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26 10 FEVEREIRO2011 26 "PREPARAS o peneiro: uma caixinha com uma rede por baixo e por cima… a partir daí, vais para o rio. Para o rio conforme a maré estiver a subir ou a descer… Apanha-se quan- do a maré está a subir". O pescador, que pe- diu para não ser identificado, conhece muito bem a pesca do meixão – mas só da forma mais tradicional. "O pessoal que pesca a pé é só peneiro". O instrumento de pesca, ex- plica, "é como uma peneira de fazer broa". Mas, neste caso, mais do que passar farinha, parece que estamos a falar de garimpar ou- ro. "O peneiro é uma coisa que pegas na mão e metes na água, sempre a mexer, senão não tiras nada…", conta. Estamos a falar de uma atividade quase ar- tesanal, morosa: "basta uma pessoa, um gajo ao peneiro, um dia tira cem gramas, no outro não tira nada, noutro tira meio quilo. Numa noite excecional – uma vez numa vida – po- des tirar um quilo". E é aqui que surge um dos maiores problemas da pesca do meixão. O grande valor de captura vem da pesca com rede. "O pessoal que pesca de barco já mete redes de 60, 70 metros a atravessar o rio, quase de lado a lado. São redes fixas, que abrem - com a maré - uns três a quatro me- tros. De largo podem chegar a ter cinquenta. Identificam-se por três bóias improvisadas, que ficam à superfície". Passa-se dos gramas para quilos. "Já vi um gajo de barco, passa, recolhe três ou qua- tro redes e tira um quilo, ou dois, ou três ou quatro. Já ouvi histórias de uma rede com 12 quilos", refere o pescador. "Tu vês um gajo das redes… ele não tem uma ou duas. A GNR tira quatro redes e no dia seguinte o gajo põe dez", revela. A Guarda Nacional Republicana, através do Serviço de Proteção da Natureza e do Ambiente, é a grande dificuldade dos pes- cadores. "Anda atrás de toda a gente. Não distingue as pessoas do peneiro, nem das redes. Pelo contrário, anda mais atrás dos do peneiro". E porquê? "É mais fácil de apanhar que o dos barcos ". Prender os pescadores em flagrante é raro. "LÁ VEM A GNR!" "Não temos feito muitas apreensões ao ní- vel do pescado", revela o major João Fer- nandes, chefe da secção SEPNA - Coimbra, "mas temos apreendido bastante material, particularmente redes". E garante que "está constantemente uma operação a decorrer". As rusgas decorrem durante a noite, tanto o major como o pescador são categóricos: a pesca do meixão é uma atividade notur- na. Acima de tudo, porque se trata de algo irregular e ilegal. "Através de um patrulha- mento tentamos surpreender os pescadores nalguns locais que já estão identificados", destaca o major. Sempre entre o final do ano À PESCA DO OURO BRANCO SOCIEDADE investigação

"À pesca do ouro branco"

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Reportagem sobre a pesca ilegal da enguia bebé, também conhecida por meixão.

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Page 1: "À pesca do ouro branco"

26 10 Fevereiro 201126

"preparas o peneiro: uma caixinha com uma rede por baixo e por cima… a partir daí, vais para o rio. Para o rio conforme a maré estiver a subir ou a descer… Apanha-se quan-do a maré está a subir". O pescador, que pe-diu para não ser identificado, conhece muito bem a pesca do meixão – mas só da forma mais tradicional. "O pessoal que pesca a pé é só peneiro". O instrumento de pesca, ex-plica, "é como uma peneira de fazer broa". Mas, neste caso, mais do que passar farinha, parece que estamos a falar de garimpar ou-ro. "O peneiro é uma coisa que pegas na mão e metes na água, sempre a mexer, senão não tiras nada…", conta. Estamos a falar de uma atividade quase ar-tesanal, morosa: "basta uma pessoa, um gajo ao peneiro, um dia tira cem gramas, no outro não tira nada, noutro tira meio quilo. Numa noite excecional – uma vez numa vida – po-des tirar um quilo". E é aqui que surge um

dos maiores problemas da pesca do meixão. O grande valor de captura vem da pesca com rede. "O pessoal que pesca de barco já mete redes de 60, 70 metros a atravessar o rio, quase de lado a lado. São redes fixas, que abrem - com a maré - uns três a quatro me-tros. De largo podem chegar a ter cinquenta. Identificam-se por três bóias improvisadas, que ficam à superfície". Passa-se dos gramas para quilos. "Já vi um gajo de barco, passa, recolhe três ou qua-tro redes e tira um quilo, ou dois, ou três ou quatro. Já ouvi histórias de uma rede com 12 quilos", refere o pescador. "Tu vês um gajo das redes… ele não tem uma ou duas. A GNR tira quatro redes e no dia seguinte o gajo põe dez", revela.A Guarda Nacional Republicana, através do Serviço de Proteção da Natureza e do Ambiente, é a grande dificuldade dos pes-cadores. "Anda atrás de toda a gente. Não

distingue as pessoas do peneiro, nem das redes. Pelo contrário, anda mais atrás dos do peneiro". E porquê? "É mais fácil de apanhar que o dos barcos ". Prender os pescadores em flagrante é raro.

"Lá vem a GNR!""Não temos feito muitas apreensões ao ní-vel do pescado", revela o major João Fer-nandes, chefe da secção SEPNA - Coimbra, "mas temos apreendido bastante material, particularmente redes". E garante que "está constantemente uma operação a decorrer". As rusgas decorrem durante a noite, tanto o major como o pescador são categóricos: a pesca do meixão é uma atividade notur-na. Acima de tudo, porque se trata de algo irregular e ilegal. "Através de um patrulha-mento tentamos surpreender os pescadores nalguns locais que já estão identificados", destaca o major. Sempre entre o final do ano

À pesca do ouRo bRaNco

sociedade investigação

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Caviar português, angula, enguia-de-vidro, meixão, ouro branCo. a enguia em estado larvar tem muitos nomes e um preço elevado. a pé ou Com redes, a pesCa é ilegal, mas Continua a ser luCrativa. mesmo que a espéCie fique em risCo texto marCo roque fotos pedro ramos

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e o mês de março: a época do meixão. "Já me vi em muitos apertos com a polícia. Tive muita sorte", conta o pescador. "Se apa-recer, tens de fugir. Largas tudo e vens-te embora. Um dia lá estava eu e apareceu a polícia. Um gajo pegou num apito e priiiiiiii, ‘lá vem a GNR’. O que é que um gajo fez? Cor-reu e meteu-se no meio dos carrapiteiros. Não houve outra hipótese. Por acaso eram só uns gajos a brincar, para depois ficarem a pescar sozinhos. Calhou". Caso fosse a GNR, o desfecho seria diferente. "Na pesca do meixão as pessoas são detidas e levadas a tribunal. Quando os pescadores não estão lá e encontramos as redes fixas, retiramo--las e entregamo-las ao tribunal. Depois são destruídas, isto é, queimadas ou cortadas", refere o major João Fernandes, acrescen-tando que não está tipificado um perfil de pescador. "Regra geral são pescadores que também pescam outras coisas", explica. O pescador defende que algo está mal com este sistema. "Porque é que, ao peneiro, apa-nhadas em f lagrante, as pessoas que pes-

cam alguns gramas têm de pagar multas ou fazer trabalho comunitário, e as das redes, que apanham quilos, nada? Eles é que fa-zem muito dinheiro". E levanta outra ques-tão: "sejamos sinceros, muitos membros da GNR, fora de serviço, também andam a pes-car connosco…". Aliás, foi isso que o "safou" de uma situação difícil. “O pior foi quando a GNR me apanhou numa vala e apontaram--me a metralhadora G3. Estava de costas e ouço um barulho. Eram oito soldados da GNR a puxar a culatra. «Estávamos à pes-ca», dissemos. O polícia com quem eu estava foi falar com eles e eles mandaram-nos em-bora pouco depois". São situações deses-perantes. "Para um pequenito, do peneiro, nem vale a pena… Mas um gajo tem de viver de alguma coisa", conclui.

Preço alto "Depende das alturas, quando vêm buscar o peixe. Uns falam em 500 euros (por qui-lo) e a gente vende a 200, 300 euros. Pode ser comercializado a esse preço, mas cá não

passa de 300, 400 euros". Pelo menos para o pescador, que o vende a um intermediá-rio. E quem compra ao intermediário? "São espanhóis. Têm lugares fixos, pessoas que compram e depois vêm buscar a esses com-pradores. Onde há pescadores de rede que têm os seus próprios viveiros, onde vão acu-mulando peixe, e vendem diretamente ao espanhol", sublinha o pescador. "Já entrei em casa de um, que tinha três ou quatro botes e centenas de redes. Até são os espanhóis que lhas compram e pagam os viveiros. Trazem as turbinas e fazem-lhe os tanques".Porque é que o SEPNA não confronta este negócio? "Se a detenção no pescador é difí-cil, no intermediário é ainda mais. Embora a pesca seja ilegal cá, não o é noutras zonas do país, como no rio Minho. É muito com-plicado saber e provar donde vem o meixão", responde o major João Fernandes.Para o pescador é simples. "Eles haviam de aprovar a pesca do meixão, como era anti-gamente, a peneiro. O problema são as redes que ocupam quase todo o rio", argumenta.

1 -Uma rede "pequena", de 30 metros2 - rusga da Polícia Marítima

3 - ao crescer, o meixão vai escurecendo4 - as redes capturam todo o tipo de peixe

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"Apanham e matam tudo"

5 presos em flagrante

74 artefactos usados na pesca ilegal

41kgmeixão recuperado

400 €preço médio mercado ilegal

ciclo da vida da enguia

números 2009 / 2011

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"As redes que vi são escandalo-sas… são verdadeiras telas", des-creve Helena Freitas, professora da Universidade de Coimbra, que acompanhou recentemente uma rusga da polícia marítima. "A ma-lha é finíssima, são redes muito finas, de plâncton. Eu vi de tudo lá dentro, caranguejos, todo o tipo de peixes… aquilo apanha e mata tudo", destaca. "Esta pesca chocou-me bastante porque é especialmente agressi-va. Não dá qualquer oportunida-de à espécie alvo, nem a todas as outras". Os estuários onde esta pesca se faz, seja na par te de rio ou de mar, "são zonas de repro-dução de outras espécies, mater-

nidades de fauna piscícola. E esses «sacos», essas redes, levam tu-do", completa a professora. Para além disso, "estamos a produzir ri-queza para muito poucos, fora do sistema, a vender o produto para Espanha. Um dia, as próprias en-guias podem deixar de reconhe-cer o local", o ciclo de vida delas será posto em causa e a espécie pode desaparecer (ver caixa).A legalização pode ser a solução. " No rio Minho, não sei até que ponto é fiscalizada, mas a lei existe porque é um recurso que deve ser mantido. As regras existem para garantir a sustentabilidade do re-curso", garante. E sustentabilida-de é a palavra de ordem.

HELENA FREITASProfessora Universitária UC

A enguia nasce no meio do Oceano Atlântico, nas profundezas do mar de Sargaços.

As larvas sobem à superfície e vão à deriva, durante dois anos, até chegarem aos rios.

O meixão transforma--se em enguia, viven-do nos rios durante sete a quinze anos.

As enguias fazem o cami-nho inverso e vão para o mar de Sarga-ços. Nenuma sobrevive à postura.