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4 RBCE - 121 A Organização Mundial do Comércio: novas questões, novos desafios* omc Pascal Lamy Apesar da crise econômica, a globalização do comércio continua a ocorrer, mas o seu rosto mudou. Agora, o grande desafio que nos espera nas próximas décadas é a convergência de preferências coletivas. Os países emergentes estão desempenhando novos papéis nesse processo. Novas alianças estão sendo forjadas. Essa situação implica mudanças para os países avançados, exigindo mudanças, também, na forma de funcionamento da Organização Mundial do Comércio (OMC). A história da OMC começou com as tarifas, mas agora diz respeito cada vez mais às regulações “além fronteiras”. Eu diria que a globalização do capitalismo de mercado tornou necessário encontrar uma nova maneira de reinserir a economia na sociedade, de acordo com o processo intuído por Karl Polanyi. Tendo em vista Pascal Lamy é Presidente honorário da Notre Europe - Jacques Delors Institute e ex- diretor-geral da OMC. * Texto publicado originalmente nos Cadernos En Temps Réel, em julho de 2014. a globalização do comércio e o diagnóstico incontestável sobre o aumento da interdependência econômica, é impossível ignorar as questões que se referem à sociedade, entendida aqui em sentido mais amplo. Em outras palavras, duvido que as economias possam continuar a exercer a sua interdependência sem que as próprias sociedades se tornem cada vez mais interdependentes, o que levanta a questão muito concreta de preferências e valores coletivos. Isso me parece não apenas uma hipótese interessante, mas também pertinente, se quisermos compreender as questões envolvidas na transformação internacional do comércio e, além disso, o futuro do capitalismo de mercado globalizado. Baseio a minha reflexão no argumento de que a maior autonomia do capitalismo de

A Organização Mundial do Comércio: novas questões, novos ... · generalizado de computadores pessoais e smartphones, também contribuíram para a rápida mudança nos padrões

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A Organização Mundial do Comércio: novas questões, novos desafios*

omc

Pascal Lamy

Apesar da crise econômica, a globalização do comércio continua a ocorrer, mas o seu rosto mudou. Agora, o grande desafio que nos espera nas próximas décadas é a convergência de preferências coletivas. Os países emergentes estão desempenhando novos papéis nesse processo. Novas alianças estão sendo forjadas. Essa situação implica mudanças para os países avançados, exigindo mudanças, também, na forma de funcionamento da Organização Mundial do Comércio (OMC).

A história da OMC começou com as tarifas, mas agora diz respeito cada vez mais às regulações “além fronteiras”. Eu diria que a globalização do capitalismo de mercado tornou necessário encontrar uma nova maneira de reinserir a economia na sociedade, de acordo com o processo intuído por Karl Polanyi. Tendo em vista

Pascal Lamy é Presidente honorário da Notre Europe - Jacques Delors Institute e ex-diretor-geral da OMC.

* Texto publicado originalmente nos Cadernos En Temps Réel, em julho de 2014.

a globalização do comércio e o diagnóstico incontestável sobre o aumento da interdependência econômica, é impossível ignorar as questões que se referem à sociedade, entendida aqui em sentido mais amplo. Em outras palavras, duvido que as economias possam continuar a exercer a sua interdependência sem que as próprias sociedades se tornem cada vez mais interdependentes, o que levanta a questão muito concreta de preferências e valores coletivos. Isso me parece não apenas uma hipótese interessante, mas também pertinente, se quisermos compreender as questões envolvidas na transformação internacional do comércio e, além disso, o futuro do capitalismo de mercado globalizado.

Baseio a minha reflexão no argumento de que a maior autonomia do capitalismo de

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mercado levou a um divórcio entre a economia e a sociedade. Assim, é possível que sua versão globalizada, na medida em que exige um certo grau de convergência para ser sustentável, possa ser direcionada para a reintegração, em maior ou menor grau, com o advento de uma sociedade global que tenha mais valores compartilhados.

Dois exemplos recentes me parecem interessantes nessa conexão. Em primeiro lugar, há a pena de morte, que continua a marcar uma grande linha divisória nos sistemas de valor do nosso mundo, e essa separação não foi questionada pelo processo de globalização, porque nenhum aspecto comercial estava envolvido. No entanto, recentemente, uma restrição às exportações europeias de substâncias letais usadas para executar condenados nos Estados Unidos da América (EUA) impossibilitou a morte de diversos sentenciados à pena capital (casos esses que foram devidamente dramatizados). Essas restrições, que são baseadas unicamente em considerações de ordem moral, têm, em certa medida, “reintegrado” os sistemas de valores nesse processo, como se o movimento no sentido da convergência fosse inexorável e a aplicação do princípio da subsidiariedade estivesse se tornando perfeitamente congruente.

Num campo menos dramático (pelo menos, na visão de algumas pessoas), o Tribunal da OMC tratou recentemente de restrições da União Europeia (UE) às exportações canadenses e norueguesas de pele e carne de filhote de foca, sob o fundamento de que a caça desses mamíferos é contrária aos princípios de bem-estar animal. Os valores comerciais envolvidos são

mínimos, mas é uma questão importante aos olhos do homem comum europeu, que expressa seus pontos de vista através da maioria no Parlamento Europeu.

A TRANSFORMAÇÃO DO COMÉRCIO INTERNACIONAL

“Feito no mundo” (Made in the world)

A rápida redução do custo da distância

Nas últimas décadas, as mudanças na produção de bens e serviços transacionáveis causaram uma reconsideração profunda da análise tradicional sobre a abertura do comércio internacional. Desde a criação, em 1947, do Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio (GATT, na sigla em inglês) – o próprio acordo, produto do pensamento econômico do século XIX e início do XX –, uma nova paisagem vem substituindo o mundo do passado, marcado por 50 anos de regulação e iniciado com o fim da Segunda Guerra Mundial.

Uma resposta clara é necessária para a pergunta sobre as diferenças entre esses dois mundos: a tecnologia teve um impacto importante sobre a localização de sistemas de manufatura. Força motriz por trás da inevitável globalização do comércio, a evolução tecnológica tem embaralhado as cartas do comércio internacional em um grau que os pensadores tradicionais, como Smith ou Ricardo, nem poderiam ter sonhado. Por um longo período, a aplicação prática de suas teorias precisou encarar a existência continuada da distância como um obstáculo ao comércio.

Mas as novas tecnologias, como o contêiner ou a internet, nas áreas de logística e de

comunicação, introduziram grandes novidades que reduziram o custo da distância, melhorando assim a eficiência do comércio e da divisão internacional do trabalho em todo o mundo. Um exemplo dessas incontáveis inovações é a substituição de aviões com motor a pistão por aviões com motor a jato, que cortou o custo do transporte em 50 vezes ao longo dos últimos 50 anos. Custa menos, hoje, enviar um contêiner de Marselha a Xangai do que o transferir para Avignon. Progressos constantes na tecnologia de informação e comunicação, como o uso generalizado de computadores pessoais e smartphones, também contribuíram para a rápida mudança nos padrões de produção e consumo do mundo.

A tendência para a redução do custo da distância no comércio internacional tem, de fato, literalmente eliminado o tradicional paradigma de que os estrangeiros estão “distantes” de nós, numa situação geográfica ou geopolítica que supostamente prejudica o comércio. Esse argumento é agora obsoleto. Na realidade, a abertura do comércio e o desenvolvimento de cadeias de valor tiveram um impacto tão grande sobre a localização de bens e serviços que já não é tão fácil medir o valor agregado de um produto (se estivermos falando de bens ou serviços) cujos componentes vêm de todo o mundo. A média mundial de conteúdo importado nas exportações subiu de 20%, há 20 anos, para 40% hoje, e parece que vai bater a marca de 60% em 20 anos.

Quais conclusões devemos tirar dessa evolução, se não a de que o capitalismo vai logo acabar matando o mercantilismo, cujo resíduo ideológico, ocasionalmente, continua a dificultar o nosso pensamento?

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Os obstáculos que ainda perduram no caminho do comércio agora têm muito menos a ver com direitos aduaneiros ou com o custo administrativo de passagem na fronteira do que com diferenças regulatórias em temas variados como saúde, segurança e meio ambiente

Não é que as velhas ideias mercantilistas – as quais, de fato, exerceram papel preponderante na concepção e regulamentação do comércio mundial – tenham estado sempre erradas em desacreditar as importações em favor das exportações. Mas, hoje, apegar-se a essa maneira de pensar significa perder a noção da realidade, que exige que as importações representem quase a metade das exportações de um país. Em outras palavras, querer reviver o obstáculo da distância restringindo o comércio através de um aumento na tributação dos insumos estrangeiros equivaleria simplesmente a dar um tiro no próprio pé.

O mercantilismo está perdendo força

Na visão mercantilista predominante no passado, a maneira de conceber a abertura do comércio se baseava no princípio de “desarmamento mútuo”. O ponto de partida foi uma situação em que o comércio era limitado principalmente por direitos aduaneiros, e essa redução das taxas regia-se pelo princípio da reciprocidade, o que é crucial para qualquer compreensão do sistema que sustenta a teoria legal por trás do GATT.

A lógica de negociação restringia-se essencialmente a um equilíbrio de concessões entre exportações e importações. Levei algum tempo para entender em que medida o legado das teorias mercantilistas pesava sobre as mentalidades dos diplomatas comerciais. Foi em 2004, como comissário europeu para o comércio, que tive a dimensão desse legado durante uma conversa com Vladimir Putin sobre a adesão da Rússia à OMC. O presidente russo parecia estar descobrindo, após negociações que duraram vários anos, que não havia uma

taxa alfandegária única por linha tarifária para todos os membros da organização. Em outras palavras, os Estados-membros tinham estruturas de proteção diferentes, daí o objetivo comum de convergir para a redução, para não dizer eliminação, dos direitos aduaneiros por meio de “concessões mútuas” graduais e complexas.

A arquitetura teórica do GATT foi baseada essencialmente no mercantilismo intimamente ligado ao conceito de reciprocidade; e esse conceito implica o princípio do tratamento especial e diferenciado para países em desenvolvimento. Na forma como foi aplicada pelo GATT durante 50 anos, essa teoria defende que os países avançados têm de abrir seu comércio com base na reciprocidade e permitir que os países em desenvolvimento se beneficiem da abertura do comércio por meio de preços diferenciados, como resultado, digamos, da sua reduzida “capacidade de contribuir”. As razões para essa flexibilidade – ambas, ao mesmo tempo, muito complexas e muito concretas – têm a ver tanto com os interesses econômicos dos antigos atores dominantes do comércio internacional, como com os sentimentos de culpa colonial; a ideia básica é que os países industrialmente avançados são, obviamente, mais capazes de lidar com as consequências do aumento da concorrência internacional do que os países em desenvolvimento.

Assim, toda a teoria de um tratamento especial e diferenciado presente nos princípios da OMC e do GATT admite que, por uma série de razões, nem todos os membros têm as mesmas obrigações. Ao fazer isso, ela justifica, em especial, um menor grau de abertura para os países

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menos desenvolvidos até o momento em que eles alcancem os países avançados. Tem-se, portanto, uma questão tabu, e faz-se necessária uma reflexão sobre esse conceito de desenvolvimento, cujos limites ainda são nebulosos. Em que momento um país “em desenvolvimento” deixa de se enquadrar nessa categoria de forma permanente? Isso porque, embora haja um amplo consenso a favor da convergência, apenas marginalmente se fala sobre as circunstâncias concretas do desenvolvimento necessário, no longo prazo, para tornar essa convergência possível. Na realidade, o efeito da multilocalização é mudar a natureza dos obstáculos ao comércio, mas também questionar o antagonismo tradicional que aceita a existência de um sistema para o hemisfério sul e outro diferente para o hemisfério norte.

A imprecisão dessa noção de desenvolvimento pode ser vista, por exemplo, em uma simples pergunta que muitas vezes faço: a China é hoje um país em desenvolvimento com um grande número de pessoas ricas, ou é, pelo contrário, um país desenvolvido com um grande número de pessoas pobres? A definição dos princípios de equilíbrio e justiça necessários para regular a abertura do comércio mudará de acordo com a resposta que se dá a essa pergunta. Se esse raciocínio se aplica independentemente da natureza dos obstáculos que estão no caminho do comércio, então ele certamente se aplica aos obstáculos tradicionais, representados basicamente pelos direitos aduaneiros. Mas a situação mudou: a imensa transformação do cenário internacional, ocorrida em

razão dos fatores tecnológicos, discutidos anteriormente, implica uma contínua redução dos obstáculos ao comércio tradicional.

Tarifas diminuindo, regulação aumentando

A irresistível ascensão da precaução regulatória

Com o sistema mais flexível e uma mobilidade maior, os direitos aduaneiros não são mais uma barreira tão poderosa para um produtor, porque este pode simplesmente se estabelecer em outro lugar. Essa observação explica, em parte, o significativo corte no nível global de direitos aduaneiros, desde o início do GATT. A média ponderada dos direitos aduaneiros sobre o comércio é hoje inferior a 5%. Restrições administrativas e imobilização nas fronteiras, cuja redução foi objeto de um grande acordo na conferência ministerial da OMC em Bali, no final de 2013, representam, em média, um custo que é duas vezes maior que o custo dos direitos aduaneiros.

Os obstáculos que ainda perduram no caminho do comércio agora têm muito menos a ver com direitos aduaneiros ou com o custo administrativo de passagem na fronteira – que o acordo de Bali, ainda a ser ratificado, vai reduzir no futuro – do que com diferenças regulatórias em temas variados como saúde, segurança e meio ambiente. A aplicação do princípio da precaução ao comércio internacional traz à tona novos problemas que estão claramente em desacordo com a neutralidade ideológica que regula a criação de obstáculos do mundo mercantilista. Nesse novo cenário, para os parceiros

comerciais, já não é mais uma questão de simplesmente reduzir custos e otimizar ganhos, mas sim de garantir o tratamento a ser dado a padrões (standards) potencialmente permeados por questões políticas.

A referência ao princípio da precaução sujeita a regulação do comércio a uma lógica de gestão de riscos, em conformidade com um padrão moral ou cultural que implica uma ruptura radical com a neutralidade exigida pelo comércio internacional, de acordo com a abordagem tradicional. Não é preciso levar em consideração alguns debates mais acalorados, como os relativos à privacidade das informações pessoais ou aos organismos geneticamente modificados (OGMs); basta olhar para as diferenças entre o uso e a concepção do diesel na Europa e nos EUA que elas já refletem perfeitamente o peso das preferências coletivas.1 De fato, por razões que têm mais a ver com a organização dos transportes do que com a proteção do meio ambiente, os americanos dão preferência aos motores a gasolina em seus carros, em detrimento dos motores a diesel. Os europeus, ao contrário, preferem carros com motor diesel, mas eles cobram impostos sobre o diesel que são totalmente inexistentes nos EUA.

As diferenças em matéria de regulação apontam para um mundo radicalmente diferente do sistema anterior, que foi marcado por uma abordagem intelectual compartilhada cujo objetivo, em última análise, era simplesmente o de suprimir todos os direitos aduaneiros. Essa abordagem com o objetivo de eliminar as restrições alfandegárias ao comércio é relativamente clara e

1 Ver o artigo anterior publicado pela En Temps Réel: Pascal Lamy, Steve Charnovitz & Charles Wyplosz, Mondialisation et préférences collectives : la réconciliation? Outubro, 2005.

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fácil de entender. Na verdade, foi adotada pela iniciativa europeia conhecida como “Tudo, Menos Armas” (EBA, na sigla em inglês), que implementei em 2001 para facilitar a liberdade de acesso aos mercados da UE para os 48 países mais pobres do mundo. Esse tipo de abordagem promove uma redução tão radical dos direitos aduaneiros que estes acabam desaparecendo por completo.

Baseada na restrição regulatória, por outro lado, essa abordagem envolve o aumento dos padrões e do nível de proteção para coincidir com o aumento no nível de desenvolvimento. No setor alimentício, a observância de determinadas normas torna-se um requisito prioritário quando o fornecimento ou a produção são garantidos na origem. A formação das preferências coletivas está intimamente ligada ao aumento da renda.

Quanto mais avançado é um país, mais cauteloso ele se torna, adotando regras que podem, de facto e sem que isso seja a razão principal, obstaculizar o comércio. Agora, para não ser totalmente irônico, deve-se dizer que é impossível pensar em eliminar regulações unicamente com base em argumentos que destaquem os benefícios decorrentes da abertura do comércio. O que importa agora é reduzir a diferença entre as regulações. Por exemplo, nenhum comissário europeu iria defender uma diferenciação no nível máximo de pesticidas permitidos em flores importadas, para beneficiar os países menos desenvolvidos, em nome de uma política comercial projetada para promover o desenvolvimento. O nível máximo de agrotóxicos permitido, definido pela Europa e verificado na fronteira, não vai mudar de acordo com a origem da importação.

Em outras palavras, não se pode mais diferenciar. E a realidade, que a maioria dos negociadores comerciais até agora vem tomando cuidado para não mencionar de forma muito clara, é o fim do tratamento diferenciado. A conclusão essencial desse processo é que, com as tarifas já baixas e com um ambiente regulatório cada vez mais vinculativo, há menos espaço para negociar com base em concessões mútuas.

Questionando o tradicional equilíbrio de forças

As discussões entre a UE e os EUA sobre a Parceria Transatlântica de Comércio e Investimento (TTIP, na sigla em inglês) ilustram perfeitamente essas novas questões, porque 80% do problema dizem respeito à convergência regulatória. Nesse contexto, a noção de desarmamento é igualmente inadequada. Seria inconcebível para um negociador defender o desarmamento regulatório.

Agora, essa transformação pressiona o equilíbrio de forças a seguir uma nova lógica. Em termos gerais, pode-se supor que, sob o antigo sistema de comércio internacional, os consumidores eram a favor de uma abertura do comércio, enquanto os produtores demonstravam certas reservas em relação à proposta, para não dizer hostilidade. Em outras palavras, a abertura internacional dos mercados e a redução das tarifas só podem ser do agrado do consumidor porque ele se beneficia com tais medidas, mas nem tanto para o produtor, porque ele sofre o impacto do aumento da concorrência.

No entanto, com a convergência regulatória, a situação se inverte e os consumidores tendem a demonstrar uma certa hostilidade

Embora a abertura global do mercado dê aos países em desenvolvimento a oportunidade de obter vantagens comerciais, também acarreta uma maior volatilidade, por conta da competição

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em relação ao que eles, com frequência, veem como um risco, em outras palavras, uma diminuição ou relaxamento dos padrões (dumping regulatório); por sua vez, os produtores têm tudo a ganhar caso essa convergência ocorra, favorecendo suas economias de escala. Pessoalmente, tendo a achar que a convergência regulatória será nivelada por cima: mesmo a harmonização para padrões mais elevados será sempre mais benéfica do que a inexistência completa de padronização. Nesse contexto, os EUA e a UE têm muito a ganhar se estabelecerem algo que poderia, perfeitamente, se tornar o padrão global.

Precisamos, portanto, levar em conta a noção de que a realidade do comércio internacional – e, consequentemente, a sua regulamentação – não é mais o que costumava ser, e que o ethos dos negociadores não tem outra opção que não a de se adaptar a isso.

Essa é também a razão pela qual defendi que o cálculo do comércio se baseasse no indicador de valor agregado, e não no de volume. Se olharmos para os números do valor agregado, temos um quadro muito mais fiel do comércio internacional. Em particular, veremos que os serviços representam a maior parte do comércio internacional, embora a multilocalização da produção de bens comercializáveis leve, necessariamente, a superestimar o comércio de bens medido em termos de volume. Veremos também que os maiores importadores são também os maiores exportadores, e que eles são os países que ganham o maior valor agregado com o seu comércio internacional.

Essas mudanças também refletem a extensão da transformação ocorrida, a qual exige um debate público sobre o que fazer para que a mentalidade mercantilista fique restrita aos livros de história. Certamente isso não é um problema para Cingapura, Nova Zelândia ou Costa Rica, que o fizeram muito rapidamente, ou para Canadá, Austrália, Suécia, Dinamarca ou Finlândia. Também não é um problema para a Holanda ou para o Reino Unido. É muito mais problemático, no entanto, para Estados Unidos, França ou Índia. E é ainda mais difícil para Brasil, Argentina, Indonésia, África do Sul ou Rússia, porque a nova divisão do trabalho dá um lugar de destaque para as cadeias de valor.

Que tipo de desenvolvimento?

Esse processo dá uma nova importância à velha discussão ideológica sobre os melhores critérios para orientar o desenvolvimento econômico. O desenvolvimento deve se basear nos recursos naturais ou em obter o máximo do capital humano? O modelo dominante de cadeias de valor (o objetivo é, justamente, se inserir nelas) oferece aos países em desenvolvimento novas oportunidades para fazer o melhor uso de suas vantagens comparativas no acesso ao mercado global. Naturalmente, embora a abertura global do mercado dê aos países em desenvolvimento a oportunidade de obter vantagens comerciais, também acarreta uma maior volatilidade, por conta da competição.

Nessa nova configuração, pode-se perceber uma clara diferença entre os países que tentaram (ou

tentaram mais de uma vez, como o Brasil), de um lado, gerenciar seu próprio desenvolvimento (de acordo com o modelo de Singer-Prebisch) com base na exploração de recursos naturais abundantes e os países que, de outro, seguem o modelo europeu ou asiático, por dar prioridade ao fator trabalho. Nesse espírito, o investimento na educação e na formação é a melhor forma de desenvolver a economia.

E, por último, é importante ressaltar que alguns países oscilam entre as duas tendências. Esse, por exemplo, é o caso da Indonésia e da África do Sul, e mais ainda dos países africanos emergentes, como a Nigéria ou o Quênia, que, em breve, terão que enfrentar essa mesma dicotomia. A África, próximo continente a se destacar no cenário internacional, é rica tanto em recursos naturais quanto em população.

Assim como essas transformações têm um impacto na natureza dos obstáculos e, consequentemente, ipso facto sobre a forma como eles devem ser enfrentados, também a generalização de cadeias de valor internacional altamente integradas implica grandes diferenças em comparação com a abordagem interpretativa adotada pelo GATT (em termos das suas prioridades e da sua área de intervenção).2

A essência do mandato do GATT era reduzir as restrições às importações. Mas, num mundo de cadeias de valor, o maior problema são as restrições às exportações. Isso é especialmente verdadeiro na área da agricultura. Basta analisar o mercado internacional do arroz. Se os preços sobem no mercado internacional, um país exportador que queira proteger seus cidadãos da pressão inflacionária pode reagir congelando suas exportações.

2 Analiso essas questões de forma mais aprofundada em The Geneva Consensus, Cambridge University Press, 2013.

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Então, até que ponto um país continua a ter o direito de limitar suas exportações? Se nos ativermos às regras do GATT e da OMC, notaremos uma infinidade de casos que envolvem restrições à importação, mas poucos casos relativos a restrições às exportações. No entanto, há muitos países no mundo que praticam essas restrições: a Rússia e a Indonésia, em relação a metais, a China, com terras raras, ou a Argentina, com carne. Nesse contexto, com suas regras atuais, a OMC realmente não tem meios para intervir.

No que se refere à convergência das normas, também é necessário notar que o mandato da OMC, tal como está hoje, é limitado. Embora possamos afirmar que o princípio da reciprocidade tenha orientado a implementação do antigo sistema, também é evidente que a sua afirmação atual esconde, às vezes, o retorno a um protecionismo disfarçado. Mas a reciprocidade reivindicada por alguns países só tem valor tangível se os parceiros comerciais entenderem claramente o que isso significa. O problema é o mesmo no caso do “comércio justo”, que todos querem, mas nem sempre concordando com a sua verdadeira essência. Tome-se, por exemplo, os franceses e a sua agricultura.

Então, o que é justo em termos de comércio é somente aquilo sobre o que se decidiu, por acordo mútuo, que é justo. Por isso que é importante analisar e definir com precisão a noção de reciprocidade. Além dos bens públicos mundiais reconhecidos pela OMC (meio ambiente, saúde), a reciprocidade não deve atribuir o estigma da ilegitimidade a certas restrições regulatórias justificadas pelas preferências coletivas.

Pelo contrário, a OMC ainda tem o cuidado de assegurar que a abertura do comércio internacional não questione escolhas coletivas legítimas quando elas não implicam qualquer discriminação. Mas, no que diz respeito a normas sociais, como o salário mínimo, que têm mais a ver com a competência da Organização Internacional do Trabalho (OIT), não é de sua natureza que sejam estabelecidas em todo o mundo, mesmo porque um salário não significa nada em termos de competitividade até que esteja ligado à produtividade.

Isso serve para suavizar o argumento da reciprocidade usado por algumas pessoas para censurar a concorrência desleal praticada pelos países emergentes. E, com certeza, se as condições de transparência e de não discriminação forem respeitadas, nenhum país pode ser acusado de dumping sob o pretexto de que está vendendo produtos mais baratos do que os outros porque os seus custos laborais são mais baixos. Ou, se levado à sua conclusão lógica, esse raciocínio, que exige a total harmonização das normas sociais, nos impele a questionar o papel implícito do eurocentrismo e, em um nível mais amplo, do etnocentrismo ocidental que ele próprio delata.

OS PAÍSES EMERGENTES ESTÃO MUDANDO O CENÁRIO

Os países emergentes entram em cena

Uma breve história de Doha: novos atores e uma nova agenda

O final da década de 1990 marcou uma mudança importante na interação dos diversos atores do comércio internacional. Assistimos

O aumento do preço das matérias-primas agrícolas atrapalhou a agenda da Rodada Doha, pois levou a uma profunda mudança nos termos do acordo implícito que visava, inicialmente, garantir um equilíbrio entre a redução dos obstáculos comerciais na agricultura, de um lado, e na indústria e nos serviços, do outro

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a um rápido reajustamento do portfólio de influências com a adesão da China, em 2001, e com a afirmação gradual de membros fundadores do GATT, como a Índia e o Brasil. Até então, o sistema tinha sido dominado pelo chamado Quad, ou seja, grupo formado por EUA, UE, Japão e Canadá. A ascensão dos países emergentes não só mudou profundamente a agenda, mas também alterou as modalidades das negociações e a composição dos principais atores.

Em termos estritamente geográficos, a Ásia aumentou sua influência por intermédio da China, da Índia e, proporcionalmente falando, também da Austrália, que foi gradualmente tomando o lugar do Canadá, cujos governos passaram a reformular sua pollítica sobre as questões internas: a Austrália desempenhou um papel de ponte entre a Ásia e as economias industrialmente avançadas do noroeste. Além disso, a nomeação, em setembro de 2013, de um diretor-geral brasileiro, Roberto Azevêdo, auxiliado por um chefe de gabinete australiano, Tim Yeend, pinta um retrato eloquente da nova distribuição de atores influentes no âmbito da OMC.

A história da Rodada Doha gira especificamente em torno da dificuldade que esses vários atores encontraram na tentativa de convergir para uma nova agenda que refletisse os novos equilíbrios – principalmente entre questões agrícolas, a redução das tarifas na esfera industrial e a abertura do mercado de serviços. O obstáculo principal na Rodada Doha, até 2008, era a delicada questão da agricultura. Por uma série de diferentes razões – em primeiro lugar, os objetivos nacionais dos negociadores –, a Rodada Doha não foi concluída, apesar de terem sido feitos progressos claros

ao longo de 2008, ano que, ao mesmo tempo, marcou o início da crise econômica global.

Naquele momento, houve uma alta nos preços agrícolas, e é provável que esse aumento continue durante os próximos 20 ou 30 anos. As razões para essa alta nos preços agrícolas mundiais, na sequência de uma tendência de queda em termos reais nas décadas anteriores, têm muito a ver com um dos acontecimentos mais importantes dos últimos anos, ou seja, com o real surgimento de potências emergentes e com a transição alimentar que levou a um consumo (indireto) muito maior de proteínas e carboidratos pelas classes médias do que pelas populações mais pobres do mundo. O aumento do preço das matérias-primas agrícolas atrapalhou a agenda da Rodada Doha, pois levou a uma profunda mudança nos termos do acordo implícito que visava, inicialmente, garantir um equilíbrio entre a redução dos obstáculos comerciais na agricultura, de um lado, e na indústria e nos serviços, do outro. A “taxa de troca” entre os dois, que estava implícita na mente dos negociadores no início das negociações, mudou gradualmente. O aumento dos preços agrícolas levou a um corte nos subsídios e tarifas, os quais, consequentemente, perderam o seu valor como moedas de troca. A oferta agrícola ainda não se ajustou à transição alimentar, especialmente em razão de uma certa lentidão do seu desenvolvimento na África.

De forma geral, os mercados agrícolas internacionais ainda são relativamente fracos. O mercado internacional do arroz, por exemplo, é responsável por não mais do que 8% da produção e do consumo global dessa

commodity. O problema do ajuste é real e explica por que os preços agrícolas permanecem elevados.

Coalizões variáveis entre os países emergentes

Não há coalizão natural entre os países emergentes, pois cada um tem seu próprio perfil econômico e um diferente grau de integração no sistema de comércio internacional.

No entanto, por mais estranho que isso possa parecer, transcorridos quase 60 anos, a Conferência de Bandung (em que 29 países emergentes assumiram a posição de não alinhamento) continua a ser um ponto de referência importante. Os diplomatas em Nova York são provavelmente mais sensíveis ao espírito de Bandung do que os de Genebra.

Em termos de negociações comerciais internacionais, esse retorno econômico ao não alinhamento foi promovido principalmente pelo Brasil. Foi na conferência ministerial da OMC em Cancún, em 2003, que o Brasil tomou a iniciativa de convocar o G-20 em resposta ao plano de um acordo limitado na agricultura entre a UE e os EUA. Foi uma aliança entre interesses divergentes, sem dúvida, mas que colocou do mesmo lado grandes potências emergentes, como Índia, China e África do Sul, juntamente com países menos dinâmicos em termos de comércio, como Bolívia e Tanzânia. Durante vários anos, esse G-20 permitiu ao Brasil reafirmar sua posição como uma potência emergente líder, tornando-se um grande negociador no ciclo de Doha.

Os países menos desenvolvidos (PMD) logo perceberam que aderir exclusivamente a essa coalizão talvez não fosse algo

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imediatamente benéfico para eles, e então se organizaram no G-90, que compreende os países menos desenvolvidos e alguns países em desenvolvimento. Os interesses deles não são totalmente insensíveis aos do G-20 ou do G-90, cujas posições eles compartilham em alguns casos.

Assim, a existência de membros em comum e de uma interação entre essas diferentes coalizões tem permitido ao G-20 agir como representante de todos os países em desenvolvimento.

Esse movimento por parte do Brasil foi resultado de uma

O relaxamento recente dos laços dentro do G-20, que perdeu a sua força motriz brasileira, provavelmente vai permitir ao G-90 (que é majoritariamente africano) aumentar a sua influência nos próximos anos

Membro do grupo

Não membro do grupo e não membro da OMC

Não membro do grupo, mas membro da OMC

Membro do grupo

Não membro do grupo e não membro da OMC

Não membro do grupo, mas membro da OMC

Mapa 2 G-90: o grupo africano + estados da África, Caraíbas e Pacífico (ACP) + PMD

Mapa 1G-20: coalizão de países em desenvolvimento que desejam uma reforma agrícola nos países avançados e flexibilidades para os países em desenvolvimento

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estratégia adotada por Celso Amorim, ministro das Relações Exteriores do presidente Lula, de 2003 a 2010. Na época, eu havia apresentado uma análise ao Parlamento Europeu em que defendia que a OMC e o Iraque tinham sido os dois “pais” do G-20 arquitetado pelo Brasil. Isso porque Amorim tinha realmente usado a situação internacional em relação ao Iraque para forjar a coalizão em torno de uma rejeição da intervenção militar. Em termos

concretos, o grupo foi concebido fora da cúpula do G-8; em outras palavras, foi projetado para colocar um fim à marginalização sistemática dos países em desenvolvimento, que decidiram agir de forma independente, com a criação do G-20.

O Brasil foi um ator importante durante a gestão de Amorim, mas, depois disso, sua influência começou gradualmente a diminuir.

Hoje, a postura agressiva em relação à abertura do setor agrícola – que foi o que motivou inicialmente o lançamento da coalizão, apesar dos diferentes interesses da Índia sobre o assunto –, voltou ao seio do grupo de Cairns, constituído pelos países exportadores de produtos agrícolas, o qual vem reivindicando, desde 1986, regras mais rígidas do GATT e da OMC em relação às políticas agrícolas da UE e dos EUA.

Assim, um grupo de países emergentes foi criado para fazer frente ao grupo mais ou menos homogêneo de países avançados, convergindo em algumas áreas e divergindo em outras. O relaxamento recente dos laços dentro do G-20, que perdeu a sua força motriz brasileira, provavelmente vai permitir ao G-90 (que é majoritariamente africano) aumentar a sua influência nos próximos anos.

Nenhum país emergente em qualquer uma dessas alianças deseja expressamente questionar o sistema, e as únicas contestações ideológicas a surgirem sistematicamente no âmbito da OMC vêm de Cuba ou da Bolívia. E, de fato, os países do Brics (Brasil, Rússia, Índia, China e Africa do Sul) estão criando um banco de desenvolvimento regional próprio, nos mesmos moldes do que já existe no hemisfério norte. Em suma, no âmbito da OMC, encontramos coalizões de natureza geográfica, política e temática, e qualquer tentativa de agregá-las padece de inconsistências internas. Esse é o caso, por exemplo, da Indonésia, que é membro do G-20, ao lado do Brasil – país particularmente agressivo no campo da agricultura –, mas, ao mesmo tempo, é também membro do G-33, grupo a favor de uma cláusula específica para restringir a abertura do mercado agrícola.

Membro do grupo

Não membro do grupo e não membro da OMC

Não membro do grupo, mas membro da OMC

Mapa 3Grupo de Cairns: países agrícolas exportadores

Membro do grupo

Não membro do grupo e não membro da OMC

Não membro do grupo, mas membro da OMC

Mapa 4 Grupo-33: países em desenvolvimento que querem uma abertura limitada de seus mercados agrícolas

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A influência dos novos atores no sistema de comércio internacional também depende, em grande medida, do grau de abertura dos países, e não simplesmente do nível do produto interno bruto (PIB). Por exemplo, países como Cingapura, Nova Zelândia, Noruega, Costa Rica e Chile têm conseguido exercer influência em uma categoria à qual, na realidade, não deveriam pertencer, se considerados em termos geoeconômicos. Basta observar os países de origem dos ocupantes dos conselhos gerais, comitês e subconselhos na estrutura da OMC (incluindo o sistema de solução de controvérsias) para compreender plenamente o papel singular que esses países desempenham.

Outros países, como Marrocos ou Canadá, desempenham um papel cuja importância varia de acordo com o momento. Isso não depende apenas da personalidade dos negociadores, mas também da postura dos países em relação à abertura comercial. Alguns deles, como Cingapura, Chile, Hong Kong e Nova Zelândia, são, portanto, especialmente abertos e presentes no longo prazo, o que explica a influência que exercem.

A UE e os EUA enfrentam o crescente poder da China

Mais comentários sobre a adesão da China à OMC

No que tange à China, que é justamente indicado como um dos países emergentes mais importantes, os EUA e a Europa ainda não parecem ter compreendido corretamente a realidade histórica da situação. Gostaria de me debruçar brevemente sobre as relações às vezes difíceis da China com os países industrialmente avançados, no âmbito das negociações da OMC. Na minha opinião, a

China pagou um alto preço por sua adesão à organização. Se compararmos o regime comercial da China em 2001 com o do Brasil, da Índia ou da Indonésia, para mencionar apenas alguns poucos países comparáveis, veremos que há uma diferença considerável em termos dos tetos tarifários médios. Os tetos da Índia e do Brasil na esfera industrial ficam, respectivamente, em 35% e 40-45%, contra 9% na China. Em matéria agrícola, a China aderiu à OMC com um teto médio inferior ao da UE. No setor de serviços, a China abriu-se mais do que outros países comparáveis, e os chineses aceitaram um regime de propriedade intelectual que vai contra a sua abordagem cultural tradicional.

Assim, temos de reconhecer o esforço do governo chinês para atender às demandas da OMC. À época, a minoria conservadora viu essas exigências como um renascimento dos “tratados desiguais” unilaterais do século XIX, que forçaram a abertura do país durante as guerras do ópio, e os negociadores chineses tiveram que enfrentar uma resistência considerável na frente doméstica. No entanto, a China ainda assim conseguiu a adesão à OMC, apesar dessas dificuldades.

A adesão da China também proporcionou uma oportunidade para destacar a importância das diferenças culturais, especialmente no que diz respeito à resolução de controvérsias. Em um estudo antropológico realizado na OMC, recordo as conclusões de um autor chinês, que ressaltou a dificuldade da China em aceitar a ideia de recorrer a um juiz para a resolução de disputas comerciais internacionais.

Gostaria, agora, de abordar a queixa generalizada de que a

Existem inúmeras questões regulatórias associadas a deficiências em diversos elos da cadeia internacional de regulação “tradicional”, mas, em linhas gerais, a maior tensão em relação ao futuro diz respeito à convergência que leve a padrões compartilhados, e não a convergência que provoque a abolição das tarifas

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China não está “jogando o jogo”, especialmente no que se refere aos custos do trabalho e à sua moeda. Considero essa percepção equivocada pela simples razão de que a China está tão em conformidade com as regras básicas estabelecidas pela OMC quanto os outros países.

O foco dos EUA sobre o renminbi é excessivo. A taxa de câmbio real e efetiva da moeda chinesa, ou seja, ajustada para levar em conta a inflação, vem, na verdade, subindo ao longo dos últimos 30 anos.

O euro, o yuan e o dólar ainda são as três principais moedas estáveis do mundo. Por outro lado, os dois países que fizeram maior uso de sua moeda para influenciar o comércio exterior são a Coreia do Sul e o Japão, para não mencionar a Suíça (ainda que na direção oposta, neste último caso).

A questão crucial diz respeito aos subsídios e aos custos de capital. Ao subsidiar seu capital, a China está dando à sua economia vantagens comparativas que, a meu ver, têm um impacto muito maior sobre a competitividade do que os custos de trabalho, sempre apontados como os principais culpados. No entanto, nessa esfera, as regras básicas da OMC são difusas, e os concorrentes da China (de forma errada, na minha opinião) não conseguiram fazer da renegociação dessas regras uma prioridade, por razões que permanecem envoltas em mistério.

Outra área em que os chineses ainda não forjaram nenhum acordo é a de compras governamentais. Ano após ano, suas propostas são consideradas insuficientes e as negociações são adiadas, sem que se obtenha nenhum progresso concreto. No entanto, a abertura de um quarto dos mercados públicos da China valeria de US$ 100 trilhões a US$ 150 trilhões por

ano em termos dos contratos que geraria.

Em outras palavras, ainda existem inúmeras questões regulatórias associadas a deficiências em diversos elos da cadeia internacional de regulação “tradicional”, mas, em linhas gerais, a maior tensão em relação ao futuro diz respeito à convergência de que estávamos falando antes: não a convergência que provoque a abolição das tarifas, mas sim aquela que leve a padrões compartilhados.

Os EUA e a UE no sistema atual

Enquanto estive na OMC, pude acompanhar as mudanças nas posições dos EUA no sistema de comércio internacional causadas pelas alterações na composição dos atores envolvidos. Embora os EUA tenham dado uma contribuição muito clara para o estabelecimento do GATT e da OMC, desempenhando o papel de um copiloto na elaboração do regime, em termos objetivos, o seu peso diminuiu à medida que os de Brasil, China e Índia cresciam. Com isso, o país tendeu a direcionar suas ações para as áreas onde a sua influência ainda é forte. A evolução do seu papel também depende mais especificamente de questões políticas, como a imagem da China nos EUA e a crescente dificuldade política que o país está experimentando para aprovar no Congresso tratados comerciais envolvendo o que poderia ser interpretado como concessões à China.

A UE, por sua vez, tem uma certa homogeneidade interna própria, e, além disso, alia-se a outros países europeus cuja influência econômica está longe de ser desprezível, como a Noruega, a Suíça e, em certa medida,

até mesmo a Turquia. Quando os seus princípios estão em jogo, a UE se coloca sempre na defensiva, em relação à agricultura, e na ofensiva no que tange à indústria e aos serviços. No entanto, é menos agressiva que os EUA – com toda a razão, eu diria – no que diz respeito a questões de propriedade intelectual. Os EUA estão se tornando cada vez mais exigentes no que se refere à proteção das invenções, e continuarão a existir diferenças significativas com os europeus, em particular no que diz respeito à questão de marcas ou de denominações geográficas na indústria de alimentos.

Pessoalmente, sempre senti que a UE tem tanto os recursos estratégicos como o dever político de construir parcerias com os países emergentes, seja por meio de acordos bilaterais ou multilaterais. No entanto, tudo indica que isso não será fácil. Desde os anos 1990, a UE vem tentando, em vão, celebrar um acordo com o Mercado Comum do Sul (Mercosul). As negociações com a Índia, até agora, não chegaram a lugar algum. A UE está negociando um acordo bilateral com a China sobre a proteção do investimento, é claro, mas os EUA estão um passo à frente dos europeus nesse quesito.

QUE TIPO DE GOVERNANÇA PODE OBTER MAIS PROGRESSOS?

As limitações da abordagem do tipo “pacote global”

A regra básica das negociações comerciais é buscar permanentemente um consenso. A tecnologia da “rodada”, baseada na troca de concessões no contexto de um consenso global “multitemático” (single

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undertaking), justifica-se pela ideia de que a multiplicação das questões facilita as negociações por meio da construção de pacotes. Hoje, porém, essa abordagem diplomática baseada em compromissos tornou-se vítima de uma complexidade excessiva, com muitos atores e muitos interesses conflitantes envolvidos. O número de combinações possível é matematicamente considerável quando não são mais quatro, mas sim 40 os países que formam a massa crítica para alcançar o consenso, que, depois, seria estendido ao conjunto de 160 países-membros.

O que o observador inexperiente pode achar mais impressionante, à primeira vista, sobre a forma como são trabalhadas as relações comerciais internacionais, é a sua extrema lentidão. Isso se deve a um conceito que também as torna legítimas: a diplomacia, quando esta não desliza para o caminho pesado é, muitas vezes, vão da “diplocracia”. Em termos concretos, os interesses em jogo não são os mesmos, e as divergências atrasam as negociações. Uma quantidade substancial de trabalho político e diplomático precisa ser feita para desenvolver os “pacotes” necessários para conciliar as posições dos vários intervenientes, permitindo a troca de concessões.

Há espaço para melhorias na governança da OMC, e ele se encontra claramente no âmbito das negociações, em outras palavras, na criação, pelos Estados-membros, de regras que devam ser observadas por eles próprios. A essa dimensão intergovernamental, complexa e frequentemente trabalhosa, ainda que de uma importância crucial, opõe-se a eficácia real da sua ação no plano supranacional, ou seja, a prática litigiosa.

A resolução de disputas comerciais por parte do Órgão de Solução de Controvérsias (OSC), crucial para garantir o cumprimento das regras, é uma das ferramentas mais eficientes da OMC. A questão também diz respeito à transparência da OMC, porque a entidade é obrigada a publicar, na íntegra, todas as suas decisões no que tange aos contenciosos.

A OMC na crise econômica

A crise econômica, que começou em 2008 e mergulhou o mundo numa recessão em 2009, poderia ter colocado duramente à prova todas as realizações da OMC e do GATT. Mas a ascensão do protecionismo tem sido, em geral, evitada, e a OMC ajudou a garantir isso, adaptando-se às circunstâncias. Refiro-me, em particular, aos mecanismos complementares de acompanhamento postos em prática a partir de novembro de 2008. Exemplo de progresso institucional, esse estímulo ao monitoramento dos Estados-membros tornou possível garantir uma maior transparência, o que se traduziu em maior esforço, por parte deles, para atuar de acordo com as regras.

Os acordos da OMC já continham um mandato, herdado da Rodada Uruguai, conhecido como “revisão da política comercial”, que obriga cada Estado-membro da OMC a se submeter a uma avaliação regular. Nessa ocasião, o secretariado da OMC coleta um conjunto de dados sobre a política comercial do país e os compara com os compromissos assumidos pelo país. É uma espécie de check-up de rotina.

Em 2008, obtive um mandato de monitoramento all-round do G-20 para estender a medida de modo

Há espaço para melhorias na governança da OMC, e ele se encontra claramente no âmbito das negociações, em outras palavras, na criação, pelos Estados-membros, de regras que devam ser observadas por eles próprios

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a incluir a avaliação regular de cada Estado-membro não apenas isoladamente, mas de forma global e permanente. Essa avaliação permite complementar a avaliação tradicional com informações obtidas a partir de várias fontes, culminando com a produção de um relatório. Esse monitoramento horizontal, apoiado pelo G-20, obviamente tornou possível garantir uma melhor aplicação das regras do jogo, e tem ajudado o mundo a enfrentar a crise econômica sem um aumento significativo do protecionismo.

Por um papel mais importante para o Secretariado da OMC

Apesar dessas conquistas, as dificuldades para uma organização como a OMC só crescem, como vimos, à medida que aumenta o número de atores envolvidos. Para ser otimista, contudo, não há por que pensar, a priori, que o que tem ocorrido até agora, ou seja, a convergência gradual, não vá continuar a acontecer. Mas temos que reconhecer que o jogo da convergência regulatória que se coloca hoje para a OMC não será jogado de forma tão simples, tão mecanicamente, quanto a convergência tarifária. As novas questões exigem uma mudança nas modalidades de governança.

Embora não tenha uma estrutura homogênea, a OMC é uma organização que agrupa 160 membros e um secretariado com um diretor, conhecido de forma equivocada pelo nome de diretor-geral da OMC, por uma questão de simplicidade linguística. Pelo senso comum, imagina-se que o diretor-geral é quem manda, e o seu papel é muitas vezes superestimado. Na

verdade, ele é apenas o diretor-geral do Secretariado da OMC. Em resposta a essa superestimação frequente do papel que executei de 2005 a 2013 – cuja influência, na verdade, varia de acordo com as circunstâncias e a personalidade de cada um –, eu sempre digo que o diretor-geral do Secretariado da OMC é, ao mesmo tempo, “geral demais e não exatamente um diretor”. Naturalmente, os Estados-membros podem dar mais influência para ele, de modo a facilitar as negociações. Durante as negociações realizadas em Genebra no âmbito da Rodada Doha, em julho de 2008, por exemplo, consegui a aceitação de dois terços do “meu” compromisso, apesar da relutância por parte da Índia e dos EUA.

Para superar as dificuldades inerentes à abordagem tradicional do quadro de negociações da OMC, seria necessário aumentar o espaço de manobra do Secretariado da OMC e permitir que ele submeta propostas, em vez de simplesmente ter que lidar com uma infinidade de propostas diferentes e dificilmente conciliáveis apresentadas por membros para defender posicionamentos estritamente nacionais. O sistema foi concebido de tal forma que, para uma mesma questão, são geradas diversas propostas incompatíveis, as quais, por sua vez, demandam de cinco a dez anos para serem organizadas e revistas.3

Se o presidente do grupo de negociação fosse mais forte, um compromisso poderia começar a tomar forma, mas, inevitavelmente, ainda seria um processo lento.

Em outras estruturas internacionais, como a Organização Mundial da

3 Ver, sobre esse assunto, as sugestões apresentadas por um grupo de homens inteligentes, publicada em abril de 2013, The Future of Trade: the challenges of convergence, WTO.

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Saúde (OMS), a OIT e a União Internacional de Telecomunicações (UIT), as negociações são concluídas com maior rapidez. Para um determinado assunto, um grupo de especialistas é montado e, assim, economiza-se bastante tempo.

Também é verdade que as questões abordadas pela OMC são, muitas vezes, extremamente sensíveis em termos políticos. Essa diferença explica a natureza singular da sua forma de funcionamento, em comparação com as organizações acima mencionadas. Com exceção de questões como a do tabaco, que se assemelha, sob muitos aspectos, a uma negociação comercial, a luta da OMS pela saúde pública não desperta tantas divergências como a abertura do comércio. Ninguém se opõe a combater uma pandemia.

Só foi possível concluir um acordo em Bali, em dezembro de 2013, porque pela primeira vez em muito tempo os interesses empresariais, notadamente a redução no custo das operações aduaneiras, coincidiram com a agenda dos negociadores. Além disso, no que tange à facilitação do comércio, a simplificação do regime aduaneiro não é exatamente o tipo de coisa que desperte muita oposição em qualquer Estado-membro. E, finalmente, os acordos também foram estruturados de tal forma que os países em desenvolvimento se adaptem progressivamente, à medida que obtêm apoio para modernizar os seus sistemas aduaneiros, em especial por meio de investimentos em software para uso na alfândega.

As realizações da OMC são consideráveis, e a ausência de um surto de protecionismo durante a

crise é uma prova adicional disso. Na verdade, é mais uma razão para se ter certeza de que a organização dispõe de todas as condições para continuar a ter sucesso em um contexto em que a convergência das sociedades – as quais, graças ao comércio internacional, estão construindo laços cada vez mais estreitos entre si – está se tornando cada vez mais importante. Isso exige debate e ação renovados na esfera das preferências coletivas, e que estas sejam levadas em consideração, o que não vai acontecer por si só. As regras que regem hoje o funcionamento da OMC, e em particular a regra de compromisso único (single undertaking) e as restrições ao poder de iniciativa do Secretariado-Geral e do diretor-geral, prejudicam a capacidade da OMC para operar de forma eficaz. Se quisermos que o multilateralismo prevaleça sobre o bilateralismo na esfera da convergência regulamentar, teremos que rever os procedimentos da organização e do seu mandato.

CONCLUSÃO

Perspectivas europeias

Quanto à questão mais específica do lugar da França e da Europa no âmbito da OMC, eu já tratei com certa profundidade das necessidades atuais desses dois atores em Quand la France s’éveillera.4 Basicamente, não há dúvida de que a política comercial da UE é muito eficaz. O seu mercado é poderoso. A UE se beneficia de uma unidade ideológica que lhe garantiu a homogeneidade necessária para tomar certas decisões. Além disso, o seu sistema institucional funciona bem.

A UE é um ator sem precedentes na história, e sua força reside em

As regras que regem hoje o funcionamento da OMC, e em particular a regra de compromisso único (single undertaking) e as restrições ao poder de iniciativa do Secretariado-Geral e do diretor-geral, prejudicam a capacidade da OMC para operar de forma eficaz

4 Pascal Lamy, Quand la France s’éveillera, Éditions Odile Jacob, março de 2014.

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seu PIB – o maior do mundo – e em seus modelos sociais, mais generosos do que em qualquer outro lugar, para uma população de 500 milhões. No entanto, sinto que ela poderia desenvolver ainda mais a sua cooperação interna na esfera do comércio, por meio de uma troca de conhecimentos mais ampla e mais transparente entre seus Estados-membros. Nesse aspecto, a Europa possui uma grande vantagem comparativa potencial. A UE precisa superar a concorrência interna, em parte, para ter uma diplomacia econômica de pleno direito, especialmente porque, desse modo, conseguiria obter enormes economias de escala nessa área também.

A França e o protecionismo

Externamente, a França continua a ser vista como um país com um ethos e uma abordagem bastante protecionistas, em comparação com outros países da UE. Os exemplos de sua exceção cultural e de suas posições agrícolas revelam uma sensibilidade especial, que reflete as principais questões políticas domésticas francesas e suas tradições nacionais. Hoje, porém, essas especificidades não são particularmente obstrutivas (a menos que o compromisso de Luxemburgo seja invocado), pois, desde o Tratado de Roma, todas as decisões relativas à política comercial comum da UE foram tomadas por maioria qualificada. Por razões históricas, a França tem uma verdadeira aversão à globalização. Algumas pessoas culpam o processo por todos os males relacionados à “desindustrialização”, em vez de olhar para o futuro e buscar os verdadeiros diferenciais do país.

O que temos de entender – e eu confio que este texto mostrou

isso de forma suficientemente clara – é que a lógica protecionista agora pertence, definitivamente, apenas aos livros de história. Não é o mito da autocontenção que vai permitir à França reconquistar fatias do mercado ou restaurar a sua competitividade. Eu estava ansioso para destacar, na primeira parte deste ensaio, que, graças à crescente interpenetração dos tecidos produtivos e à interdependência das estruturas comerciais, é cada vez menos adequado para um país restringir voluntariamente suas importações a fim de salvar os empregos que está perdendo para as exportações. Contra todo o senso comum, tal movimento ainda acaba alimentando a deterioração do valor agregado da economia. Não é uma questão de pintar um retrato cor-de-rosa do processo de globalização, mas simplesmente de fazer um balanço realista das estruturas do comércio internacional, a fim de encontrar uma forma inteligente e eficaz de se integrar a eles.5

Fala-se, com frequência, da depressão francesa. De fato, a França é o único país onde as pesquisas de opinião revelam um pessimismo tão forte: 60% dos franceses, aparentemente, veem o futuro como algo negro e a globalização como uma ameaça ao país. E a ambição francesa, resultado de uma história e uma cultura que são nosso orgulho, parece cada vez mais fora de tom em relação ao desempenho do país. Certamente, não é rejeitando a abertura que a França vai corrigir essa distorção. A globalização não é nem boa nem má, ela simplesmente é uma realidade, e, como vimos, sua forma muda e evolui constantemente. A França tem todas as condições para aproveitar ao máximo a globalização e conquistar o seu lugar dentro dela, em vez de recuar.

5 Sobre esse assunto, ver o relatório Quelle France dans dix ans?, publicado pelo Commissariat général à la stratégie et à la prospective, em 25 de junho de 2014.