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A PAISAGEM CULTURAL DO PARQUE ESTADUAL ACARAÍ: AS RELAÇÕES ENTRE AS PESSOAS E O LUGAR KASSULKE, Adelaide Graeser (1); CARELLI, Mariluci Neis (2) 1. Acadêmica do curso de Psicologia da Universidade da Região de Joinville (Univille). 2. Professora de Psicologia da Univille. RESUMO Este artigo é parte da dissertação de Mestrado em Patrimônio Cultural e Sociedade intitulada “A paisagem cultural do Parque Estadual Acaraí”. A paisagem cultural representa a intenção humana de preservar a materialidade e a imaterialidade dos lugares. O Parque Estadual Acaraí, em São Francisco do Sul (SC), é um significante lugar com uma longa história que data desde o período pré- histórico até a contemporaneidade. A paisagem foi testemunha da escravidão, dos engenhos de farinha, do extrativismo, da coleta de samambaia, de fazendas e da pesca. A metodologia utilizada foram a bricolagem e a leitura rizomática, incluindo pesquisa em base de dados on-line, bibliográfica e de campo. Os resultados da investigação apontam para a paisagem cultural do parque composta em rede de actantes como preservação, identidade, memória, valores, crenças, gestão, patrimônio, excepcionalidade/originalidade, relação entre o homem e o seu meio, história, bioma e ecossistema, pressão imobiliária, compensação ambiental, legislação. A paisagem do local guarda as marcas de suas relações antepassadas e representa as que estão em construção. É uma área repleta de recursos culturais e naturais que podem ser desenvolvidos como destino turístico do parque e do município, de forma sustentável, para evitar a destruição dos vários valores do ambiente natural e cultural. Palavras-chave: paisagem cultural; patrimônio cultural e natural; Parque Estadual do Acaraí.

A PAISAGEM CULTURAL DO PARQUE ESTADUAL ACARAÍ: … · 7/24/2014 · sendo a leitura das “interações entre os aspectos natural e cultural, material e imaterial” (CASTRIOTA,

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A PAISAGEM CULTURAL DO PARQUE ESTADUAL ACARAÍ: AS RELAÇÕES ENTRE AS PESSOAS E O LUGAR

KASSULKE, Adelaide Graeser (1); CARELLI, Mariluci Neis (2)

1. Acadêmica do curso de Psicologia da Universidade da Região de Joinville (Univille).

2. Professora de Psicologia da Univille.

RESUMO Este artigo é parte da dissertação de Mestrado em Patrimônio Cultural e Sociedade intitulada “A paisagem cultural do Parque Estadual Acaraí”. A paisagem cultural representa a intenção humana de preservar a materialidade e a imaterialidade dos lugares. O Parque Estadual Acaraí, em São Francisco do Sul (SC), é um significante lugar com uma longa história que data desde o período pré-histórico até a contemporaneidade. A paisagem foi testemunha da escravidão, dos engenhos de farinha, do extrativismo, da coleta de samambaia, de fazendas e da pesca. A metodologia utilizada foram a bricolagem e a leitura rizomática, incluindo pesquisa em base de dados on-line, bibliográfica e de campo. Os resultados da investigação apontam para a paisagem cultural do parque composta em rede de actantes como preservação, identidade, memória, valores, crenças, gestão, patrimônio, excepcionalidade/originalidade, relação entre o homem e o seu meio, história, bioma e ecossistema, pressão imobiliária, compensação ambiental, legislação. A paisagem do local guarda as marcas de suas relações antepassadas e representa as que estão em construção. É uma área repleta de recursos culturais e naturais que podem ser desenvolvidos como destino turístico do parque e do município, de forma sustentável, para evitar a destruição dos vários valores do ambiente natural e cultural. Palavras-chave: paisagem cultural; patrimônio cultural e natural; Parque Estadual do Acaraí.

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INTRODUÇÃO

Este artigo busca refletir sobre a relação das pessoas com o Parque Estadual Acaraí, onde

são carregadas inscrições e traduções humanas. Ele aborda a paisagem cultural, o

patrimônio natural e cultural e a história e a memória do lugar, informa aspectos do percurso

metodológico, além de analisar e discutir parte das relações das pessoas com o parque.

PAISAGEM CULTURAL DO PARQUE ESTADUAL ACARAÍ

A paisagem cultural representa a intenção humana de preservar a materialidade e a

imaterialidade dos lugares, além do “trabalho combinado da natureza e do homem”

(UNESCO, 1999). “Combina de forma inextricável os aspectos materiais e imateriais” do

lugar apontando as “interações significativas entre o homem e o meio ambiente natural”,

sendo a leitura das “interações entre os aspectos natural e cultural, material e imaterial”

(CASTRIOTA, 2009, p. 259). Constitui-se “como a base material para a produção de

diferentes simbologias, lócus de interação entre a materialidade e as representações

simbólicas” (RIBEIRO, 2007). O avanço na compreensão do campo do patrimônio e a

preservação dos bens da humanidade integram tanto uma face material quanto uma face

imaterial, e ambas são inseparáveis. A categoria da paisagem cultural tem promovido ricas

reflexões para a “superação da falsa dicotomia entre o patrimônio material e imaterial”

(CHUVA, 2012).

O patrimônio cultural representa uma herança deixada como legado, intencionalmente ou

não, pelos que antes de nós aqui estiveram em determinados lugares, edificações ou

objetos, os construíram, os transformaram ou os preservaram. O patrimônio parece ser o

passado, mas muito mais que o pretérito de algo ou alguém é a consciência de uma

memória e identidade do presente e “é sempre construído a partir do presente” (OLIVEN,

2009). Evoca-se a ideia de patrimônio cultural como aquele que necessita ser preservado,

“numa operação por meio do qual se procura guardar algo que corre o risco de ser

destruído” (OLIVEN, 2009). Então, a operação é decidir se, o que, como e para quem

devemos preservar.

A Constituição Brasileira de 1988, no artigo 216, ampliou a noção de patrimônio e abriu

espaço para as expressões da cultura popular e para os bens imateriais que formam o

patrimônio intangível. O Decreto n.º 3.551, de 2000, instituiu o Registro de Bens Culturais de

Natureza Imaterial, cujo quarto e último livro é o Livro de Registro dos Lugares, colocando

em pauta a imaterialidade do lugar. A discussão e a ampliação sobre o patrimônio, no fim do

século XX, incluíram o reconhecimento que somente o patrimônio material não dá conta de

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ser o depositário fiel de todo o construto humano entre a natureza e a cultura a ser

conservada.

No caso do Parque Estadual Acaraí, ele está num remanescente de restingas e florestas

das terras baixas do domínio da mata atlântica com mangues e dunas protegidos por

legislação. Já em outros tempos, esse espaço foi paisagem com fazendas e engenhos de

farinha de mandioca. Serviu de espaço para o cultivo de produtos que a Coroa Portuguesa

incentivou o plantio em torno de 1780. Mamigonian (2006) registrou o estímulo da metrópole

ao desenvolvimento de atividades econômicas direcionadas à agroexportação, porém

firmando-se a produção de alimentos de subsistência no litoral catarinense. Após 1850, com

a intensa imigração europeia, partiu-se para a produção artesanal, produção de bens

primários e os primórdios da industrialização na década de 1880 (PIAZZA, 1999), na região

próxima.

Conforme os aspectos econômicos e sociopolíticos, as crenças e os valores, é esculpida a

paisagem cultural. O patrimônio intangível do parque constitui bens imateriais decodificados

pelos arqueólogos do presente, pelo registro dos historiadores da região, pelas relações

ecológicas estabelecidas entre fauna, flora, espaço e ser humano e pelos fazeres e saberes

que foram construídos entre as pessoas e o lugar.

PAISAGEM CULTURAL: PATRIMÔNIO CULTURAL E NATURAL

A natureza foi considerada um bem, demonstrando que a emergência do patrimônio natural

está diretamente relacionada com as preocupações a respeito dos recursos naturais do

planeta. Assim, o discurso da preservação ambiental avolumou-se e hoje faz parte das

agendas tanto no âmbito político quanto econômico nacionais e internacionais. Para

Zanirato e Ribeiro (2006), “relacionar patrimônio cultural e patrimônio natural é resultado do

amadurecimento do conceito de patrimônio”. Com a ruptura histórica, avançou-se para uma

concepção de patrimônio mais ampla, com base num conjunto dos bens culturais

relacionados às “identidades coletivas”. Anteriormente, reconheciam-se apenas os feitos de

heróis e das camadas dominantes como passíveis de serem patrimonializados para a

posteridade. O patrimônio imaterial passou a ser objeto de análise, mesmo com as

dificuldades encontradas em sua manutenção e conservação. Celebrações, rituais e fazeres

foram encorpados como bens da humanidade pelos órgãos mundiais responsáveis pelo

patrimônio, no entanto o patrimônio natural está sob a tutela da ciência, na busca de

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informação de genética, obedecendo a uma visão utilitarista predominante na sociedade do

capital (ZANIRATO; RIBEIRO, 2006).

O Parque Estadual Acaraí foi criado pelo Decreto Estadual n.º 3.517 em 2005. Ele fica

localizado no município de São Francisco do Sul, que sedia a histórica “São Chico”, apelido

carinhoso da terceira cidade mais antiga do Brasil. O parque é uma unidade de conservação

de proteção integral com área de aproximadamente 6.667 hectares situada na planície do

litoral da ilha de São Francisco do Sul. O arquipélago Tamboretes integra e completa o

espaço, que preserva o bioma da mata atlântica e abriga mais de 337 espécies vegetais e

mais de 300 espécies da fauna, identificadas entre peixes, mamíferos, répteis e aves. Sua

política territorial é voltada para o turismo e para o desenvolvimento (FATMA, 2005).

HISTÓRIA E MEMÓRIA DO LUGAR

O Parque Estadual Acaraí é um significante lugar com uma longa história que data desde o

período pré-histórico, com o homem do sambaqui. Os sítios arqueológicos encontrados no

local têm em torno de cinco mil anos. A relação do ser humano com o lugar é preservada e

transmitida pelo discurso dos vestígios arqueológicos dos antepassados de que o solo e a

superfície do parque e do entorno são guardiões. Muito da história pode ser recuperado pelo

estudo dos sambaquis – monte de conchas. Sabemos que esse homem era coletor,

caçador, pescador e se alimentava principalmente de peixes e moluscos da região

(BANDEIRA, 2004). Os sambaquianos transformaram recursos naturais em sambaquis, e há

bastante história e mistério sobre esse patrimônio cultural federal, distribuído em várias

partes do parque. A figura 1 ilustra as marcas do homem do sambaqui no entorno do

parque.

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Figura 1 – Oficina lítica no entorno do Parque Estadual Acaraí. Pesquisa de campo

Fonte: Arquivo pessoal da autora (2013)

As relações com esse lugar continuaram com o povo guarani, que dominou as terras

expulsando os moradores anteriores. Chegou ao parque provavelmente vindo da região

amazônica movido por sua cultura em busca da “terra sem males”. Habitou a região há mais

de mil anos. Quando os portugueses aqui aportaram, os guaranis já tinham uma relação de

500 anos com o lugar. Os europeus chamaram os indígenas desse local de carijós

(SANTOS; NACKE; REIS, 2004).

As marcas dos homens com esse maravilhoso espaço seguiram, com a expectativa dos

europeus de fazerem fortuna nas Américas. Os interesses militares estratégicos de proteção

da costa e a necessidade de uma economia para a produção de alimentos à subsistência

interna constituíram as razões para a ocupação da região. A paisagem do lugar mudou com

o extermínio dos carijós pelos constantes conflitos entre tribos rivais e conquistadores

europeus. As terras do parque fizeram parte de muitos documentos e tratados, como o

conhecido Tratado de Tordesilhas. Nos primórdios coloniais, integrou a antiga Capitania de

Santo Amaro e Terras de Sant’Ana, depois a Província de Santa Catarina e em 1750 o

entorno da Vila de São Francisco, hoje município de São Francisco do Sul (BORBA, 2013),

até ser decretado parque estadual como unidade de preservação, em 2005. Além de

europeus, africanos também trilharam aquele chão. A paisagem foi testemunha da pré-

história, da colonização, da escravidão, de fazendas, de engenhos de farinha, do

extrativismo, da coleta de samambaia e das pescas.

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MÉTODO

A metodologia aplicada para a construção dos resultados apresentados neste artigo foram a

bricolagem (KINCHELOE, 2007) e a leitura rizomática (SANTAELLA, 2010), consideradas

apropriadas para a complexidade que a temática aborda. As relações das pessoas com o

parque enquanto movimento de sujeitos em interação mútua com e entre o espaço criam

lugares por meio dos usos sociais desse patrimônio. Aqui é apresentada parte das leituras

rizomáticas inscritas no Parque Estadual Acaraí, traduzidas nos discursos oral, documental

e virtual.

ANÁLISE E DISCUSSÃO DOS RESULTADOS

Os resultados da pesquisa apontam para a paisagem cultural do Parque Estadual Acaraí

composta por uma rede de actantes como preservação, identidade, memória, valores,

crenças, gestão, patrimônio, excepcionalidade/originalidade, relação entre o homem e o seu

meio, história, bioma e ecossistema, pressão imobiliária, compensação ambiental e

legislação.

A paisagem do Parque Estadual Acaraí guarda as marcas de suas relações antepassadas e

representa as que estão em construção. Parte da sociedade organizou-se para a

formalização do local por meio de reuniões e entrega de documentos ao órgão ambiental

estadual requerendo a preservação da região do parque, que foi efetivamente decretada

unidade de conservação integral em 2005. A área considerada para o parque tinha sido foco

de loteamentos oficiais e clandestinos, gerando tensão entre as instâncias gestoras do

parque e os donos de terrenos, que aguardavam por indenização. Assim, a paisagem

cultural às vezes “parece ser menos uma definição para a vida de seus habitantes do que

uma cortina atrás da qual as suas lutas, conquistas e acidentes acontecem” (BERGER in

LRG).

As relações das pessoas com o parque seguem o princípio da multiplicidade de

determinações em diferentes magnitudes e de diversos modos (SANTAELLA, 2010). Esse

espaço de disputas que marca o patrimônio é atravessado por ações de três tipos de

agentes: o privado, o Estado e os movimentos sociais (CANCLINI, 1999).

No âmbito estadual, encontram-se as legislações, as leis, os códigos ambientais, os

decretos, as regulamentações, as desapropriações, as instruções normativas e os

procedimentos para legitimar o sistema e manifestar, assim, a vontade de defender o

patrimônio ambiental e os interesses político-econômicos (BRASIL, 1965; 1996; 2000; 2002;

2003; SANTA CATARINA, 2005; 2009; 2012; FATMA, 2005). Todas essas inscrições

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incidem diretamente sobre as relações das pessoas com o parque e criam tensões. A

paisagem cultural não expressa somente beleza cênica, mas reflete os interesses de

diferentes instâncias hierárquicas que incidem nos usos do espaço.

Quanto ao agente privado, as relações perpassam a compensação ambiental para a

instalação do setor industrial, que paradoxalmente proporciona a instalação do parque. Ao

desbravar a natureza para instalar o campo fabril, são gerados recursos financeiros oriundos

da compensação direcionados para a preservação do ambiente. Diferentes setores podem

compensar na unidade de conservação. Outro aspecto é a concepção mercantilista do

espaço, a qual favorece o mercado imobiliário e o turismo, que pressionam para a ocupação

da área em conflito a preservação de mangues, restingas, dunas e mata atlântica,

patrimônio da humanidade (UNESCO, 1999).

Em termos de movimentos sociais, muitas são as conexões por contágio mútuo ou aliança e

elas crescem por todos os lados em todas as direções (SANTAELLA, 2010) por intermédio

de associações civis, organizações não governamentais, amigos do parque e

heterogeneidades, traços do rizoma que se conectam a diversos modos de codificação,

como a divulgação e promoção do patrimônio do Parque Estadual Acaraí em sites, redes

sociais e na mídia. Os representantes da sociedade que concebem o patrimônio do parque

e sua preservação em relação às necessidades da comunidade participam dos movimentos

em defesa dos interesses das pessoas e do lugar, promovem e integram audiências

públicas, criam institutos com possibilidade de arrecadação de verbas do setor público e

privado, para realizar ações de educação e preservação ambiental.

Existem vários movimentos da comunidade local, como a Associação Movimento Ecológico

Carijós (Ameca), a Conservação Marinha do Brasil (Comar) e o Dragão de São Francisco,

no cuidado com o patrimônio natural e cultural mediante codificações variadas, como a

apreensão da vida do parque pelo registro de imagens fotográficas. As imagens registradas

são heterogeneidades que decodificam a paisagem cultural do Parque Estadual Acaraí. As

figuras 2, 3 e 4 ilustram as relações entre o homem e o local. Tanto o olhar como o

observado são manifestações culturais. “Conquanto estejamos habituados a situar a

natureza e a percepção em dois campos distintos, na verdade elas são inseparáveis”

(SCHAMA, 1996).

A população tradicional está sendo cadastrada, e só poderão exercer atividade de uso de

recursos naturais as pessoas que estiverem regularizadas no órgão de preservação

estadual do meio ambiente, durante o período de adequação. No interior, ocorre o

extrativismo da samambaia Rumohra adiantiformis, exercido por um número muito pequeno

de famílias. Em pesquisa recente, Marques (2013) aponta para uma relação pouco

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conflitosa com o parque, uma vez que a maior parte dos recursos vegetais usados pela

população do entorno não provém do interior da unidade de conservação. Nakamura (2013)

encontrou a existência de grupos de diferentes usuários na comunidade do entorno do

parque. Seu cenário é composto por um mosaico de relações socioambientais. Destacam-se

os balneários e a população tradicional da Tapera. Quanto à dimensão alimentar do nicho

ecológico dos arredores do parque, a autora destacou a pesca artesanal como a atividade

relevante envolvendo o manejo do ambiente.

A criação do parque considera a biodiversidade a ser preservada. Albagli (1998) afirma que

a biodiversidade inclui a “questão ecológica” como “fator relevante ao equilíbrio ambiental e

à reprodução da vida” e a “questão técnico-científica”, em que há “fonte de informação para

a biotecnologia e a engenharia genética”. Ela apresenta-se também como uma “questão

geopolítica” como “objeto de estratégias e conflitos que se projetam sobre o território”. No

caso do Parque Estadual Acaraí, a população sofreu restrições na unidade de conservação

e está se adaptando. A biodiversidade faz parte de uma dinâmica mais ampla em que a

ciência, a tecnologia e o meio ambiente são parte de um jogo de estratégias internacionais.

Acrescentam-se aos actantes/atores da paisagem: pesquisadores, cientistas, políticos. Uma

paisagem cultural revela mais sobre a sociedade e o próprio homem do que um simples

olhar pode revelar.

Outro aspecto quanto à paisagem cultural como patrimônio diz respeito à identidade do

lugar. E a identidade revela o indivíduo e as mediações internalizadas por ele no contato/na

ação com a natureza e o meio social. O ser humano sujeito da história é constituído de suas

relações e é mais ou menos atuante, dependendo do grau de autonomia e de iniciativa que

alcança. A forma como compreendemos o mundo foi construída nas relações (LANE, 1999).

Portanto, as escolhas de preservação, os modos de apreender o patrimônio são sempre

construídos no presente, e com os valores do presente, edificados pela interação do homem

e de seu grupo social na e com a natureza.

O psicanalista Fromm (2014) chama a atenção para que consigamos manter uma visão

amadurecida da vida. Caso isso não ocorra, teremos de “confrontar-nos-á a probabilidade

de ver ruir toda a nossa tradição cultural” (FROMM, 2014). O autor afirma que a tradição

“não se baseia primordialmente na transmissão de certos tipos de conhecimento, mas na de

certas espécies de traços humanos” (FROMM, 2014). Quando analisamos e discutimos

paisagem cultural e patrimônio, estamos muito mais imbricados com o habitus (BOURDIEU,

1983) do que com reflexões abstratas. Fromm (2014) enfatiza a necessidade de estarmos

atentos não só à materialidade do conhecimento, mas à motivação interna das pessoas que

praticam o patrimônio. “Se as gerações vindouras não mais virem esses traços,

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desmoronar-se-á uma cultura velha de cinco mil anos, mesmo que seus conhecimentos se

transmitam e ainda mais se desenvolvam” (FROMM, 2014). Ao mesmo tempo em que a

paisagem cultural é uma expressão da relação entre o homem e o meio, ela é muito mais

uma disciplina de traços humanos externados pela atividade esculpida no meio e o meio

esculpindo os homens.

Figura 2 – Usos sociais do Parque Estadual Acaraí: lazer nas dunas

Foto: Arquivo pessoal (2014)

Figura 3 – Usos sociais do Parque Estadual Acaraí: tarrafa, modo tradicional de pesca

Fonte: Foto de Anderson Neomar Gomes (2014)

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Figura 4 – Brincadeiras de verão na Lagoa Capivaru. Vista do interior do Parque Estadual Acaraí

Fonte: Arquivo pessoal (2014)

O Parque Estadual Acaraí como unidade de conservação de proteção integral desafia as

relações entre as pessoas e o lugar. Por um lado, está a ideia de que o patrimônio natural

precisa ser mantido intacto, sob a ameaça de serem destruídos seus recursos naturais. Por

outro, as atividades do ser humano com o lugar modificam-se, e entram em ação várias

outras interações com o parque: a identificação das populações tradicionais para emprego

de determinados recursos naturais por meio de um termo de ajuste de conduta, os usos

clandestinos, os pesquisadores, os gestores do parque e do entorno, as muitas utilizações

sociais do patrimônio natural e cultural do local etc. É um rizoma de relações de

multiplicidade de determinações, conexões e rupturas. A paisagem cultural do parque, longe

de ser um espaço de imaculada natureza contemplativa, é o lugar de tensão e construção

em que as relações da sociedade contemporânea são inscritas e traduzidas por inúmeros

atores/actantes.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A paisagem cultural constitui-se em uma proposta de integrar o patrimônio natural e o

cultural, o material e o imaterial. Há uma área repleta de recursos culturais e naturais que

podem ser desenvolvidos de forma sustentável como destino turístico do Parque Estadual

Acaraí e do município. Para evitar a destruição dos vários valores do ambiente natural e

cultural, pesa a enorme importância que têm a preservação e a conservação. O problema

mais desafiante é o uso social do patrimônio do parque. Nos usos sociais é necessário

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concentrar maiores esforços de investigação, reconceitualização e política cultural

(CANCLINI, 1999).

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Acesso em: 24 mai 2014

AGRADECIMENTOS

À orientadora professora Doutora Mariluci Neis Carelli, o incentivo e a dedicação à pesquisa.

À Universidade da Região de Joinville (Univille), o apoio. E à família, a presença e o amor.