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Exame Nacional do Ensino Mé- dio (Enem), como parte de uma política para este perío- do de aprendizagem escolar, significa uma verdadeira revo- lução no futuro da educação no país. A ava- liação tende a consolidar o que determinam as diretrizes da lei federal, definidas nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs), pelo menos no que diz respeito ao campo das “Linguagens, Códigos e suas Tecnolo- gias”, segundo avaliou, em tese de douto- rado defendida no Instituto de Estudos da Linguagem (IEL), a pesquisadora Cynthia Agra de Brito Neves. Para entender a importância do Enem, Cynthia foi para a França, estudar o ensi- no médio nos lycées e a avaliação final dos estudantes franceses, a qual seria, hipoteti- camente, semelhante ao exame brasileiro, o chamado Baccalauréat, apelidado de le bac ou le bachôt. A França foi escolhida porque, durante anos, foi a principal referência para os currículos brasileiros e, ainda hoje, é um país determinante nos debates das ciên- cias humanas. As avaliações, como o bac e o Enem, porque acabam por determinar o currículo escolar do ensino médio de ambos os países. “O ensino médio brasileiro agora não direciona suas aulas apenas com o argu- mento ‘isso cai no vestibular’, mas também ‘isso cai no Enem’”, reflete a pesquisadora, mesmo reconhecendo que, em sua área, a proposta do Enem não é o de uma prova que privilegie o conteúdo. Na França, Cynthia assistiu em torno de 40 horas/aula em dois lycées. Aqui no Bra- sil, mais 50, em duas escolas particulares e uma pública na região de Campinas. “Minha pesquisa é aquela que chamamos qualitati- va, subjetivista, e conta com a transcrição de todas as aulas a que assisti em diários de classe. Contrastei os dois ensinos, recolhi material didático, observei as dinâmicas de salas de aula, sempre focando para como cir- culam os gêneros poéticos em classe, como o professor trabalha com isso e como os alu- nos recepcionam as poesias”. A preocupação da autora da tese com os gêneros poéticos tem muitas razões de ser. Na introdução do trabalho ela já defende o resgate do ensino de poesias em sala de aula. “Afinal, ‘(...) a palavra poética funda os povos. Sem épica não há sociedade possível, porque não existe sociedade sem heróis em que reconhecer-se’”, salienta, utilizando as palavras do escritor Octávio Paz. Cynthia concorda com os estudiosos que fazem críticas ao ensino da língua preocupa- do apenas com os usos funcionais, “numa perspectiva comunicativista ou utilitarista da linguagem que, centrada nas temáticas do cotidiano, valem-se de recursos e textos tirados da mídia (jornais e revistas), ou de outros discursos não literários, como se fos- sem os únicos importantes na formação lin- guística e educacional”, escreve. De modo geral, a pesquisadora afirma ter constatado mais semelhanças que di- ferenças entre o ensino-aprendizagem dos gêneros poéticos em sala de aula no Brasil e na França. “Tanto lá quanto cá, há uma su- pervalorização do aspecto formal do poema. Pede-se, em primeiro lugar, para o aluno re- conhecer se aquele poema é um soneto, em seguida, identificar a rima e a métrica. Além disso, há uma insistente busca pelas figuras de linguagem, então o aluno se vê obrigado a descobrir a metáfora, a achar a antítese, ou seja, pratica-se uma leitura ‘eferente’ em vez de uma leitura ‘estética’ - eis o ‘pecado’ de alguns professores”, critica. Os alunos, por sua vez, tentam fugir desse formalismo “burlando” as aulas com perguntas inusitadas. Cynthia conta que na França os estudantes perguntavam, por exemplo, se Charles Baudelaire era ho- mossexual, se usava drogas; no Brasil, se Fernando Pessoa era esquizofrênico, se era bipolar, e dessa forma, “atrapalhavam” o professor, sempre preocupado em concluir a programação da aula. A poesia como rito de passagem A pesquisadora Cynthia Agra de Brito Neves: comparando os ensinos da França e do Brasil Uma das diferenças notadas entre os dois países foi a leitura de poesias em voz alta realizada na França. “Os alunos são chamados a ler o poema declamando-o com atenção, enquanto no Brasil, nas escolas em que estive, os estudantes não têm ‘vez nem voz’, a não ser quando sacam do bolso um rap e o declamam inesperadamente, como testemunhei em uma escola da rede pública de ensino”. De acordo com a autora, isso se deve ao fato de que, na França, os alunos do lycée têm o Baccalauréat oral, e nesse exame a leitura de poesias em voz alta é cobrada, o que não ocorre no Brasil. Mais uma vez, as avaliações definem os currículos e não o contrário”, reflete. CONTRASTE O contraste entre a educação francesa e a brasileira parte de uma curiosidade históri- ca. A pedagogia do país europeu influencia a pedagogia brasileira pelo menos desde o sé- culo 19. O Brasil praticamente importava o programa do ensino secundário francês e até os livros que eram usados na França eram lidos aqui, especialmente no Colégio Pedro II, no Rio de Janeiro, cujo currículo era refe- rência nacional. O ensino da língua francesa se manteve nos currículos brasileiros, com 15 horas de aula semanais, até 1971. Foi pensando se essa influência perdu- rava ainda hoje, que a autora elaborou sua hipótese de pesquisa. O Enem teria alguma relação com o bac? O exame francês existe desde 1880. Em 2011, quando Cynthia es- teve na França, 71,6% dos alunos tinham conquistado o diploma do bac. No Brasil, sa- lienta a autora, embora o exame seja muito mais recente, hoje mais de 60 universidades federais utilizam só a nota do Enem para o ingresso do aluno e mesmo outras insti- tuições estaduais, como em São Paulo, têm utilizado o exame como parte da nota do vestibular. Além disso, o exame é também utilizado para o acesso a programas ofere- cidos pelo governo federal, tais como o Pro- grama Universidade para Todos (ProUni), o Fundo de Financiamento Estudantil (Fies) e o programa Ciência sem Fronteiras. “O Enem é um exame que trabalha a lite- ratura de uma maneira interessante, sem a preocupação de cobrar datas e movimentos literários, sem insistir que os alunos deco- rem características de autores e obras, ou seja, não tem aquela preocupação enciclopé- dica que marcou o nosso ensino das décadas de 1970 a 1990. O Enem propõe questões de interpretação de texto, de intertextuali- dade, contemplando as poesias e a experiên- cia literária do aluno”. A autora ressalta que o exame avalia com- petências e habilidades de leitura e que o “le- tramento literário” é crucial para que o aluno leia e saiba interpretar o mundo: “a capacida- de de se apropriar efetivamente da literatura, da poesia, por meio da experiência estética e da fruição. Quanto mais o aluno-leitor se apropriar do texto e a ele se entregar, mais rica será sua experiência estética, e mais letra- do, crítico, autônomo e humanizado ele será”, defende a pesquisadora, fazendo referência a “O direito à literatura”, de Antonio Candido. O Enem segue a orientação dos Parâme- tros Curriculares Nacionais que, como deter- mina a própria Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB n° 9.394/96), subs- tituiu “Comunicação e Expressão” por ensino de “Linguagens, Códigos e suas Tecnologias”. Da mesma forma, não se fala mais em “reda- ção”, mas em “produção textual” baseada em gêneros. Os multiletramentos e as novas tec- nologias também são ressaltados nos PCNs. Foto: Antoninho Perri Publicação Tese: “A literatura no ensino médio: os gêneros poéticos em travessia no Brasil e na França” Autora: Cynthia Agra de Brito Neves Orientadora: Maria Viviane do Amaral Veras Unidade: Instituto de Estudos da Lin- guagem (IEL) PATRÍCIA LAURETTI [email protected] Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil “Lendo os currículos oficiais encontra- mos vários pontos que discutem o ensino de língua materna dialogando, por exemplo, com Bernard Schneuwly e Joaquim Dolz, dois professores da universidade de Gene- bra que propõem trabalhar com gêneros em sala de aula. Estamos dialogando com a Europa o tempo inteiro e isso tem chegado às escolas por meio de livros didáticos re- comendados e distribuídos pelo MEC”, diz. Cynthia também é corretora do Enem e afirma que a concepção de linguagem norteadora do trabalho é a que não admi- te qualificar um aluno pela quantidade de seus erros ortográficos, “que ele seja pena- lizado por cada acento que esquece”. Mes- mo os vestibulares, acrescenta, muitos não são mais quantitativos. “Sei que esse é um aspecto muito criticado de nosso trabalho, sem razão. Claro que ainda há muito o que melhorar mas creio que o Enem está na tra- vessia certa”, conclui. Estudantes antes de prova do Enem, no último dia 8: para autora do estudo, “exame avalia competências e habilidades de leitura” Campinas, 17 a 23 de novembro de 2014 8

A poesia como rito de passagem · dio (Enem), como parte de uma ... hoje mais de 60 universidades ... “O direito à literatura”, de Antonio Candido. O Enem segue a orientação

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Exame Nacional do Ensino Mé-dio (Enem), como parte de uma política para este perío-do de aprendizagem escolar,

significa uma verdadeira revo-lução no futuro da educação no país. A ava-liação tende a consolidar o que determinam as diretrizes da lei federal, definidas nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs), pelo menos no que diz respeito ao campo das “Linguagens, Códigos e suas Tecnolo-gias”, segundo avaliou, em tese de douto-rado defendida no Instituto de Estudos da Linguagem (IEL), a pesquisadora Cynthia Agra de Brito Neves.

Para entender a importância do Enem, Cynthia foi para a França, estudar o ensi-no médio nos lycées e a avaliação final dos estudantes franceses, a qual seria, hipoteti-camente, semelhante ao exame brasileiro, o chamado Baccalauréat, apelidado de le bac ou le bachôt. A França foi escolhida porque, durante anos, foi a principal referência para os currículos brasileiros e, ainda hoje, é um país determinante nos debates das ciên-cias humanas. As avaliações, como o bac e o Enem, porque acabam por determinar o currículo escolar do ensino médio de ambos os países. “O ensino médio brasileiro agora não direciona suas aulas apenas com o argu-mento ‘isso cai no vestibular’, mas também ‘isso cai no Enem’”, reflete a pesquisadora, mesmo reconhecendo que, em sua área, a proposta do Enem não é o de uma prova que privilegie o conteúdo.

Na França, Cynthia assistiu em torno de 40 horas/aula em dois lycées. Aqui no Bra-sil, mais 50, em duas escolas particulares e uma pública na região de Campinas. “Minha pesquisa é aquela que chamamos qualitati-va, subjetivista, e conta com a transcrição de todas as aulas a que assisti em diários de classe. Contrastei os dois ensinos, recolhi material didático, observei as dinâmicas de salas de aula, sempre focando para como cir-culam os gêneros poéticos em classe, como o professor trabalha com isso e como os alu-nos recepcionam as poesias”.

A preocupação da autora da tese com os gêneros poéticos tem muitas razões de ser. Na introdução do trabalho ela já defende o resgate do ensino de poesias em sala de aula. “Afinal, ‘(...) a palavra poética funda os povos. Sem épica não há sociedade possível, porque não existe sociedade sem heróis em que reconhecer-se’”, salienta, utilizando as palavras do escritor Octávio Paz.

Cynthia concorda com os estudiosos que fazem críticas ao ensino da língua preocupa-do apenas com os usos funcionais, “numa perspectiva comunicativista ou utilitarista da linguagem que, centrada nas temáticas do cotidiano, valem-se de recursos e textos tirados da mídia (jornais e revistas), ou de outros discursos não literários, como se fos-sem os únicos importantes na formação lin-guística e educacional”, escreve.

De modo geral, a pesquisadora afirma ter constatado mais semelhanças que di-ferenças entre o ensino-aprendizagem dos gêneros poéticos em sala de aula no Brasil e na França. “Tanto lá quanto cá, há uma su-pervalorização do aspecto formal do poema. Pede-se, em primeiro lugar, para o aluno re-conhecer se aquele poema é um soneto, em seguida, identificar a rima e a métrica. Além disso, há uma insistente busca pelas figuras de linguagem, então o aluno se vê obrigado a descobrir a metáfora, a achar a antítese, ou seja, pratica-se uma leitura ‘eferente’ em vez de uma leitura ‘estética’ - eis o ‘pecado’ de alguns professores”, critica.

Os alunos, por sua vez, tentam fugir desse formalismo “burlando” as aulas com perguntas inusitadas. Cynthia conta que na França os estudantes perguntavam, por exemplo, se Charles Baudelaire era ho-mossexual, se usava drogas; no Brasil, se Fernando Pessoa era esquizofrênico, se era bipolar, e dessa forma, “atrapalhavam” o professor, sempre preocupado em concluir a programação da aula.

A poesia comorito de passagem

A pesquisadora Cynthia Agra de Brito Neves: comparando os ensinos da França e do Brasil

Uma das diferenças notadas entre os dois países foi a leitura de poesias em voz alta realizada na França. “Os alunos são chamados a ler o poema declamando-o com atenção, enquanto no Brasil, nas escolas em que estive, os estudantes não têm ‘vez nem voz’, a não ser quando sacam do bolso um rap e o declamam inesperadamente, como testemunhei em uma escola da rede pública de ensino”. De acordo com a autora, isso se deve ao fato de que, na França, os alunos do lycée têm o Baccalauréat oral, e nesse exame a leitura de poesias em voz alta é cobrada, o que não ocorre no Brasil. Mais uma vez, as avaliações definem os currículos e não o contrário”, reflete.

CONTRASTEO contraste entre a educação francesa e a

brasileira parte de uma curiosidade históri-ca. A pedagogia do país europeu influencia a pedagogia brasileira pelo menos desde o sé-culo 19. O Brasil praticamente importava o programa do ensino secundário francês e até os livros que eram usados na França eram lidos aqui, especialmente no Colégio Pedro II, no Rio de Janeiro, cujo currículo era refe-rência nacional. O ensino da língua francesa se manteve nos currículos brasileiros, com 15 horas de aula semanais, até 1971.

Foi pensando se essa influência perdu-rava ainda hoje, que a autora elaborou sua hipótese de pesquisa. O Enem teria alguma relação com o bac? O exame francês existe desde 1880. Em 2011, quando Cynthia es-teve na França, 71,6% dos alunos tinham conquistado o diploma do bac. No Brasil, sa-lienta a autora, embora o exame seja muito mais recente, hoje mais de 60 universidades federais utilizam só a nota do Enem para o ingresso do aluno e mesmo outras insti-tuições estaduais, como em São Paulo, têm utilizado o exame como parte da nota do vestibular. Além disso, o exame é também utilizado para o acesso a programas ofere-cidos pelo governo federal, tais como o Pro-grama Universidade para Todos (ProUni), o Fundo de Financiamento Estudantil (Fies) e o programa Ciência sem Fronteiras.

“O Enem é um exame que trabalha a lite-ratura de uma maneira interessante, sem a preocupação de cobrar datas e movimentos literários, sem insistir que os alunos deco-rem características de autores e obras, ou seja, não tem aquela preocupação enciclopé-dica que marcou o nosso ensino das décadas de 1970 a 1990. O Enem propõe questões de interpretação de texto, de intertextuali-dade, contemplando as poesias e a experiên-cia literária do aluno”.

A autora ressalta que o exame avalia com-petências e habilidades de leitura e que o “le-tramento literário” é crucial para que o aluno leia e saiba interpretar o mundo: “a capacida-de de se apropriar efetivamente da literatura, da poesia, por meio da experiência estética e da fruição. Quanto mais o aluno-leitor se apropriar do texto e a ele se entregar, mais rica será sua experiência estética, e mais letra-do, crítico, autônomo e humanizado ele será”, defende a pesquisadora, fazendo referência a “O direito à literatura”, de Antonio Candido.

O Enem segue a orientação dos Parâme-tros Curriculares Nacionais que, como deter-mina a própria Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB n° 9.394/96), subs-tituiu “Comunicação e Expressão” por ensino de “Linguagens, Códigos e suas Tecnologias”. Da mesma forma, não se fala mais em “reda-ção”, mas em “produção textual” baseada em gêneros. Os multiletramentos e as novas tec-nologias também são ressaltados nos PCNs.

Foto: Antoninho Perri

PublicaçãoTese: “A literatura no ensino médio: os gêneros poéticos em travessia no Brasil e na França”Autora: Cynthia Agra de Brito NevesOrientadora: Maria Viviane do Amaral VerasUnidade: Instituto de Estudos da Lin-guagem (IEL)

PATRÍCIA [email protected]

Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil

“Lendo os currículos oficiais encontra-mos vários pontos que discutem o ensino de língua materna dialogando, por exemplo, com Bernard Schneuwly e Joaquim Dolz, dois professores da universidade de Gene-bra que propõem trabalhar com gêneros em sala de aula. Estamos dialogando com a Europa o tempo inteiro e isso tem chegado às escolas por meio de livros didáticos re-comendados e distribuídos pelo MEC”, diz.

Cynthia também é corretora do Enem e afirma que a concepção de linguagem norteadora do trabalho é a que não admi-te qualificar um aluno pela quantidade de seus erros ortográficos, “que ele seja pena-lizado por cada acento que esquece”. Mes-mo os vestibulares, acrescenta, muitos não são mais quantitativos. “Sei que esse é um aspecto muito criticado de nosso trabalho, sem razão. Claro que ainda há muito o que melhorar mas creio que o Enem está na tra-vessia certa”, conclui.

Estudantes antes de prova do Enem, no último dia 8: para autora do estudo, “exame avalia competências e habilidades de leitura”

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