Upload
others
View
6
Download
0
Embed Size (px)
Citation preview
A PINTURA MONUMENTAL MODERNA E A PLÁSTICA DO FUTURO:
REPERCUSSÕES DAS PALESTRAS DE DAVID SIQUEIROS NO AMBIENTE
ARTÍSTICO E INTELECTUAL BRASILEIRO.
Ao longo do século XX, houve um reinventar da pintura mural. Tão ancestral
quanto à existência da humanidade, considerando as pinturas rupestres, bem como tão
valorizada pelos clássicos, tendo em vista os afrescos renascentistas, essa expressão
artistas ressurge na Modernidade revestida de utopias e novos propósitos.
A Modernidade compreende os processos de industrialização, urbanização,
racionalização dos comportamentos e o individualismo. A intensificação dessas
transformações, combinadas à acentuada desigualdade social, o Imperialismo e as
Guerras provocaram um abalo sísmico no campo das Artes, desencadeando no
Modernismo. Pois, da decorrente crise cultural e sentimento de ruína da razão, emergiram
inúmeras e complexas propostas e percepções formadoras da Arte Moderna, tendo a
Europa Ocidental como epicentro. Encontramos outro ponto de vista sobre a
Modernidade nas palavras de Rita Eder (1990):
La modernidad es una ancha tierra de promessas; en ella se cultivan
utopias. Su casa es la ciudad y su paisaje uma diversidade de estímulos
visuales. Ahí se confuden los sonidos de un ritmo inventado por la nueva mecânica y el color de la electricidad. Aparecen otros modos de
caminar, llevar lar opa, de perder la seguridad del rumbo y descobrir
um ángulo de luz o um jardín inesperado. La modernidade imagina el
reino de la fuerza creativa y de una nueva esfera de lo espiritual como estilo de vida. Lo artístico aspira a la totalidad y no acepta su papel de
decorador, se coloca en y por encima de la sociedad. En países donde
no existe um capitalismo avanzado esto no es sólo asunto de filósofos y artistas, se convierte en un proyecto de emancipación social. (EDER,
1990, p. 100).
Assim, em tempos modernos, por um lado se vivenciou o encantamento com os
avanços tecnológicos, mas de outro lado, experimentou-se o acirramento da desigualdade
social com o avanço do capitalismo.
Dessa maneira, no moderno século XX, também emergiram novas teorias
cientificas para se pensar o homem e a sociedade. Essas teorias se desdobraram, inclusive,
em utopias e revoluções. Nessa direção, Maria H. R. CAPELATO, em “Modernismo
Latino Americano e construção da identidade através da pintura”, contextualiza a
associação da arte com a política no nosso continente, ao apontar para o fato de no século
passado, diversos conflitos sociais e políticos como a Revolução Mexicana terem
ocorrido na América e explica:
Nesse período deu-se, em vários países, a criação de partidos
comunistas, ocorreram movimentos operários e estudantis de grande porte, além de movimentos nacionalistas de esquerda e de extrema
direita. No plano intelectual, foram formuladas propostas de unidade
latino-americana e houve significativo debate em torno da questão
indigenista. Todos esses acontecimentos tiveram, cada um à sua maneira, repercussão importante. (CAPELATO, 2005, p. 259).
Fizemos esse percurso explicativo acerca da Modernidade, porque vemos no
desenvolvimento do movimento muralista modernista conformam uma série de fatores
tipicamente modernos: a manifestação artística dialógica com as inovações tecnológicas,
os ideais revolucionários, a reação à desigualdade social, a preocupação com a identidade
na América pós-colonial, um novo conceito sobre arte, seus espaços, alcance e
dimensões... Somadas a essas circunstâncias, a rede de interação estabelecida pelos
artistas defensores da pintura mural, foi fundamental para que a prática desse gênero se
difundisse. Nesse sentido, neste texto nos concentraremos nos vestígios daas repercussões
das palestras de David Siqueiros no Brasil.
De acordo com o historiador Carlos Alberto BARBOSA (2008), Siqueiros
estabeleceu contato mais intenso com o Brasil em dois momentos: o primeiro com suas
palestras durante a década de 1930 e nas Bienais entre 1950 e 1960. (BARBOSA, 2008,
p. 3). De modo geral, as visões de mundo e de arte de Siqueiros geraram encantamento e
polêmica no cenário artístico brasileiro. Seu ideal de integração da arte latino-americana,
sua concepção do artista como um educador social, combinada ao entendimento da arte
como um instrumento político e sua defesa da modernização tecnológica do fazer
artístico, tudo isso deu muito significado a sua passagem pelo Brasil.
Quando da chega de Siqueiros ao Brasil, nos anos 1930, vinha se constituindo um
ambiente de consolidação do modernismo nas artes. O contato com as vanguardas
artísticas europeias, a criação de grupos de trabalhos, como o Núcleo Bernardelli, o Grupo
Santa Helena, SPAM - Sociedade Pró-Arte Moderna, CAM – Clube dos Artistas
Modernos, conforme já mencionamos anteriormente.
Por outro lado, temos também a expansão do Partido Comunista no Brasil, inclusive
com a filiação de diversos pintores brasileiros; combinada a uma conjuntura política de
censura mais branda do que ocorreu a partir do Estado Novo, ou seja, ainda não havia se
instituído o DIP. Esse conjunto de fatores favoreceu a uma recepção positiva de Siqueiros
no Brasil: suas palestras foram divulgadas pela imprensa brasileira, seja em jornais de
ampla circulação, seja em revistas especializadas em artes, como veremos adiante no
texto.
Acerca das Palestras de Siqueiros encontramos registro na imprensa brasileira, em
obras literárias e memorialísticas. O interessante é que, de maneira geral, esses
documentos convergem especialmente em um ponto: o carisma, a capacidade de
Siqueiros em envolver o público nas suas conferências. Nesse viés, MELLADO descreve:
Siqueiros sabe como usar palavras; opera no papel como no espaço da
parede, distribuindo taticamente figuras, traços e cores, de acordo com as características objetivas do terreno; isto é, da superfície. Este
materialismo foi uma das suas conquistas formais durante a sua estadia
forçada em Taxco, no decurso do ano de 1930, quando, na ausência de tecidos de qualidade, é forçado a pintar aproveitando os acidentes dos
espessos sacos de Henequen e o óleo engrossado com copal para obter
enchimentos quentes e volumes mais densos (p.193). 1
Nesse sentido, quanto a repercussão na imprensa brasileira da época, destacamos
as matérias de dois periódicos: o Correio da Manhã e, como era de se esperar, o Diário
de Notícias.
O Correio da Manhã2, na matéria, de 31/12/1933, elabora uma pequena notificação
intitulada “Está no Rio um curioso pintor mexicano: Siqueiros pretende fazer uma
conferência sobre o "exercicio plástico".”, relata que vindo em um pequeno cargueiro
norueguês - o "Tronbatos", desembarcou no Rio em 30 de dezembro de 1933. Classifica-
o como o criador, junto de outros artistas, de uma nova forma de pintar: o exercício
plástico. E explica:
1 Livre tradução de: Siqueiros sabe usar las palabras; opera sobre el papel como sobre el espacio del muro,
distribuyendo tácticamente las figuras, los trazos y los colores, de acuerdo a las características objetivas del
terreno; es decir, de la superficie. Este materialismo ha sido una de sus conquistas formales durante su
estadía forzada en Taxco, en el curso del año 1930, cuando a falta de telas de calidad se ve forzado a pintar
aprovechando los accidentes de los gruesos costales de henequén y el óleo engrosado con copal para lograr
empastes cálidos y volú- menes más densos (p. 193). 2 Igualmente no portal do CPDOC, é categorizado como um Jornal de Opinião, por sua crítica a oligarquia
e ao Governo Vargas. Fundado em 1901, circulou até 1974. (LEAL, s/d).
O exercicio plastico consiste numa pintura de aspecto monumental,
feita não sobre a tela mas sobre largas superficies rebocadas de cimento,
numa estructura architectonica creada por Jorge Kalnay. Tem a fôrma semi-cyllindrica. Na sua execução são usados exclusivamente
elementos mecanicos: machina photographica, em vez de lapis; brocha
mecanica no logar da brocha comum; reguas flexiveis e varios recursos
metallicos, petreos e vegetaes, como complemento. A banqueta academica immovel foi substituida pela de crystal transparente. A
illuminação é artificial, como complemento ascenico da obra plastica
moderna. (CORREIO DA MANHÃ, 1933, p. 5).
No Diário de Notícas de 07/01/1934, por sua vez, encontramos uma matéria em um
tom muito peculiar. Sob o título: “A CONFERENCIA DE DAVID ALFARO
SIQUEIROS”, a matéria assim se inicia:
O PINTOR mexicano David Alfaro Siqueiros que, com Clemente Orosco e Diego de Rivera, constituiu a escola de pintura muralista
moderna, pretendendo restaurar a pintura a fresco, como a unica capaz
de expressar os sentidos e as determinantes da moderna esthetica, de
volta para o seu paiz, vindo da Argentina, onde realizou um curso, de cujas conferencias démos varios resumos, neste “Supplemento”, fez, no
penultimo sabbado, durante a sua permanencia de horas, nesta capital,
uma palestra no Studio Nicolas, em que nos deus a synthese das actividades e as descobertas technicas dos muralistas. (DIÁRIO DE
NOTÍCIAS, 1934, p. 18).
E o jornal se dedicou a detalhar o carisma de Siqueiros e a sua qualidade expositiva:
é lhe atribuído a capacidade de falar de forma simples, clara, franca e interessante. E
relata: “Toda a sua justificativa da technica machinista justificando uma esthetica
diferente, pela procura da expressão de que é capaz, foi feita com muita segurança e uma
argumentação convincente e justa”. (DIÁRIO DE NOTÍCIAS, 1934, p. 18). No mais,
acrescenta:
Referindo-se a uma das paredes, que pintou, com sua equipe (porque,
para a nova pintura mural, a obra deve ser realizada em conjucto por
vários artistas), citou o famoso episódio do tropico. É que o diretor de
uma escola de Los Angeles, que lhe cedeu uma parede externa da sua escola, querendo evitar que o assumpto da pintura fosse extremista,
determinou no contracto que pintariam o tropico, porque julgava que o
pitoresco fosse a unica coisa capaz de determinar uma realização pictural. Disse Siqueiros que o director não sabia o que era o
tropico...Mas, tambem ele, pelo que nos disse do quadro, não sabe
bem...Elle fez o homem do tropico crucificado e roído, como novo
Prometheu, pela aguia “yankee”, a qual é alvejada por dois indios americanos. Ora, isso não é positivamente, o tropico. O nosso, por
exemplo. Ninguem discute que o homem do interior, na nossa zona
tropical, seja sacrificado. É. Mas não pelos norte-americanos, e sim
pelos patrões nacionaes. O odio mexicano foi o que o induziu a
generalizar. Mas, isso não tem importancia alguma. (DIÁRIO DE
NOTÍCIAS, 1934, p. 18).
Já na finalização do texto, há um posicionamento do jornal bastante dissonante com
o que apregoava Siqueiros. Vemos um verdadeiro esvaziamento de seu discurso político
quando se afirma
O que vale, na pintura são os volumes e as cores, dentro do rythmo em
que se movem. Se a obra de arte é bella, que nos importa que atire esse
ou aquelle, que a aguia belisque esse ou aquelle? Na esthetica todas essas considerações são limitadas. A ideologia politica é sempre uma
perturbação para a obra de arte, porque esta deve ser uma expressão
espiritual, emquanto aquella é determinada pelas condições materiaes, pelas solicitações violentas do estomago. A obra que Siqueiros está
realizando é uma maravilha, independente de todas as anecdotas,
porque a arte será incapaz de satisfazer os homens no dia em que estiver condicionada as idéas, aos preconceitos ou aos partidarismos. (DIÁRIO
DE NOTÍCIAS, 1933, p. 18).
Assim, começamos a identificar as formas de recepção das proposições de
Siqueiros e, principalmente, observamos o perfil do jornal, ou seja, apesar de acompanhar
substancialmente a trajetória de Siqueiros na América do Sul, possuía seus senões quanto
a seus posicionamentos político.
Outro registro de recepção das ideias de Siqueiros encontramos no Correio da
Manhã, de 2/11/1938, quando Pedro Correia de Araújo escreve uma crítica à ‘Esthetica
Brasileira”, valorizando o nacionalismo e criticando a ideia de uma arte internacional. E
remonta a vinda de Siqueiros para o Brasil:
Vinha elle de Buenos Aires onde executara uma grande e curiosa
decoração. Num dos nossos conhecidos salões photographicos fez
Siqueiros uma conferencia sobre "o que devem fazer os artistas brasileiros". Standard mecanico; abolição da individualidade. Até o
pincel devia ser abolido. Organização de turmas debaixo do "capitão",
etc.
No Mexico bate o coração vermelho da America... Do Mexico nos vem o estylo modernista na pintura, mesmo mural. A mocidade bellasrista
foi, enthusiasmada ouvir Le Corbusier. Quem ignora a orientação
espiritual do mestre? Cinco minutos na Feira de Amostras, no pavilhão da Prefeitura, se não for alli, nas ruas... Espirito Colonial! (CORREIO
DA MANHÃ, 1938, p. 4).
Pedro Correia, pintor desenhista e professor do Instituto de Arte da Universidade
do Distrito Federal3, num discurso de valorização de uma estética nacional, prossegue
dizendo:
Ha que lutar contra a impotencia colonial da Escola (não dos sabem que os detames dos amigos Siqueiros não vão preparar novos Giottos, mas
vão retardar o nosso surto de arte.
Um traço sem caracter, ou photographico, um standard de fórmas, certo
conjunto de cores rebatidas, um "sacrificio", por motivos não decoartivos, mas sectario-forasteriros...
Os nossos artistas - muitos têm soberbas possibilidades - verifiquem
estas verdades... e naturalmente vão repudiar as estheticas forasteiras. Consultem de perto elementos da esthetica propria. Que riqueza, meus
collegas! Por que seguirmos a opinião dos outros povos quando neste
campo das artes, quanto mais nacionalistas mais valiosos seremos ? Não somos francezes, nem hespanhois, nem russos. Porque falar entre nós -
que digo? - glorificar o "nosso mundo" em linguas estrangeiras? A
esthetica e a grammatica plastica das nações. Cada uma tem a sua. Não
póde haver interesse creativo no "esperanto" artistico. Deus é brasileiro. Falemos, em arte, brasileiro! (CORREIO DA MANHÃ, 1938, p. 4).
Em contrapartida, outro registro da passagem de Siqueiros pelo Brasil é um texto
de Flávio de Carvalho sobre suas memórias no Clube de Artistas Modernos (CAM) em
São Paulo. Entre outros eventos que ocorreram no Clube, define a palestra de Siqueiros
como um dos mais interessantes acontecimentos. Apresenta o pintor como integrante ao
lado de Rivera, da renovação mexicana e não deixa de registrar que Siqueiros e Rivera já
não eram mais amigos. Descreve o pintor mexicano como “tipicamente artista, alto,
mestiço, cabeleira negra, era – coisa pouco comum entre os artistas – grande orador,
falava horas inteiras com um improviso vigoroso e imaginativo e sem cansar o público...”
E não economiza para elogiar o carisma de Siqueiros, descrevendo:
empolgava a assistência, formava um verdadeiro campo magnético no
auditório e conservava esse campo magnético com o mesmo potencial durante as horas que duravam as suas orações, nunca em nenhum
momento esmorecia, como costuma acontecer com os altos e baixos do
orador normal. Ele era mais exuberante como orador que como pintor, tinha-se a impressão que a sua oratória emanava da sua pintura, era uma
conseqüência e uma continuação da pintura, vinha como o sublime
acabamento da pintura. Ele não falava para explicar mas sim para
acabar uma coisa que ele havia começado plasticamente. A oratória era
3 Segundo a Enciclopédia Itaú Cultural, participou do Salão Revolucionário de 1931, contribui na
organização do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, criado em 1937, participa do 1º Salão
Nacional de Arte Moderna e da Exposição de Artistas Brasileiros, no Museu de Arte Moderna do Rio de
Janeiro (MAM/RJ).
em Siqueiros o fim de uma luta, o último ato de um espetáculo, mas
evidentemente uma “finale” que não podia ser expressa plasticamente,
que só era visível em palavras. Siqueiros era político e o seu vigor em oratória provinha das suas condições políticas; o ambiente irreverente,
irresponsável e livre, do Clube o inspirava. Ele sentia-se bem entre
nós. (CARVALHO, 1939, s/p.).
Na continuidade de suas memórias, Carvalho se remete sutilmente as ideias
políticas do pintor ao dizer: “As suas idéias políticas só uma ou outra vez afetaram a cor
e a forma dos seus argumentos – coisa rara entre elementos radicais”. E sobre Siqueiros,
conclui:
A forma da sua oratória se parecia com a forma da sua pintura: grande
imaginação, grande exuberância, dantesca em tonalidade, forte e
definida em emoção. A assistência imóvel hipnotizada, sem o menor sinal de cansaço, escutou Siqueiros durante quatro horas.
(CARVALHO, 1939, s/p.).
De maneira geral, portanto, no registro de suas memórias, Flávio de Carvalho se
ocupa em destacar a capacidade de Siqueiros de encantar com as palavras, não detalha
quais eram as propostas do artista e nem mesmo quais foram suas ideias políticas que vez
ou outra afetavam a “cor” de seu discurso.
Por outro lado, no âmbito do círculo artístico, a passagem de Siqueiros também foi
registrada. A revista Rumos, que tem como redatores Carlos Lacerda – então comunista
– em conjunto com Evandro Lins e Silva e Moacyr Werneck de Castro publica uma
síntese da conferência e noticia a passagem do mexicano. Em análise do documento,
Barbosa relata:
Depois de São Paulo Siqueiros seguiu para o Rio de Janeiro onde passou rapidamente para proferir outra conferência. Teve a
oportunidade de passear pela cidade: caminhou pela Avenida
Copacabana, foi ao bairro do Mangue, comprou um exemplar de Cacau
de Jorge Amado e bebeu num botequim. Foi apresentado por Di Cavalcanti e falou por duas horas. Segundo o
editor da revista Rumo “Começou a falar e virou mil [...] No fim as
idéias dele estavam rodando dentro da cabeça de cada um, feito transfusão de sangue.” (BABOSA, 2008, p. 4).
Embora não tenhamos localizado essa fonte, com a análise de Carlos Alberto
Barbosa identificamos algumas personalidades que estiveram em contato com o
Siqueiros.
No entanto, o mais inusitado e profundo registro do Efeito Siqueiros, localizamos
em Oswald de Andrade. Contagiado pelas ideias do mexicano, o literato brasileiro decide
escrever um romance mural. O projeto consistia na elaboração de uma obra cíclica em
cinco volumes. Embora apenas dois volumes tenham sido publicados (1 - Marco Zero,
Revolução Melancólica, 1943, e 2 – Marco Zero, Chão, 1945), Oswald se dedicou ao
projeto por anos de sua vida. Assim, Marco Zero marca a adesão do artista ao romance
social, sob a forma de um “afresco social". Nele, o escritor pinta, cria ângulos, dá
perspectiva e profundidade aos seus personagens, dispõe-lhes no cenário de uma São
Paulo da primeira metade do século XX, enquadrada ora pelo viés dos desdobramentos
da Revolução de 32, ora pelo da crise de 29.
Com sua técnica de escrita, Oswald nos remete a noção de RANCIÈRE (2012) de
que: “a imagem não é uma exclusividade do visível. Há um visível que não produz
imagem, há imagens que estão todas em palavras”. (p. 16). Para Barbosa (2008), o escritor
brasileiro, apresenta em seu romance experimental uma retórica tanto social, quanto
socialista, com um teor futurista, pois desenvolveu:
técnicas de expressão como a “descontinuidade cênica”, ou sua prosa
cinematográfica com tons da pintura, do cinema e das discussões da época [...]. Sem dúvidas que este tom futurista de “arte ação” Siqueiros
também compartia – a contragosto – e do uso de planos fílmicos ou da
fotografia. (p. 6).
A maneira como as ideias de Siqueiros tocam Oswald também é destacado por
MELLADO (2011), inclusive o mexicano compara Oswald de Andrade com Pablo
Neruda, pois embora este último4 tenha estabelecido fortes laços com Siqueiros e
produzido uma poesia engajada, o pintor mexicano teve um efeito diferenciado na obra
do escritor brasileiro, e afirma sobre Oswald: “ya está suficientemente informado de los
debates del arte contemporáneo como para darse cuenta, ya en 1934, de lo que significaba
el procedimiento de transformación de masas de palabra en un movimiento textual
dinâmico” (p. 227).
4 Na rede de sociabilidade de Siqueiros, Neruda foi um protagonista. Na condição de embaixador do Chile
no México, concedeu visto para que, em vez de preso por ter cometido um atentado contra Trotsky Siqueiros
fosse para o Chile ao invés de cumprir penalidade o Neruda concedeu visto para que Siqueiros saísse da
prisão e cumprisse e fosse para o Chile.
Acerca dessa ciência dos debates artísticos, para além da técnica, chamamos
atenção para alguns trechos de Marco Zero II – Chão. Afinal, especialmente nessa obra,
há uma interessante cena em que dois personagens travam um caloroso debate artístico,
o qual se origina da dissenção lançada por Siqueiros, conforme esclarece Oswald em uma
de suas conferências:
Êle veio realizar no Clube dos Artistas Modernos, uma conferência a que todos assistimos e nela lançou a primeira dissenção séria que viria
perturbar a unidade da ofensiva modernista. Essa divergência é, em
Chão, tratada por dois personagens de Marco Zero já apresentados no primeiro volume. São êles o arquiteto Jack de São Cristóvão e o pintor
Carlos de Jaert. Amigos desde a revolução paulista de 32, onde foram
aprisionados juntos, agora nas cenas do romance que se desenrola dois anos depois, êles tomam posições antagônicas, um defende o
modernismo sem compromisso, o modernismo estético, polêmico e
negativista. O outro, que é o pintor Carlos de Jaert, vê razão para o
modernismo, na pintura social que êle produziu. (ANDRADE, 1971, p. 104)
Dessa maneira, nessa “tomada” a pintura mural aparecerá tanto técnica oswaldiana
de escrita, quanto no próprio tema do texto. Por isso, na passagem a seguir, chamamos a
atenção para a preocupação do modernista, no ato de sua escrita em construir uma imagem
dos personagens e do cenário em que estão:
Jack de São Cristóvão e Carlos de Jaert estavam no aposento de baixo.
Num pulôver angorá passado sobre o pijama vermelho, o engenheiro
recostado no travesseiro fixava a miopia numa revista sem capa. Com os óculos na mão, os olhos irritados, a testa oleosa sob o cabelo ralo,
meio grisalho, falou com a voz grossa e pausada:
—' Foram embora daqui os donos do mundo! — Quem é esse Barão do Cerrado? — perguntou Carlos de Jaert, num
pijama branco de flanela, deitado nos pés da cama arrumada, deixando
ver no espelho do guarda-roupa o perfil dionisíaco de cabelos encaracolados e curtos. (ANDRADE, 1971, p. 104).
Ao que tudo indica, Jack de São Cristovão seria uma inspiração em Flávio de
Carvalho, enquanto Carlos de Jaert seria em Lasar Segall. (BARBOSA, 2008;
MELLADO, 2011; ANDRADE, 1971).
De alguma maneira, essa categorização de Oswald de Andrade nos remete ao relato
do próprio Flávio de Carvalho em torno da palestra de Siqueiros. De acordo com o que
evidenciamos anteriormente, Carvalho destaca o carisma do mexicano, mas pouco nos
detalha sobre sua proposta. Coerente com essa postura, o personagem Jack de São
Cristovão, admirador de Picasso, da pintura como dimensão da vida, crítico dos
românticos, por entender que com eles a pintura perdeu seu contorno plástico, sua
unidade, um apaixonado pela pintura, a qual, segundo ele, seriam:
sinais que foram o alfabeto da caverna, que acompanham o homem na
sua caminhada, a princípio dando êxtase puro com a descoberta da fauna e da geografia. Depois marcando as religiões, fixando o hierático,
depois dando guerras, batalhas, comícios, madonas, mercados,
revoluções... Abrindo horizontes, educando, ensinando... A pintura é
para mim dinamite e álgebra ao mesmo tempo... (ANDRADE, 1974, 135-136).
Carlos de Jaert, por sua vez, coloca-se numa postura muito mais envolvida com o
discurso de Siqueiros. Afirma que:
Depois de Ingres só houve um pintor no século XIX and aftet. O velho Douanier Rousseau que queria acabar os quadros mal pintados de
Cézanne. Um santo... É ele quem restaura a unidade da pintura, a torna
religiosa e humana como nos grandes tempos e dá-lhe o elemento novo que triunfará na pintura de amanhã o povo. (ANDRADE, 1974, p. 136).
E na sequência do debate, diz que nem Cézanne nem Picasso foram pintores e que
Jack de São Cristovão estava surdo na conferência de Siqueiros, sobre a qual relata:
Ele disse que Giotto e Cimabue esbofeteariam os artistas que não
usassem câmaras fotográficas. E é justamente a cegueira burguesa que
não deixa os nossos pintores enxergarem a cada passo, nas ruas, os gestos dos homens e as caras da luta de classes. Eles precisam abrir os
olhos para ver o esforço do escravo moderno, a sua máscara ... Sem
querer você fez o processo de um século de pintura, Jack. O que foi Courbet, o pai dos Fauves? O que foram Manet e os Impressionistas,
senão o que você quer ser? Um literato intencional que retrata com
tintas, numa auto flagelação masoquista e infame, a sociedade do seu
tempo. Só há pintura revolucionária ou a clássica, a que concorda, a que apóia como o órgão apóia o mistério da missa. (ANDRADE, 1974, p.
137).
No calor do debate, replica que com exceção de Rosseau, modernistas que pensam
como Jack, com a emergência dos ismos, acabaram no nada do Abstracionismo. E que
Siqueiros havia ensinado algo que merecia ser pintado: o povo, para além da pintura social
só haveria burguesia e besteira. Assim, com o sono se aproximando, a conversar se
encerra com a fala de Jack: “Amanhã vou começar um quadro. Uma cena que vi na estrada
quando vinha para cá. Uma mulher enorme, opilada, levando no braço uma criancinha de
dois quilos. Ao lado o homem amarelo, em farrapos, com um galo de briga. Sabe qual é
o título? Mudança.”. (ANDRADE, 1974, p. 139-140).
Depois de sua vinda ao Brasil para fazer palestras no Brasil, há a tentativa de que
Siqueiros voltasse para realizar um mural, em São Paulo, a convite de Pietro Maria Bardi,
o qual não chegou a ser realizado. Ademais há uma série de correspondências trocadas
entre Francisco Matarazzo Sobrinho, Arturo Profili e Antônio Bulhões, negociando a
participação de Siqueiros e outros mexicanos na Primeira e na Segunda Bienal, em São
Paulo. (BARBOSA, 2008, p. 7).
Em estudos, o historiador Carlos Alberto BARBOSA (2008), vai levantar uma série
de intelectuais brasileiros que compunham a rede sociabilidade de Siqueiros. Nessa
identificação menciona as cartas escritas por Di Cavalcanti ao “mestre Siqueiros”, bem
como ao encontro de Erico Veríssimo com o pintor no México, os catálogos e livros de
intelectuais brasileiros, autografados, na biblioteca de Siqueiros (como por exemplo:
Vianna Moog, Emilia Viotti da Costa, Erico Veríssimo e Candido Portinari).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
ADES, Dawn. Arte na América Latina: A Era Moderna, 1820-1980. Cosac e Naify
Edições: São Paulo, 1997.
AMARAL, Aracy. Textos do Trópico de Capricórnio: artigos e ensaios (1980-2005)
– Vol.1: Modernismo, arte moderna e o compromisso com o lugar. São Paulo: Ed. 34,
2006.
AMARAL, Aracy Abreu. O muralismo como marco de múltipla articulação. In: Arte e
meio artístico: entre a feijoada e o x-burguer (1961-1981), 280- 287. São Paulo, Brasil:
Nobel, 1983.
ANDRADE, Mário de. O movimento modernista. Conferência lida no Salão de
Conferências da Biblioteca do Ministro das Relações Exteriores do Brasil em 30 de abril
de 1942. Rio de Janeiro: Casa do Estudante, 1942.
ANDRADE, Oswald. Obras completas: Ponta de Lança. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1971. v. 5.
ANDRADE, Oswald. Obras completas: Marco Zero II. Chão.. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1974.
AZUELA DE LA CUEVA, Alicia. Militancia política y labor artística de David Alfaro
Siqueiros: de Olvera Street a Río de la Plata, IN: Estudios de Historia Moderna y
Contemporánea de México, 2008.
BARBOSA, C. A. S. Imaginários Políticos no Brasil e no México. IN: BARBOSA, C.
A. S; BEIRED, J. L. B. (orgs) Política e identidade cultural na América Latina. São Paulo:
Cultura Acadêmica, 2010.
CAPELATO, Maria Helena Rolim. Modernismo Latino Americano e construção de
identidades através da pintura. Revista de História. 153 (2º - 2005), 251-282. Disponível
em: http://www.revistas.usp.br/revhistoria/article/download/19012/21075
CARVALHO, Flávio de, “Recordações do Clube dos Artistas Modernos”, in RASM
Revista Anual do Salão de Maio, nº1, São Paulo, 1939.
EDER, Rita. Muralismo mexicano: modernidad e identidad cultural. In: BELLUZO, Ana
Maria de Moraes (org.). Modernidade: vanguardas artísticas na América Latina. São
Paulo: Memorial, UNESP, 1990, p. 99-120.
FABRIS, Annateresa, Cândido Portinari. São Paulo: EDUSP. 1996.
FERREIRA, Marieta de Morais. Verbete: Diário de Notícias (Rio de Janeiro) Disponível
IN: http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-tematico/diario-de-noticias-rio-
de-janeiro
GÖTTIG, Sol. Neomexicanismo Siqueiriano: tres acercamientos a la experiência
mural em la obra de Antonio Berni. Trabalho de Graduação apresentado ao
Departamento de Ciencias Sociales Licenciatura em Comunicacion. Universidade de San
Andres da Argentina: Buenos Aires, 2014. Disponível em:
http://repositorio.udesa.edu.ar/jspui/bitstream/10908/11744/1/%5bP%5d%5bW%5d%2
0T.L.%20Com.%20G%C3%B6ttig%2c%20Sol.pdf
LEAL, Carlos Eduardo. Verbete: Corrreio da Manhã. Disponível IN:
http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-tematico/correio-da-manha
LOURENÇO, Maria Cecilia França. Operários da modernidade. São Paulo:
Edusp/Hucitec, 1995.
MELLADO, Justo. El Efecto Siqueiros. IN: ACEVEDO, Ester (coord). México y La
invención del arte latino-americano 1910-1950. México: Secretaría de Relaciones
Exteriores, Dirección General del Acervo Histórico Diplomático, 2011.
PEDRO Luiz Correia de Araújo. In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura
Brasileiras. São Paulo: Itaú Cultural, 2017. Disponível em:
<http://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa24473/pedro-luiz-correia-de-araujo>.
Acesso em: 21 de Mar. 2017. Verbete da Enciclopédia.
RANCIÈRE, Jacques. O espectador emancipado. São Paulo: Editora WMF Martins
Fontes, 2012.
VASCONCELOS, Camilo de Melo. Imagens da Revolução Mexicana. O Museu
Nacional de História do México, 1940-1982. São Paulo: Alameda, 2007.
VELOSO, Monica P. História e Modernismo. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2010.
ZANINI, Walter. A arte no Brasil nas décadas de 1930-40: O Grupo Santa Helena. São
Paulo: Nobel, 1991.