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A poesia de Nicolás Guillén e a representação da identidade cubana Por Wanessa Cristina Ribeiro Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários para obtenção do Título de Mestre em Letras Neolatinas (Estudos Literários Neolatinos-Literaturas Hispânicas). Orientadora:Profª. Doutora Mariluci Guberman. Universidade Federal do Rio de Janeiro/ UFRJ 2010/2

A poesia de Nicolás Guillén e a representação da identidade

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A poesia de Nicolás Guillén e a representação da identidade cubana

Por

Wanessa Cristina Ribeiro

Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras

Neolatinas da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos

necessários para obtenção do Título de Mestre em Letras Neolatinas (Estudos Literários

Neolatinos-Literaturas Hispânicas).

Orientadora:Profª. Doutora Mariluci Guberman.

Universidade Federal do Rio de Janeiro/ UFRJ

2010/2

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A poesia Nicolás Guillén e a representação da identidade cubana

Por

Wanessa Cristina Ribeiro

Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras

Neolatinas da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos

necessários para obtenção do Título de Mestre em Letras Neolatinas (Estudos Literários

Neolatinos-Literaturas Hispânicas).

Orientadora:Profª. Doutora Mariluci Guberman.

Universidade Federal do Rio de Janeiro/ UFRJ

2010/2

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A poesia de Nicolás Guillén e a representação da identidade cubana

Wanessa Cristina Ribeiro Orientadora: Professora Doutora Mariluci da Cunha Guberman

Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários para a obtenção do título de Mestre em Letras Neolatinas(Estudos Literários -Literaturas Hispânicas). . Examinada por: Profª. Dr ª. Mariluci da Cunha Guberman (Presidente) Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO Profª. Dr ª. Ximena Antonia Díaz Merino UNIVERSIDADE ESTADUAL DO OESTE DO PARANÁ Profª. Dr ª. Rita de Cássia Miranda Diogo Programa de Pós Graduação em Literatura Comparada e Teoria da Literatura UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO Profª. Dr ª. Ana Cristina dos Santos Programa de Pós Graduação em Literatura Comparada e Teoria da Literatura UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO Prof. Dra. Marinês Lima Cardoso Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas/ Bolsista PRODOC/CAPES UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO Avaliação:....................................... Em 07 de dezembro de 2010, às 14 horas

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RIBEIRO, Wanessa Cristina. Rio de Janeiro: A representação da identidade cubana em poemas de Nicolás Guillén. Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas (Estudos Literários-Literaturas Hispânicas), Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro 2010. Dissertação de Mestrado, 101 fls.

Resumo

Análise crítica sobre a identidade nacional em poesias do escritor cubano Nicolás Guillén através de estudo comparativo baseado no diálogo entre elementos-chave na construção da ideia de nação, presentes no imaginário popular antilhano, e o discurso poético de Guillén. A relevância dessa análise se deve à conjunção harmoniosa entre suas composições poéticas e as demais manifestações artísticas cubanas, além de congregar os valores identitários de Cuba sem perder a grandeza dos valores estéticos. Através da contextualização histórica do fim do século XIX e o decorrer do século XX, as análises poéticas de “Rumba”, “Secuestro de La mujer de Antonio”, “Balada de los dos abuelos”, “Tengo” e “España: poema en cuatro angustias y una esperanza”, devidamente associadas a outras produções artísticas pretendem corroborar com a ideia de que Guillén, ao transmutar os valores da sociedade cubana, cumpre a função de alimentar o imaginário coletivo de seu povo, reafirmando a necessidade de entender a identidade como um projeto a ser continuamente trabalhado.

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RIBEIRO, Wanessa Cristina. Rio de Janeiro: A representação da identidade cubana em poemas de Nicolás Guillén. Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas (Estudos Literários Literaturas Hispânicas), Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro 2010. Dissertação de Mestrado, 101 fls.

Resumen

Detallar la cuestión de la identidad nacional en la poesía cubana de Nicolás Guillén a través del estudio comparativo basado en el diálogo entre los elementos clave en la construcción de la idea de nación Antillana en la imaginación popular, y el discurso poético de Guillén. La relevancia de este análisis se debe a la combinación armoniosa entre sus composiciones poéticas y otros eventos artísticos en Cuba. Además de aportar con brillantez los valores de la identidad nacional cubana, sin perder su grandeza en los valores estéticos. A través de los antecedentes históricos de finales del siglo XIX y el transcurrir del siglo XX, se analiza las composiciones poéticas: "Rumba", “Secuestro de la mujer de Antonio", "Balada de los dos abuelos" "Tengo"y "España: poema en cuatro y una angustias y esperanza ", combinados adecuadamente con otras producciones artísticas destinadas a reforzar la idea de que Guillén, por la transmutación de los valores de la sociedad cubana, cumple la función de alimentar el imaginario colectivo de las personas, reafirmando la necesidad de entender la identidad como un proyecto a ser trabajado de forma continua.

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RIBEIRO, Wanessa Cristina. Rio de Janeiro: A representação da identidade cubana em poemas de Nicolás Guillén. Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas (Estudos Literários-Literaturas Hispânicas), Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro 2010. Dissertação de Mestrado, 101 fls.

Abstract

Critical analyze about the national identity in poetries of Cuban writer Nicolás Guillén through of the comparative study based on dialogue between key-elements in the construction of the idea of nation, that is present in the popular imaginary Antillean, and the poetic speech of Gullén. The relevance of this analyze is due to the harmonious union between his poetic compositions and others artistic Cuban manifestation, beyond congregate the values of identities of Cuba without lose the greatness of the esthetics values. Through of the historic contextualization at the end of the century XIX and in the course of century XX, the poetic analyses of "Rumba" , "Secuestro of La mujer de Antonio", "Balada de los abuelos", "Tengo" e "España: poema en cuatro angustias y una esperanza", duly associated to others artistic productions to intend corroborate with the Gullén's idea, by transmuting the values of the Cuban society, fulfils the function of the feed the collective imaginary of his people ,reasserting the necessity of understand the identity as a project to be continuously worked.

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Dedicatória

Em Deus estão a sabedoria e a força, a Ele pertencem a perspicácia e a inteligência.

Jó 12: 13

Nada mais justo que dedicar ao Autor da minha vida o êxito em concluir

esta dissertação...

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Agradecimentos

“Gracias, gracias, gracias. Quiero agradecer

a quien corresponda…”

Jorge Drexler

Toda e qualquer forma de verbalizar um agradecimento pecará sempre

pela falta e pelo excesso. Como não acredito ser possível fugir desta regra,

pecarei pela falta de algum nome ou momento especial no desenvolvimento

desta dissertação pelo excesso de alegria em vê-la se tornar realidade.

Agradeço primeiramente à Coordenação de Aperfeiçoamento de

Pessoal de Nível Superior (CAPES) pela subvenção financeira, que me auxiliou

desde o início das pesquisas, possibilitando o aprofundamento de meus

estudos, que culminou com a conclusão do presente curso. Também agradeço

ao Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas da UFRJ pelo suporte

técnico e incentivo acadêmico durante todo o período.

Impossível deixar de registrar meu agradecimento à Faculdade de Letras

da UFRJ, que me acolheu desde os estudos de Graduação, representada pelo

excelente Corpo Docente e Administrativo. Em especial à Profa. Dra. Mariluci

da Cunha Guberman, orientadora e amiga, uma pessoa de extrema

significação em minha vida acadêmica e pessoal. Quem me forneceu o apoio

bibliográfico, teórico, pedagógico e humano para converter uma ideia em ideal.

Graças a sua paciência e dedicação pude transformar meus brutos e

sentimentais gostos literários em análises sóbrias e mais fundamentadas que

antes.

Agradeço também ao Prof. Dr. Luiz Edmundo Coutinho por manter vivo

o incentivo a cada membro da “turma do futuro”; à Profa. Dra. Leticia Rebollo

pela dedicação em todas as aulas e orientações ministradas e pela constante

torcida. À Profa. Dra. Cláudia Luna por seus questionamentos e indicações

bibliográficas sempre pertinentes; à Profa. Dra. Sônia Reis pelo empenho em

me ajudar a encontrar um fio condutor para meus “devaneios literários” e a

Page 9: A poesia de Nicolás Guillén e a representação da identidade

todos os docentes desta Faculdade que direta ou indiretamente contribuíram

para o meu desenvolvimento acadêmico.

Outro campus desta Universidade que me permitiu alçar vôos mais altos

e seguros ao longo dos estudos de Pós-Graduação foi a Escola de Música da

UFRJ. Ainda que por um breve espaço de tempo, o período que passei imersa

nesse mundo novo chamado Etnomusicologia, sob supervisão atenta e

prestativa do Prof. Dr. Samuel Araújo, além dos cuidados e préstimos

viabilizados pelo querido Gilson Cabral, que só se tornaram possíveis graças à

fortuita acolhida concedida pelo Prof. Dr. Marcos Nogueira, foram fundamentais

para o amadurecimento de meus estudos.

Como não render graças àqueles que Deus pôs em meu caminho,

através de um laço de sangue, para guiarem meus passos nessa eterna utopia

que é viver? Muito obrigada vovó Zizinha, quem me obriga a ser feliz a cada

conversa; à minha mãe que dedica toda sua vida para fazer de mim um ser

humano digno; ao meu vô Antônio de quem eu herdei o talento de me

desmanchar em lágrimas; a minha tia Dora, fiel companheira, confidente e

comadre; a minha dezena de tios e às dúzias de primos que me fazem rir e

nunca perder essa mania de família, família... Sem deixar de incluir a família

que meu coração escolheu: Jose, vizinha e mãe nas horas apertadas e dinda

Marise, meu anjo e exemplo.

Agradeço agora a todos aqueles que me ajudaram a olhar, como bem

disse Eduardo Galeano em um de seus textos. Àqueles que apareceram como

professores e hoje são amigos especiais e “culpados” por tudo que eu produzir

ao longo do tempo. Meus sinceros agradecimentos a Célia Lúcia, minha leitora

e confidente incansável; a Fernando Pimenta, o temperinho da minha alegria;

a Kátia que sempre me incentivou com seu famoso: “você poderia ter feito

melhor” e a Angela Espíndola, quem me ensina desde o mesmo ângulo que

ocupo.

Hoje em dia quase ninguém mais guarda fotos 3x4. Amontoamos

arquivos jpeg em infindas pastas. No entanto, continuamos dizendo eu te amo,

seguimos fazendo muitos filmes e ao nos reencontrar ainda temos a mesma

beleza e fantasia de antes. Neste e em todos os dias que virão eu não poderia

Page 10: A poesia de Nicolás Guillén e a representação da identidade

dizer menos que eu te amo à Kennya Fandi, aos meus Diogos prediletos, ao

Bruninho e sua família linda, a Rafael Ferreira e bem... acho que para Debora

Medeiros eu teria de dizer ti voglio bene.

Obrigada aos bons amigos que nasceram pela fé, com os quais poderei

contar e cantar para sempre. Primeiramente ao Padre Diegues, responsável

direto pela minha formação moral e espiritual na adolescência. À musical

família Tostes, especialmente ao André; aos meus compadres Joyce e

Orlando; à Fabiana, Jéssica, Paloma, Ana, Rodrigo, Paula e Anderson por

estarem ao meu lado sempre. Sonhando com o céu, com o mar e com as

estrelas a brilhar...

E ainda um pouco distante de colocar um ponto final, começo o

parágrafo agradecendo a quem celebrou comigo aquele sol diferente no céu

visto da EBA, da Letras ou de qualquer cantinho mágico desta jornada

chamada graduação. Meu agradecimento a Nathalia Loureiro, sócia desde os

tempos de pré-vestibular; à Luana Damaso, desesperada amiga e aos vértices

Evelyn Lucena e Dani Veiga. A esta última devo a capacidade em ver no mais

simples acontecimento um potencial espetáculo de vida. Obrigada por estrelar

comigo essa odisséia chamada Letras.

À medida que crescem os parágrafos tenho a sensação de que essa

parte da dissertação vai estendendo cada vez mais suas fronteiras, assim

como a relação que construí com as pessoas a quem dirigirei meu “muito

obrigada”. À Vanessa Azevedo, com quem coleciono dezenas de

coincidências; a Gustavo Furtado, companheiro de viagem desde o primeiro

instante e ao quarteto fantástico do qual faço parte junto a Anastácia Cabo,

Giselle Pereira e Priscilla Romano. A esta primeira integrante do quarteto devo

a revisão desta dissertação e de outras tantas revisões acadêmicas ou não.

Assim como as inúmeras refeições, conversões e discussões sobre temas que

ultrapassam qualquer vã filosofia.

À Kelly Ferreira, minha amiga da vida inteira. Que chora o meu choro e

compartilha comigo seus sorrisos. Por vibrar a cada conquista minha como se

sua fosse e por ser a primeira a estar ao meu lado em momentos de queda.

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Aquela que participa da minha vida como se estivesse por perto o tempo todo

porque nunca vai deixar de estar junto de mim.

À Luísa Perissé, por ser mi amiga e por não me deixar sozinha nessa

tarefa tão solitária que é “mestrar”. Obrigada por ser companheira, revisora,

colega de trabalho. Por embarcar e me colocar em inúmeras enrascadas sob a

frase que sempre nos consola: “Calma, amiga, vai dar tempo... a gente

consegue.”. Por concorrer, mas nunca disputar comigo. Sei que sempre haverá

lugar pra nós duas e a que subir primeiro estará de mão estendida para

levantar a outra.

A Gabriel Poeys: o menino de sobrenome mais poético que já vi na vida.

Companhia presente e carinhosa que se pode ter em todos os momentos,

assuntos. Obrigada por me entender sem que eu precise falar. Por gostar de

mim sem precisar dizer em palavras. Por estar junto, perto, dentro. Por me

incluir na sua vida, por dividir comigo a lealdade de Pedro Carné e sua banda

amiga que nos aguanta el corazón.

E, finalmente, aos meus afilhados Andrey Ribeiro, Ramon Pereira e

Arthur Franco. No sorriso de vocês eu pude encontrar solução para os

momentos de cansaço, de desalento, de falta de criatividade. Sei que ainda

não entendem quase nada sobre a questão identitária cubana, mas são

especialistas em fazer da vida uma canção de melodia simples e ritmo

contagiante.

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Cantemos frente a los frescos siglos recién despiertos, bajo la estrella madura en la nocturna fragrancia y a

lo largo de todos los caminos abiertos en la distancia

Nicolás Guillén

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Sinopse

Análise crítica de poemas do escritor cubano Nicolás

Guillén. Abordagem da temática identitária e sua relação

com os aportes teóricos, da transculturação e da práxis

musical. Destaque para a correlação entre história e

literatura em Cuba na consolidação dos valores

nacionais.

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SUMARIO

PRÓLOGO............................................................................................15

INTRODUÇÃO......................................................................................16

I – CONTEXTO HISTÓRICO E CULTURAL CUBANO........................21

1- A influência das décimas no fazer poético em Cuba.............................23

2- Cuba e suas independências ao longo do Século XX........................28

II – UM OLHAR SOBRE A PRÁXIS MUSICAL E POÉTICA EM VERSOS

DE NICOLÁS GUILLÉN.........................................................................41

1 – As “Rumbas” e o desejo na construção do olhar poético......................46

2 – Um dueto entre música popular em Cuba.............................................52

III – O CONTRAPUNTEO DE GUILLÉN NA TESSITURA SIMBÓLICA

DA IDENTIDADE ANTILHANA..................................................................59

1- Transculturação: história e ampliação de um conceito...........................61

2 - Hispanidade imaginada: Guillén, tecelão de identidades......................70

2.1 - Revolução cubana: do literal ao literário............................73

2.2 - “ESPAÑA”: la imagen del caos…………………………..…78

CONCLUSÃO…………………………………………………………….….94

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS......................................................96

ANEXO

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15

Prólogo

Ao iniciar os estudos na área das Literaturas Hispânicas, no ano de

2005, pude vislumbrar a rica diversidade do universo cubano e, desde então,

só aumentou o meu interesse em conhecer cada vez mais essa apaixonante

forma de expressar a realidade de um povo. Durante os dois anos de Iniciação

Científica, sob orientação da Profa. Dra Mariluci Guberman, pude transformar

esta afinidade em objeto de estudo. Ao concluir minha Graduação na

Faculdade de Letras da UFRJ não tive dúvidas ao escolher o caminho a seguir

no Curso de Mestrado.

A partir do 1°semestre de 2009 pude prosseguir oficialmente como

aluna e bolsista da Capes no Programa de Pós Graduação em Letras

Neolatinas da UFRJ. Durante o primeiro ano de curso pude amadurecer

minhas teorias e repensar em todo o processo que desenvolvi ao longo dos

anos de Iniciação Científica.

Já no segundo ano, especificamente, no primeiro semestre do ano de

2010, vivenciei um período deveras produtivo para o meu desenvolvimento

acadêmico. Dando continuidade aos estudos sobre o sistema histórico-literário

caribenho, minhas pesquisas avançaram dentro e fora do campo de Letras.

Graças à amplitude vislumbrada pelo Programa de Letras Neolatinas,

prossegui com a coleta e tratamento de dados na Escola Nacional de Música

UFRJ, na biblioteca da Faculdade de Letras da UFRJ e na biblioteca central da

UNIRIO, através das quais pude ter acesso a uma bibliografia significativa que

foi importante na consolidação do meu corpus teórico, bem como na definição

dos pontos a serem trabalhados ao longo de minha dissertação.

Todo o trabalho dos professores deste Programa, sem esquecer o

extenso apoio bibliográfico e intelectual fornecido por minha orientadora desde

os tempos de Iniciação Científica, se configurou como um alicerce que me

permitiu galgar passos mais firmes. Deu-me o respaldo necessário para buscar

novas leituras sobre os fenômenos sociais por mim estudados e produzir a

presente dissertação

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Introdução

Cuba: um extenso lagarto verde com olhos de pedra e água, que

abriga uma nação marcada por anos de lutas e conquistas. Seus olhos podem

ver imensas tempestades de povos e costumes: partir, chegar, nascer e

sempre resistir. É esse o principal enfoque da poesia de Nicolás Guillén que,

através desse ir e vir, viver e resistir nos permite sair e conhecer outras

culturas, em uma troca de experiências e valores enriquecedores.

No que se refere ao cenário literário cubano, José María Heredia

(1803-1839), José Martí (1853-1895) e Nicolás Guillén (1902-1989) são

considerados como os principais autores responsáveis por traduzir

literariamente as etapas do processo de formação do povo cubano.

O ano de nascimento de Nicolás Guillén foi marcado pela instituição da

República de Cuba. O poeta cubano pertence à geração que sofreu com maior

intensidade a frustração da independência dentro das condições semi-coloniais

impostas pelo imperialismo norte-americano. Ele é fruto da união entre o

jornalista Nicolás Guillén Urra, de origem branca, e de Argelia Batista, filha de

escravos. O pai do poeta faleceu vítima da repressão a uma revolta política,

fato que abalou radicalmente a situação econômica da família Guillén.

Guillén começou a publicar seus escritos por volta de 1917 com

influências modernistas. Nota–se também em sua obra que o poeta era leitor

assíduo dos clássicos espanhóis como Lope de Vega, Miguel de Cervantes,

Quevedo, Luis de Góngora, com relevantes influências de Gustavo Bécquer. A

obra de Guillén se enraíza na poesia patriótica de Heredia, que foi precursor do

processo da Revolução Cubana, e que, através de Martí, se propaga com seus

escritos o clamor do povo em luta pela independência.

O processo de ruptura com a estética modernista pode ser observado a

partir de sua composição “Al margen de mis libros de estudio”. Depois de um

longo tempo sem escrever, Guillén retoma o hábito como ofício inspirado pelo

movimento vanguardista – um grupo composto por artistas e intelectuais

inconformados com as normas acadêmicas e a retórica dos valores

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convencionais. É esse o acontecimento crucial para impulsionar a força

criadora do poeta que teve seu ponto de partida nas asas do Cisne modernista

do nicaraguense Rubén Darío.

A poesia de Nicolás Guillén percorre e faz uso de todos os explosivos e

encantadores ingredientes desse mundo latino-americano, caribenho, negro e

cubano. É como um poeta-jogral que consegue, em sua primeira etapa

madura, desenvolver uma estética pessoal e, através dela, abordar toda a

memória dos rituais da festa pagã, da resistência do índio e do crioulo.

Fortemente ligado às suas origens, plasma em sua poesia todas as imagens

contempladas por seus olhos ao longo de sua vida. Tem- se como resultado

uma profícua mescla de sonoridade caribenha, pintada de negro e com um

toque de “ron” e “melaza”.

Cultiva o interesse em descobrir, no cotidiano de seu povo, cenas

corriqueiras que contam muito mais que seus costumes, pois são descritas

com o deslumbre, o respeito e a ironia de quem fez parte desse universo. O

poeta, além de ser o resultado da rica profusão de diferentes etnias e culturas,

é também testemunha ocular dos momentos mais comoventes de seu povo e,

em alguns casos, de outras comunidades. Discorramos agora sobre algumas

de suas obras.

A publicação de Sóngoro Cosongo aconteceu após um ano e meio da

chegada de Motivos de son. Ambos os livros representavam, segundo Augier

(1984:127),

[...] uma onda sonora cuja vibração havia de perdurar indefinidamente, sobretudo ao renovar sua ressonância com a inclusão de los Motivos de son no novo livro [Sóngoro Cosongo], cuja segunda parte veio a integrar como um complemento lógico.

Guillén tomou o título Sóngoro Cosongo do estribilho de um de seus poemas

publicados em livro anterior. Dentre as inúmeras composições poéticas, pode-

se destacar “Secuestro de la mujer de Antonio”, clara e confessadamente

inspirada em um “son” da época, obra de Miguel Matamoros, cuja letra estava

já na época incorporada ao cancioneiro popular. Sobre esta composição de

Guillén, Augier (1984:132) afirma:

Page 19: A poesia de Nicolás Guillén e a representação da identidade

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Este personagem foi tomado por Guillén para um romance de estilo novo, heterodoxo, crioulo, onde a metáfora relampejante forjada com elementos do ambiente nativo se combina com o ritmo peculiar do bongó que «se calentó» expresso à maneira já inconfundível de Guillén.

Na composição poética “Rumba”, Nicolás Guillén exalta os valores negros,

destacando a rumba como uma das possíveis formas de representar a

identidade. Uma tentativa de combater o preconceito pelas vias poéticas.

Em West Indies, que desde o título satiriza a realidade de dependência

econômico-politica cubana, sedimenta o seu talento ao abordar o mestiço. Em

“Balada de los dos abuelos”, Guillén exalta a importância de sua origem

mestiça sem omitir as dores de seus antepassados nem justificar o sofrimento

causado pelos conquistadores. Muito mais que preconizar o mundo e as

crenças de um “abuelo blanco” com sua “gorguera” ou de um “abuelo negro” de

“torso pétreo”, Guillén consegue, através de suas composições, salientar o

resultado desse processo. Apresenta-se como elemento que representa a

fusão dessas duas etnias. O ritmo do Son cubano, que se intensifica em seu

livro El son entero, pode ser confirmado como característica intrínseca do fazer

poético do autor.

Em “Tengo” é possível perceber o envolvente jogo fonomelódico1 de

um eu-lírico que dialoga absorto em uma atmosfera revolucionária. Porém

suas composições não se limitam apenas aos problemas e particularidades

inerentes à Cuba, mas sim aos acontecimentos de diversas partes do mundo.

Por onde passa, Nicolas Guillén registra em seus versos o que seus olhos

puderam testemunhar.

Como exemplo do que foi mencionado no parágrafo anterior temos o

livro Cantos para soldados que foi publicado no México, quando o autor

participou de um congresso de escritores, convidado pela Liga de Escritores e

Artistas Revolucionários (LEAR). De lá seguiu para a Espanha, com o objetivo

de participar do II Congresso Internacional de Escritores Antifascistas en

Defensa de la Cultura.

1 Termo utilizado por Mariluci Guberman em “Poder de libertad en Guillén.” El mar y la

Montaña, Guantánamo, 1989

Page 20: A poesia de Nicolás Guillén e a representação da identidade

19

Uma de suas composições, publicadas nessa mesma época, possui

como tema a Guerra Civil Espanhola e se intitula “España, Poema en cuatro

angustias y una esperanza”. Os valores estéticos desse poema, que expressa

uma sincera solidariedade do povo cubano com a causa defendida pelos

republicanos espanhóis perante o avanço fascista, superam a mera

representação literal dos fatos.

Pretende-se, portanto, com a presente pesquisa, estudar a

representação da identidade nacional de um povo através do diálogo entre

composições poéticas do autor e música popular, bem como a repercussão das

heranças africana e européia na sedimentação de conceitos identitários das

Antilhas, com enfoque particular para Cuba, através da análise histórica e

literária de poesias selecionadas do autor Nicolás Guillén.

Para tanto, parte-se das influências artísticas anteriores vivenciadas,

juntamente com a história de Cuba para iniciar os estudos sobre o contexto

cultural e literário. Busca-se compreender os processos evolutivos do cenário

cultural, considerando, portanto, os artistas que antecederam o momento vivido

por Nicolás Guillén.

As análises literárias embasam-se nas acepções publicadas por Kevin

Lynch em A imagem da cidade (1982) e Justo Villafañe em Introducción a la

teoria de la imagen (2002). Outro aporte teórico relevante encontra-se em

Walter Benjamin (1994) e seu conceito de memória: uma busca do tempo

passado no presente. O estudo da identidade é o respaldo teórico que permite

ratificar os elementos vislumbrados no contexto histórico. Para este fim, foram

empregadas as concepções de Zygmunt Bauman (2005) e Benedict Anderson

(2008) sobre identidade, discutindo-se também a ideia de tranculturação em

Contrapunteo cubano del tabaco y del azúcar (2002) de Fernando Ortiz e em

Transculturación narrativa en América Latina (1987) de Angel Rama, por

entender a importância que este conceito possui na construção da ideia da

identidade cubana .

Toda essa série de elementos que compõem o universo poético de

Guillén é embalada pelo “son”. E para tratar das questões pertinentes ao

universo musical cubano e suas influências, temos como fundamentos teóricos

Page 21: A poesia de Nicolás Guillén e a representação da identidade

20

principais os estudos de Alejo Carpentier, em seu livro La música em Cuba

(1998), e no escrito por Fernando Ortiz, La africanía de la música folklórica de

Cuba (1950) e também no de Mareia Quintero Rivera, A cor e o som da nação:

a idéia de mestiçagem na crítica musical do Caribe hispânico e no Brasil

(1928/48) (2000).

Page 22: A poesia de Nicolás Guillén e a representação da identidade

21

I – CONTEXTO HISTÓRICO E CULTURAL CUBANO

A cada una de las etapas de la evolución histórica

de Cuba corresponde exactamente cada uno

de los períodos de nuestra poesía.

Ángel Augier

A História se configura como memória viva que define o momento

presente. É um patrimônio humano através do qual adquirimos o conhecimento

e a compreensão necessários para tornar viável uma mudança na realidade

que nos circunda.

As obras literárias são, portanto, veículos atemporais nos quais a história

de um indivíduo ou nação se perpetua na memória como História de um povo.

São elas o elo que permite a disseminação de elementos-chave na

compreensão do modus vivendi de uma sociedade num tempo e espaço

definidos.

Como bem discorre o escritor e historiador Angel Augier, em sua obra

Nicolás Guillén: estúdio biográfico-crítico, o grito romântico em Cuba coincidiu

com os primeiros lampejos da consciência nacional, expressa ainda nos

primórdios do século XIX através dos versos de Jose Maria Heredia. O mesmo

ocorreu em tempos de exacerbada agitação pela independência da ilha no fim

desse século, momento em que se pode destacar a figura de José Martí como

um dos principais nomes que encabeçariam a renovação literária motivada

pelos ideais do modernismo hispano-americano.

Os escritos de Nicolás Guillén, assim como os dos integrantes do grupo

Minorista, são um reflexo literário da urgência literal em conquistar a plena

independência da ilha. Coincidem com um momento em que todos os cidadãos

cubanos se envolvem na causa revolucionária com o fim de extirpar problemas,

alguns deles, sinalizados por Guillén em seu primeiro artigo, publicado em

1929 no Diário de la Marina sob o título “El camino de Harlem” no qual

interroga:

Page 23: A poesia de Nicolás Guillén e a representação da identidade

22

¿Cuáles son los problemas de La raza de color, hoy, en la República de Cuba? ¿Es que después de dos grandes revoluciones contra España y después de la instauración de una patria libre, en cuya Constitución la igualdad entre todos los ciudadanos es dogma primordial, puede haber una cantidad de cubanos, por pequeña que ella sea, que se sienta diferenciada por ella?

O próprio poeta responde na sequência do texto encontrado em Augier (1984: 89),

La respuesta es grave y, sin embargo, debe darse. Sí, señores, todavía tiene problemas la raza de color en Cuba y todavía necesita luchar mucho para resolverlos. Todavía la igualdad no alcanza a todos los sectores de la vida republicana, y aún hay mucha trinchera prematuramente abandonada, donde es preciso seguir combatiendo contra prejuicios innumerables.

Ao longo do século XX, com o intuito de compreender os processos

evolutivos do cenário cultural através dos fatos históricos que podem ser

vislumbrados em dado momento, serão abordadas, nesta pesquisa, as

décimas cubanas como veículo transmissor dos valores nacionais de 1898 a

1925 e da história de Cuba. Para tanto será de fundamental importância os

estudos de Bonifacini (1987), Portuondo (1985) Ibarra (1994) e Bethell (1998).

Page 24: A poesia de Nicolás Guillén e a representação da identidade

23

1- A influência das décimas no fazer poético em Cuba

Con los pobres de la tierra

quiero yo mi suerte echar

el arroyo de la sierra

me complace más que el mar

José Martí

Pode-se considerar a décima, como a estrofe nacional dos cubanos. E

esta informação está completamente decantada nos meios literários e sociais

não só da América Latina, mas também em território espanhol. Esse modo de

expressão artística nasceu em território espanhol, graças a Vicente Espinel no

fim do século XVI e foi trazida, juntamente com o romance, às terras

americanas com a colonização.

Converteu-se em uma das expressões mais características da poesia

popular, sendo utilizada até os dias atuais por poetas e nas relações

interpessoais, quando se pretende expressar algum sentimento através de

versos. Para delinear um perfil sócio-cultural do cubano no século XX, cabe

destacar que este, como bem discorre Cíntio Vitier, pouco se identificou com o

romance tipicamente espanhol, porque o que o define e difere dos espanhóis

seria

[...] uma sensibilidade atenta somente ao fresco presente como sucessão de instantes, como perene improvisação efêmera. O romance gravita, ressoa, vive de seu próprio eco, flui em um rio profundo.

(Cintio Vitier In: Ibarra 1994: 195)

Era preciso consagrar uma expressão de espírito breve e vigoroso como

o canto do galo. Portanto, as décimas se apresentaram como modelo ideal

para retratar o momento vivenciado. Sobre o assunto ainda podemos afirmar,

em conformidade com os estudos do professor Boris Lukin que,

Diferente do poema épico, as obras líricas tinham uma interpretação massiva, o que oferecia mais possibilidades para adaptar os textos a novos sentimentos e conexões. Não há em Cuba a tendência dos

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24

romances, nos quais se vislumbra o pintar de gestas do passado, fundamento do romanceiro espanhol.

(Boris Lukin in: Ibarra 1994: 194)

Ainda sobre as características definitórias da décima cubana, vale

mencionar primeiramente que esta responde, em todos os termos, aos

acontecimentos vividos no momento presente e, por conseguinte, é um

fenômeno explosivo de curta duração. Em seguida, pode-se observar que há

nela maior possibilidade de interpretação quando se pretende realizar uma

análise histórica e sociológica do cubano.

A décima possui uma estrutura redonda: o primeiro verso e o décimo de

alguma maneira se reencontram. O improviso é marcante e se aproxima ao

barroco, pois se abre como uma espiral em direção à luz, à semelhança

arquitetura barroca. No final do século XVII e na primeira metade do século

XX, apareceu como expressão genuína, atrelada à terra e à natureza cotidiana

dos cubanos. Não existia nada que a vinculasse às crônicas oficiais da

burocracia colonial o que facilitou sua disseminação.

A clara preferência por essa forma de expressão se configura como uma

nítida rejeição a uma história oficial que não cristalizava a realidade de um

povo que abrangesse todas as camadas sociais existentes. Manteve-se e se

nutre, até os dias atuais, da necessidade de estabelecer comunicação entre as

diversas regiões que compunham as camadas populares.

Na primeira metade do século XIX, se observa uma marcada ausência

dos temas políticos nas manifestações artísticas do gênero. Já na segunda

metade do mesmo século, tem-se um aumento na discussão dos problemas

políticos devido às guerras em prol da independência da Ilha.

Com isto, se pode elencar uma série de trovadores regionais que

representaram esse momento em Cuba através de suas décimas: Vate de

Canasí, Senén e Nemesio Cabrera, procedentes de Pinar Del Rio; Verbena de

Güirarde Melena; Tejera Trujillo (Gareo) de Guines; San Fancón de Lajas;

Fórun del sol de Cienfuegos; Tocororo de Palmera; Miguel Puertas Salgado de

Placetas; José Limedoux de Sagua; Ceferino Tirado de Camagüey.

Page 26: A poesia de Nicolás Guillén e a representação da identidade

25

Em princípios do século XX, Samuel Feijóo coletou e publicou no

semanário popular humorístico titulado La política cómica algo em torno de 200

décimas. Dentre elas, 59 se referiam diretamente a temas políticos o que

confirma a tendência referida em parágrafos anteriores. O diretor do semanário

cubano na época, que até princípios do século concordava com uma política

conservadora, passou a dar espaço às publicações provenientes do interior da

Ilha. Atitude que tanto pode ser interpretada como uma possível mudança de

posicionamento quanto como o anseio de aumentar as vendas do semanário.

O contexto histórico-político fervilhava nas décimas camponesas. Das

publicadas em La política cómica entre 1920 e 1923 encontraram 60

referências contra a política de Menocal e 16 contra Zayas. A crítica mais dura

se fundamentava no apoio que os políticos demonstravam às determinações

norte-americanas. Dessa forma é possível explicar as 83 referências contra as

classes dominantes que oprimiam as camadas mais humildes e as 84

referências dirigidas contra o vizinho do norte. Estas últimas se apresentavam

como uma resposta às ameaças de união dos territórios; à Emenda Platt e aos

empréstimos que lesavam a soberania nacional, fazendo crescer a urgência

em obter a plena soberania em Cuba.

Para que a explanação iniciada no início do presente estudo tenha uma

consistência efetiva, sigamos com a apresentação de algumas décimas da

época para ilustrar as inquietudes do povo cubano.

I ) “La tonada Del dia” que faz uma alusão às condições vividas no plantio de

cana:

Los meses así han pasado/ desde mayo hasta noviembre/ y éntrase más en diciembre/ y todavía no han pagado. / De ese modo han engañado/ al campesino cañero/ y aunque saben que el bracero/ de su miseria está muriendo/ siempre le salen diciendo: / dentro de poco hay dinero.

(In: Ibarra 1994:205)

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26

II) “Explotando a Liborio” em uma referência clara a exploração das industrias

norte americanas em Cuba:

Vienen los norteamericanos/ trayéndo aqui muchos reales/ para comprar los centrales que les venden los cubanos/ Ellos nos llaman hermanos/ desde que hubo intervención, / y ahora encuentran la ocasión/ de aumentar su capital/ pagando poco jornal/ en su gran explotación.

(In: Ibarra 1994:206)

III) “A Cuba” na qual se apresentam as diferenças entre as classes sociais

Ay, cuanta miseria enseñanza encierra/ ese humilde hogar cubano/ los que con callosa mano/ llenan de frutos esa tierra./ Los que con la suerte en guerra/ nunca a la labor se hacían/brindan al comercio espacio,/ viven en bohíos ruinosos/ mientras dan al poderoso/ modo de habitar palacios.

(In: Ibarra 1994:206-207)

IV) “Peñon de las cotorras” que denota o sentimento aguerrido em mudar a

situação de dependência.

Liborio se halla arma en brazo/ se encuentra ya prevenido/ el pájaro entrometido/ no le daría al aletazo. / De su tierra ese pedazo/ que se lo quiten no deja/ el águila grande y vieja/ tendrá fuerza, sí señor/ pero a Liborio el valor/ le sobra y eso le empareja.

(In: Ibarra 1994:210)

As décimas aqui citadas constituem um singelo exemplo que figura em uma

série de composições que aludem o modo de vida do cubano. Nelas se

perfilam uma atitude de intensa emoção. Transparecem a dor, a amargura o

inconformismo diante da situação vivida em Cuba. São, segundo Jorge Ibarra

(1994:208)

um reflexo fiel dos sentimentos dominantes na massa rural, ao passo que contribuem para fixar um conhecimento exato da natureza do conflito entre explorados e exploradores, necessário para uma tomada de consciência de si.

Sua linguagem espontânea e atenta abarcou a crise política instalada

em Cuba no primeiro quarto do século XX. Nestes anos, poucos depositavam

suas esperanças nos homens e instituições da república. Nas décimas, o mal

Page 28: A poesia de Nicolás Guillén e a representação da identidade

27

estar e a irritação encontravam sua máxima ressonância superando

efetivamente os meios de comunicação aliados a burguesia.

Tiveram, portanto, um caráter patriótico e popular, pois congregavam a

todos ao entoar os anseios e aspirações do povo. Ainda hoje encontram

espaço no cenário cubano, já que o intenso vínculo entre oralidade e escrita

permanece vivo nas composições cubanas. Como comprovaremos ao

relacionar as considerações dos estudos que se seguem às análises das

composições poéticas de Guillén.

Page 29: A poesia de Nicolás Guillén e a representação da identidade

28

2- Cuba e suas independências ao longo do Século XX

Libertad es el derecho que todo hombre tiene a ser honrado, y a pensar y

a hablar sin hipocresía José Martí

A primeira metade do século XX se caracterizou como um período de

tensões entre Cuba e algumas nações que pretendiam obter o controle da Ilha.

O combate travado entre Espanha e Cuba fez com que a primeira ficasse à

beira da ruína. No entanto, o triunfo da campanha militar cubana não alcançou

os resultados esperados na esfera política de Cuba. Acabou facilitando a

intervenção dos Estados Unidos no conflito e, consequentemente, fortaleceu o

poder de atuação do leão de duas cabeças 2 em solo cubano.

Sobre a participação dos EUA no “novo” processo de dependência de

Cuba, vale destacar os escritos de Leslie Bethell (1998:151), catedrático

emérito de história da América Latina na Universidade de Londres, quando

afirma que:

A intervenção armada conduziu a ocupação militar e ao concluí-la, em maio de 1902, os Estados Unidos reduzira a independência de Cuba a uma simples fórmula. A Emenda Platt negava a recém-nascida república: sinalizava limites para a dívida nacional e sancionava a intervenção estadunidense para a “manutenção de um governo idôneo, para a proteção da vida, a prosperidade e a liberdade individual”.

O tratado de reciprocidade não só atrelava o açúcar, principal produto cubano

de exportação, a um único mercado como também abria setores-chave da

economia cubana ao controle estrangeiro, majoritariamente, o estadunidense.

Amparadas pelo tratado de reciprocidade, as forças políticas dos

Estados Unidos puderam substanciar a dependência cubana do açúcar e, em

menor escala, do tabaco. Além disso, obtinha-se também como resultado um

retardo no desenvolvimento da economia na Ilha, já que o mercado cubano se

2 Expressão utilizada por José Marti no manifesto “Nuestra América”. In: MARTÍ, José. Nuestra América.

Caracas: Biblioteca Ayacucho, 2005.

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29

encontrava sufocado diante das imposições estrangeiras. Como se vê

ratificado nas linhas abaixo:

Antes que transcorresse uma década desde a guerra de independência, os Estados Unidos já eram onipresentes em Cuba. Dominavam totalmente a economia, penetravam por completo no tecido social e exerciam o controle pleno do processo político. A localização desta presença deu forma ao caráter essencial da república em seus primeiros tempos. (Bethell 1998: 152)

Como grande parte da riqueza nacional passou rapidamente a mãos

estrangeiras, os cargos políticos foram distribuídos entre as elites. Esta era a

única atividade que se caracterizara por ser desempenhada completamente por

membros da sociedade cubana. Tornou-se o principal meio de vida das

camadas mais privilegiadas em Cuba. Nesses moldes, o processo eleitoral

passou a ser um espaço de substituição cíclica e previsível. A preservação

desse sistema era tão importante que a sucessão presidencial foi o estopim de

protestos armados em 1906. Primeiro na reeleição de Tomás Estrada Palma e

no ano seguinte contra o candidato Márcio García Menocal.

O intento de alterar a ordem estabelecida na ilha demorou a findar. Anos

mais tarde, os protestos contra a reeleição de Gerardo Machado tomou

proporções bem maiores que os movimentos organizados em eleições

anteriores. O conflito saiu dos tradicionais partidos Conservador e Popular e se

concentrou também no partido Liberal. Porém, a oposição ao governo de

Machado não se originou fundamentalmente nos partidos arraigados. Novas

formas começaram a dar sinal de vida na sociedade.

Na década de 20 a primeira geração de cubanos nascidos sob a

república, dentre os quais figurava Nicolas Guillén, já alcançara a maturidade

política e conhecia as deficiências do sistema republicano. A desilusão da

nação cubana encontrou alento na troca de ideias, em novas correntes

literárias e artísticas. Sobre esta última informação, cabe destacar a citação de

Angel Augier, renomado historiador e crítico cubano, sobre a participação de

Guillén no processo de transformação político-social em Cuba:

Page 31: A poesia de Nicolás Guillén e a representação da identidade

30

Nos domínios da arte e da literatura, o espírito de protesto se manifestou com o Grupo Minorista, formado em 1924, por, como definira um de seus animadores, “intelectuais jovens de esquerda” que se pronunciaram, desde os primeiros momentos, contra os falsos valores e por uma radical e completa renovação formal e ideológica, nas letras e nas artes, que sem esquecer estes propósitos [...] se interessava pelos problemas políticos e sociais de Cuba, da América e da humanidade, e por eles trabalhavam em sentido radical e progressista. (In: Bonifacini:1987: 26-27)

O Vanguardismo, denominação genérica das novas formas de

expressão artística em Cuba, surgiu apoiado nas tendências europeias através

dos intelectuais atuantes do Grupo Minorista. Os principais veículos de

circulação de ideias e princípios dessa geração revolucionária foram a Revista

de Avance (1927-1930) e o suplemento literário dominical do Diário de la

Marina. Não só os intelectuais atuaram na transformação em Cuba. Junto a

eles, estudantes e trabalhadores levaram o descontentamento além dos limites

da tradicional política entre partidos. A geração republicana objetivava

regenerar por completo a república, o que a conduziu a levar o embate político

às vias da reforma e da revolução.

Como resposta a essa mudança que se verificava na sociedade cubana,

as elites políticas tradicionais formaram uma aliança para promover a reeleição

de Gerardo Machado. Esta conjunção de forças recebeu o nome de

Cooperativismo e fez cair por terra a aparente independência entre os partidos,

assim como desmitificou a concorrência entre eles. Ainda em 1927, ano da

reeleição, Machado conseguiu que o Congresso aprovasse uma resolução que

estendia o mandato presidencial. Assim sendo, obteve sua reeleição por um

período de seis anos.

Com este cenário, intensificou-se em Cuba o enfrentamento político

gerado pelo conflito social das correntes de pensamento. A crise mundial

contribuiu seriamente para o aprofundamento do embate, levando-o às vias da

ação revolucionária.

Em meados da década de 30, as condições se agravaram ainda mais

quando os Estados Unidos implantaram uma medida protecionista, a tarifa

Hawley-Smoot, que incrementou direitos na importação correspondente ao

açúcar cubano. Atitude que levou os produtores a rebaixar salários, demitir

trabalhadores, reduzindo sua produção. Durante o governo de Gerardo

Page 32: A poesia de Nicolás Guillén e a representação da identidade

31

Machado também foram feitas drásticas reduções salariais a outros setores

das camadas sociais, excluindo-se apenas as forças armadas. Se por um lado,

as condições econômicas da ilha pioravam; por outro lado crescia o

ressentimento de uma população que ansiava derrubar um sistema com a

derrocada de um presidente.

Por volta de 1933, líderes de oposição que se encontravam exilados

organizaram uma junta revolucionária em Nova York com o fim de convocar

uma revolução nacional para expulsar Machado do poder. Toda essa

efervescência político-econômica em Cuba preocupava aos Estados Unidos

que via escapar de suas mãos o domínio sobre a economia cubana.

O General Gerardo Machado, então presidente, já não era útil aos

interesses das elites e menos ainda aos estrangeiros. A ordem e a

estabilidade, que lhe garantiu o apoio de Washington, proporcionadas em seu

primeiro mandato já não existiam. De tal forma, os Estados Unidos deixaram

de apoiá-lo iniciando um dissabor que abalaria o cenário político-econômico de

ambas as nações. Após muitas manifestações o exército obteve, em agosto de

1935, a retirada de Machado. Iniciou-se então uma nova discussão: quem seria

o sucessor adequado. Porém, esta questão foi resolvida de forma provisional.

O estadista Carlos Manuel de Céspedes foi nomeado para o cargo após

um breve tempo de mandato assumido por Alberto Herrera, Secretário de

guerra e ex-chefe do exército. Céspedes era tido como um político

inexpressivo, inofensivo já que não estava filiado a nenhum partido ou

tendência política. Seu governo foi marcado pela sombra dos efeitos da

administração de Gerardo Machado e a crise econômica e social instauradas

na ilha não se mostrou menos intensa durante seu mandato.

Os movimentos que impulsionavam uma mudança governamental

efetiva consideraram insatisfatória a solução Céspedes. Muitos deles, como as

organizações estudantis e o Partido Comunista passaram muito tempo lutando

pela revolução e isto lhes impedia de se conformarem com um golpe de

Page 33: A poesia de Nicolás Guillén e a representação da identidade

32

palácio3 como resultado de seus esforços políticos. Seu tempo de governo

terminou de forma inesperada.

Militares do acampamento de Columbia, que se reuniram em La Habana

para tratar de suas reivindicações, ao não conseguir êxito em seus propósitos,

conseguiram apoio de grupos anti-governamentais e, juntos, articularam um

golpe de estado que seria conhecido alguns anos depois como revuelta de los

sargentos. Sobre esse momento, vale destacar o comentário de Bethell (1998:

161) sobre a revolta dos sargentos:

Foi uma coalizão de conveniência, não sem seus defeitos, porém ofereceu a absolvição das tropas rebeldes e poder político aos civis dissidentes. Deste consenso civil-militar provisional saiu uma junta revolucionária composta por Ramón Grau San Martín, Porfírio Franca, Guillermo Portela, José Irizarri e Sérgio Carbó.

O traslado da junta revolucionária do quartel do acampamento de

Columbia ao palácio presidencial serviu para que a autoridade em Cuba

mudasse de lugar. Na manhã do dia 5 de setembro, um manifesto político

anunciou o início de um novo Governo Revolucionário Provisional,

proclamando também a afirmação da soberania nacional, a instauração de uma

democracia moderna e de um movimento de criação de uma nova Cuba.

Este governo de caráter provisional encontrou em Summer Welles,

embaixador dos Estados Unidos, seu maior adversário. Os novos moldes de

governo em Cuba destituíam toda a autoridade conservadora defendida por

Welles que prontamente recomendou uma intervenção militar norte americana

em Cuba com o fim de devolver o poder a Céspedes. No entanto, não obteve

sucesso.

Ainda no mês de setembro a junta se dissolveu para dar lugar a uma

forma de governo mais tradicional sob o controle de Ramón Grau San Martín.

Foi nomeado como chefe do exército, Fulgencio Batista, para evitar qualquer

3 É uma espécie de golpe pelo qual um governante ou setor do governo tem sido movido por forças

pertencentes ao próprio governo, sem seguir as normas legais estabelecidas para a substituição de funcionários. É muito comum a existência de golpes no palácio ditaduras decorrentes de golpes.

Page 34: A poesia de Nicolás Guillén e a representação da identidade

33

ruptura na ordem pública. A respeito deste momento político em cuba se faz

esclarecedor introduzir a citação de Bethell (1998: 162) quando enuncia que:

Sob o slogan de “Cuba para os cubanos”, o novo governo começou a promulgar leis reformistas em ritmo vertiginoso comprometendo-se com a reconstrução econômica, a mudança social e a reorganização política. O novo governo revogou a Emenda Platt e dissolveu todos os partidos machadistas. As taxas de serviço público foram reduzidas em 40% e as taxas de juros também sofreram redução. O direito de voto foi concedido às mulheres e também autonomia para a universidade. Foi instituído o salário mínimo para os cortadores de cana, [...] a jornada de oito horas, indenizações aos trabalhadores, a criação de um ministério do trabalho e um decreto sobre a nacionalização do trabalho que dispunha que 50% de todos os empregados da indústria, do comércio e da agricultura fossem cidadãos cubanos.

O apoio militar ao governo provisional sempre se caracterizou mais pelo

interesse que por solidariedade à causa revolucionária. O militar Fulgencio

Batista era apenas um dos quatrocentos suboficiais promovidos recentemente

cuja graduação dependia de que em Havana houvesse uma solução política

compatível com a nova hierarquia do exército. Sabendo disso, Welles explorou

de forma hábil a fragilidade dessa aliança para desestruturá-la concentrando

seu discurso em Batista.

Em dezembro, Summer Welles anunciou que Batista buscava por uma

mudança efetiva no governo devido, entre outros fatores, ao temor de que

houvesse uma nova intervenção dos Estados Unidos. Retirou o apoio de seu

exército a Grau e apoiou Carlos Mendieta – ato que foi legitimado pelos

Estados Unidos cinco dias após a ação de Batista. No entanto, as forças de

mudança liberadas durante o machadado não minguaram com o

desaparecimento do governo de Grau, pelo contrário, encontraram novas

formas de expressão. Entre 1934 e 1935 houve mais de cem greves em toda

ilha. Dentre as inúmeras greves ocorridas no período, destaquemos a greve

geral de 1935.

Foi o último golpe revolucionário da geração republicana. Fracassou em

poucos dias, porém seus efeitos perduraram até o fim da década. A severidade

com que foi reprimida acarretou em desacordos na coalizão presente no poder

levando a sua dissolução. Dessa forma, a greve alcança o efeito desejado,

Page 35: A poesia de Nicolás Guillén e a representação da identidade

34

porém não consegue cumprir seu objetivo já que Batista e as forças armadas

acabam preenchendo o vazio político deixado com a saída de Mendieta.

Fulgencio Batista passou a ser a força política mais importante em Cuba.

Seu prestígio aumentou durante toda a década de 30 à medida que foi

restaurando a ordem e a estabilidade. Os grupos revolucionários, diante dos

conflitos vivenciados, se encontravam desarticulados. O historiador Leslie

Bethell (1998: 166) explica o êxito do governo de Batista quando descreve que

Não cabem dúvidas que Batista transformou o exército cubano em um eficaz meio de repressão. Ao mesmo tempo, porém, os líderes militares se entregaram aos negócios ilícitos e a corrupção em uma escala desconhecida em Cuba. [...] Comprometeu as forças armadas com uma ampla série de programas sociais, começando em 1937 com a inauguração de escolas cívico-militares, nas quais sargentos atuavam como professores nas zonas rurais. Estas missões educativas cujo fim era difundir informação referente à agricultura, higiene e a nutrição entre as comunidades rurais foram o início de uma rudimentar rede de educação no interior. O exército tinha mil escolas onde durante o dia se educavam as crianças e à noite os adultos. No fim da década de 30 o exército criara uma extensa burocracia militar cuja tarefa era a de administrar programas sociais

As condições econômicas melhoraram ao longo dos anos 30. O açúcar cubano

recuperou pouco a pouco uma maior participação no mercado estadunidense,

contudo a recuperação econômica de Cuba interna e externamente teve seu

custo.

A Ilha obteve, graças ao tratado de 1934, um mercado assegurado para

suas exportações agrícolas em troca de reduções tarifárias para uma grande

variedade de produtos e a redução de impostos internos sobre produtos

estadunidenses. Os Estados Unidos fizeram concessões que abarcaram trinta

e cinco artigos do tratado, enquanto as feitas por Cuba afetaram a

quatrocentos, vinculando a ilha, uma vez mais, ao país do leão de duas

cabeças.

O fim da crise econômica e o retorno da estabilidade em Cuba, além do

clima de aparente concórdia entre as forças políticas da ilha permitiram a

discussão que instauraria uma reforma constitucional. Para tanto se reuniram

em 1939 representantes de todas as filiações políticas em uma assembleia

constituinte. O resultado dessa discussão pouco acalorada foi a promulgação,

Page 36: A poesia de Nicolás Guillén e a representação da identidade

35

em 1940, de uma Constituição notadamente progressista. As cláusulas sociais

do documento contemplavam apenas uma série de generalidades trabalhistas

como: horários máximos, salários mínimos, direito a greve.

A constituição de 1940 nascia como uma exposição de objetivos, um

programa do que deveria ser feito no futuro. Além disso, vale destacar que sua

criação permitiu a celebração das eleições presidenciais no ano de sua

promulgação. Uma vez mais se enfrentaram Batista e Grau San Martín, que

regressou do exílio para enfrentar seu antigo rival no processo eleitoral.

O resultado da eleição foi categórico: Batista obteve mais de 800.000

votos frente aos 575.000 de Grau. Na presidência, Batista promoveu

mudanças saudáveis. A eleição celebrada em 1940 serviu para conferir um

novo caráter à distribuição do poder. O poder político real já não passava mais

da autoridade civil constitucional ao chefe de estado do exército cubano. Sobre

o período em que Batista esteve no poder cabe destacar que:

Em princípios de 1941 as alfândegas, que desde muito tempo eram fonte de subornos para os militares, passaram ao controle do Ministério da Fazenda. Os projetos educativos patrocinados pelo exército estavam, agora, sob a administração do Ministério da Educação. A supervisão dos faróis, a polícia da marinha mercante e o sistema postal voltou aos ministérios governamentais pertinentes. (Bethel 1998: 168-169)

Essa série de mudanças despertou rapidamente a ira dos oficiais setembristas

de alta patente e causou uma baixa na confiança dos militares em Batista.

Porém este último saiu favorecido do embate entre presidência e força militar.

Batista também se beneficiou em que seu mandato coincidisse com a

2ª Guerra Mundial. A entrada de Cuba no conflito, em 1941, facilitou os

acordos comerciais e programas de concessões e créditos com os Estados

Unidos. A queda na produção de açúcar na Ásia e na Europa, em função da

guerra, foi um estímulo para os produtores cubanos que tiveram sua produção

elevada de 2,7 para 4,2 milhões de toneladas.

No entanto, a guerra também trouxe perdas à ilha. Paralela à

valorização vertiginosa do açúcar, vivenciou-se o problema causado pela falta

de barcos e o risco em transportar mercadorias à outra margem do Atlântico.

Page 37: A poesia de Nicolás Guillén e a representação da identidade

36

O turismo também sofreu uma grave queda e o número de viajantes caiu de

127.000 em 1940 para 12.000, três anos após. Todo esse clima fomentou um

animado debate político em 1944. Ano em que se celebrariam as eleições

presidenciais.

Uma vez mais estava na disputa o Autêntico Grau San Martin que, desta

vez, saiu vitorioso. Tal fato despertou imensas expectativas populares no

programa de reforma que era a grande promessa do PRC4. Contudo, nem o

governo de Grau (1944-1948) nem o de seu sucessor Carlos Prío Socarrás

(1948-1952) pôde corresponder aos anseios dos cubanos. O governo de Grau

foi marcado por incertezas e desfalques por parte do PRC. Como complemento

do que foi citado anteriormente, têm-se algumas das acusações feitas nesse

período:

Grau foi acusado de desfalcar 174 milhões de dólares. Em 1948, acreditava-se que o ministro da Educação roubara 20 milhões de dólares. O ministro da Fazenda do governo de Prío foi acusado de se apropriar indevidamente de milhões de bilhetes velhos do banco que deveriam ser destruídos. (Bethel 1998: 170)

As oportunidades econômicas no período pós-guerra se perderam

graças à má administração. Fruto de erros de cálculo, da corrupção e do abuso

de poder na distribuição e gestão dos cargos públicos. A derrocada da

administração do PRC gerou uma série de conflitos internos no partido,

acarretando em uma séria ruptura entre seus membros.

O golpe de 10 de março representou o tiro de misericórdia que pôs fim a

um regime decadente. Militares insatisfeitos com a gestão de Grau se uniram

para derrubar os Autênticos do poder. Na madrugada desse dia, os rebeldes

se apoderaram dos principais postos militares da capital. Os militares

ocuparam posições estratégicas na ilha e os cubanos despertaram sob o rumor

de um golpe de Estado, do qual não se podia ter certeza já que as estações de

rádio tocavam música ininterruptamente. O complô liderado por Batista

alcançou êxito sem muita resistência. Fato que aparecia como resposta a um

governo repleto de manobras corruptas e escândalos. Batista retornou ao

poder na ansiada e discutível eleição de 1954 com 40% dos votos. 4 Sigla para designar o Partido Revolucionário Cubano. Que se opunha ao Partido dos Autênticos.

Page 38: A poesia de Nicolás Guillén e a representação da identidade

37

Os Diálogos cívicos, série de entrevistas feitas a Batista por

representantes da oposição moderada, representavam a última tentativa de

negociar uma solução política para a crise vivenciada na ilha. Objetivava fazer

com que o presidente celebrasse eleições com garantias a todos os

participantes. Como Batista se negou, a resposta à sua atitude chegou ainda

no ano de 1955. No final deste ano, Cuba estava imersa em uma série de

manifestações estudantis. Eram constantes os choques armados entre

estudantes e as forças militares e policiais. Os anos seguintes foram de

inúmeras tentativas de retirar Batista do poder e realizar em Cuba as

transformações necessárias para o seu real progresso.

E nesta guerra de guerrilhas, Fidel Castro e seus homens queriam

aniquilar a Guardia Rural presente na Sierra Maestra, que durante décadas

aterrorizara as comunidades rurais da região. Tal intento ganhou apoio dos

camponeses, fazendo com que o contingente aumentasse em número e êxito.

Sobre a repercussão dessa manobra de Castro pode-se afirmar que:

As vitórias dos insurgentes obrigaram o governo a admitir que havia enclaves de território liberado em toda a província do Oriente. Durante todo o ano de 1957 e começos de 1958 o tamanho do exército rebelde aumentou [...] Em meados de 1958 uma coluna de cinquenta homens sob o comando de Raúl Castro estabeleceu a Segunda Frente no noroeste de Cuba, além de consolidar várias partidas rebeldes que atuavam na região. [...] Outra coluna atuava ao leste do pico Turquino sob o comando de Ernesto «Che» Guevara. [...] A expansão da luta no campo foi acompanhada de uma crescente resistência nas cidades [...] À medida que aumentava o número de sequestros e assassinatos, o regime respondia com maior ferocidade [...] A volta de Batista ao poder havia dado o sinal para a transformação geral no comando do exército e velhos oficiais setembristas.[...]Batista enfrentava tanto a crescente oposição popular como a resistência armada com um exército cada vez mais inseguro politicamente e de pouco fiar profissionalmente. (Bethel 1998: 175-176)

A crise cubana dos anos cinquenta era muito mais que um conflito entre

um presidente e seus adversários políticos. O descontentamento durante a

década de cinquenta se fundamentava tanto na frustração socioeconômica

quanto nas demandas políticas. Em 1957, 17% da população ativa estava

desempregada; na indústria açucareira, aproximadamente 60% dos

trabalhadores estavam empregados por seis meses ou menos . E este cenário

representava um dos melhores anos da década na ilha. No entanto, Cuba

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38

possuía uma das rendas per capita mais altas da América Latina. Somente

México e Brasil superavam Cuba em número de televisores e rádios por

habitante. O consumo de importações, principalmente de produtos

estadunidenses, aumentou de 515 milhões de dólares em 1950 para 649

milhões em 1956 e para 777 milhões dois anos mais tarde.

Em 1958 o Movimento 26 de julho começou uma guerra contra a

propriedade e a produção por todos os cantos da ilha com o fim de afastar

Batista do apoio que recebia das elites econômicas estrangeiras e nacionais.

Em fevereiro os líderes da guerrilha anunciaram sua intenção de atacar os

engenhos de açúcar, as fábricas de tabaco, as empresas de serviço público, as

estações de trem e as refinarias de petróleo. O que fez com que Cuba

estivesse durante todo o ano no limite da revolução.

O Pacto de Caracas, realizado em junho de 1958, nomeou Fidel Castro

como líder principal da revolução. As tropas de Batista fracassaram no

combate travado na Sierra Maestra. Os comandantes militares das regiões se

rendiam, pouco a pouco, sem disparar um só tiro. Ainda no mesmo ano, Batista

ganhou mais um adversário: o governo dos Estados Unidos. Em dezembro do

mesmo ano, 90% da população apoiava a guerrilha. Fato que foi marcante para

a decisiva batalha de Santa Clara.

Depois da vitória dos guerrilheiros em Santa Clara, Fulgencio Batista se

afastou do poder sob uma onda de entusiasmo popular. Acabava um período

de poder tirano e despótico, controlado pelos EUA, bem como o comando de

Batista, desde 1952 à frente dos destinos de Cuba. O episódio histórico

vivenciado em Santa Clara imortalizou-se em um conjunto de trechos ou títulos

de canções e poesias cubanas, a maior parte das vezes dedicadas ao

Comandante, Che Guevara, desaparecido mais tarde, em 1967, na Bolívia.

Dentre as poesias, destacam-se, “Che Guevara” e “Che comandante”,

compostas por Nicolás Guillén, cujos trechos leremos, respectivamente, a

seguir:

Page 40: A poesia de Nicolás Guillén e a representação da identidade

39

Che Guevara

Como si San Martín la mano pura a Martí familiar tendido hubiera, como si el Plata vegetal viniera con el cauto a juntar agua y ternura,

así Guevara, el gaucho de voz dura, brindó a Fidel su sangre guerrillera, y su ancha mano fue más compañera cuando fue nuestra noche más oscura.

[…]

Em “Che Guevara” nota-se a alusão à San Martin, figura imortalizada no

imaginário latino-americano e à José Martí, um dos precursores do processo

de independência em Cuba. A imagem construída a partir das duas figuras nos

sugere uma relação de cumplicidade, de união. Também a mão de Guevara se

uniu a de um companheiro de causa, aqui representado na figura de Fidel

Castro, para atravessar e vencer a noite mais escura numa provável menção

aos tempos de tensão que vivenciaram durante a Revolução em Cuba.

Já em “Che comandante” observa-se um destaque à figura do

comandante Guevara frente aos desafios vivenciados na guerrilha. Como se

pode vislumbrar nos versos seguintes:

Che comandante

Con sus dientes de júbilo Norteamérica ríe. Mas de pronto revuélvese en su lecho de dólares. Se le cuaja la risa en una máscara, y tu gran cuerpo de metal sube, se disemina en las guerrillas como tábanos, y tu ancho nombre herido por soldados ilumina la noche americana como una estrella súbita, caída en medio de una orgía. Tú lo sabías, Guevara, pero no lo dijiste por modestia, por no hablar de ti mismo, Che Comandante, amigo.

Estás en todas partes.

Page 41: A poesia de Nicolás Guillén e a representação da identidade

40

A poesia ressalta a satisfação das forças norte-americanas ao ver um

inimigo abatido, com o fim de classificar este sentimento como uma conquista

vã, pois o comandante está “en todas partes”. Ambas as composições exaltam,

portanto, a coragem do argentino Ernesto Guevara em manter-se fiel a seus

ideais até o fim, como um exemplo a ser seguido. Guevara representa os

guerrilheiros que acreditavam em uma pátria mais justa, imortalizou em seus

atos os anseios de outros tantos comandantes anônimos que lutaram na Ilha.

Page 42: A poesia de Nicolás Guillén e a representação da identidade

41

II – UM OLHAR SOBRE A PRÁXIS MUSICAL5 E POÉTICA EM VERSOS DE

NICOLÁS GUILLÉN

Antes el poeta era un músico […]

Ahora el poeta se mete dentro de si mismo

Y allí dentro, dirige su orquestra.

Nicolás Guillén

O interesse no estudo das expressões culturais populares Latino

Americanas, como via de encontro de uma expressão nacional, tomou novo

impulso na década de 1920 motivado pelo exacerbado espírito nacionalista e

canalizado através dos ideais vanguardistas. A busca por uma independência

plena foi o norte que permitiu articular o ideário político-social antilhano ao

desenvolvimento de novas propostas estéticas no campo artístico.

Nicolás Guillén, cuja obra é objeto central desta dissertação, foi um dos

intelectuais letrados que descobriu nas artes uma capacidade singular de

representar a Nação. Ao fazer uso dos elementos étnicos e culturais que

constituem a população cubana, construiu em seu discurso sobre “o nacional” a

sugestão melódica de uma comunidade imaginada. Muitas de suas

composições poéticas foram interpretadas por músicos de diversas

nacionalidades.

Guillén também se inspirou em várias obras musicais e literárias para

plasmar em seus versos o cantar uníssono de um povo. Em conformidade com

o escritor Fernando Ortiz (1950: 116-118)

A poesia cubana de inspiração negróide tardou muito a emancipar-se da música. [...] teve que amulatar-se e dominar o idioma branco, o castelhano, que foi língua comum [...] de todos os negros de Cuba, para poder esvaziar suas expressões em molde alheio à música. Primeiro foi o verso de um encantamento, depois o de um cantar bailado [...] A poesia mulata a que nos referimos agora [...] com popular difusão, devido a musas amestiçadas e escritores

5 Numa alusão ao termo utilizado pelo Prof. Dr. Samuel Araújo. In: “MÚSICA, POLÍTICA E CIDADANIA”

SIBE, 2008.

Page 43: A poesia de Nicolás Guillén e a representação da identidade

42

descendentes de avós brancos e negros como Nicolás Guillén [...] é de essencial musicalidade, tanto que é difícil não poder cantá-la nem acompanhá-la de tambores.

Sobre o tema das origens e implicações sociais das manifestações artísticas

em Cuba, cabe destacar ainda a pertinente afirmação de Ortiz (1950: 115-116):

Cada situação social possui sua própria música, suas danças, seus cantos, seus versos e seus peculiares instrumentos. As fluências migratórias da musicalidade transcorreram em Cuba ao longo de leitos sociais muito acidentados, como as mais típicas correntes fluviais da terra cubana, mansas ou tormentosas, límpidas ou turvas, y por vezes submersas em cavernas para depois rebrotar com maior caudal e a plena luz. Umas músicas entraram em Cuba como próprias dos conquistadores e da classe dominante, outras como dos escravos e da classe dominada. [...] A história de Cuba está no vapor de seu tabaco e na doçura de seu açúcar, também está no sandungueo de sua música. E no tabaco, no açúcar e na música estão juntos brancos e negros no mesmo compasso de criação, desde o século XVI até os tempos de agora.

Durante décadas, quase todas as atividades musicais cubanas

(música interpretada como modus vivendi e não como fazer cultural privado)

foram realizadas por negros e mulatos, em sua maioria criollos. Originalmente

tal fato podia ser explicado pelo pouco prestígio que o ofício de músico conferia

a seus praticantes. As famílias de maior poder aquisitivo destinavam seus

filhos, segundo o músico e escritor Alejo Carpentier (1972: 137-138), “para a

magistratura, a medicina, a Igreja, a carreira de armas ou, na falta de algo

melhor, a administração pública, reservando-se o monopólio das ‘condições

honrosas”. Quanto ao negro, tal profissão se encontrava no topo de suas

possibilidades já que “estavam vedadas a ele a magistratura, a carreira

eclesiástica e a administrativa em seus melhores cargos”.

Nessas atividades, no âmbito da sociedade de classes, se impôs aos

músicos negros os padrões da classe dominante, para a qual tocavam. No

entanto, esses negros e mulatos, oriundos da base da sociedade, que

aprenderam a executar os instrumentos europeus conforme os cânones

musicais de uma cultura, diferente da que receberam não se desvincularam

dos padrões africanos, ainda que estes representassem em Cuba a cultura

oprimida. Esta particularidade lhes permitiu, em médio prazo, ser

simultaneamente fonte e veículo do processo de criação de uma música nova.

Page 44: A poesia de Nicolás Guillén e a representação da identidade

43

A contribuição espanhola a esta nova música está, em maior parte,

determinada pelo acervo artístico dos grandes núcleos de trabalhadores e

soldados europeus que chegavam a Cuba. Em menor grau encontra-se

também a influência das manifestações musicais e danças espanholas que

encontraram maior difusão na classe dominante daquela sociedade. Os

elementos da cultura oprimida não se perderam, mas sim permaneceram

subjacentes na base da sociedade e posteriormente se incorporaram a

elementos da cultura dominante para paulatinamente criar, com identidade

própria, a música cubana.

Dentro do vasto cenário musical cubano, far-se-á no presente capítulo

um corte que pretende destacar o complejo de la rumba que tem sua origem

marcada nos grupos bantú congo. No que concerne à origem do termo rumba

aplicado à música, cogita-se a possibilidade de que se deva à qualificação de

mujeres del rumbo, dada a certa forma de prostituição ligada às casas de

dança. A primeira variante conhecida pelo estudo desenvolvido por Odílio Urfé,

importante músico cubano, é a dança “El Yambú” composta por volta de 1850.

A partir daí, a classificação empregada por Urfé, para estabelecer uma relação

genérico-estilística segue a presente ordem:

I. Rumba estribillo;

II. Rumba yambú;

III. Rumba guaguancó;

IV. Rumba del teatro bufo;

V. Coros de rumba guaguancó;

VI. Rumba tahona;

VII. Tango congo;

VIII. Rumba abierta;

IX. Rumba columbia

Cada variante apresenta um estilo básico do qual emanam variações

com os tempos, o repique dos tambores solistas e as acentuações do esquema

fundamental. Em todos os casos a organologia está integrada por três

Page 45: A poesia de Nicolás Guillén e a representação da identidade

44

tambores criollos e os xilofones. Todas as variantes, e especialmente a

guaguancó, expressam movimentos desenvolvidos e marcados por cadências

e modos de ordem litúrgica africana – em um sistema rítmico com duas

vertentes principais: la regla kimbisa e la regla mayombe6 - , porém com

padrões líricos indiscutivelmente hispânicos. Os cantos e ritmos de todas as

variantes citadas se realizam em compasso de 2/4, e os coros de chave em

6/8.

Segundo os estudos de Fernando Ortíz, a rumba é o grande tema da

lírica de Cuba na primeira metade do século XX. Não apenas porque se

apresenta como o elemento mais típico e universal na cultural afro-cubana,

mas também porque carrega uma expressão de caráter genuíno. A rumba é

um fenômeno humano de complexa sinergia. É o desabafo das forças

restantes de vida em um frenesi que envolve todos os músculos; é a hipnose

da música que envolve com o encantamento de seus ritmos; é a exaltação

báquica7 do espírito todos os estímulos da embriaguez: música, dança, canto,

amor, álcool, drama, multidão e religião. Em seu livro La africanía de la música

folklórica en Cuba, Ortiz (1950-180) corrobora o acima exposto através da

seguinte citação:

A Rumba: “É uma música simplesmente cubana, onde a cubanidade aparece já integrada como produto novo de duas culturas (...). Na Rumba só existe ‘o cubano’, a totalidade orgânica que nos distingue como povo, que nos caracteriza como concretude cognoscível da mais ou menos abstrata universalidade.

A verdadeira e tradicional rumba é a viva representação de um sagrado

teatro primitivo no qual dançarinos, músicos e coro integram o ato dramático

desde as primeiras fases miméticas do diálogo amoroso até a apoteótica

possessão carnal. Esse ritmo envolvente é o que o povo cubano define

paradoxa e espontaneamente como um relajo con orden; relaxamento das

inibições sociais até o limite consentido pela harmonia vital. Desde “La rumba”

6 Palo, ou Las Reglas de Congo são grupos de denominações estreitamente relacionadas de origem

Bantu desenvolvidas por escravos, vindos da África Central, em Cuba. Outros nomes associados com os diversos ramos desta religião incluem: Palo Monte, Palo Mayombe, Brillumba, Kimbisa 7 Numa referência ao deus mitológico Baco.

Page 46: A poesia de Nicolás Guillén e a representação da identidade

45

publicada pelo poeta José Zacarias Tallet, considerado um dos iniciadores da

poesia afro-cubana, todos os poetas do temário mulato compuseram rumbas.

Analisaremos, a seguir duas composições poéticas de Guillén: “Rumba”

e “Secuestro de la mujer de Antonio” nas quais o poeta descreve cenas

cotidianas carregadas de desejo que transcorrem ao som melódico da rumba.

E para fundamentar a análise se utilizar-se-ão também trechos da poesia

inaugural de Tallet e fragmentos da letra da canção La mujer de Antonio

composta e executada incialmente pelo Trio Matamoros.

Page 47: A poesia de Nicolás Guillén e a representação da identidade

46

1- As “Rumbas” e o desejo na construção do olhar poético

Algún dia se dirá: “color cubano”. Estos

poemas quieren adelantar ese día.

Nicolás Guillén

A estrofe que inicia a composição poética “Rumba”, composta por

Nicolás Guillén apresenta o cenário em que se transcorrerá a cena. Félix

Guatarri, (2007:289) filósofo e militante revolucionário francês, afirma que “a

expressão do corpo, a expressão da graça, a dança, o riso [...] são linguagens

que não se reduzem a pulsões quantitativas, globais. Constituem a diferença.”

Dessa forma consegue-se depreender o espaço descrito como propício para

observar a expressão do corpo da mulata que está plenamente envolvida com

o ritmo da rumba.

Outro aspecto importante a ser destacado nos primeiros versos do

poema é a conotação dada ao vocábulo “palo”. Nas danças dedicadas a

Elégua, um deus travesso de origem africana, a dançarina usa um pequeno

pau que é movido de um lado a outro para afastar a maldade ou para abrir

caminho na selva. Tendo em vista o fato de a rumba possuir influências de

origem bantú, e de esta última predominar entre os bailes frequentados por

escravos de origem camponesa, pode-se inferir que Guillén, ao enunciar em

sua composição poética que “La rumba revuelve su música espesa con un

palo”, parece manifestar a intenção de afastar qualquer elemento que perturbe

a festa, manifestado na estrofe como “el negro chulo con fela”. Como se

observa a seguir:

La rumba

revuelve su música espesa

con un palo

Jengribe y canela…

¡Malo!

Malo, porque ahora vendrá el negro chulo

con fela.

Page 48: A poesia de Nicolás Guillén e a representação da identidade

47

Nos versos seguintes, Guillén atribui a partes do corpo da rumbera

características próprias de um vocabulário que pertence a um campo

semântico marcado pelo calor e pelo desejo. Disserta sobre o mecanismo da

sexualidade de acordo com as concepções de Michael Foucault (2004, p.100),

outro filósofo francês, quando afirma que: “trata-se de uma rede trançada por

um conjunto de práticas, discursos e técnicas de estimulação dos corpos,

intensificação dos prazeres e formação de conhecimentos”. Guatarri (2007:

382) também discorre sobre o tema afirmando que

[...] a questão da montagem da expressão, da montagem maquínica- que muda os dados, que os remaneja, que propulsiona novas referências, novos universos- é inseparável da questão dos territórios ou dos “corpos sem “orgãos” sobre os quais se inscrevem, se marcam, se encarnam os devires maquínicos, os procesos incorporais

Toda essa descrição é alimentada pelo olhar do eu-lírico que não está

isolado. Em um jogo de métricas, temos um movimento geométrico e

voluptuoso que nos remete à rumba, segundo Angel Augier, graças a

combinação de assonantes em a e ea, nos dois últimos versos, que dão

espaço a outras consonantes. Embalado por este ritmo, o olhar do sujeito

poético se enraíza na corporeidade, enquanto sensibilidade e enquanto

motricidade, como se apresenta no fragmento:

Pimienta de la cadera,

grupa flexible y dorada:

rumbera buena,

rumbera mala.

O olhar não é apenas agudo, ele é intenso e ardente. Não é só clarividente, é

também desejoso, apaixonado. No entanto, em nenhum momento, o sujeito

poético atribui ao desejo configurado um tom de repreensão ou estigmatização.

Segue, portanto, as concepções de Guatarri (2007: 261-262):

O desejo não é forçosamente um negócio secreto ou vergonhoso como toda psicologia e moral dominante pretendem [...] proporia denominar desejo todas as formas de vontade de viver, de vontade

Page 49: A poesia de Nicolás Guillén e a representação da identidade

48

de criar, de vontade de amar [...], como o molde de produção de algo, [...] sempre o modo de construção de algo [...]

Desejo que já se evidenciava nos seguintes versos:

En el agua de tu bata

Todas mis ansias navegan:

Rumbera buena,

Rumbera mala.

Anhelo de naufragar

En ese mar tibio y hondo:

fondo

del mar!

Fig 1

Guillén alça mão de sua imaginação para construir a figura da

dançarina de acordo com o que afirma Gastón Bachelard (1989:17-18), filósofo

e poeta francês, ao enunciar que “a imaginação não é como sugere a

etimologia, a faculdade de formar imagens da realidade; ela é a faculdade de

formar imagens que ultrapassam a realidade, que cantam a realidade.” Assim

sendo, o desejo, essa natureza de sistemas maquínicos altamente

diferenciados e elaborados, dá vida aos versos do poeta cubano e transporta o

leitor, através da musicalidade de suas palavras, ao cenário descrito em um

ritmo cada vez mais intenso e revelador.

Pode-se vislumbrar certa semelhança entre a composição de Guillén e

a “Rumba” inaugural de Jose Z Tallet, no que concerne a alguns pontos

temáticos abordados no poema. A descrição do corpo da dançarina é um tema

presente em ambas as composições, porém na composição poética de Tallet,

observa-se a descrição de um casal de dançarinos, como se apresenta nos

versos a seguir:

Page 50: A poesia de Nicolás Guillén e a representação da identidade

49

Las ancas potentes de niña Tomasa

en torno de un eje invisible,

como un reguilete rotan con furor,

desafiando con rítmico, lúbrico disloque,

el salaz ataque de Ché Encarnación:

muñeco de cuerda que, rígido el cuerpo,

hacia atrás el busto, en arco hacia’lante

abdomen y piernas, brazos encogidos

a saltos iguales de la inquieta grupa

va en persecución.

Fig. 2

Cabe ressaltar também que o desejo se manifesta sob um foco distinto

da composição escrita por Guillén. Na “Rumba” de Tallet o foco da poesia está

centrado no espetáculo da dança como manifestação de um ritual. Descreve os

anseios de um eu – lírico que observa a representação dos dançarinos

comandados pela música. Ainda sobre o tema do ritual, destaca-se a afirmação

contida na apresentação do livro Os ritos de passagem, escrito pelo

antropólogo alemão Arnold Van Gennep. Nela Roberto Da Matta, considerado

um dos grandes nomes das Ciências Sociais brasileiras (In: Gennep 1977:11)

discorre que:

[...] o rito igualmente sugere e insinua a esperança de todos os homens na sua inesgotável vontade de passar e ficar, de esconder e mostrar, de controlar e libertar, nesta constante transformação do mundo e de si mesmo que está inscrita no verbo viver em sociedade.

O desfecho de ambas as composições se dá com o fim da dança, no entanto

se apresentam de maneiras distintas já que na composição de Tallet o fim da

composição é dado com o fim do ritual; representado na descrição dos

dançarinos e na representação acorde final dos instrumentos, como se percebe

em:

Al suelo se viene la niña Tomasa,

al suelo se viene José Encarnación;

y allí se revuelcan con mil contorsiones,

se les sube el santo, se rompió el bongó.

¡Se acabó la rumba, con-con-co-mabó!

Page 51: A poesia de Nicolás Guillén e a representação da identidade

50

¡Pa-ca, pa-ca, pa-ca, pa-ca, pa-ca!

¡Pam! ¡Pam! ¡Pam!

Na composição poética de Guillén, que também retrata a complexidade

do mundo da rumba, o sujeito poético parece participar ativamente da cena

final se nos atentamos à utilização da primeira pessoa do singular e do plural,

além do imperativo, em alguns versos como:

Ya te cogeré domada,

Ya te veré bien sujeta,

[…]

Quítate, córrete, vámonos…

Í Vamos!

Denotando, portanto, a clara intenção do eu-lírico em possuir o corpo desejado.

Essa relação de desejo estabelecida entra em conformidade com o que o

filósofo francês Michel Foucault expõe ao afirmar que

as relações de poder operam sobre o corpo de modo imediato; elas o investem, o marcam, o dirigem, o supliciam, [...] obrigam-no a cerimônias, exigem-lhe sinais. O poder na realidade é um feixe aberto, mais ou menos coordenado [...] de relações, que estão sempre recorrendo a uma estrutura de dominação e servidão.

O jogo iniciado entre quem olha e quem é olhado, atividade e

passividade, faz com que seus integrantes participem de um campo de forças

onde o poder e o conhecer se fundam mutuamente. Cria-se uma tensão em

que o outro-observador constitui uma liberdade que pode invadir a outro-

observado. Tensão que se vislumbra em:

Cuando como ahora huyes,

Hacia mi ternura vengas,

Rumbera

Buena;

O hacia mi ternura vayas,

Rumbera

Mala.

Page 52: A poesia de Nicolás Guillén e a representação da identidade

51

O desejo construído ao longo dos versos de Guillén, leva à sua

concretização através do poder de dominação estabelecido nos versos finais,

marcando o término da festa e deixando no ar a ideia de que o desejo

observado ao longo dos versos seria concretizado fora daquele espaço

construído.

No ha de ser larga la espera,

[…]

Ni será eterna la bacha,

[…]

Te dolerá la cadera,

[…]

Cadera dura y sudada,

[…]

¡ Último

trago!

Quítate, córrete, vamonos...

¡ Vamos!

Há um parentesco entre o olhar do outro e o corpo desejado que

remete a um único mundo. Essa afinidade ou essa intercorporeidade consagra-

se de modo eminente no ato amoroso e no fazer artístico, pois em ambos se

eclipsa, ao longo do processo de união-criação, a dualidade existente entre eu

e outro. Ao considerarmos o uso das palavras, em que os homens trançam os

fios lógicos e os fios expressivos do olhar, é possível relacionar o pensamento

do historiador e crítico literário Alfredo Bosi à composição poética “rumba”, para

compreender o fazer poético guilleneano como tradução de um olhar que

vislumbra a continuidade de seu ser no outro. Sua percepção atenta e lúcida do

mundo que o circundava lhe permitiu, aliada à sua capacidade criativa, cantar

seus desejos e tristezas sem fazer disso uma mera contemplação subjetiva de

uma mirada ufânica ou limitada, mas sim construir um panorama lírico e

envolvente da realidade de nação que tanto amou e cantou em suas

composições.

Page 53: A poesia de Nicolás Guillén e a representação da identidade

52

2- Um dueto entre música popular e poesia em Cuba

Todo es hermoso y constante,

Todo es música y razón,

Y todo, como el diamante,

Antes que luz es carbón.

José Martí

A sensibilidade de Guillén para a música cubana e sua capacidade para

encontrar nela o tom mais expressivo da essência mestiça o conduzem a

empregá-la como forma constitutiva de sua poética. Outro exemplo primoroso

de composição poética é “Secuestro de la mujer de Antonio” que traduz a

beleza existente no cotidiano do povo cubano ao aludir algumas imagens da

canção “La mujer de Antonio” 8 composta por Miguel Matamoros.

A canção que serviu como inspiração para a poesia de Guillén foi

imortalizada na voz do Trío Matamoros, formado por Miguel Matamoros

(guitarra, primeira voz e líder do conjunto), Siro Rodriguez (maracas e segunda

voz) e Rafael Cueto (guitarra e terceira voz). “La mujer de Antonio” captou

brilhantemente cenas cotidianas para ironizar, de modo sutil, a situação

político-social vivida na ilha sob o regime de Gerardo Machado, o quinto

Presidente de Cuba e general da Guerra de Independência Cubana.

Assim como as duas poesias de Guillén selecionadas como apoio para

o presente estudo, a canção também parte da perspectiva de um olhar alheio,

um olhar que tece suas considerações acerca da mulata. No entanto o desejo

que move esse olhar descrito na letra da canção é bem diferente do

encontrado nas poesias de Guillén ao longo da presente análise. O olhar

evidenciado no início da música composta por Miguel Matamoros destaca a

curiosidade dos vizinhos a respeito do modo de viver e agir de transeuntes que

passam pela rua, como se observa no fragmento da canção:

8 Todos os trechos da canção foram extraídos de

http://www.herencialatina.com/Matamoros/Matamoros.htm

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53

La vecinita de enfrente

Buenamente se ha fijado

Como camina la gente

Cuando sale del mercado

A poesia de Guillén faz uso apenas do caráter anedótico e musical que

remete à música do Trio Matamoros. Não pretende evidenciar uma crítica

social, como fez Miguel Matamoros no seguinte quarteto em que se observa

uma sutil ironia à política utilizada por Gerardo Machado: alimento em troca de

manter-se politicamente calado.

Mala lengua tú no sigas

hablando mal de Machado,

que te ha puesto allí un mercado

que te llena la barriga.

Nos versos de Nicolás Guillén, com a paupável influência do Trio

Matamoros, se evidencia a relação homem-mulher, a presença da dança como

possessão e a escolha de colocar a sensualidade em primeiro plano. Em

ambas as composições reflete-se o sentido de humor criollo, alcançando um

resultado inesperado e cômico; a narração de acontecimentos cotidianos que

ressaltam as particularidades do cubano. A evidente aproximação entre a obra

poética de Guillén e as canções do Trio Matamoros é confirmada pelo poeta,

no seguinte fragmento de uma entrevista:

Me apresuro a decir, sin embargo, que la poesía «mulata» se inspiró en la música de cantantes bien conocidos, como los Matamoros, y que en ella hay poemas completos que anuncian algunos de los míos. Podría citar en este caso el Secuestro de la mujer de Antonio, que pusieron de moda dichos cantantes. (AUGIER 1984: 131-132)

Ainda sobre os músicos cubanos, Nicolas Guillén assim se pronunciou em sua

obra Sones Cubanos:

Los Matamoros estão escritos sem dúvida no movimento por nós conhecido como Geração de 30, ele contribuiu também no

Page 55: A poesia de Nicolás Guillén e a representação da identidade

54

cumprimento de uma das ambições desse movimento que era a de buscar nossa própria personalidade e de encontrá-la com nós mesmos.

Assim como se observa na composição “Rumba”, em “Secuestro de la

mujer de Antonio” se fazem presentes os elementos propícios para que se

aflore o desejo do eu-lírico: álcool, música e a figura da mulata. Elementos que

se combinam magistralmente nos seguintes versos da segunda poesia de

Guillén analisada no presente capítulo:

Te voy a beber de un trago,

Como una copa de ron;

Te voy a echar en la copa

De un son,

Prieta, quemada en ti misma,

Cintura de mi canción.

O eu-lírico pede que a mulata tire seu xale para torear a rumba, para

conquistá-lo, usa toda sua sensualidade aproveitando-se do movimento

curvilíneo próprios da dança e da tourada. Dessa forma dá continuidade à

ambientação inciada na estrofe anterior em que o sujeito poético manifesta o

interesse de apropriar-se do corpo da mulata da mesma maneira que faz com o

copo de rum: “de un trago”. Denota, portanto que o caráter da ação seria breve

e intenso, pois as relações de desejo estabelecidas na poesia são efêmeras e

caracterizadas pela quebra de um valor instituído pela sociedade formal. Como

vemos nos versos iniciais da estrofe:

Záfate tu chal de espumas

para que torees la rumba;

A mulher exaltada na poesia é a mulher de Antonio, ou seja, a mulata

pertence a alguém que não está presente e somente a ele lhe seria concedido,

em principio, o direito sobre aquela mulher. Essa observação mostra que os

valores africanos são bem diferentes dos instruídos pela sociedade dominante.

A fidelidade, o casamento, o controle do desejo são valores que pertencem ao

colonizador e não à cultura dos descendentes africanos. Por tal razão, o desejo

Page 56: A poesia de Nicolás Guillén e a representação da identidade

55

carnal apresenta-se, tanto em “Rumba” quanto em “Secuestro de la mujer de

Antonio”, livre de qualquer repressão ou culpa do eu – lírico.

Aparece também na segunda estrofe, o primeiro elemento, depois do

título da composição poética, que permite a associação entre a tradicional

canção cubana e a poesia em análise. A menção a Antonio em Guillén,

personagem fictício em ambas as obras artísticas, nos remete a “La mujer de

Antonio”. Canção em que o referido personagem é citado por conta do

caminhar de sua mulher. Como comprovam os seguintes versos, da poesia de

Guillén:

Y si Antonio se disgusta

Que se corra por ahí:

¡ la mujer de Antonio tiene

que bailar aquí!

E no refrão da canção interpretada pelo Trío Matamoros:

La mujer de Antonio

camina así

Cuando viene de la plaza

camina así

Por la mañanita

camina así

Em seguida, a poesia segue o ritual que leva a mulata, na composição

poética com o nome de Gabriela, a participar do cenário da festa. O sujeito

poético pede que a dançarina não apague a vela, como um pedido de que esta

prossiga no baile e não acabe com a festa, pois já havia esquentado o tambor

– aqui denominado bongô para marcar a origem africana – o que indica o início

da festa.

Importante também é ressaltar a expressão “Tranca la pájara blanca”.

Pode-se inferir, a partir da seguinte estrofe, a intenção de usar o objeto tranca

para espantar o cansaço, a falta de forças para praticar alguma ação,

representado pela expressão “pájara blanca” no espaço musical descrito e,

Page 57: A poesia de Nicolás Guillén e a representação da identidade

56

consequentemente, no espaço poético composto por Guillén. Assim como a

mulata que, em “Rumba”, “revuelve su música espesa con un palo” para afastar

“el negro chulo” se sugere a mesma intenção nos seguintes versos de Guillén:

Desamárrate, Gabriela.

Muerde

La cáscara verde,

Pero no apagues la vela;

Tranca la pájara blanca,

Y vengan de dos en dos,

Que el bongó

Se calentó…

Na estrofe seguinte tem-se o desejo de posse claramente manifestado

ao longo dos versos. O eu – lírico faz uso de um tom imperativo para

manifestar suas vontades em relação à mulata. A respeito desse desejo de

posse carnal Foucault afirma que ao criar esse elemento imaginário que é “o

sexo”, o dispositivo de sexualidade suscitou um dos seus mais essenciais

princípios internos de funcionamento: o desejo do sexo — desejo de tê-lo,

desejo de aceder a ele, de descobri-lo, de libertá-lo, de articulá-lo como

discurso, de formulá-lo como verdade. Na composição em análise, o discurso

da música envolve a dança e todos os elementos que a constituem é o

mecanismo através do qual se obtém o acesso, a descoberta, a libertação do

desejo do sujeito-poético.

No que concerne à escolha vocabular, a palavra “zafra” que denominava

a colheita do açúcar em Cuba é empregada pelo sujeito do poema e articula-se

de modo que deixe transparecer sua origem confirmando a intenção

guilleneano de traduzir em versos o cotidiano do povo cubano e seus costumes

herdados das tradições africanas.

De aquí no te irás, mulata,

Ni al mercado ni a tu casa,

Aquí molerán tus ancas

La zafra de tu sudor:

Page 58: A poesia de Nicolás Guillén e a representação da identidade

57

A intenção poética de aliar musicalidade à tradução lírica da cubanidade

se vê também nos três versos que finalizam a quarta estrofe. As onomatopéias

que se seguem pretendem aludir ao som do bongô, embalando a dança da

mulata que remexe suas ancas ao som da rumba. Esse efeito é alcançado

através da combinação de consoantes vibrantes [r] e oclusivas [p, k,] que dão

um tom explosivo, simulando o som emitido pelos tambores. Como se

comprova a seguir:

[...]

Repique pique, repique,

Repique, repique, pique,

Pique, repique, repique,

¡po!

Tal recurso onomatopéico é encontrado em diversas passagens da “Rumba” de

Jose Z Tallet. Como vemos em:

¡Zumba, mamá, la rumba y tambó!

¡Mabimba, mabomba, mabomba y bongó!

[…]

¡Chaqui, chaqui, chaqui, charaqui!

¡Chaqui, chaqui, chaqui, charaqui!

[...]

¡Piqui-tiqui-pan, piqui-tiqui-pan!

¡Piqui-tiqui-pan, piqui-tiqui-pan!

As estrofes finais de “Secuestro de La mujer de Antonio” delineiam, à

diferença da composição “Rumba” de Guillén, a disposição do sujeito poético

em garantir a permanência da mulata na festa a qualquer custo.

Semillas las de tus ojos

Darán frutos epesos:

Y si viene Antonio luego

Que ni en jarana pregunte

Cómo es que tú estás aquí…

Page 59: A poesia de Nicolás Guillén e a representação da identidade

58

Após um encantador jogo fonomelódico¹ conseguido através da aliteração

presente no primeiro verso que encerra a poesia, Guillén faz novamente uma

alusão à canção do trio cubano quando sugere que até o mais forte homem, na

composição poética representado pelo adjetivo “toro”, sairá “caminando así”.

Constitui-se, portanto, como um recurso bem-humorado que sugere um

caminhar diferente do observado na mulata da canção “La mujer de Antonio”,

como se apresenta nos seguintes versos do poema:

Mulata, mora, morena,

Que ni el más toro se mueva,

Porque el que más toro sea

Saldrá caminando así;

El mismo Antonio, si llega,

Saldrá caminando así;

Todo el que no esté conforme,

Saldrá caminando así...

E que se confirma quando observamos o refrão da canção escrita por Miguel

Matamoros:

La mujer de Antonio

camina así

Cuando trae lechuga

camina así

por la madrugada

camina así

cuando ve a la gente

camina así

O poeta Nicolas Guillén não se propôs a encontrar nenhuma maravilha perdida

em um recanto escondido da terra. Dispôs-se apenas a traduzir em versos o

cotidiano do povo cubano da maneira mais verdadeira possível. Deixou que as

asas de sua imaginação se transformassem em letras que embalam e

perpetuam a maravilha da simplicidade presente na essência cubana. Seu

olhar atento e perspicaz imortalizou a geografia, a história, aspectos políticos e

econômicos que conferem especificidade ao devir cubano e americano.

Page 60: A poesia de Nicolás Guillén e a representação da identidade

59

III- CONTRAPUNTEO DE GUILLÉN NA TESSITURA SIMBÓLICA DA

IDENTIDADE CUBANA

O contrapunteo define o cubano, a partir do cubano,

em um discurso cubano e mediante uma

metodologia cubana

Roberto Gonzaléz Echevarría

Ainda que possa parecer enfática a afirmação do crítico cubano Roberto

González Echevarría, permite ilustrar a justificativa ao título proposto no

presente capítulo. Tomo a liberdade de denominá-lo contrapunteo, em um

intento de aproximar-me do sentido que tal palavra adquiriu no contexto

musical. O vocábulo contrapunteo se apresenta como um cubanismo do termo

contrapunto e denomina a técnica musical através da qual se combinam partes

ou vozes simultaneamente, resultando em uma textura harmônica.

Assim sendo, pretende-se associar o sentido original da palavra, que se

refere ao conteúdo verbal de uma disputa, à sua conotação musical para

transformar tal expressão em uma metáfora do processo de criação poética de

Nicolas Guillén. Ao embalar o passado histórico e cultural de seus ancestrais,

Guillén não faz menos que figurar ponto contra ponto os elementos que,

entrelaçados, apresentam-se como em um contraponto musical (balada 9) na

tessitura simbólica da identidade cubana.

Com o fim de discorrer sobre o tema da construção da identidade,

analisaremos a composição poética “Balada de los dos abuelos”, publicada em

West Indies no ano de 1934. Composição cujos referenciais nos remetem a

elementos próprios de diversas culturas, com a intencionalidade histórica de

representar em seus versos o processo que desencadeou no fenômeno

transculturador. Também será objeto de análise a composição poética “Tengo”,

publicada em 1964, do poemário homônimo que se apresenta como uma

9 Mus: composição musical de caráter épico; Lit: poema em estrofes que ger. narra uma lenda popular ou

uma tradição histórica, podendo ser acompanhada por instrumentos musicais. In: HOUAISS. Dicionário eletrônico da língua portuguesa, 2001

Page 61: A poesia de Nicolás Guillén e a representação da identidade

60

encantadora mostra da experiência de um povo em revolução. Para encerrar o

presente capítulo, analisar-se-á a poesia que plasma em versos o sentimento

de solidariedade de Cuba frente ao desastre da Guerra Civil Espanhola: em

“España” (Poema en cuatro angustias y una esperanza). Nesta última

composição em análise, Guillén retoma o tema da identidade coletiva

vislumbrado em “Tengo”, porém agora em uma dimensão extracontinental.

Page 62: A poesia de Nicolás Guillén e a representação da identidade

61

1. Transculturação: história e ampliação de um conceito

La verdadera historia de Cuba es la historia

de sus intrincadísimas transculturaciones

Fernando Ortíz

Para dar continuidade aos estudos propostos no presente item, cabe

situar no tempo e no espaço, as condições em que se instituiu o conceito-

chave que o fundamenta. O termo transculturação, proposto pelo antropólogo e

músico Fernando Ortiz foi publicado, primeiramente, em 1940. Neste ano, entra

em vigência na ilha de Cuba a Nova Constituição da República. Nascido como

um conceito pertinente ao campo etnográfico, o termo transculturação seria,

segundo Ortiz (2002: 260), o vocábulo mais adequado para

[...] expressar melhor as diferentes fases do processo transitivo de uma cultura a outra, porque este não consiste somente em adquirir uma cultura distinta, que é o que a rigor indica a voz anglo-americana acculturation, mas sim que o processo implica também, necessariamente, a perda ou desarraigo de uma cultura precedente, o que se poderia denominar uma parcial desculturação e, além disso, significa a criação de novos fenômenos culturais que foram denominados neoculturação. Por fim, como bem sustenta a escola de Malinowski, em todo abraço de culturas sucede o mesmo que na cópula genética dos indivíduos: a criatura sempre possui algo de ambos os progenitores, porém é sempre distinta de cada um dos dois. Em conjunto, o processo é uma transculturação e este vocábulo compreende todas as fases de sua parábola.

Mais que consagrar um neologismo, e substituir várias expressões

correntes como “câmbio cultural” ou “osmose de cultura”, o antropólogo cubano

desejava com a publicação de Contrapunteo cubano del tabaco y del azúcar

(2002) apresentar um estudo do nacionalismo econômico e seus reflexos na

sociedade cubana e fazer dele uma nova sugestão para o estudo de seu país

e suas peculiaridades históricas”. No entanto, a difusão do conceito proposto

por Ortiz foi muito além da análise sociológica da realidade estudada. Tomou

Page 63: A poesia de Nicolás Guillén e a representação da identidade

62

proporções continentais e abarcou não só a história, mas também a

compreensão da temática literária latino-americana.

O crítico uruguaio Ángel Rama (2001:22), em seu livro Transculturación

narrativa en América Latina, aplica o termo transculturação ao campo dos

estudos culturais com o fim de “neutralizar os efeitos nocivos ou alienantes

causados pela modernização”. De tal modo, Rama pode vislumbrar que o

processo transculturador se compunha através de algumas etapas: uma parcial

desculturação, aplicável tanto à cultura como ao exercício literário, ocorrida em

diversos graus e capaz de afetar várias zonas; a incorporação de elementos

próprios da cultura estrangeira e, finalmente, o intento de recompor os

elementos de ambas as culturas em uma nova concepção da mesma.

Tem-se, portanto, a partir de Rama, a possibilidade de trabalhar com o

conceito fundado por Fernando Ortiz também no contexto literário. Tal

ampliação causou um significativo impacto nos estudos culturais da época.

Tornou-se até, em análises pouco densas, um sinônimo para mestiçagem ou

hibridismo. Termos que nomeiam apenas o resultado do processo que implica

a mescla de etnias, diferente do termo de Ortiz que contempla o acontecimento

de maneira mais ampla. Contudo, no que concerne ao estudo de Cuba, não é

possível aplicar o vocábulo transculturação como um simples cognato do

produto de uma mescla de etnias. Em conformidade com o acima exposto

temos a seguinte afirmação de Ortiz (2002: 255):

Em todos os povos a evolução histórica significa sempre um trânsito vital de culturas em ritmo mais ou menos lento ou veloz; porém em Cuba foram tantas e tão diversas, em posições de espaço e categorias estruturais, as culturas que influenciaram na formação de seu povo, que esse imenso amestiçamento de raças e culturas sobrepõe, de maneira transcendente, a qualquer outro fenômeno histórico.

A poesia de Nicolas Guillén, como expressão de vida do povo cubano,

alcança perfeitamente o intento de Ortiz (2002: 254) ao propor o conceito de

transculturação, afirmando que este vocábulo expresaria

Page 64: A poesia de Nicolás Guillén e a representação da identidade

63

Os variadíssimos fenômenos que se originaram em Cuba através de complexas transmutações de cultura que lá se verificam, sem as quais se torna impossível entender a evolução do povo cubano em todos os níveis sociais

Como exemplo inicial do que foi afirmado nas linhas anteriores temos a análise

da primeira poesia proposta na introdução. No par de versos que inicia o

poema “Balada de los dos abuelos” contemplam–se duas sombras, vistas

unicamente pelo sujeito do poema, a escoltá-lo:

Sombras que sólo yo veo,

me escoltan mis dos abuelos

Após tal consideração observa-se a composição imagística de cada um desses

ancestrais: o avô branco e a avô negro. Cada um em seu território, com suas

peculiaridades culturais que futuramente seriam transformadas. Desvela-se

primeiro a imagem do avô materno.

Lanza con punta de hueso,

tambor de cuero y madera:

mi abuelo negro.

Os elementos “lanza”, “punta de hueso” e “tambor” conotam a origem do

guerreiro africano. A lança é empunhada por heróis. Ao descrevê-la como um

artefato pontiagudo, confere poder a quem a detém. A ponta de osso confirma

a origem do combatente: trata-se de um líder guerreiro e herdeiro das tradições

africanas. O tambor, além de ressaltar a influência africana, atua como símbolo

de arma psicológica; seu ruído se aproxima ao do trovão e ao do raio,

desfazendo internamente toda a resistência do inimigo. Sua presença também

sacraliza o acontecimento da guerra, já que se utiliza o tambor para invocar a

descida das bênçãos celestes em favor das causas de um povo.

Em seguida, temos a caracterização da figura do avô paterno:

Page 65: A poesia de Nicolás Guillén e a representação da identidade

64

Gorguera en el cuello ancho,

gris armadura guerrera:

mi abuelo blanco.

Este se encontra com sua “gris armadura guerrera” e sua “gorguera”. Ao

atribuir ao pescoço de seu avô branco o adjetivo “ancho”, o poeta constrói tal

figura como detentora de extensa força vital. Tal hipótese pode ser baseada no

fato de os likoubas e likoualas do Congo considerarem o pescoço a morada

primeira das articulações do ser humano. Nela circula a energia geradora, por

meio do jogo das articulações 10.

O sujeito do poema representa o resultado da fusão de duas fortes

lideranças. Descende de dois guerreiros que parecem desempenhar, em seus

territórios, posições de poderio e realeza. Em seu avô branco, vislumbra-se

uma armadura que protege o seu corpo dos males; já o avô negro aparece,

como se verá em seguida, despido, o que pode torná-lo mais vulnerável em um

confronto.

Os versos seguintes dão continuidade à descrição iniciada na primeira

estrofe do poema. O eu – lírico destaca o corpo de seu avô negro:

Pie desnudo, torso pétreo

los de mi negro;

O “pie desnudo” sugere um maior contato do guerreiro africano com a sua

terra. Já o tronco recebe o adjetivo “petreo” com o intuito de atribuir ao corpo

do guerreiro africano a resistência de uma pedra, simbolizando também o

marco de uma civilização.

Quando a descrição se refere ao avô branco o sujeito poético ressalta o

olhar que se mostra com “pupilas de vidrio antártico”, possível alusão ao mar,

espaço que possibilitou a chegada dos conquistadores e, posteriormente, dos

escravos vindos da África. Um mar azul como as pupilas do avô branco,

10

Entende – se que as articulações permitem a ação, o movimento, o trabalho. Simbolizariam, segundo tais crenças dos povos do Congo, as funções necessárias à passagem da vida à ação. In: CHEVALIER & GHEERBRANT,2003.

Page 66: A poesia de Nicolás Guillén e a representação da identidade

65

através das quais se descortinou um novo campo de visão: a terra a ser

colonizada.

Pupilas de vidrio antártico

las de mi blanco!

O poema de Guillén trata de duas vozes cansadas e caladas pelo triste

espetáculo da guerra. Vozes que ecoam na memória de um indivíduo, cujos

ancestrais travaram longos combates em um passado distante. Em um mesmo

lugar cada figura experimenta uma sensação diferente. Para respaldar a

afirmação anterior, temos o estudo de Kevin Lynch em seu livro A imagem da

cidade. O autor discorre que as imagens ambientais são as resultadas de um

processo bilateral entre o observador e seu espaço. Deste modo, cada pessoa

depreende, organiza e confere significado singular ao que é visto. Lynch

(1982:1), afirma também que “[...] a cada instante há mais do que o olho pode

enxergar, mais do que o ouvido pode perceber, um cenário ou uma paisagem

esperando para serem explorados”

Nada seria vivenciado em si mesmo, mas sempre em relação aos seus

arredores, às sequências de elementos que a ele conduzem à lembrança de

experiências passadas. Comprova-se a assertiva com o seguinte fragmento:

África de selvas húmedas

y de gordos gongos sordos...

--¡Me muero!

(Dice mi abuelo negro.)

Aguaprieta de caimanes,

verdes mañanas de cocos…

--¡Me canso!

(Dice mi abuelo blanco.)

Oh velas de amargo viento,

galeón ardiendo en oro…

--¡Me muero!

(Dice mi abuelo negro.)

¡Oh costas de cuello virgen

engañadas de abalorios…! Fig 2,1

Page 67: A poesia de Nicolás Guillén e a representação da identidade

66

--¡Me canso!

(Dice mi abuelo blanco.)

Perpetuam-se no sujeito poético as impressões de um “abuelo negro”

que morre com o duelo e de um “abuelo blanco” que se cansa em territórios a

serem conquistados por seu povo. A memória do avô negro registra uma

paisagem de “selvas húmedas” de onde parte um “galeón ardiendo en oro”.

Este metal tão apreciado pelos colonizadores, considerado pela tradição como

o mais precioso, enriqueceu os cofres e as construções europeias graças ao

trabalho da mão escrava.

Neste contexto contemplativo, o verbo “morir” empregado nas linhas

acima como resultado de um combate, podem também denotar o

deslumbramento do personagem diante da paisagem. Em contrapartida tem-

se, um cansado avô branco que contempla “costas de cuello virgen” e “verdes

mañanas de coco”. Do duelo travado entre o sangue negro e o branco este

último sai como vencedor, ainda que fatigado pela guerra e pela distância que

o separa de sua pátria.

¡Oh puro sol repujado,

preso en el aro del trópico;

oh luna redonda y limpia

sobre el sueño de los monos!

O “puro sol repujado” e a “luna redonda y limpia” são espectadores

oniscientes desse cenário. Contemplam a dor e o cansaço de cada ânsia.

Escutam as preces de todos os personagens desse capítulo da história de dois

povos. História que se eterniza no corpo e na memória de um poeta. Memória

que surge graças às reminiscências que fundam a cadeia da tradição,

transmitindo os acontecimentos de geração em geração. Por ela se dá a

propagação da memória. O ouvinte pode então participar do que foi vivido,

confirmando as acepções de Walter Benjamin (1995:213,. ao enunciar que

“[...] quem escuta uma história está em companhia do narrador; mesmo quem a

lê partilha dessa companhia.” Assim sendo, uma voz segue o canto relatando o

Page 68: A poesia de Nicolás Guillén e a representação da identidade

67

passar dos dias na terra colonizada e todo o horror presenciado nos navios

negreiros.

Qué de barcos, qué de barcos!

¡Qué de negros, qué de negros!

¡Qué largo fulgor de cañas!

¡Qué látigo el del negrero!

Piedra de llanto y de sangre,

venas y ojos entreabiertos,

y madrugadas vacías,

y atardeceres de ingenio,

y una gran voz, fuerte voz,

despedazando el silencio.

¡Qué de barcos, qué de barcos,

qué de negros!

Voz que pode ser entendida tanto como a expressão do colonizador,

quanto como a voz que surge da dor e da rebeldia em face de tal situação.

Encerra-se, no poema, a gênese da mestiçagem. A estratégia de Guillén insere

os elementos que compõem esse processo: a imigração branca com o

propósito de colonizar; a forçada imigração negra; a produção açucareira como

base da economia colonial; a escravidão.

O par de versos que aparece no início do poema é retomado para

aproximar as duas imagens.

Sombras que sólo yo veo,

me escoltan mis dos abuelos

Tal recurso confirma o título dado ao poema. Ao atribuir à composição o título

de balada, o poema de Guillén aproxima-se à acepção dada ao termo. Além de

possuir um estribilho, como na definição histórica, assemelha-se ao conceito

atribuído recentemente ao mesmo vocábulo. Por influência anglo-saxônica, o

sentido da palavra ampliou-se, passando a designar também uma canção que

conta a vida de uma pessoa ou alguns fatos precisos.

Page 69: A poesia de Nicolás Guillén e a representação da identidade

68

Em seguida temos o início da integração entre as duas tradições: a

africana e a europeia. É o prenúncio do fim das diferenças entre os guerreiros.

“Don Federico”, que grita, e “Taita Facundo”, que cala, sonham “en la noche”.

Noite pode denotar tanto a ideia de escuridão e morte quanto referir-se à noite

ancestral, a instauração do não-tempo, perpetuando a ideia de eternidade. O

eu-lírico afirma que seus antepassados seguem por essa noite a sonhar, o que

pode corroborar com a ideia de morte como redenção do indivíduo.

Don Federico me grita

y Taita Facundo calla;

los dos en la noche sueñan

y andan, andan.

O corpo do eu-lírico é o elemento que permite a síntese desses dois

guerreiros em um só corpo: “Yo los junto”. Nele se mesclam sangue e cultura

de povos que duelaram em tempos anteriores, mas que agora coexistem com a

existência do sujeito poético. Os quatro versos que encerram o poema tratam

de uma série de ações a serem realizadas pelos dois guerreiros:

gritan, sueñan, lloran, cantan.

Sueñan, lloran, cantan.

Lloran, cantan.

¡Cantan!

A ausência de uma conjunção aditiva entre o penúltimo e o último verso

da referida estrofe sugere uma união, que se mostra eternizada pelo uso de

vírgulas ao enumerar tais ações. Combinado com o recurso poético da

aliteração essa união, traz à poesia uma conotação fonossemântica

importantíssima, confirmando ainda mais o título da composição e contribuindo

com a musicalidade. Segundo Walter Benjamin (1995:207)

[...] a ideia da eternidade sempre teve na morte sua fonte mais rica. Morrer era um episódio público na vida de um indivíduo e possuía caráter altamente exemplar. É no momento da morte que a sabedoria do homem e, sobretudo sua existência vivida assumem pela primeira vez uma forma transmissível.

Page 70: A poesia de Nicolás Guillén e a representação da identidade

69

Ainda que mortos, a história de cada avô do sujeito poético permanece

viva no coração de seus descendentes e na memória de cada um que pôde

tomar conhecimento de suas experiências. O que se contempla perfeitamente

se considerarmos a seguinte afirmação de Benjamin (1995:205):

Contar história sempre foi a arte de contá-las de novo, e ela se perde quando as histórias não são mais conservadas. Ela se perde porque ninguém mais fia ou tece enquanto ouve a história. Quanto mais o ouvinte se esquece de si mesmo, mais profundamente se grava nele o que é ouvido

Assim como o eu-lírico, Guillén possui um passado marcado pelos dois lados

da história da colonização na América. História que pode ser transmitida

através dos versos de Nicolás Guillén.

Page 71: A poesia de Nicolás Guillén e a representação da identidade

70

2. Hispanidade imaginada: Guillén, tecelão de identidades

Mais que inventadas, nações as ‘imaginadas’, no sentido

que fazem sentido para a‘alma’ e constituem

objetos de desejos e projeções.

Benedict Anderson

Tomamos a questão identitária, abordada aqui segundo os estudos dos

sociólogos Benedict Anderson e Zygmunt Bauman, como fio condutor na

tessitura simbólica da identidade antilhana, vislumbrada através de duas

composições de Nicolás Guillén.

No poema “Tengo”, cujo poemário em que se insere compreende toda a

poesia beligerante dos primeiros cinco anos da Revolução cubana e em

“España (poema en cuatro angustias y una esperanza)” que possui como tema

principal a Guerra Civil espanhola. Em ambas pode-se observar a recorrente

utilização da memória como elemento de construção poética, dialogando com

os acontecimentos históricos que delineiam o meio em que se insere o poeta

cubano. Vale ressaltar, antes da análise poética, alguns conceitos pertinentes

à discussão sobre a temática identitária.

As noções de identidade flutuam no tempo e no espaço de acordo com

as circunstâncias que conduzem os acontecimentos ao longo da história. Ao

preconizar a necessidade de se entender a identidade como uma tarefa a ser

realizada, faz-se necessário destacar também o traço plural que contém tal

conceito. A identidade chega como um elo que permite a construção do que se

chamará nação. Perante a qual seus integrantes devem atuar de modo a

demonstrar sua fidelidade a ela, o que poderá ser nomeado nacionalismo. Tal

processo só ocorrerá se acontecer em uma comum unidade, ou seja, desde

que seus integrantes se unam em prol de uma causa comum a todos. Quem

bem discorre sobre este processo é Benedict Anderson (2008: 32), em seu livro

Page 72: A poesia de Nicolás Guillén e a representação da identidade

71

Comunidades imaginadas O autor sustenta que uma comunidade11 se

apresenta como imaginada:

[...] porque seus membros nunca conhecerão todos os demais; na mente de cada indivíduo reside uma imagem da comunidade da qual participam. Ou seja, ainda que os limites de uma nação não existam empiricamente, seus indivíduos são capazes de criar e imaginar tais fronteiras, criando e imaginando seus membros.

Sua explanação segue para sustentar que além de imaginada, uma

comunidade também se configura como limitada em suas fronteiras por outros

territórios. Característica, segundo ele, fundamental para sustentar a ideia de

nacionalismo, já que seria inviável consolidar um sentimento nacionalista que

abarcasse toda a humanidade, dada a pluralidade de seus indivíduos. Também

é soberana, pois o surgimento do nacionalismo, segundo Anderson, relaciona-

se ao declínio dos sistemas tradicionais de governo – monarquia na Europa, ou

administração colonial nas Américas – e à construção de uma nacionalidade

baseada unicamente na identificação étnica ou geográfica.

A soberania nacional, sustentada pelo modelo referido no parágrafo

anterior, se configuraria como um símbolo de liberdade frente às estruturas de

dominação antigas – gerando novas estruturas de poder, como a administração

estatal, a divisão intelectual do trabalho, o capitalismo editorial e o surgimento

de práticas de controle estatal (censo para a população, mapas para o

território). Assim configurada, a nação permite a consolidação de uma

sociedade. Os mecanismos são semelhantes, porém cada nação possui

idiossincrasias que a torna diferente das demais.

No presente estudo, trataremos de delinear o perfil de uma nação

específica: a cubana. Em comum a todas da América Latina, Cuba possui um

passado ligado às tradições herdadas com a colonização europeia. Diferente

de todas sustenta, até os dias atuais, um sistema político bastante distinto dos

demais aplicados no continente americano. O domínio espanhol sobre Cuba

durou quatro séculos até que no ano de 1898, a invasão americana dá fim à

11

[...] porque uma nação é concebida enquanto estrutura horizontal na sociedade. Ou seja: é possível membros de diferentes classes sociais, em diferentes posições sociais, ocuparem um mesmo âmbito nacional e estarem vinculados por um projeto em comum. (ANDERSON 2008: 34)

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72

soberania espanhola, para iniciar um governo militar na ilha sob o comando

dos Estados Unidos, através do Tratado de Paris. A partir daí o governo

estadunidense começou a criar propostas econômicas que promoviam apenas

benefício próprio. O sentimento de revolta e exploração continuou a ser

alimentado. A única diferença era que o novo monopolizador pertencia ao

mesmo continente.

Diversos movimentos em prol da total libertação de Cuba foram colocados

em prática, porém o único que obteve um resultado concreto foi o que todos

conhecemos como Revolução Cubana, liderada por Fidel Castro em 1959.

Para retratar poeticamente, o momento revolucionário vivido em Cuba,

seguiremos com a análise da composição poética “Tengo”, de acordo com a

análise proposta pela pesquisadora Mariluci Guberman em seu artigo “ El mar y

La montaña” . Em seguida à análise de España (poema en cuatro angustias y

una esperanza) como mostra da solidariedade latino-americana com as

gerações que vivem nas terras de onde partiram os colonizadores do Novo

mundo.

Page 74: A poesia de Nicolás Guillén e a representação da identidade

73

2.1 Revolução cubana: do literal ao literário

O poema se inicia com a enunciação de um eu-lírico que volta seus

olhos para si:

Cuando me veo y toco

Yo Juan sin Nada no más ayer,

y hoy Juan con Todo,

y hoy con todo

vuelvo los ojos, miro,

me veo y toco

Y me pregunto cómo ha podido ser.

Em “Tengo” é possível perceber o envolvente jogo fonomelódico ¹ de um eu-

lírico que dialoga absorto em uma atmosfera revolucionária. Musicalidade que

se apresenta ao longo do poema para embalar o canto de celebração da

Revolução Cubana. Consideremos o seguinte verso:

[K]uan[d]o [m]e [v]eo y [t]o[k]o

A composição fonética da estrofe inicial faz uso do jogo entre

consoantes oclusivas [k,d,t] que sustentam o verso juntamente com a nasal e a

fricativa [v] com o fim de reforçar o ritmo poético desde o início da poesia. Vale

esclarecer, que uma oclusão se caracteriza pela obstrução momentânea de

uma abertura produzindo um som denominado explosivo. No poema “Tengo”

esse efeito entra em conformidade com as características do Son cubano que,

segundo José Urfe apresenta-se como uma das manifestações mais

representativas da identidade cultural cubana, pois possui suas raízes surgidas

“de la entraña popular”. Além disso, o efeito “explosivo” causado pelas

consoantes oclusivas nos remete à sensação do estalar causado pelos

acontecimentos ocorridos na ilha de cuba.

Page 75: A poesia de Nicolás Guillén e a representação da identidade

74

O uso de maiúsculas evidencia uma mudança significativa do eu-lírico

que se pode notar externamente, assim que ele volta seus olhos para si e se

toca:

Yo Juan sin Nada no más ayer

[...]

y hoy Juan con Todo

Ao utilizar maiúsculas nos vocábulos “Nada” e “Todo” o autor transforma o par

de adjetivos em uma significativa antítese, que envolve dois momentos vividos

pelo povo cubano. Juan sin “Nada” em um momento passado, marcado pelo

advérbio “ayer”, em contraposição a um Juan con “Todo” inserido em um

momento presente, confirmado pelo uso do advérbio “hoy”.

Por extensão de sentido, o substantivo “sobrenome” está definido como

elemento que caracteriza uma pessoa ou objeto. Dessa forma entende-se

perfeitamente o intento de personificar em Juan o sentimento coletivo da ilha

atribuindo-lhe como sobrenome, ora o adjetivo “Nada” para marcar um

momento de renúncias e misérias e ora o adjetivo “Todo” com o fim de

manifestar o sentimento de esperança renovada com o êxito da Revolução

liderada por Fidel Castro como tratamos no capítulo I.

Em seguida, tem-se o desenvolvimento desta descoberta interna que o

eu-lírico inicia na primeira estrofe. Assim como o indivíduo passa a descobrir o

que possui, também a nação cubana volta os olhos sobre a realidade,

exaltando suas belezas, como em:

Tengo, vamos a ver,

tengo el gusto de andar por mi país,

dueño de cuanto hay en él,

mirando bien de cerca lo que antes

no tuve ni podía tener

[…]

y un ancho resplandor

de rayo, estrella, flor.

Page 76: A poesia de Nicolás Guillén e a representação da identidade

75

E também de exercer o direito de expressar-se na língua que escolheu como

afirma em:

[…]

tengo el gusto de ir

(es un ejemplo)

a un banco y hablar con el administrador,

no en inglés,

no en señor,

sino decirle compañero como se dice en español.

Nota-se, com isso, um representativo jogo do poeta com a memória

individual e coletiva da população cubana. Segundo Walter Benjamin a

memória configura-se como a busca do passado no momento presente; sendo

assim, o poeta busca em sua memória um acontecimento passado com o fim

de valorizar o momento presente. Ao afirmar que não necessita mais

comunicar-se “en inglés”, Guillén faz uma alusão à relação de dependência

vivida por Cuba em tempos de regime imperialista sob o controle dos Estados

Unidos. As conquistas alcançadas com a Revolução liderada por Fidel Castro

têm especial destaque nos seguintes fragmentos:

Tengo, vamos a ver,

Que siendo un negro

Nadie me puede detener a la puerta de un dancing o de un bar.

[…]

Que no hay guardia rural

que me agarre y me encierre en un cuartel,

ni que me arranque y me arroje de mi tierra

al medio del camino real.

Antes da revolução, o desemprego atingia uma grande parte da força de

trabalho. Segundo dados fornecidos pela UNESCO, antes de 1959, o

analfabetismo atingia 35% da população. As terras estavam concentradas nas

mãos de latifundiários e empresas norte-americanas. Depois da tomada de

poder, empresas estrangeiras e a burguesia foram expropriadas, a reforma

Page 77: A poesia de Nicolás Guillén e a representação da identidade

76

agrária foi realizada e implantou-se também uma forte política de combate ao

analfabetismo no país. Por muitos anos a taxa de desemprego foi menor que a

dos países considerados desenvolvidos.

Cuba também conquistou avanços significativos em setores como

educação e saúde pública. Essa série de acontecimentos elevou o sentimento

nacionalista da população, levando-os a crer na “redenção de Cuba”, por meio

do líder da revolução, Fidel Castro. Uma mostra desse sentimento está

presente no seguinte fragmento:

Tengo vamos a ver,

que ya aprendí a leer,

a contar,

tengo que ya aprendí a escribir

ya a pensar

y a reír

A revolução Cubana se apresenta historicamente como um dos fatos

políticos mais significativos e que maior impacto causou na América Latina, ao

longo do século XX, não por seu caráter heroico e romântico, mas sim por

exprimir dramaticamente as contradições não resolvidas entre os Estados

Unidos e os demais países da região. Os atos da revolução, como a reforma

agrária, destoavam da política empreendida pelos Estados Unidos, que não

reconhecia os princípios da soberania nacional e autodeterminação dos povos.

Com o bloqueio econômico à Ilha, as ideias de Fidel Castro vão se aproximar

às existentes na política vigente na União Soviética.

Encontramos no livro De Martí a Fidel, publicado pelo historiador Luiz

Alberto Moniz Bandeira (2008:184) uma citação presente no jornal El Mundo no

ano de 1959 que permite uma melhor compreensão do processo revolucionário

cubano:

A ideologia de nossa revolução é bem clara: não só oferecemos aos homens liberdades, mas também oferecemos pão. Não oferecemos somente pão, mas também liberdades. Nossa posição ideológica é clara e terminante. Nosso respeito para todas as ideias, para todas as crenças, porque não tememos nenhuma ideia, porque temos

Page 78: A poesia de Nicolás Guillén e a representação da identidade

77

confiança em nosso próprio destino e porque temos a concepção também de que democracia não admite flexão.

Processo cujos resultados se vislumbram nos versos a seguir:

[…]

Tengo que como tengo la tierra y el mar,

No country,

No high life

No tennis y no yacht,

Sino de playa en playa y ola en ola,

Gigante, azul abierto democrático:

En fin, el mar.

Outro aspecto interessante a destacar na estrofe é a simbologia contida

no vocábulo “mar”. O mar é símbolo da dinâmica da vida. Tudo sai do mar e

tudo retorna a ele: lugar dos nascimentos, das transformações e dos

renascimentos. Pelas águas chegaram os conquistadores europeus para

colonizar; por elas também chegaram os escravos para trabalhar duramente na

exploração da cana de açúcar em Cuba.

Ao afirmar que o mar encontra-se “Gigante, azul abierto democrático”,

Guillén associa a natureza transitória das águas marinhas às realidades

vivenciadas em Cuba numa possível tentativa de explicitar o processo de

mudança entre as possibilidades ainda incipientes. A situação de ambivalência

concluiu-se, no plano simbólico, beneficamente. Encerra-se a composição

poética com uma síntese da observação iniciada pelo eu-lírico na primeira

estrofe.

Tengo que ya tengo

donde trabajar

y ganar

lo que me tengo que comer.

Tengo, vamos a ver,

tengo lo que tenía que tener.

Page 79: A poesia de Nicolás Guillén e a representação da identidade

78

Com as reformas implementadas pelo regime revolucionário de Fidel

Castro, é possível afirmar que os cubanos alcançaram condições de trabalho,

estudo, saúde que lhe garantiam uma sobrevivência ainda não experimentada.

O sentimento de satisfação com as conquistas está marcado na estrofe que

encerra o poema, que em todos os seus versos, esteve em consonância com o

que dizia o poeta nicaraguense Rubén Darío sobre a maneira como o mesmo

compunha seus escritos: “al componer sus versos [...] obedecía al divino

imperio de la música, música de las ideas, música d.;el verbo”.

2.2 “ESPAÑA”: a imagem do caos

Existe muito de vida em toda manifestação artística. No entanto, para

que a primeira se justifique como arte é necessário todo um trabalho de

eternizar o fato como um evento; de trazer o real para o campo polissêmico da

verossimilhança. O acontecimento da Guerra Civil se caracteriza, como um fato

que abalou o mundo. Nele estiveram presentes todos os elementos militares e

ideológicos que marcaram o século XX.

De um lado posicionaram-se representantes do nacionalismo e do

fascismo, que estabeleceram aliança com classes e instituições tradicionais da

Espanha (O Exército, a Igreja e o Latifúndio) e, em oposição, a Frente Popular

que compunha o Governo Republicano, representando os sindicatos, os

partidos de esquerda e os partidários da democracia.

Inúmeros segmentos da sociedade retomaram, e seguem retomando,

o tema da Guerra Civil espanhola, mas não como um exemplo a ser seguido e

sim como um doloroso episódio que deve ficar eternamente marcado na

memória de todos para que o caos provocado por essa guerra nunca volte a

acontecer. Literariamente, Guillén transforma a história real em poesia.

Transporta o cenário triste e desestabilizador da guerra para o palco das

letras, do papel e da inspiração criadora.

Em seu sentido primeiro, a guerra constitui-se como imagem da

calamidade universal, do triunfo da força cega. É a força que permite a

Page 80: A poesia de Nicolás Guillén e a representação da identidade

79

consolidação do caos. Nesse estágio, observa-se uma total desestruturação

das formas, no entanto é simplista afirmar que a destruição e o caos tenham

relação direta com uma realidade estática e imutável. Propõe-se, no presente

estudo, apresentar o caos como início de um processo que culmina em

renovação.

A palavra caos simboliza uma situação anárquica, que precede a

manifestação das formas. Ao aliar tal conceito com à criação simbólica do fim

do caos, sugere a ideia de contemplar a guerra como um espaço dúbio em que

se encontra lugar para a vida e a morte; para o começo e para o fim. O poema

composto pelo cubano Nicolás Guillén, objeto que conclui as análises de nosso

capítulo, divide-se em cinco poesias que serão analisadas a seguir:

Angustia Primera: Mirada de metales y de rocas

Em Angustia primera temos “miradas de metales y de rocas” que

aludem figuras presentes no cenário da Colonização da América de língua

espanhola. O sentido-chave desse momento poético é o da visão. Através dos

versos de Guillén, vemos “hombres rudos saltando el tiempo”. Faz-se menção

a importantes símbolos que figuraram em um embate anterior ao vivido na

Espanha do século XX numa tentativa de resgatar o passado de disputas vivido

nos anos de expansão europeia.

Neste cenário não se encontrará mais “Pizarro” ou “Cortés” –

conquistadores espanhóis eternamente presentes na memória coletiva das

nações – tampouco existem “Aztecas” ou “Incas” – termos que nos remetem às

civilizações que viviam na América antes da conquista espanhola. Tem-se no

momento descrito, um grupo de “milicianos” que recebem o adjetivo de

“remotos” para ressaltar que é através de suas “callosas, duras manos” que

conseguem “Aquí, con sus escudos” se unir como “cercanísimos hermanos” em

favor do fim da guerra , na qual “ Soldado, obrero, artista las balas cogen para

sus ametralladoras”.

Page 81: A poesia de Nicolás Guillén e a representação da identidade

80

No Cortés, ni Pizarro

(aztecas, incas, juntos halando el doble carro).

Mejor sus hombres rudos

saltando el tiempo. Aquí, con sus escudos.

Aquí, con sus callosas, duras manos;

remotos milicianos

al pie aquí de nosotros,

clavadas las espuelas en sus potros;

aquí al fin con nosotros,

lejanos milicianos,

ardientes, cercanísimos hermanos.

Ainda sobre a referida estrofe, cabe destacar a afirmação do sociólogo

Zygmunt Bauman (2008: 17-18) sobre a questão da identidade:

[...] o “pertencimento” e a “identidade” não têm a solidez de uma rocha, não são garantidas para toda a vida, são bastante negociáveis e revogáveis, e de que as decisões que o próprio indivíduo toma, os caminhos que percorrre, a maneira como age – e a determinação de se manter firme a tudo isso – são fatores cruciais tanto para o “pertencimento” quanto para a “identidade”.

Esses homens “rudos” de mãos “callosas” são apenas “lejanos”,

“remotos milicianos”, tal realidade não faz parte de suas vidas, não foi esse o

caminho que escolheram percorrer, no entanto os valores pessoais que

envolvem seus conceitos sobre o pertencimento a uma nação os irmanam em

uma comunidade de destino12.

Na estrofe a seguir temos muitos elementos que representam o

poderio bélico imperialista. Símbolo de um poder que se funde em “aguas

quemadoras”. Ainda sobre a escolha vocabular da segunda estrofe temos a

informação, de acordo com os estudos do historiador Eric Hobsbawn, que o

palco armado na Guerra Civil espanhola serviu para testar armas de destruição

e novas técnicas de guerrilha, a serem adotadas logo a seguir tanto na

Alemanha nazista, quanto na Itália fascista na 2ª Guerra Mundial. Sendo assim

12

Comunidades de destino são aquelas nas quais os indivíduos se fundem unicamente por ideias ou por uma variedade de princípios. In: Bauman 2005

Page 82: A poesia de Nicolás Guillén e a representação da identidade

81

Guillén, em seus versos, retrata esse tenebroso laboratório do caos, como

confirmam os seguintes versos:

Los hierros tumultuosos

de lanzas campeadoras;

las espadas, que hundieron su punta en las auroras;

las grises armaduras,

los ingenuos arcabuces fogosos,

os clavos y herraduras

de las equinas finas patas conquistadoras;

los cascos, las viseras, las gordas rodilleras,

todo el viejo metal imperialista

corre fundido en aguas quemadoras,

donde soldado, obrero, artista,

las balas cogen para sus ametralladoras

O poeta nos convida também a olhar a “España rota”. A vislumbrar seu

cenário de dor, existem “pájaros volando sobre ruínas”; “faroles sin luz en las

esquinas”. Todo o horror expresso em “gritos que se asoman a las bocas”; ante

a “miradas de metales y de rocas” que compõem o cenário captado por “ojos

coléricos, abiertos, bien abiertos.”

¡Miradla, a España rota!

Y pájaros volando sobre ruínas,

Y el fachismo y su bota,

Y faroles sin luz en las esquinas,

Y los puños en alto,

Y los pechos despiertos,

Y obuses estallando en el asfalto

Sobre caballos ya definitivamente muertos

Y lágrimas marinas,

saladas, curvas, chocando contra todos los puertos;

y gritos que se asoman a las bocas

y a los ojos coléricos, abiertos, bien abiertos,

miradas de metales y de rocas.

Page 83: A poesia de Nicolás Guillén e a representação da identidade

82

Tem-se na presente estrofe, uma sucessão de flashes que nos

mostram todo o horror vivenciado. O poeta nos convida a olhar o resultado

deste acontecimento, porém provoca vários dos sentidos vitais com suas

imagens poéticas. O estalar dos “obuses”, o gosto salgado das “lágrimas

marinas” contemplados em “miradas de metales y de rocas”.

Angustia Segunda: Tus venas, la raíz de nuestros árboles

Para dar continuidade à composição temos Angustia segunda. A vida

que corre e morre é representada nesse momento poético. Não só a existência

humana, mas toda forma de criação da natureza participa do intento integrador,

que se apresenta como traço marcante na poética do cubano Nicolás Guillén.

No fragmento “La raíz de mi árbol, de tu árbol” está “ bebiendo sangre”, está

“húmeda de sangre”, figura-se o sangue dos combatentes que jazem no chão.

Que tiveram esvaziadas suas veias, perdendo suas vidas “en lo más hondo de

mi tierra”.

La raíz de mi árbol, retorcida;

la raíz de mi árbol, de tu árbol, compañero

de todos nuestros árboles,

bebiendo sangre, húmeda de sangre,

la raíz de mi árbol, de tu árbol.

Yo la siento,

la raíz de mi árbol, de tu árbol,

de todos nuestros árboles,

la siento

clavada en lo más hondo de mi tierra,

clavada allí, clavada,

arrastrándome y alzándome y hablándome,

gritándome.

La raíz de tu árbol, de mi árbol.

Page 84: A poesia de Nicolás Guillén e a representação da identidade

83

Como pode ser observado na estrofe anterior e reiterado na estrofe que

se lerá a seguir, o eu – lírico envolve-se totalmente com a nação espanhola ao

dizer que sente a raiz dessa árvore. Árvore que o próprio sujeito poético afirma

estar “clavada” em sua terra, inserindo-se como parte desta comunidade:

En mi tierra, clavada,

con clavos ya de hierro,

de pólvora, de piedra,

y floreciendo en lenguas ardorosas,

y alimentando ramas donde colgar los pájaros cansados,

y elevando sus venas, nuestras venas,

tus venas, la raíz de nuestros árboles.

A árvore é símbolo de vida em eterna evolução e em ascensão para o

céu; suas raízes sempre exploram as profundezas. No caso da poesia em

estudo estão “clavadas” “bebiendo sangre”. É ela o veículo que eleva este

sangue derramado no solo “de pólvora, de piedra” e o carrega em “sus venas”

ao longo do seu tronco que encaminha para suas folhas e frutos, permitindo

uma aproximação com outra realidade: o céu. Por esse elemento da natureza é

dada a conexão entre homem e natureza e quando este primeiro jaz sem vida,

em terra, é a arvore que conduz seu sangue, seu sopro de vida para a esfera

celestial.

Angustia tercera: Y mis huesos marchando en tus soldados.

A morte, enquanto símbolo, o aspecto finito e destrutível da existência.

Indica aquilo que deixa de existir na evolução irreversível das coisas. Pode ser

considerada como revelação e introdução. Em Angustia tercera, a figura da

morte, que aparece disfarçada, se mostra para anunciar o fim de um dos

poetas mais representativos do cenário literário hispânico:

Page 85: A poesia de Nicolás Guillén e a representação da identidade

84

La muerte disfrazada va de fraile.

Con mi camisa trópico ceñida,

pegada de sudor, mato mi baile,

y corro tras la muerte por tu vida.

Guillén sai de sua recorrente musicalidade, essencialmente oral, de

ritmo envolvente e inebriante em busca do amigo-poeta. Ao matar seu “baile”, o

poeta assume que não medirá esforços para correr “tras la muerte” em busca

da vida de seu amigo desaparecido.

O sangue é novamente evocado. Porém agora sua simbologia se

encaminha para conotar o sangue como elemento orientador da busca pelo

poeta até então desaparecido. Este sangue, que vem do poeta desaparecido,

se irmana ao que se encontra em Guillén, pois “Las dos sangres de ti que en

mi se juntan”, e reclamam “por tus llagas fúlgidas” alimentando o desejo em

fazer justiça, em ver “secos a los hombres que te hirieron”. Como se pode

comprovar nos versos que se seguem:

Las dos sangres de ti que en mi se juntan,

vuelven a ti, pues que de ti vinieron,

y por tus llagas fúlgida, preguntan.

Secos veré a los hombres que te hirieron.

Na estrofe seguinte, Guillén faz uso de alguns símbolos para figurar

em sua composição poética os participantes do combate espanhol. O eu –

lírico assume, claramente, sua posição político-ideológica frente aos

acontecimentos. Como pode ser lido nos versos:

Contra cetro y corona y manto y sable,

pueblo, contra sotana, y yo contigo,

y con mi voz para que el pecho te hable.

Yo, tu amigo, mi amigo; yo, tu amigo.

É possível chegar a tal dedução se observarmos a seleção vocabular e

a associação a ela feita. O sujeito poético afirma estar “Contra cetro y corona”,

Page 86: A poesia de Nicolás Guillén e a representação da identidade

85

que representam objetos do poder central e podem ser relacionados à postura

tirana assumida pelo General Francisco Franco. Está também contra o “sable”

que possivelmente se apresenta como uma associação à guerra. O sabre,

arma branca que se associa à espada, pode apropriar-se também de sua

simbologia que nos remete ao estado militar e seu poderio.

Outro aspecto relevante a ser destacado é a indignação, demonstrada

na poesia, em relação à indiferença assumida pelos então dirigentes da Igreja

Católica diante do contínuo massacre ocorrido na Guerra Civil espanhola. Essa

contrariedade se vê expressa ao enunciar, em seus versos, que estaria contra

“sótana”.13

A voz que clama na poesia está com o povo. Povo que está contra

todas as forças ideológicas que resistem ao fim do martírio vivido pela

Espanha. O eu – lírico se une então ao povo e usa sua voz para seguir na

busca por justiça. Busca por “montañas grises”, “sendas rojas” e “caminos

desbocados”. A montanha poderia representar o símbolo de ligação entre a

terra e o céu, dada a sua extensão, conotando a dimensão da procura. Os

caminhos vermelhos e “desbocados” conduzem o leitor a vislumbrar o furor

destrutivo que arrasa todo o país.

En las montañas grises; por las sendas

rojas; por los caminos desbocados,

mi piel, en tiras, para hacerte vendas,

y mis huesos marchando en tus soldados.

Esse amplo enfrentamento ideológico, revelado na penúltima estrofe,

fez com que a Guerra Civil deixasse de ser um acontecimento puramente

espanhol para tornar-se uma prova de força entre as lideranças que

disputavam a hegemonia do mundo. De alguma maneira, muitas nações

manifestaram sua solidariedade à causa vivida pelos espanhóis, o que nos faz

13

Subst:Vestimenta utilizada pelos sacerdotes. In: Señas: diccionario para la enseñanza de la lengua española para brasileños. Tradução de Eduardo Brandão, Claudia Berliner. 2ª Edição – São Paulo: Martins Fontes, 2001

Page 87: A poesia de Nicolás Guillén e a representação da identidade

86

compreender o porquê do poeta enunciar que em seus “huesos” marchariam

“tus soldados”.

Angustia cuarta: Federico

A quarta e última angústia composta por Guillén anuncia a morte de

Federico Garcia Lorca. O poeta nasceu em Fuentevaqueros (Granada) no ano

de 1898 e foi assassinado em Viznar (Granada) em agosto de 1936. O fato de

Garcia Lorca, muito querido por todos, ter sido umas das primeiras vítimas

fatais do regime de Franco colocou-o durante longo tempo como uma figura

simbólica no combate à opressão, fazendo com que vários poetas e escritores

viessem a render-lhe homenagens.

Uma de suas inúmeras obras de notório reconhecimento é o

Romancero Gitano (1928), composto por dezoito poemas nos quais se

encontram os motivos andaluzes, um tema de destaque na poética de Lorca. A

referida obra representa uma grande síntese entre poesia popular e erudita.

Trata de representar, de maneira metafórica e mítica, Andalucía e o mundo

cigano. Na presente análise, nos apropriaremos de alguns símbolos

recorrentes no “romancero” de García Lorca, com o fim de estabelecer um

diálogo entre as composições literárias selecionadas de forma substancial.

Ao longo da poesia do poeta cubano, pode-se notar o uso da

linguagem fática. O diálogo estabelecido em Angustia Cuarta dá continuidade

e consistência à busca iniciada em Angustia tercera. Como se observa nos

seguintes versos:

Toco a la puerta de un romance.

-¿No anda por aquí Federico?

-Un papagayo me contesta:

-Ha salido.

Page 88: A poesia de Nicolás Guillén e a representação da identidade

87

O sujeito poético inicia sua busca batendo à porta de um romance14 É

a primeira referência à memória de Federico García Lorca. Ao longo da poesia,

Guillén evoca a figura do poeta espanhol utilizando-se de vários elementos que

compõem o universo poético do compositor do Romancero Gitano.

Quem está por trás da porta e responde à pergunta do sujeito poético

é uma ave. Em grego o vocábulo que designa ave, pássaro, era considerado

sinônimo de presságio e de mensagem do céu. Aliada a esta informação, tem-

se de considerar também uma característica pertinente à espécie escolhida por

Guillén para responder sobre o paradeiro do poeta García Lorca. Ao escolher

um papagaio para figurar a cena, é inegável ressaltar uma especial habilidade

desta ave: a de simplesmente repetir algo dito por terceiros.

Por uma denúncia anônima, García Lorca foi detido, e as

investigações sobre seu paradeiro nunca tiveram consistência suficiente. Diz-

se que o poeta foi enterrado em uma cova comum e anônima em um lugar não

determinado. Tantas incertezas acerca de um mesmo acontecimento só podem

ser justificadas se pensarmos na maneira como os fatos ocorreram e

principalmente como percorreram o tempo e o espaço. Nenhuma prova

contundente. Apenas ecos, repetições de discursos sem rosto e sem nome.

Na estrofe seguinte, parte-se para uma porta de cristal. O material do

qual se compõe a porta pode nos remeter à ideia de que o cristal, por sua

transparência, permite que se veja através dele. Desta forma sua propriedade

material se reestrutura para sustentar a sua simbologia de constituir-se como

representação intermediária entre o visível e o invisível. Aos associar tal

significação aos acontecimentos retratados na poesia, pode-se compreender

melhor a resposta da voz, que tem apenas mão, ao dizer que Federico “está en

el rio”. Como corrobora a seguinte estrofe:

14

O romance é em poema característico da tradição literária ibérica, composto usando a combinação métrica homônima. Característico da tradição oral se populariza no século XV, no qual se recolhem pela primeira vez escritos em “romanceros.” Os romances são geralmente poemas narrativos, com uma grande variedade temática, segundo o gosto popular do momento e de cada lugar. In: Señas: diccionario para la enseñanza de la lengua española para brasileños. Tradução de Eduardo Brandão, Claudia Berliner. 2ª Edição – São Paulo: Martins Fontes, 2001.

Page 89: A poesia de Nicolás Guillén e a representação da identidade

88

Toco a una puerta de cristal.

-¿No anda por aquí Federico?

Viene una mano y me responde:

-Está en el río

Rio que tanto pode representar o curso da vida, se nos detemos a sua figura

como um todo, como o seu fim, já que o curso das águas é a corrente da vida e

da morte.

A terceira estrofe dedicada ao poeta Federico García Lorca, alude à

figura do cigano (Gitano). Personagem-chave em sua reconhecida obra

“Romancero Gitano”. Porém, desta vez “Nadie responde, no habla nadie...” O

cigano, constantemente marginalizado por uma sociedade que não

compreende seus códigos e crenças, vive em constante partida, sempre à

margem da sociedade dominante. Ao identificar-se com os ciganos e com

ideologias diferentes das impostas pelo poder vigente, Lorca passa também a

ser um perigoso ícone que deveria ser expurgado da realidade. Como mostra a

estrofe que se segue:

Toco a la puerta de un gitano.

-¿No anda por aquí Federico?

Nadie responde, no habla nadie...

-¡Federico! ¡Federico!

As estrofes seguintes tratam de intensificar o ritmo desesperado na

procura por notícias. A casa escura, vazia, as cores negro e verde, a

vegetação. Todos esses elementos, assim como no Romancero de García

Lorca, circundam um cenário de morte. O vento que no poeta andaluz

significaria o erotismo masculino está “rojo” no poeta cubano. Vermelho de

sangue agitando-se entre “las ruínas”, como se pode verificar nos versos:

La casa oscura, vacía;

negro musgo en las paredes;

brocal de pozo sin cubo,

Page 90: A poesia de Nicolás Guillén e a representação da identidade

89

jardín de lagartos verdes.

Sobre la tierra mullida

caracoles que se mueven,

y el rojo viento de julio

entre las ruinas, meciéndose.

¡Federico!

¿Dónde el gitano se muere?

¿Dónde sus ojos se enfrían?

¿Dónde estará, que no viene!

As perguntas, que encerram a estrofe que acaba de ser lida, têm sua

resposta em forma de canção quando uma voz enuncia:

Salió el domingo, de noche,

salió el domingo, y no vuelve.

Llevaba en la mano un lírio,

llevaba en los ojos fiebre;

el lírio se tornó sangre,

la sangre tornóse muerte.

O lírio, quando associado ao simbolismo das águas, da lua e dos sonhos torna-

se a flor do amor, de um intenso amor, mas que na sua ambiguidade pode ficar

irrealizado, reprimido ou sublimado. Ao converter-se em sangue, o amor de

García Lorca foi reprimido, porém sua sublimação ocorre após sua morte como

veremos adiante. Em seu “Momento en García Lorca”, o poeta encerra a sua

procura, narrando o modo como acredita ter se dado o fim do poeta espanhol

ao enunciar:

Soñaba Federico en nardo y cera,

Y aceituna y clavel y luna fría.

Federico, Granada y Primavera

[…]

“¡Federico!”, gritaron de repente,

Con las manos inamóviles, atadas,

Gitanos que pasaban lentamente.

Page 91: A poesia de Nicolás Guillén e a representação da identidade

90

¡Qué voz la de sus venas desangradas!

¡Qué ardor el de sus cuerpos ateridos!

[…]

Caminaban descalzos los sentidos.

[…]

Alzóse Federico, en Luz bañado.

Federico, Granada y primavera.

Y con la luna y clavel y nardo y cera,

los siguió por el monte perfumado.

La voz esperanzada: Una canción alegre en la Lejanía

La voz esperanzada encerra o cantar de Nicolas Guillén apresentando

primeiramente uma Espanha personificada, destruída pelos horrores da guerra,

mas que se mantém de pé. Representando uma nação lutadora, mesmo

estando “sangrienta, desangrada, enloquecida!” se levanta. Bachelard em seu

livro O ar e os sonhos (2001) destaca a importância da imagem da

verticalização na construção do poema:

A valorização vertical é tão essência, tão segura, sua supremacia é tão indiscutível, que o espírito não pode esquivar-se a ela depois de tê-la reconhecido uma vez em seu sentido imediato e direto. Não se pode dispensar o eixo vertical para exprimir os valores morais. Quando tivermos compreendido melhor a importância de uma física da poesia e de uma física da moral, chegaremos a esta convicção: toda valorização é vertical.

O campo semântico do fogo aparece em todas as partes da poesia.

Guillén dá a sua composição o tom vermelho, o calor da brasa queimadora que

se abranda somente com o ecoar das canções entoadas.

¡ Ardiendo, España, estás! Ardiendo

Com largas uñas rojas encendidas;

A balas matricidas

Pecho, bronce oponiendo,

Y en ojo, boca, carne de traidores hundiendo

Las hojas uñas largas encendidas.

Alta, de abajo vienes,

Page 92: A poesia de Nicolás Guillén e a representação da identidade

91

A raíces volcánicas sujeta;

Lentos, azules cables con que tu voz sostienes,

Tu voz de abajo, fuerte, de pastor y poeta.

(…)

Sales de ti; levantas

La voz, y te levantas

Sangrienta, desangrada, enloquecida,

Y sobre la extensión enloquecida

Más pura te levantas, te levantas.

A origem mestiça do poeta é um assunto recorrente em suas obras; no

entanto, o elemento que se objetiva destacar com tais recursos é a afirmação

da identidade. Em nenhum momento rechaçar sua origem, mas sim afirmar a

todo instante a pluralidade que nasce ao entender identidade como um

conceito de estado em constante evolução. O filósofo mexicano Leopoldo Zea

(2002:39), exemplifica bem o conceito que se pretende expor no referido item:

Todos os homens e povos são iguais pelo fato de serem distintos; por contar com uma personalidade e uma individualidade singulares. Encontramo-nos ante seres humanos concretos que lutam para fazer patente sua identidade, por intervir como pares junto aos demais. Afirma-se a igualdade, a partir das filiações peculiares e sem desmedir o entendimento mutuo.

Yo,

Hijo de América

Hijo de ti y de África

[…]

Corro hacia ti, muero por ti.

[…]

Yo, que amo la libertad con sencillez,

[…]

Yo os grito con voz de hombre libre que os acompañaré

Camaradas;

Que iré marcando el paso con vosotros,

Simple y alegre,

Puro, tranquilo y fuerte,

Page 93: A poesia de Nicolás Guillén e a representação da identidade

92

A partir desse conceito congregador de identidade, Guillén convoca os

combatentes, vindos de todas as partes, praticantes de todas as artes. Numa

só canção se unem “mulero”, “cantinero”, “ minero”:

Para cambiar unidos las cintas trepidantes de vuestras ametralladoras

[…]

Otra vida sencilla y ancha,

Alta, limpia, sencilla y ancha,

Sonora de nuestra voz inevitable.

É recorrente na poética de Guillén a presença da musicalidade. Muito mais que

um recurso estilístico que confere ritmo e emoção à composição poética, é um

importantíssimo elemento integrador. Esse artifício já era utilizado na cultura

pré-hispânica e na antigüidade oriental e ocidental. Guardiã e Wierzeyski

(1876: 729) confirmam o acima exposto ao afirmar que:

A poesia, [...], é a expressão musical do pensamento. Nasce do sentimento, do ritmo e da harmonia a cujas leis se acomoda a palavra. A música, [...] que empresta à poesia um dos seus dois elementos essenciais, tem por si própria um caráter mais definido.

É o que vemos expresso, nos versos:

Nos perderemos a lo lejos… se borrará la oscura masa

De hombres, pero en el horizonte, todavía

Como en un sueño, se nos oirá la entera voz vibrando:

[…]

Todos el camino sabemos;

Están los rifles engrasados;

Están los brazos avisados:

¡ Marchemos!

Junto a tal intento, tem-se também o canto como a esperança que faz

crer em um amanhã renovador. Como se vislumbra nos versos seguintes:

Page 94: A poesia de Nicolás Guillén e a representação da identidade

93

Nada importa morirse al cabo,

Pues morir no es tan gran suceso;

Muchísimo peor que eso

Es estar vivo y ser esclavo!

[…]

… El camino sabemos…

… los rifles engrasados…

… están los brazos avisados…

Fig 3

Y la canción alegre flotará como una nube sobre la roja lejanía.

Deixando no ar a ideia de uma vida além do plano material, que possui a morte

como trilha e a eternidade como estação final.

Page 95: A poesia de Nicolás Guillén e a representação da identidade

94

Conclusão

O estudo analítico-crítico das composições poéticas de Nicolás Guillén

em diálogo com outras criações artísticas, como a canção do Trio Matamoros,

o poema de José Zacarias Tallet e os elementos utilizados no Romancero

Gitano de García Lorca, permitiu delinear o resultado da práxis poética de

Guillén como uma metáfora de Cuba.

Ao privilegiar a exposição da questão identitária cubana, buscou-se

apresentar os possíveis desdobramentos dos pontos abordados ao longo dos

capítulos: a marcada influência do contexto literal na produção literária do

século XX; a relação entre o pensamento artístico (manifestado na poesia e na

música) e o processo de conformação de visões do nacional em Cuba; o papel

dos intelectuais na construção de imagens do país e o conceito de

transculturação como paradigma do nacional, que não se limitou à fronteiras

geográficas.

Assim sendo, foi possível observar que desde o século XIX, tentou-se

articular um sentido de unidade, nascido da heterogeneidade, na definição do

que seria o nacional no mundo antilhano, em especial, no cubano. Tentativa

que se vislumbra no corpo do sujeito poético de “Balada de los dos abuelos”

em uma perspectiva nacional ou em “España” desde uma mirada

extracontinental.

A nova dimensão dada às manifestações populares se apresenta como

uma tentativa dos letrados de articular visões do outro para dar corpo e alma à

nação imaginada. Já que a Guillén foi destinada a tarefa de reconhecer as

essências nacionais do “povo”, redefinindo-as e projetando-as dentro de uma

nação moderna, porém não sob o rótulo de mescla, mas sim de acordo com as

premissas propostas pelo conceito de transculturação. Essências que se

vislumbram em composições como “Rumba” e “Secuestro de La mujer de

Antonio”

Nas composições poéticas de Nicolás Guillén se observa que há

espaço para o popular e o erudito. Não se preconiza um estilo, um autor, um

Page 96: A poesia de Nicolás Guillén e a representação da identidade

95

ritmo; contempla-se a habilidade em traduzir os anseios de um povo em

fervilhante processo de amadurecimento. Alia de forma brilhante os queixumes

das décimas às narrativas do romance espanhol, os ritmos de origem africana

à diversidade do cancioneiro popular sem deixar de obter como resultado o

reflexo da nação cubana.

A partir das análises propostas, sobretudo, nos capítulos Um olhar

sobre a práxis musical e poética em versos de Nicolás Guillén e O

contrapunteo de Guillén na tessitura simbólica da identidade antilhana, é

possível afirmar que as discussões em torno das manifestações artísticas em

Cuba, aqui representadas pelos poemas de Nicolás Guillén, estariam marcadas

pelas preocupações em torno da integração do nacional, o que estaria em

conformidade com o que afirma Benítez Rojo (1989:119 e 122) sobre a poesia

de Guillén, quando enuncia que esta seria:

[...] a tentativa de impregnar a sociedade da libido do negro transgredindo os mecanismos de censura sexual impostos a raça pelo Plantation [...] desinflar a agressividade do Plantation pela reinterpretação das origens nacionais.[...] Construir, ainda que simbólicamente, um espaço de coexistência racial, social e cultural.

O estreito vínculo entre a oralidade e a escrita em Cuba faz das

produções artísticas da ilha, desde as décimas camponesas até os tempos de

Nicolás Guillén, um canal expressivo de comunicação repleto de significação

cultural. Comprovando a hipótese de que nos versos de Guillén, contempla-se

o figurar de um processo que consiste em resgatar os valores da cultura local e

encontrar no embate entre cultura dominante e cultura marginalizada o cerne

de uma nova cultura.

Do exposto, Guillén é prova viva de que história e poesia, em

Cuba, representam a expressão nacional sempre que se trate de um poeta

genuíno. Desde que tenha suas veias atreladas às raízes de sua gente, seja

por seu avô negro ou seu avô branco, seja pela solidariedade expressa à

causa espanhola. Sempre que estas veias se nutram mutuamente em uma

mescla de sangue e seiva, se revelará a importância de uma obra como a de

Nicolás Guillén

Page 97: A poesia de Nicolás Guillén e a representação da identidade

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Figura 2 - Aquelarre en Cartagena, 1982 (fragmento) – Mural en acrílico in:

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Figura 2.1 – TANAKA, Beatrice: A história de Chico Rei: um rei africano no

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Figura 3: Disponível em: www.imagenesdeposito.com/guerra.Acessado em

15/07/2007

Page 103: A poesia de Nicolás Guillén e a representação da identidade

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Page 104: A poesia de Nicolás Guillén e a representação da identidade

Anexo

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La Rumba

Zumba, mamá, la rumba y tambó! ¡Mabimba, mabomba, mabomba y bongó! ¡Zumba, mamá, la rumba y tambó! ¡Mabimba, mabomba, mabomba y bongó! ¡Cómo baila la rumba la negra Tomasa! ¡Cómo baila la rumba José Encarnación! Ella mueve una pierna, ella mueve la otra, él se estira, se encoge, dispara la grupa, el vientre dispara, se agacha, camina, sobre el uno y el otro talón. ¡Chaqui, chaqui, chaqui, charaqui! ¡Chaqui, chaqui, chaqui, charaqui! Las ancas potentes de niña Tomasa en torno de un eje invisible, como un reguilete rotan con furor, desafiando con rítmico, lúbrico disloque, el salaz ataque de Ché Encarnación: muñeco de cuerda que, rígido el cuerpo, hacia atrás el busto, en arco hacia’lante abdomen y piernas, brazos encogidos a saltos iguales de la inquieta grupa va en persecusión. Cambia e’paso, Cheché; cambia e’paso, Cheché. Cambia e’paso, Cheché; cambia e’paso, Cheché. La negra Tomasa, con lascivo gesto, hurta la cadera, alza la cabeza, y en alto los brazos, enlaza las manos, en ellas reposa la ebónica nuca y, procaz, ofrece sus senos rotundos, que, oscilando, de diestra a siniestra, encandilan a Chepe Chacón. ¡Chaqui, chaqui, chaqui, charaqui! ¡Chaqui, chaqui, chaqui, charaqui! Frenético el negro se lanza al asalto

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y, el pañuelo de seda en sus manos, se dispone a marcar a la negra Tomasa, que lo reta, insolente, con un buen vacunao. “¡Ahora!”, lanzando con rabia el fuetazo, aúlla el moreno. (Los ojos son ascuas, le falta la voz y hay un diablo en el cuerpo de Ché Encarnación). La negra Tomasa esquiva el castigo y en tono de burla lanza un insultante y estridente “¡No!” y, valiente se vuelve y menea la grupa ante el derrotado José Encarnación. ¡Zumba, mamá, la rumba y tambó! ¡Mabimba, mabomba, mabomba y bomgó! Repican los palos, suena la maraca, zumba la botija se rompe el bongó. Y las cabezas son dos cocos secos en que alguno con yeso escribera, arriba, una diéresis, abajo un guión. Y los dos cuerpos de los dos negros son dos espejos de sudor. Repican las claves, suena la botija, se rompe el bongó. ¡Chaqui, chaqui, chaqui, chariqui! ¡Chaqui, chaqui, chaqui, chariqui! Llega el paroxismo, tiemblan los danzantes y el bembé le baja a Chepe Cachón; y el bongó se rompe al volverse loco, a niña Tomasa le baja el changó. ¡Piqui-tiqui-pan, piqui-tiqui-pan! ¡Piqui-tiqui-pan, piqui-tiqui-pan!

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Al suelo se viene la niña Tomasa, al suelo se viene José Encarnación; y allí se revuelcan con mil contorsiones, se les sube el santo, se rompió el bongó. ¡Se acabó la rumba, con-con-co-mabó! ¡Pa-ca, pa-ca, pa-ca, pa-ca, pa-ca! ¡Pam! ¡Pam! ¡Pam! Jose Z. Tallet

Page 108: A poesia de Nicolás Guillén e a representação da identidade

Rumba

La rumba revuelve su música espesa con un palo, Jengibre y canela.... ¡ Malo ! Malo, porque ahora vendrá el negro chulo Con Fela. Pimienta de la cadera, grupa flexible y dorada: rumbera buena, rumbera mala. En el agua de tu bata todas mis ansias navegan: rumbera buena, rumbera mala. Anhelo de naufragar En ese mar tibio y hondo: ¡ Fondo del mar ! Trenza tu pie con la música el nudo que más me aprieta; resaca de tela blanca sobre tu carne trigueña. Locura del bajo vientre, aliento de boca seca; el ron que se te ha espantado, y el pañuelo como riendas. Ya te cogeré domada, ya te veré bien sujeta, cuando como ahora huyes,

hacia mi ternura vengas, rumbera buena; o hacia mi ternura vayas rumbera mala. No ha de ser larga la espera, Rumbera Buena; Ni será eterna la bacha, Rumbera Mala; Te dolerá la cadera, Rumbera Buena; Cadera dura y sudada, Rumbera Mala... ¡ Último trago ! Quítate, córrete, vámonos... ¡ Vamos !

Nicolás Guillén

SECUESTRO DE

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Secuestro de la mujer de Antonio

Te voy a beber de un trago, como una copa de ron; te voy a echar en la copa de un son, prieta, quemada de ti misma, cintura de mi canción. Záfate tu chal de espuma para que torees la rumba, y si Antonio se disgusta, que se corra por ahí; ¡la mujer de Antonio tiene que bailar aquí! Desamárrate, Gabriela. Muerde la cáscara verde, pero no apagues la vela; tranca la pájara blanca, y vengan de dos en dos, ¡que el bongó se calentó! De aquí no te irás, mulata ni al mercado, ni a tu casa; aquí molerán tus ancas la zafra de tu sudor: repique, pique, repique repique, pique, repique,

pique, repique, repique, ¡pó! Semillas las de tus ojos darán sus frutos espesos; y si viene Antonio luego que ni en jaranta pregunte cómo es qué tú estás aquí... Mulata, mora, morena, que ni el más tonto se mueva, porque el que más toro sea saldrá caminando así; el mismo Antonio si llega, saldrá caminando así; todo el que no esté conforme,

saldrá caminando así...

todo el que no esté conforme, saldrá caminando así...

Repique, repique, pique, repique, repique, ¡pó! ¡Prieta quemada en ti misma, cintura de mi canción!

Nicolás Guillén

Page 110: A poesia de Nicolás Guillén e a representação da identidade

Balada de los dos abuelos

Sombras que sólo yo veo, me escoltan mis dos abuelos.

Lanza con punta de hueso, tambor de cuero y madera: mi abuelo negro. Gorguera en el cuello ancho, gris armadura guerrera: mi abuelo blanco.

Pie desnudo, torso pétreo los de mi negro; pupilas de vidrio antártico las de mi blanco!

Africa de selvas húmedas y de gordos gongos sordos... --¡Me muero! (Dice mi abuelo negro.) Aguaprieta de caimanes, verdes mañanas de cocos... --¡Me canso! (Dice mi abuelo blanco.) Oh velas de amargo viento, galeón ardiendo en oro... --¡Me muero! (Dice mi abuelo negro.) ¡Oh costas de cuello virgen engañadas de abalorios...! --¡Me canso! (Dice mi abuelo blanco.) ¡Oh puro sol repujado, preso en el aro del trópico; oh luna redonda y limpia sobre el sueño de los monos!

¡Qué de barcos, qué de barcos! ¡Qué de negros, qué de negros! ¡Qué largo fulgor de cañas! ¡Qué látigo el del negrero!

Piedra de llanto y de sangre, venas y ojos entreabiertos, y madrugadas vacías, y atardeceres de ingenio, y una gran voz, fuerte voz, despedazando el silencio. ¡Qué de barcos, qué de barcos, qué de negros!

Sombras que sólo yo veo, me escoltan mis dos abuelos.

Don Federico me grita y Taita Facundo calla; los dos en la noche sueñan y andan, andan. Yo los junto.

¡Federico! ¡Facundo!

Los dos se abrazan. Los dos suspiran. Los dos las fuertes cabezas alzan; los dos del mismo tamaño, bajo las estrellas altas; los dos del mismo tamaño, ansia negra y ansia blanca, los dos del mismo tamaño, gritan, sueñan, lloran, cantan. Sueñan, lloran, cantan. Lloran, cantan. ¡Cantan!

Nicolás Guillén

Page 111: A poesia de Nicolás Guillén e a representação da identidade

Tengo

Cuando me veo y toco yo, Juan sin Nada no más ayer, y hoy Juan con Todo, y hoy con todo, vuelvo los ojos, miro, me veo y toco y me pregunto cómo ha podido ser. Tengo, vamos a ver, tengo el gusto de andar por mi país, dueño de cuanto hay en él, mirando bien de cerca lo que antes no tuve ni podía tener. Zafra puedo decir, monte puedo decir, ciudad puedo decir, ejército decir, ya míos para siempre y tuyos, nuestros, y un ancho resplandor de rayo, estrella, flor. Tengo, vamos a ver, tengo el gusto de ir yo, campesino, obrero, gente simple, tengo el gusto de ir (es un ejemplo) a un banco y hablar con el administrador, no en inglés, no en señor, sino decirle compañero como se dice en español. Tengo, vamos a ver, que siendo un negro nadie me puede detener a la puerta de un dancing o de un bar.

O bien en la carpeta de un hotel gritarme que no hay pieza, una mínima pieza y no una pieza colosal, una pequeña pieza donde yo pueda

descansar. Tengo, vamos a ver, que no hay guardia rurque me agarre y me

encierre en un cuartel, ni me arranque y me arroje de mi tierra al medio del camino real. Tengo que como tengo la tierra tengo el mar, no country, no jailáif, no tennis y no yatch, sino de playa en playa y ola en ola, gigante azul abierto democrático: en fin, el mar. Tengo, vamos a ver, que ya aprendí a leer, a contar, tengo que ya aprendí a escribir y a pensar y a reír. Tengo que ya tengo donde trabajar y ganar lo que me tengo que comer. Tengo, vamos a ver, tengo lo que tenía que tener.

Nicolás Guillén

Page 112: A poesia de Nicolás Guillén e a representação da identidade

ESPAÑA, Poema en cuatro angustias y una esperanza

ANGUSTIA PRIMERA Miradas de metales y de rocas

No Cortés, ni Pizarro (aztecas, incas, juntos halando el doble carro) Mejor sus hombres rudos saltando el tiempo. Aquí, con sus escudos. Aquí, con sus callosas, duras manos; remotos milicianos al pie aquí de nosotros, clavadas las espuelas en sus potros; aquí al fin con nosotros, lejanos milicianos, ardientes, cercanísimos hermanos.

Los hierros tumultuosos de lanzas campeadoras; las espadas, que hundieron su punta en las auroras; las grises armaduras, los ingenuos arcabuces fogosos, los clavos y herraduras de las esquinas finas patas conquistadoras; los cascos, las viseras, las gordas rodilleras, todo el viejo metal imperialista corre fundido en aguas quemadoras, donde soldado, obrero, artista,

las balas cogen para sus ametralladoras.

No Cortés, ni Pizarro (incas, aztecas, juntos halando el doble carro). Mejor, sus hombres rudos saltando el tiempo. Aquí, con sus escudos.

¡Miradla, a España rota! Y pájaros volando sobre ruinas, y el fachismo y su bota, y faroles sin luz en las esquinas, y los puños en alto, y los pechos despiertos, y obuses estallando en el asfalto sobre caballos ya definitivamente muertos; y lágrimas marinas, saladas, curvas, chocando contra todos los puertos; y gritos que se asoman a las bocas y a los ojos coléricos, abiertos, bien abiertos, miradas de metales y de rocas.

Page 113: A poesia de Nicolás Guillén e a representação da identidade

ANGUSTIA SEGUNDA

Tus venas, la raíz de nuestros árboles

La raíz de mi árbol retorcida; la raíz de mi árbol, de tu árbol, de todos nuestros árboles, bebiendo sangre, húmeda de sangre, la raíz de mi árbol, de tu árbol. Yo lo siento, la raíz de mi árbol, de tu árbol. Yo la siento, la raíz de mi árbol, de tu árbol, de todos nuestros árboles, la siento clavada en lo más hondo de mi tierra, clavada allí, clavada, arrastrándome y alzándome y hablándome, gritándome.

La raíz de tu árbol, de mi árbol. En mi tierra, clavada, con clavos ya de hierro, de pólvora, de piedra, y floreciendo en lenguas ardorosas, y alimentando ramas donde colgar los pájaros cansados, y elevando sus venas, nuestras venas, tus venas, la raíz de nuestros árboles.

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ANGUSTIA TERCERA Y mis huesos marchando en tus soldados

La muerte disfrazada va de fraile. Con mi camisa trópico ceñida, pegada de sudor, mato mi baile, y corro tras la muerte por tu vida.

Las dos sangres de ti que en mí se juntan, vuelven a ti, pues de ti vinieron, y por tus llagas fúlgidas preguntan. Secos veré a los hombres que te hirieron.

Contra cetro y corona y manto y sable, pueblo, contra sotana, y yo contigo, y con mi voz para que el pecho te hable. Yo, tu amigo, mi amigo; yo, tu amigo.

En las montañas grises; por las sendas rojas; por los caminos desbocados, mi piel, en tiras para hacerte vendas, y mis huesos marchando en tus soldados.

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ANGUSTIA CUARTA Federico

Toco a la puerta de un romance. --¿no anda por aquí Federico? Un papagayo me contesta: --Ha salido.

Toco a una puerta de cristal. --¿No anda por aquí Federico? Viene una mano y me señala: --Está en el río.

Toco a la puerta de un gitano. --¿No anda por aquí Federico? Nadie responde, no habla nadie... --¡Federico! ¡Federico!

La casa oscura, vacía; negro musgo en las paredes; brocal de pozo sin cubo, jardín de lagartos verdes.

Sobre la tierra mullida caracoles que se mueven, y el rojo viento de julio entre las ruinas, meciéndose.

¡Federico! ¿Dónde el gitano se muere? ¿Dónde sus ojos se enfrían? ¡Dónde estará, que no viene!

(Una canción)

Salió el domingo, de noche, salió el domingo, y no vuelve. Llevaba en la mano un lirio, llevaba en los ojos fiebre;

el lirio se tornó sangre, la sangre tornóse muerte.

(Momento en García Lorca)

Soñaba Federico en nardo y cera, y aceituna y clavel y luna fría. Federico, Granada y Primavera.

En afilada soledad dormía, al pie de sus ambiguos limoneros, echado musical junto a la vía.

Alta la noche, ardiente de luce arrastraba su cola transparente por todos los caminos carreteros.

«¡Federico!», gritaron de repente, con las manos inmóviles, atadas, gitanos que pasaban lentamente. ¡Qué voz la de sus venas desangradas! ¡Qué ardor el de sus cuerpos ateridos! ¡Qué suaves sus pisadas, sus pisadas!

Iban verdes, recién anochecidos; en el duro camino invertebrado caminaban descalzos los sentidos.

Alzóse Federico, en luz bañado. Federico, Granada y Primavera. Y con luna y clavel y nardo y cera, los siguió por el monte perfumado.

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LA VOZ ESPERANZADA

Una canción alegre flota en la lejanía

¡Ardiendo, España, estás! Ardiendo con largas uñas rojas encendidas; a balas matricidas pecho, bronce oponiendo, y en ojo, boca, carne de traidores hundiendo las rojas uñas largas encendidas.

Alta, de abajo vienes, a raíces volcánicas sujeta; lentos, azules cables con que tu voz sostienes, tu voz de abajo, fuerte, de pastor y poeta.

Tus ráfagas, tus truenos, tus violentas gargantas se aglomeran en la oreja del mundo; con pétreo músculo violentas el candado que cierra las cosechas del mundo.

Sales de ti; levantas la voz, y te levantas sangrienta, desangrada, enloquecida, y sobre la extensión enloquecida más pura te levantas, te levantas.

Viéndote estoy las venas vaciarse, España, y siempre volver a quedar llenas; tus heridos risueños; tus muertos sepultados en parcelas de sueños; tus duros batallones, hechos de cantineros, muleros y peones.

Yo, hijo de América, hijo de ti y de Africa, esclavo ayer de mayorales blancos dueños de látigos coléricos; hoy esclavo de rojos yanquis azucareros y voraces; yo chapoteando en la oscura sangre en que se mojan mis Antillas; ahogado en el humo agriverde de los cañaverales; sepultado en el fango de las cárceles; cercado día y noche por insaciables bayonetas;

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perdido en las florestas ululantes de las islas crucificadas en la cruz del Trópico;

yo, hijo de América, corro hacia ti, muero por ti. Yo, que amo la libertad con sencillez, como se ama a un niño, al sol, o al árbol plantado frente a nuestra casa; que tengo la voz coronada de ásperas selvas milenarias, y el corazón trepidante de tambores, y los ojos perdidos en el horizonte, y los dientes blancos, fuerte y sencillos para tronchar raíces y morder frutos elementales; y los labios carnosos y ardorosos para beber el agua de los ríos que me vieron nacer, y húmedo el torso por el sudor salado y fuerte de los jadeantes cargadores en los muelles, los picapedreros en las carreteras, los plantadores de café y los presos que trabajan desoladamente, inútilmente en los presidios sólo porque han querido dejar de ser fantasmas; yo os grito con voz de hombre libre que os acompañaré, camaradas; que iré marcando el paso con vosotros, simple y alegre, puro, tranquilo y fuerte, con mi cabeza crespa y mi cuerpo moreno, para cambiar unidos las cintas trepidantes de vuestras ametralladoras,

y para arrastrarme, con el aliento suspendido, allí, junto a vosotros, allí donde ahora estáis, donde estaremos, fabricando bajo un cielo ardoroso agujereado por la metralla, otra vida sencilla y ancha, limpia, sencilla y ancha, alta, limpia, sencilla y ancha, sonora de nuestra voz inevitable.

Con vosotros, brazos conquistadores ayer, y hoy ímpetu para desbaratar fronteras; manos para agarrar estrellas resplandecientes y remotas, para rasgar cielos estremecidos y profundos;

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para unir en un mazo las islas del Mar del Sur y las islas del Mar Caribe; para mezclar en una sola pasta hirviente la roca y el agua de todos los océanos; para pasear en alto, dorada por el sol de todos los amaneceres;

para pasear en alto, alimentada por el sol de todos los meridianos; para pasear en alto, goteando sangre del ecuador y de los polos; para pasear en alto como una lengua que no calla, que nunca callará, para pasear en alto la bárbara, severa, roja, inmisericorde, calurosa, tempestuosa, ruidosa, ¡para pasear en alto la llama niveladora y segadora de la Revolución!

¡Con vosotros, mulero, cantinero! ¡Contigo, sí, minero! ¡Con vosotros, andando, disparando, matando! ¡Eh, mulero, minero, cantinero, juntos, aquí, cantando!

(Una canción en coro)

Todos el camino sabemos; están los rifles engrasados; están los brazos preparados: ¡Marchemos!

Nada importa morir al cabo, pues morir no es tan gran suceso; ¡malo es ser libre y estar preso, malo, estar libre y ser esclavo!

Hay quien muere sobre su lecho, doce meses agonizando, y otros hay que mueren cantando con diez balazos sobre el pecho.

Todos el camino sabemos;

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están los rifles engrasados; están los brazos avisados: ¡Marchemos!

Así hemos de ir andando, severamente andando, envueltos en el día que nace. Nuestros recios zapatos, resonando, dirán al bosque trémulo: «¡Es que el futuro pasa!» Nos perderemos a lo lejos... Se borrará la oscura masa de hombres, pero en el horizonte todavía como en un sueño, se nos oirá la entera voz vibrando:

...El camino sabemos...

...Los rifles engrasados...

...Están los brazos avisados...

¡Y la canción alegre flotará como una nube sobre la roja lejanía!

Nicolás Guillén