Vocabulário portuguez, e latino..., Coimbra: Real Collegio das Artes da Companhia de Jesu, �7��. Ordem, v. 6, p. �0�. �� Walter Rossa chamou a atenção para o fato de que, efetivamente, “entre a totalidade das cidades hispano-americanas é percentualmente reduzido o número de casos em damero”. ROSSA, Walter. O Urbanismo regulado e as primeiras cidades coloniais portuguesas. In: Colectânea de Estudos; Universo urbanístico português, 1415-1822. (Helder Carita e Renata Araújo coord.). Lisboa: CNCDP, �998. p. 507-5�6. Já se relativiza, portanto, o reconheci-mento desse tipo de traçado como o padrão típico aplicado na colonização hispano-ame-ricana. Todavia, e sobretudo durante o período em que se registraram as primeiras contri-buições da historiografia urbana da América Ibérica, ele foi realmente consagrado como paradigma da política de colonização e povoamento espanhol. �� BASTOS, Rodrigo Almeida. A arte do urbanismo conveniente: o decoro na implantação de novas povoações em Minas Gerais na primeira metade do século XVIII. Dissertação (Mestra-do)–Universidade Federal de Minas Gerais, Escola de Arquitetura. Belo Horizonte, �00�.

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em Deus, uma povoação possuía finalidades específicas, comodidades, satisfações ordinárias, políticas, defensivas, assim como um edifício, templo ou palácio, cada qual segundo seu gênero e destinação? Sim, a indagação é pertinente, e o sentido de leitura é exatamente este. Pode-se dizer que havia níveis hierárquicos também de fi-nalidade, culminando sempre em Deus. A comodidade das povoações, por exemplo, uma finalidade a ser satisfeita pelo conjunto de edifícios e lugares, representava, para além de satisfazer a necessidade ordinária da povoação, uma virtude da administra-ção absolutista em prover de urbanidades��, dignidades, ornatos e outras virtudes, as várias partes de seu “corpo político”. Designando-se, pois, virtuosamente, encenava-se o pressuposto teológico-retórico de que o reino católico cumpria digna – e divina-mente – a sua destinação, contribuindo para o aumento e a conservação da fé.

Avancemos mais justamente no conhecimento dessa “ordem” que dava senti-do, coerência, decoro e verossimilhança, não apenas ao discurso do sermão, como também à própria representação urbana do “corpo místico” do reino em sua fiel e divina aparência. A busca é por um sentido de coesão “espiritual” que articulava as várias partes de seu corpo “sagrado”, uma “concórdia” de “partes” que encenava, para todas as hierarquias sociais, dos escravos à corte, o quanto era íntegra, e hie-rarquicamente integrada, a política de conservação e aumento da coroa – que tinha como argumento principal a missão propagandista de levar aos confins do mundo, como se escreveu em visitas pastorais de época, a “linda fé católica”.

Ordem e disposição conveniente dos “corpos”

Enquanto a Retórica e Poética sustentaram as teorias das artes, a “ordem” foi en-tendida como “disposição” adequada e “conveniente” das partes que compõem uma obra. Vinculadas convenientemente, essas partes deveriam constituir um “corpo” como que “vivo”, lugar-comum (topos) desde a antiguidade, para se imitar e também tratar das instituições e produções humanas, dos discursos às artes, também a arquitetura. Vale lembrar a famosa sentença de Protágoras: “O homem é a medida de todas as coisas”�4, e outras tantas que se consagraram na história do pensamento ocidental.�5

�� Um dos sentidos para o termo “urbanidade”, entre o XVI e o XVIII, é o de discrição cortesã. Cf. CASTIGLIONE, Baldassare. O cortesão (Il libro del cortigiano, 1528). São Paulo: Martins Fontes, �997.�4 COLE, Thomas. The Origins of rehtoric in ancient Greece. Baltimore/ Londres: The John Ho-pkins University Press, �995. p. �45.�5 No Fedro, Platão idealizou que “todo discurso deve ser formado como um ser vivo e ter seu organismo próprio; não deve faltar-lhe a cabeça nem os pés, e tanto os órgãos centrais como os externos devem estar dispostos de maneira que se ajustem uns aos outros, e tam-bém ao conjunto”PLATÃO. Diálogos. Trad. de Jorge Paleikat. Rio de Janeiro: Ediouro. Fedro. p. �68. Para Aristóteles, a beleza de qualquer coisa “composta de partes” depende de sua “extensão” e de sua “ordem”. ARISTÓTELES, Arte poética. In: Aristóteles, Horácio, Longino. A poética clássica; trad. de Jaime Bruna, São Paulo: Ed. Cultrix, �997. p. �7. Na introdução à Arte Poética (Epistola ad Pisones), Horácio introduziu a unidade do poema como disposição

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Nas repúblicas católicas absolutistas�6, o entendimento da constituição dos “corpos” também se sustentou com a noção antiga do “corpo” bem disposto e or-denado; revestido, porém, de uma autoridade cristã. Se a amizade, ou o amor (Philía), ou ainda a Harmonia�7 – aparecendo ora como personificação de divinda-des (Afrodite) ora como atributos técnico-musicais – responsabilizavam pela con-veniência das partes nos corpos antigos, o vínculo que perpassou e justificou a unidade constitutiva dos corpos cristãos também assimilou semelhantes atributos: harmonia, ordem, conveniência, proporção etc., adequados à uma índole sagrada decorosa. No cristianismo, o vínculo especialmente apto a unificar e a ordenar os corpos foi o próprio “Espírito Santo”, metáfora do amor de Deus�8 que haveria de integrar os homens e iluminá-los rumo ao desempenho máximo e último de suas naturezas, dons e virtudes – tudo em satisfação do projeto divino ao qual os ho-mens são orientados, apesar do pecado original, pela consciência da reta razão e pela luz da graça infundida por Deus nos homens.

São Paulo enunciou esse entendimento na primeira carta aos Coríntios – pas-sagem por demais conhecida e repetida, na história da doutrina Cristã – quando, muito oportunamente entre gregos�9, enunciou o “corpo místico” de Cristo e de sua Igreja, todos os membros vinculados e “impregnados” pelo amor do mesmo “Espírito”.

adequada e coerente das partes de um corpo, desfeita a qual não se poderia conter o riso. HORÁCIO. Arte poética; epistola ad Pisones. In: Aristóteles, Horácio, Longino. A poética clássica. �-9, p. 55. �6 A noção de “república” considerada aqui não é, obviamente, a que corresponde ao re-conhecimento político moderno das repúblicas federativas e das liberdades pós-iluministas individuais e institucionais, mas sim a que corresponde ao Antigo regime português. A res publica absolutista portuguesa concernia ao “bem-comum”, mas não como espaço da livre-manifestação individual e coletiva; concernia ao bem-comum como espaço sobretudo de representação – representação de uma ordem considerada “sagrada”, fundamental à coroa portuguesa, capaz de sustentar teoricamente e justificar a ética e a moral, a hierarquia, a coesão e a concórdia entre as partes do reino, o projeto colonizador e a escravidão, os pri-vilégios e as mercês, as artes e a constituição das cidades. �7 No belo de estudo de Paula da Cunha Corrêa, encontram-se os vários usos do termo “har-monia” na antiga Grécia. Como termo técnico da carpintaria e da marcenaria, as “amarras” utilizadas para articular e vincular as distintas partes de uma estrutura; no sentido figurado de um “pacto”, “laços travados entre duas ou mais partes”; como divindade ou personificação que assume vários nomes e formas, “Harmonia, Afrodite ou Philía”, que “harmoniza o mundo por meio de um processo de unificação”. Assim, “com suas harmoníai, os artesãos humanos criam artefatos ajustando as partes em um todo e, da mesma maneira, os artesãos divinos, demiurgos ou forças, criam ou mantém a ordem cósmica”; além do sentido musical, em que harmonia é obtida pela afinação das cordas da lira, a “série de notas empregadas em uma melodia particular”. Cf. CORRÊA, Paula da Cunha. Harmonia: mito e música na Grécia antiga. São Paulo: Humanitas FFLCH/USP, �00�. (Coleção Letras Clássicas). p. ��-�5. �8 Cf. Lucas, �4: 49; Marcos ��: ��; João: �6: 5-�5; Atos �: �-��. �9 Nos Atos dos apóstolos, evidencia-se mais uma vez o engenho de Paulo na tentativa de persuadir os gregos à conversão para o nascente Cristianismo. Na introdução de um dos seus discursos, em Atenas, Paulo enuncia que vai falar aos gregos de um deus que eles já haviam reconhecido de alguma forma. Paulo se refere então ao “Deus desconhecido”, ao qual os

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Porque, como o corpo é um todo tendo muitos membros, e todos os membros do corpo, embora muitos, formam um só corpo, assim também é Cristo. Em um só espírito fomos batizados todos nós, para formar um só corpo, judeus ou gregos, escravos ou livres, e todos fomos impregnados do mesmo Espírito. Assim o corpo não consiste em um só membro, mas em muitos. [...] Mas Deus dispôs no corpo cada um dos membros como lhe aprouve. Se todos fossem um só membro, onde estaria o corpo? Há, pois, muitos membros, mas um só corpo. O olho não pode dizer à mão: “Eu não preciso de ti”, nem a cabeça aos pés: “Não necessito de vós”. Antes, pelo contrário, os membros do corpo que parecem os mais fracos, são os mais necessários. E os membros do corpo que temos por menos honrosos, a esses cobrimos com mais decoro. Os que em nós são menos decentes, recatamo-los com maior empenho, ao passo que os membros decentes não reclama tal cuidado. Deus dispôs o corpo de tal modo que deu maior honra aos membros que não a têm, para que não haja dissen-sões no corpo e que os membros tenham o mesmo cuidado uns para com os outros. Se um membro sofre, todos os membros padecem com ele; e se um membro é tratado com carinho, todos os outros se congratulam por ele. Ora, vós sois o corpo de Cristo e cada um, de sua parte, é um dos seus membros. Na Igreja, Deus constituiu primeiro os apóstolos, em segundo lugar os profe-tas, em terceiro lugar os doutores, depois os que têm o dom dos milagres, o dom de curar, de socorrer, de governar, de falar diversas línguas. [...]”�0.

A união coerente dos membros diversos que conformam o corpo é “ordem”. A fi-nalidade dessa integração ordenada e decorosa das partes era o proveito comum do todo, o bem comum do todo, a integridade e a conservação do corpo, um conjunto que se deveria contemplar perfeito, proporcionado e decente, ordenado enfim. As-sim como São Paulo estabelecera o corpo de Cristo e da Igreja unidos e impregna-dos pela ação do espírito, as repúblicas católicas absolutistas tiveram seus corpos político-sociais impregnados por um fundamento também espiritual; corpos com-postos também de partes ou membros singulares, estamentos, hierarquias, cada qual em sua posição adequada e cumprindo também sua função adequada. Para Francisco Suarez – neo-escolástico cujas obras principais foram difundidas nos Cur-sos de Cânones da Universidade de Coimbra�� – é uma “união” de tipo “espiritual” o que realmente define essas repúblicas; que se apresentava socialmente como “união moral” pois estabelecida pela reta razão dos homens e regulada pelas virtu-des católicas. “A união moral é fundamentalmente uma ordem”, Suarez imita São Tomás de Aquino, para quem a “sociedade é uma unidade de ordem”.�� O homem

gregos haviam erigido um templo na cidade. (Cf. Atos, �7: ��) Agradeço esta referência ao professor Jacyntho Lins Brandão, em uma de nossas conversas sobre a Retórica antiga. �0 I Coríntios ��: ��-�0. �� Cf. HANSEN, João Adolfo. Artes seiscentistas e teologia política. In: TIRAPELI, Percival (Org.). Arte sacra colonial: Barroco memória viva. São Paulo: UNESP/Imprensa Oficial do Estado, �00�. p. �85.�� Cf. ROCAFULL, Jose M. Gallegos. La doctrina política del P. Francisco Suarez. México:

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é um ser social, os teólogos católicos concordam com Aristóteles na definição da natureza humana, e a formação de uma república ordenada seria um dos meios mais eficazes pelos quais o homem poderia ser levado à plenitude de suas virtudes; à plenitude de sua natureza única e privilegiada – graça divina.

Especialmente as povoações, então, na condição de objetos, espaços e luga-res ordenados integrados à ordem sagrada do corpo místico do reino, eram vistas como muito convenientes ao gênero humano. Na “cidade”, fábrica síntese da cultura, o homem poderia encontrar tudo o que precisa para viver e desenvolver-se no conhecimento da ordem, e a participar dela plenamente, em corpo e espí-rito. A cidade proporciona, ou deveria proporcionar, “comodidade” ao corpo do homem, assim como encarnar e encenar as leis das coisas espirituais, as quais o homem deveria seguir e se integrar��. A integração do homem ao corpo místico do estado se dava nesta íntima participação social, corpórea e espiritual. A ajuda da sociedade era efetivamente material, física, mas promovia o desenvolvimento da vida propriamente humana, numa ajuda que se dirigia e se revestia, cada vez mais, de uma “índole espiritual, e dirigida à conquista do reino do espírito”.�4 Seguindo as leis supremas da Natureza, a República católica colaborava então para efetivar a “ordem sobrenatural que gratuita e generosamente Deus estabele-ceu entre os homens”�5. Essa ordo naturalis, introduzida por Deus na natureza através de sua lei eterna, o homem deveria “reproduzir a seu modo no mundo da cultura, dentro do qual se encontra a própria república” e suas manifestações e representações físicas, a cidade, a arte etc.�6 “Criar uma cultura – neste contexto católico contra-reformista – é colaborar com Deus no acabamento de sua própria obra”, o que permitiu dizer que a verdadeira cultura está sempre “animada por um sopro divino”�7. O homem era apenas um instrumento divino na criação da cultura, um iluminado pela graça divina que aperfeiçoa a natureza�8.

Se para Francisco Suarez a “união” era “ordem”, para João Botero – doutrina-dor da razão de estado católica – a “desunião” era sinal de “desordem”.�9 Assim,

Editorial Jus, �948, p. �4. Investigando a União e as possibilidades de “encarnação” do Verbo divino na Natureza, Santo Tomas de Aquino expõe a manifestação da “ordem” (com-mensuratio) através da arquitetura: “uma casa é feita de pedras e tijolos arranjados em or-dem, conformados a uma figura”. Cf. Tomas de Aquino. The Summa Theologica of Saint Thomas Aquinas. London: Encyclopaedia Britannica. Parte III, Q. �, Art. i. p. 7�0, v. �. Santo Agostinho também definira a ordem socialmente: uma pluralidade de elementos que se unem moralmente quando devidamente dispostos na comunidade (“parium dispariumque sua cuisque tribuens loca, dispositio”). Cf. ROCAFULL. La doctrina política del P. Francisco Suarez. p. �4.�� ROCAFULL. La doctrina política del P. Francisco Suarez, p. 5�.�4 ROCAFULL. La doctrina política del P. Francisco Suarez, p. �89. �5 ROCAFULL. La doctrina política del P. Francisco Suarez, p. �06; p. �65. �6 ROCAFULL. La doctrina política del P. Francisco Suarez, �65-�66. �7 ROCAFULL. La doctrina política del P. Francisco Suarez, p. �67. �8 ROCAFULL. La doctrina política del P. Francisco Suarez, p. �67. Cf. também HANSEN, João Adolfo. Artes seiscentistas e teologia política. p. �80-�89. �9 BOTERO, João. Da razão de estado. (Luís Reis Torgal, coord. e introd.; trad. de Raffaella

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conservar a ordem do corpo político era uma prioridade dos Estados católicos. Uma dentre as três principais estratégias concernentes à sua administração: “funda-ção”, “aumento” e “conservação”, Botero considerava a “conservação” a mais im-portante. Em Minas Gerais, por exemplo, conquanto fosse preciso consolidar novas “conquistas” e “descobrimentos mineradores”, e também “aumentar” as cidades, em tamanho e dignidade, impunha-se sobretudo conservá-las, mantê-las, cômo-das, limpas, asseadas e decentes. Os documentos setecentistas que noticiam as ações da câmara comprovam isto numerosamente, referindo-se à reforma e à ade-quação tanto dos lugares públicos como das edificações particulares, que também se responsabilizavam pela representação aparente do corpo místico do reino. Daí algumas requisições muito repetidas: opção por materiais mais permanentes, como a pedra e a telha, dignidade, capacidade e proporção de espaços e edifícios públi-cos, comodidade, asseio e decência de lugares, continuidade, quando não possível a retidão, de alinhamentos de ruas, uniformidade do casario caiado, destaque “vis-toso” para os edifícios públicos, religiosos e oficiais etc.

Era preciso conservar também a concórdia entre os membros e partes do reino. A “discórdia” entre os membros era compreendida como uma doença, que com-prometia a “sanidade” do “corpo do estado”�0. Botero argumentou com o exemplo de Jesus Cristo na instituição da “Santa Igreja”, unida pelo amor da caridade: “como os homens são normalmente imperfeitos e a Caridade vai continuamente se arrefecen-do, é preciso, para pôr ordem nas Cidades e manter em paz e tranqüilidade a comuni-dade dos homens, que a Justiça nelas se implante e seja exercida”.�� Entendida não como igualdade, mas sim como o que proporcionasse a cada um aquilo que devida-mente lhe coubesse segundo sua posição e méritos dentro do corpo político e social, a Justiça era uma espécie de “harmonia”, uma “proporção”, preceitos consagrados tam-bém no campo da arte. A definição é aristotélica��, assimilada por São Tomas de Aqui-no segundo o qual a “justiça” é o que se “ajusta” ou “cai tão bem” de modo que não resultam sobras��. Na ética da razão de estado católica, a ordem se construía essencial-mente através da justiça, e fazê-la era conformar-se com a “lei eterna”, aspirar realizar a “ordem universal”. O estado deveria, pois, ter um ideal de justiça conforme o qual estabelecer suas normas. E a ordem a ser traçada daí haveria de ser participação da razão ou da “ordem” que o supremo legislador usa para reger o universo�4. Importantes não eram, positivamente, as leis ou o direito, senão os fins que se deveriam perseguir

Longbardi Ralha). Coimbra: Instituto Nacional de Investigação Científica/ Centro de História da Sociedade e da Cultura da Universidade de Coimbra, �99�. Livro I, p. ��-�4. Denomi-na-se “razão de estado católica” o pensamento que influiu na formação e manutenção das repúblicas católicas contra-reformistas, em resposta às formulações políticas de Maquiavel, baseadas no artifício e na força do poder, consideradas tirânicas e contrárias à lei de Deus. Cf. HANSEN, João Adolfo. Razão de estado. In: A Crise da razão (org. Adauto Novaes). São Paulo: Cia das Letras. �999.�0 BOTERO. Op. cit., Livro I, p. ��-�4.�� BOTERO. Op. cit , Livro I, p. �9. (grifo nosso).�� ARISTÓTELES, Ética a Nicômano. São Paulo: Nova Cultural, �996. Livro V, �, p. �98-�99. �� ROCAFULL. La doctrina política del P. Francisco Suarez, �7�.�4 ROCAFULL. La doctrina política del P. Francisco Suarez, p. ��-�4; �7�-�74.

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através deles e de outras virtudes: a paz e a concórdia; a suficiência de bens que sus-tentem a conservação e a comodidade da vida corporal; a honradez dos costumes que é necessária à paz externa e a felicidade da república etc�5.

Se a cidade era o lugar mais importante da cultura, as artes seriam também “lugares”, por excelência, da manifestação da “ordem”. A ordem se manifestava, pois, nas “normas” que deveriam perseguir o bem comum, mas também na materiali-dade física, urbana, da república; encarnando, por assim dizer, metaforicamente, a palavra divina nos valores e discursos que sustentavam a justiça, a coesão espiritual e moral dos membros do corpo místico, as hierarquias e proporções, evidenciando sem-pre o fundamento teológico das ações e produções humanas que se justificavam, via de regra, na contribuição humana aos desígnios de Deus. As artes constituíam suporte privilegiado e excelso para a compreensão dessa ordem, efetivando-se como um teatro permanente desses valores. Como o fundamento das artes era sagrado, e também a maioria dos temas das representações artísticas, que os artistas deveriam imitar das es-crituras sagradas e da tradição, no século XVI os jesuítas alcunharam a expressão The-atrum Sacrum, para se referir à estratégia de manifestação das artes em seio católico�6. Fundamentando-se teológica e retoricamente, as artes seis e setecentistas – letras, ima-ginária, arquitetura, música etc. – funcionavam todas como um “teatro sacro”, encena-ção contínua dos valores, pressupostos e princípios da igreja católica.

Integrando-se hierarquicamente à ordem de todo corpo político, um edifício de arquitetura deveria apresentar uma ordem ou disposição específica adequada ao seu contexto e circunstâncias próprias. A ordem da arte e da povoação fazia parte da ordem político-teológica; serviam a ela, alimentando-se dos mesmos prin-cípios, conveniência, decoro, hierarquia, dignidade, concórdia, justiça, harmonia, proporção etc. Um exemplo eloqüente: o Templo da Irmandade da Ordem terceira de São Francisco de Assis de Vila Rica. Seu frontispício possui elementos caracte-rísticos da irmandade, notadamente a representação do transpasse das chagas do Cristo ao santo, representação coerente com a lógica, com a história e com o cará-ter da associação, e que proporciona um discurso teológico-retórico apropriado e singular, diante dos discursos também específicos das demais irmandades. Toda-via, esses discursos e essas disposições específicas dos edifícios se integravam ao discurso maior do corpo místico, mantendo sua individualidade, mas contribuindo, enquanto parte, para o bem comum católico do todo. Sob o engenhoso óculo ce-gado da capela de São Francisco, onde Aleijadinho figurou o transpasse das cha-gas, a portada é disposta e ornada com elementos que articulam cordialmente o corpo da irmandade ao corpo místico do reino português�7. Estão lado a lado as cinco chagas de Cristo (e do santo) e os cinco escudetes do brasão de Portugal (uma alegoria teológico-retórica de proporção); encimados, no mais alto da composição

�5 ROCAFULL. La doctrina política del P. Francisco Suarez, ��7. �6 Cf. HANSEN, Artes seiscentistas e teologia política, p. �8�. �7 Vale a pena conferir o estudo de JORDÃO, Paulo Vicente da Veiga. Corpo Santo; alegorias do corpo místico no barroco mineiro. Monografia (Especialização em cultura e arte barroca)-Instituto de Filosofia, Arte e Cultura/UFOP. Ouro Preto, �996.

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além da imagem da virgem, por uma coroa dominada por uma cruz (ícone sobreposto do senhorio universal de Cristo e da majestade imperial portuguesa, ali engrandecidas pelo ornato que encena dignificando, com decoro e formosura, o seu discurso). Cada parte efetuava, portanto, o seu discurso próprio e adequado, unido aos outros e ao discurso integral da cidade e da república, como conjunto de partes que se integravam hierárquica e convenientemente. Os fundamentos e preceitos desse discurso específi-co, enquanto corpo que se integrava a outro maior e comum, eram basicamente os mesmos, pois deveriam reproduzir continuamente as normas e valores gerais da ordem sagrada: Deus (causa primeira e fim de todas as coisas), a hierarquia e a proporção (da igreja, do reino e das instituições), a conveniência (utilidade, harmonia e concórdia das partes), conservação dos corpos, dignidade e decência.

Assim como todos os membros do corpo místico estavam conveniados, con-cordados e ordenados pela vinculação amorosa do espírito, os membros ou partes das obras dependiam de um sentido de “conveniência”. O professor João Adolfo Hansen alertou para a importância da metáfora aristotélica-estóica da “amizade” na fundamentação da noção de concórdia nas monarquias católicas�8. Nos trata-dos artísticos e também nos documentos de época, a “conveniência” aparece com dois sentidos básicos: �°) a conveniência era uma propriedade que as partes apresentam por estarem bem umas com as outras e com o todo, e, �°) a conveni-ência era uma utilidade, um proveito usufruído pelas partes e pelo todo. Era pri-meiro um princípio de composição e aglutinação das partes, convir com, vir bem com, culminando numa finalidade advinda desta mesma organização; ou seja: a conveniência como bom arranjo das partes proporcionava uma conveniência como utilidade ou proveito. Assim como no antigo modelo do corpo humano, as partes deveriam estar bem ordenadas umas às outras, proporcionando aparência harmônica, utilidade e coesão estrutural ao organismo.

Politicamente, essa concórdia ordenada de partes e conveniências deve ser vista como associação inquestionável de homens, estamentos e instituições, que deveriam contribuir, cada qual ao seu modo, cabedal, natureza e posição, para o bem comum do estado. Artisticamente, essa concórdia de conveniências deve ser vista como arranjo decoroso e ordem, colocação conveniente de cada parte do corpo artístico em seu lugar e posição apropriados, em sua proporção adequada, coerente estilisticamente com o gênero, com o assunto e com a finalidade da obra – a recepção adequada dos destinatários. Não se pode esquecer que a finalidade da obra, neste contexto pós-tridentino, enquanto teatro sacro católico, concernia diretamente ao bem comum, encenação dos valores e princípios que mantinham evidentes os fundamentos teológicos e a dignidade da república absolutista. Era também, portanto, uma parte das conveniências da própria república, do grande projeto político do estado que era justificado como continuação do projeto de Deus mesmo. A orientação tocava aos preceitos retórico-teológicos, que o artista ou artesão conhecia pela leitura dos tratados ou, principalmente, pelo percurso coletivo da própria tradição oficial corporativa de que fazia parte. Os lugares-

�8 HANSEN. Artes seiscentistas e teologia política, p. �88.

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comuns do gênero o artista também deveria escolher da tradição. A invenção das artes (inventio), ou seja, o primeiro dos procedimentos retórico-artísticos, consis-tia na prudente escolha dos lugares–comuns (topoi) adequados ao assunto do discurso artístico, ao gênero, ao contexto e circunstâncias, a serem ordenados também convenientemente pelo segundo procedimento retórico, ou seja, a dis-posição (dispositio). No âmbito das artes figurativas, os lugares comuns eram re-colhidos em várias fontes de longas e variadas durações: nos tratados e na tradi-ção, nas representações da Bíblia, nas gravuras em circulação. No âmbito da arquitetura e da cidade, os lugares-comuns arquitetônicos se consagraram na lon-ga tradição da fábrica artístico-construtiva luso-brasileira: uma série de elementos que caracterizaram essas cidades luso-brasileiras: os conjuntos uniformes de casas caiadas, os adros e largos defronte às igrejas e capelas, via de regra, implantadas em elevação, as casas de câmara e cadeia e os pelourinhos, signos temporais do poder e da justiça, as ruas “direitas” e travessas, as técnicas de construção adequa-das, a importância de se considerar o sítio de implantação etc.

Para a questão da ordem, especificamente, ou da boa disposição, a hierarquia se evidenciava com destaque. Os vários elementos, estruturas e estilemas trabalha-vam sempre em função de uma cena ou de uma imagem principal, de um rito principal, de um argumento principal a ser ressaltado. Os altares-mores eram dedi-cados ao orago principal ou ao próprio Cristo, ao Santíssimo Sacramento, ladeados pelos altares menores que traziam sempre os santos relacionados à devoção da ir-mandade; no caso da matriz, os oragos das próprias irmandades. No teatro da cida-de, os lugares mais elevados e privilegiados eram ocupados pelos edifícios oficiais e religiosos. Os templos deveriam obedecer a requisitos de dignidade e decência bas-tante coerentes com sua posição. A recomendação aparece em vários tratados vigen-tes no século XVIII, sobre a arte religiosa católica�9, e nas Constituições primeiras do arcebispado da Bahia, regulações expressamente comentadas nas visitas pastorais do século XVIII em Minas Gerais. Estamos bastante habituados a ver em nossas povoa-ções do período colonial, inúmeros edifícios religiosos, igrejas e capelas. Estes edifí-cios prevaleceram no processo de formação dessas povoações e evidenciam nelas um caráter religioso indiscutível, característico mesmo dessas povoações. Penso particularmente em Minas Gerais, cuja paisagem acidentada oportunamente per-mitiu dispô-los, como recomendavam tratados e regulações eclesiásticas, em om-breiras e cumes de morros, o quanto possível isentos das águas e de tudo que não fosse limpo, decente e asseado.

A disposição adequada e conveniente de edifícios e lugares deveria reproduzir e representar, como princípio de utilidade, mas também como garantia de aparên-cia conveniente, a ordem sagrada subjacente à política portuguesa postulada em

�9 Penso sobretudo no importante tratado de São Carlos Borromeu, motivado pelo Concílio de Trento (�545-�56�). BORROMEO, Carlos. Instrucciones de la fábrica y Del ajuar eclesi-ásticos (Instructiones fabricae et supellectilis ecclesiasticae, 1577). (Introdução, tradução e notas de Bulmaro Reyes Coria; nota preliminar de Elena Isabel Estrada de Gerlero). Cidade do México, Universidade Nacional Autônoma do México / Imprensa Universitária, �985.

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nome de Deus. Não foram poucas as requisições de ordem, decência, dignidade, conveniência, grandeza, aparato, ornato, asseio, elegância, formosura etc., presentes em todas as etapas da fábrica artístico-construtiva colonial setecentista, desde a esco-lha dos sítios para implantação de novas povoações40 até a “necessária”, assim sem-pre declarada, ornamentação dos edifícios. A integridade do reino, e de sua política, dependia, física e aparentemente, da integridade de suas “partes”, com especial aten-ção para os edifícios, arruamentos, largos e praças, “partes” constitutivas da cidade. A integridade física, bem como a aparência e a conservação dessas partes construí-das estava orientada, na execução e no ornato, pela satisfação desses preceitos que formavam uma verdadeira rede de princípios competentes à dignidade e à decência da povoação – por extensão corporativa, de toda a república católica.

Concluo reafirmando o interesse pela ordem colonial luso-brasileira, impres-cindível para o melhor entendimento das artes, da arquitetura e das povoações produzidas na América portuguesa até pelo menos o início do século XIX. Compre-ender o sentido de ordem dessas matérias implica tentar compreender a lógica teoló-gico-retórica das invenções, das disposições e das ornamentações que constituíam parte de uma ordem maior, sacralizada, dentro da qual aquela estava integrada e servia como parte e meio necessário, apropriado e conveniente para um fim projeta-do em nome de Deus e do bem comum da República católica. A opinião consolida-da que paira sobre esses objetos e povoações remanescentes do século XVIII quer nos fazer acreditar que eles nasceram “espontâneos”, “irregulares” ou “desordenados”, ou que tentaram se desviar heroicamente da “ordem” e da “regulação” metropolita-nas – ideologias modernas destinadas a inventar uma identidade nacional a partir de “raízes” de um país que ainda não existia no século XVIII. Ao se procurar entender o regime teológico-retórico dentro do qual estavam inseridos esses objetos, torna-se produtivo, e até imperativo, rever tais compreensões. Observar historicamente os aspectos específicos da produção dessa arte colonial e os princípios coevos, como ordem, justiça, conveniência, decoro, formosura, etc., não nos levará a dizer que esses artistas e artífices, responsáveis anônimos ou não pela produção artística sete-centista, tenham sido menos importantes ou capazes do que pensávamos. A busca pela ordem dos objetos segundo a lógica devida de seus tempos (e não segundo a lógica dos tempos dos autores que sobre eles escrevem) promete restaurar-lhes uma história, pelo menos, mais verossímil.

40 Cf. BASTOS, Rodrigo Almeida. A Arte do Urbanismo Conveniente.