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A Pedra Arde - Eduardo Galeano

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Page 1: A Pedra Arde - Eduardo Galeano
Page 2: A Pedra Arde - Eduardo Galeano

No povoado de Nevoeiro vivia um velho sozinho e

só. Ele fazia cestas de vime e sandálias de cânhamo. Dava

as sandálias e as cestas aos vizinhos e se ofendia se

queriam pagar-lhe por isso. A vida, ele a ganhava como

guardador de pomares. O velho viera de um lugar muito

distante e nunca falava de sua vida.

Ninguém se atrevia a perguntar-lhe: "Você sempre

foi assim tão velho?", nem tampouco: "Você sempre foi

assim tão feio?”.

Ele andava curvado e mancava de uma perna. Era

muito branco o pouco cabelo que restava em sua cabeça.

Uma cicatriz atravessava-lhe a face. Tinha um nariz torto

e quando ria abria uma janela entre os dentes de cima.

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Em uma noite de outono, um menino chamado

Carassuja saltou o muro de um pomar. Pensava roubar

maçãs.

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Carassuja não teve sorte. Quando escapava,

escorregou e caiu, ferindo-se num prego fincado no muro.

As maçãs rolaram pelo chão, e Carassuja caiu sobre os

espinhos de algumas o velho guardador não lhe lascou o

chinelo no bumbum, nem foi contar para sua mãe. Nem o

repreendeu. Balançou a cabeça, resmungou, limpou-lhe

os arranhões dos braços e das pernas e acompanhou

Carassuja até a porta de sua casa, sem dizer uma palavra

sequer.

Da calça rasgada de Carassuja caía uma tira de

pano, como se fosse rabo de ovelha.

Page 5: A Pedra Arde - Eduardo Galeano

Poucos dias depois, Carassuja se perdeu num

bosque. Caminhava e caminhava, e por mais que

caminhasse não conseguia encontrar a saída.

O teto das árvores apenas deixava ver o céu.

Carassuja andava, enroscando-se nas ramagens e

sapateando no barro, quando viu uma pedra brilhante.

A pedra brilhava, mesmo estando coberta de

musgo e barro. Morto de cansaço, Carassuja sentou-se na

pedra. Isto é, tentou sentar-se, porque mal encostou o

traseiro na pedra, deu um pulo e soltou um grito de dor.

Page 6: A Pedra Arde - Eduardo Galeano

Pobre Carassuja. Poucos dias antes, havia caído

sobre os espinhos. Agora, tinha sentado no ferrão de uma

abelha.

Mas não! Não havia nenhuma abelha. A culpa era

da pedra, que queimava como brasa. Furioso, Carassuja

chutou a pedra. Quando o sapato bateu na pedra,

raspando-a, surgiram pequenas letras. Carassuja abriu a

boca, surpreso.

Então Carassuja, que era um menino curioso,

esfregou a pedra com um galho. A pedra ardente mais

brilhava à medida que Carassuja ia tirando o barro e o

musgo.

Page 7: A Pedra Arde - Eduardo Galeano

Por fim, ele pôde ler estas palavras na pedra já

limpa:

Jovem serás, se és velhinho, quebrando-me

em pedacinhos.

Carassuja, que não era velho, pensou: "Se quebro

a pedra, que me acontecerá?”.

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Page 9: A Pedra Arde - Eduardo Galeano

“Voltarei a ser um bebê de colo e não saberei

andar. E depois? Ah, não! Isso é que não! Terei, que

começar a escola novamente!” Também pensou: "Que

azar! Encontro uma pedra mágica e ela não me serve

para nada!"

Lembrou-se, no mesmo instante, do velho

guardador de pomares, que havia sido bom para ele e era

bom para todos os outros. . "O velho dançará feliz, vai

pular de alegria como uma pulga e voará como um

pássaro! Não vai mais tossir. Terá as pernas curadas, um

rosto sem marcas e a boca com todos os dentes."

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Diante de uma descoberta tão maravilhosa,

Carassuja esqueceu-se de uma situação. "É muito tarde"

— pensou, e sentiu medo.

Para encorajar-se falou em voz alta. Ao escutar

sua própria voz, sentiu menos medo. Carassuja disse:

— Agora tenho que voltar.

Page 11: A Pedra Arde - Eduardo Galeano

E perguntou-se:

— E depois, como encontrarei a pedra?E

respondeu:

— Vou deixar sinais no caminho.

Carassuja tirou a camisa e rasgou-a em tiras.

Procurou um caminho de saída. Enquanto

caminhava deixava tiras de pano penduradas nas árvores.

Ia aos tropeços e muito lentamente, porque o bosque

estava escuro e ameaçador.

O caminho não levava à saída e Carassuja voltou à

pedra brilhante. Tentou outro caminho, que também não

servia. Os joelhos de Carassuja tremiam.

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— Fora, medo! -disse em voz alta.

E como as pernas continuavam tremendo, ele

gritou:

— Fora, medo! Fora daqui! As pernas continuavam

tremendo, mas só de frio.

Quando Carassuja conseguiu sair do bosque já era

noite. A lua iluminou seus passos até sua casa.

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Na manhã seguinte, Carassuja voltou aos

pomares. O velho carregava um balde de cal e uma broxa

feita de ramos. Ele se deteve e Carassuja escutou-lhe a

respiração difícil.

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Carassuja falou-lhe da pedra.

O velho acariciou a cabeça do menino, bebeu um

gole de vinho e aceitou acompanhá-lo aos pântanos do

bosque.

Seguindo o caminho das tiras de pano chegaram à

pedra.

— E então? — perguntou Carassuja.

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O velho mirava a pedra mágica com o rosto

franzido e os olhos apertados. A pedra brilhava,

desafiando-o.

— Vamos, quebre-a! -disse Carassuja puxando-lhe

a roupa. Porém, o velho não se mexia.

O velho apoiou-se no tronco de uma árvore e

apanhou o cachimbo dentro de uma pequena bolsa.

— Ah! -disse Carassuja - esquecemos o martelo.

Como você vai quebrar a pedra sem martelo?

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O velho, muito lentamente, como se fosse trabalho

de séculos continuava preparando o cachimbo.

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— Você quer que eu vá buscar o martelo? -

ofereceu-se Carassuja. Já conheço o caminho e não me

perderei.

— Não, não quero - disse o velho.

— Mas. .. você não vai quebrar a pedra?

O velho encostou um, galho seco na pedra quente.

Esperou que o galho pegasse fogo e acendeu com ele seu

cachimbo. —Mas... — Carassuja sentiu que as lágrimas

rolavam olhos abaixo. Ficou muito bravo e gritou:

—Foi para isso que me queimei? Para isso passei

tanto frio e tanto medo? O velho soltou uma baforada de

fumaça. Vem-disse, e pôs uma de suas mãos no ombro de

Carassuja.

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—Eu sei o que você pensa e quero explicar. Sou

velho, embora menos velho do que você acha, sou manco

e estou desfigurado. Eu sei. Mas não pense que sou

tonto, Carassuja. Eu não sou tonto.

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E, pela primeira vez, em tantos anos, o velho

contou sua história.

—Estes dentes não caíram sozinhos. Foram

arrancados à força. Esta cicatriz que marca meu rosto

não vem de um acidente. Os pulmões. .. a perna. ..

Quebrei a perna quando escapei da prisão ao saltar um

muro alto. Há outras marcas mais, que você não pode

ver. Marcas visíveis no corpo e outras que ninguém pode

ver.

Os clarões da pedra ardente iluminavam o rosto

do velho, lançando brilho de faíscas em seus olhos.

— Se quebro a pedra, estas marcas somem. E elas

são meus documentos, compreendes?

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— Meus documentos de identidade. Olho-me no

espelho e digo: "Esse sou eu", e não sinto pena de mim.

Lutei muito tempo. A luta pela liberdade é uma luta que

nunca acaba. Ainda agora, há outras pessoas, lá longe,

lutando como eu lutei. Mas minha terra e minha gente

ainda não são livres, e eu não quero esquecer. Se quebro

a pedra cometo uma traição, compreendes?

Através do bosque, caminharam de volta ao

povoado de Nevoeiro. Iam de mãos dadas. O menino

sentia que a mão quentinha do velho também aquecia a

sua mão.

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