A poesia de Nicolás Guillén e a representação da identidade cubana

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Análise crítica sobre a identidade nacional em poesias do escritor cubano Nicolás Guillén através de estudo comparativo baseado no diálogo entre elementos-chave na construção da ideia de nação, presentes no imaginário popular antilhano, e o discurso poético de Guillén. A relevância dessa análise se deve à conjunção harmoniosa entre suas composições poéticas e as demais manifestações artísticas cubanas, além de congregar os valores identitários de Cuba sem perder a grandeza dos valores estéticos. Através da contextualização histórica do fim do século XIX e o decorrer do século XX, as análises poéticas de “Rumba”, “Secuestro de La mujer de Antonio”, “Balada de los dos abuelos”, “Tengo” e “España: poema en cuatro angustias y una esperanza”, devidamente associadas a outras produções artísticas pretendem corroborar com a ideia de que Guillén, ao transmutar os valores da sociedade cubana, cumpre a função de alimentar o imaginário coletivo de seu povo, reafirmando a necessidade de entender a identidade como um projeto a ser continuamente trabalhado.

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A poesia de Nicols Guilln e a representao da identidade cubana

Por

Wanessa Cristina Ribeiro

Dissertao de Mestrado submetida ao Programa de Ps-Graduao em Letras Neolatinas da Universidade Federal do Rio de Janeiro UFRJ, como parte dos requisitos necessrios para obteno do Ttulo de Mestre em Letras Neolatinas (Estudos Literrios Neolatinos-Literaturas Hispnicas). Orientadora:Prof. Doutora Mariluci Guberman.

Universidade Federal do Rio de Janeiro/ UFRJ 2010/2

A poesia Nicols Guilln e a representao da identidade cubana

Por

Wanessa Cristina Ribeiro

Dissertao de Mestrado submetida ao Programa de Ps-Graduao em Letras Neolatinas da Universidade Federal do Rio de Janeiro UFRJ, como parte dos requisitos necessrios para obteno do Ttulo de Mestre em Letras Neolatinas (Estudos Literrios Neolatinos-Literaturas Hispnicas). Orientadora:Prof. Doutora Mariluci Guberman.

Universidade Federal do Rio de Janeiro/ UFRJ 2010/2

A poesia de Nicols Guilln e a representao da identidade cubana Wanessa Cristina Ribeiro Orientadora: Professora Doutora Mariluci da Cunha Guberman

Dissertao de Mestrado submetida ao Programa de Ps-Graduao em Letras Neolatinas da Universidade Federal do Rio de Janeiro UFRJ, como parte dos requisitos necessrios para a obteno do ttulo de Mestre em Letras Neolatinas(Estudos Literrios -Literaturas Hispnicas). . Examinada por: Prof. Dr . Mariluci da Cunha Guberman (Presidente) Programa de Ps-Graduao em Letras Neolatinas UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

Prof. Dr . Ximena Antonia Daz Merino UNIVERSIDADE ESTADUAL DO OESTE DO PARAN

Prof. Dr . Rita de Cssia Miranda Diogo Programa de Ps Graduao em Literatura Comparada e Teoria da Literatura UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

Prof. Dr . Ana Cristina dos Santos Programa de Ps Graduao em Literatura Comparada e Teoria da Literatura UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

Prof. Dra. Marins Lima Cardoso Programa de Ps-Graduao em Letras Neolatinas/ Bolsista PRODOC/CAPES UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

Avaliao:....................................... Em 07 de dezembro de 2010, s 14 horas

RIBEIRO, Wanessa Cristina. Rio de Janeiro: A representao da identidade cubana em poemas de Nicols Guilln. Programa de Ps-Graduao em Letras Neolatinas (Estudos LiterriosLiteraturas Hispnicas), Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro 2010. Dissertao de Mestrado, 101 fls.

Resumo

Anlise crtica sobre a identidade nacional em poesias do escritor cubano Nicols Guilln atravs de estudo comparativo baseado no dilogo entre elementos-chave na construo da ideia de nao, presentes no imaginrio popular antilhano, e o discurso potico de Guilln. A relevncia dessa anlise se deve conjuno harmoniosa entre suas composies poticas e as demais manifestaes artsticas cubanas, alm de congregar os valores identitrios de Cuba sem perder a grandeza dos valores estticos. Atravs da contextualizao histrica do fim do sculo XIX e o decorrer do sculo XX, as anlises poticas de Rumba, Secuestro de La mujer de Antonio, Balada de los dos abuelos, Tengo e Espaa: poema en cuatro angustias y una esperanza, devidamente associadas a outras produes artsticas pretendem corroborar com a ideia de que Guilln, ao transmutar os valores da sociedade cubana, cumpre a funo de alimentar o imaginrio coletivo de seu povo, reafirmando a necessidade de entender a identidade como um projeto a ser continuamente trabalhado.

RIBEIRO, Wanessa Cristina. Rio de Janeiro: A representao da identidade cubana em poemas de Nicols Guilln. Programa de Ps-Graduao em Letras Neolatinas (Estudos Literrios Literaturas Hispnicas), Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro 2010. Dissertao de Mestrado, 101 fls.

Resumen

Detallar la cuestin de la identidad nacional en la poesa cubana de Nicols Guilln a travs del estudio comparativo basado en el dilogo entre los elementos clave en la construccin de la idea de nacin Antillana en la imaginacin popular, y el discurso potico de Guilln. La relevancia de este anlisis se debe a la combinacin armoniosa entre sus composiciones poticas y otros eventos artsticos en Cuba. Adems de aportar con brillantez los valores de la identidad nacional cubana, sin perder su grandeza en los valores estticos. A travs de los antecedentes histricos de finales del siglo XIX y el transcurrir del siglo XX, se analiza las composiciones poticas: "Rumba", Secuestro de la mujer de Antonio", "Balada de los dos abuelos" "Tengo"y "Espaa: poema en cuatro y una angustias y esperanza ", combinados adecuadamente con otras producciones artsticas destinadas a reforzar la idea de que Guilln, por la transmutacin de los valores de la sociedad cubana, cumple la funcin de alimentar el imaginario colectivo de las personas, reafirmando la necesidad de entender la identidad como un proyecto a ser trabajado de forma continua.

RIBEIRO, Wanessa Cristina. Rio de Janeiro: A representao da identidade cubana em poemas de Nicols Guilln. Programa de Ps-Graduao em Letras Neolatinas (Estudos LiterriosLiteraturas Hispnicas), Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro 2010. Dissertao de Mestrado, 101 fls.

Abstract

Critical analyze about the national identity in poetries of Cuban writer Nicols Guilln through of the comparative study based on dialogue between key-elements in the construction of the idea of nation, that is present in the popular imaginary Antillean, and the poetic speech of Gulln. The relevance of this analyze is due to the harmonious union between his poetic compositions and others artistic Cuban manifestation, beyond congregate the values of identities of Cuba without lose the greatness of the esthetics values. Through of the historic contextualization at the end of the century XIX and in the course of century XX, the poetic analyses of "Rumba" , "Secuestro of La mujer de Antonio", "Balada de los abuelos", "Tengo" e "Espaa: poema en cuatro angustias y una esperanza", duly associated to others artistic productions to intend corroborate with the Gulln's idea, by transmuting the values of the Cuban society, fulfils the function of the feed the collective imaginary of his people ,reasserting the necessity of understand the identity as a project to be continuously worked.

Dedicatria

Em Deus esto a sabedoria e a fora, a Ele pertencem a perspiccia e a inteligncia. J 12: 13

Nada mais justo que dedicar ao Autor da minha vida o xito em concluir esta dissertao...

Agradecimentos

Gracias, gracias, gracias. Quiero agradecer a quien corresponda Jorge Drexler

Toda e qualquer forma de verbalizar um agradecimento pecar sempre pela falta e pelo excesso. Como no acredito ser possvel fugir desta regra, pecarei pela falta de algum nome ou momento especial no desenvolvimento desta dissertao pelo excesso de alegria em v-la se tornar realidade. Agradeo primeiramente Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior (CAPES) pela subveno financeira, que me auxiliou desde o incio das pesquisas, possibilitando o aprofundamento de meus estudos, que culminou com a concluso do presente curso. Tambm agradeo ao Programa de Ps-Graduao em Letras Neolatinas da UFRJ pelo suporte tcnico e incentivo acadmico durante todo o perodo. Impossvel deixar de registrar meu agradecimento Faculdade de Letras da UFRJ, que me acolheu desde os estudos de Graduao, representada pelo excelente Corpo Docente e Administrativo. Em especial Profa. Dra. Mariluci da Cunha Guberman, orientadora e amiga, uma pessoa de extrema significao em minha vida acadmica e pessoal. Quem me forneceu o apoio bibliogrfico, terico, pedaggico e humano para converter uma ideia em ideal. Graas a sua pacincia e dedicao pude transformar meus brutos e sentimentais gostos literrios em anlises sbrias e mais fundamentadas que antes. Agradeo tambm ao Prof. Dr. Luiz Edmundo Coutinho por manter vivo o incentivo a cada membro da turma do futuro; Profa. Dra. Leticia Rebollo pela dedicao em todas as aulas e orientaes ministradas e pela constante torcida. Profa. Dra. Cludia Luna por seus questionamentos e indicaes bibliogrficas sempre pertinentes; Profa. Dra. Snia Reis pelo empenho em me ajudar a encontrar um fio condutor para meus devaneios literrios e a

todos os docentes desta Faculdade que direta ou indiretamente contriburam para o meu desenvolvimento acadmico. Outro campus desta Universidade que me permitiu alar vos mais altos e seguros ao longo dos estudos de Ps-Graduao foi a Escola de Msica da UFRJ. Ainda que por um breve espao de tempo, o perodo que passei imersa nesse mundo novo chamado Etnomusicologia, sob superviso atenta e prestativa do Prof. Dr. Samuel Arajo, alm dos cuidados e prstimos viabilizados pelo querido Gilson Cabral, que s se tornaram possveis graas fortuita acolhida concedida pelo Prof. Dr. Marcos Nogueira, foram fundamentais para o amadurecimento de meus estudos. Como no render graas queles que Deus ps em meu caminho, atravs de um lao de sangue, para guiarem meus passos nessa eterna utopia que viver? Muito obrigada vov Zizinha, quem me obriga a ser feliz a cada conversa; minha me que dedica toda sua vida para fazer de mim um ser humano digno; ao meu v Antnio de quem eu herdei o talento de me desmanchar em lgrimas; a minha tia Dora, fiel companheira, confidente e comadre; a minha dezena de tios e s dzias de primos que me fazem rir e nunca perder essa mania de famlia, famlia... Sem deixar de incluir a famlia que meu corao escolheu: Jose, vizinha e me nas horas apertadas e dinda Marise, meu anjo e exemplo. Agradeo agora a todos aqueles que me ajudaram a olhar, como bem disse Eduardo Galeano em um de seus textos. queles que apareceram como professores e hoje so amigos especiais e culpados por tudo que eu produzir ao longo do tempo. Meus sinceros agradecimentos a Clia Lcia, minha leitora e confidente incansvel; a Fernando Pimenta, o temperinho da minha alegria; a Ktia que sempre me incentivou com seu famoso: voc poderia ter feito melhor e a Angela Espndola, quem me ensina desde o mesmo ngulo que ocupo. Hoje em dia quase ningum mais guarda fotos 3x4. Amontoamos arquivos jpeg em infindas pastas. No entanto, continuamos dizendo eu te amo, seguimos fazendo muitos filmes e ao nos reencontrar ainda temos a mesma beleza e fantasia de antes. Neste e em todos os dias que viro eu no poderia

dizer menos que eu te amo Kennya Fandi, aos meus Diogos prediletos, ao Bruninho e sua famlia linda, a Rafael Ferreira e bem... acho que para Debora Medeiros eu teria de dizer ti voglio bene. Obrigada aos bons amigos que nasceram pela f, com os quais poderei contar e cantar para sempre. Primeiramente ao Padre Diegues, responsvel direto pela minha formao moral e espiritual na adolescncia. musical famlia Tostes, especialmente ao Andr; aos meus compadres Joyce e Orlando; Fabiana, Jssica, Paloma, Ana, Rodrigo, Paula e Anderson por estarem ao meu lado sempre. Sonhando com o cu, com o mar e com as estrelas a brilhar... E ainda um pouco distante de colocar um ponto final, comeo o pargrafo agradecendo a quem celebrou comigo aquele sol diferente no cu visto da EBA, da Letras ou de qualquer cantinho mgico desta jornada chamada graduao. Meu agradecimento a Nathalia Loureiro, scia desde os tempos de pr-vestibular; Luana Damaso, desesperada amiga e aos vrtices Evelyn Lucena e Dani Veiga. A esta ltima devo a capacidade em ver no mais simples acontecimento um potencial espetculo de vida. Obrigada por estrelar comigo essa odissia chamada Letras. medida que crescem os pargrafos tenho a sensao de que essa parte da dissertao vai estendendo cada vez mais suas fronteiras, assim como a relao que constru com as pessoas a quem dirigirei meu muito obrigada. Vanessa Azevedo, com quem coleciono dezenas de

coincidncias; a Gustavo Furtado, companheiro de viagem desde o primeiro instante e ao quarteto fantstico do qual fao parte junto a Anastcia Cabo, Giselle Pereira e Priscilla Romano. A esta primeira integrante do quarteto devo a reviso desta dissertao e de outras tantas revises acadmicas ou no. Assim como as inmeras refeies, converses e discusses sobre temas que ultrapassam qualquer v filosofia. Kelly Ferreira, minha amiga da vida inteira. Que chora o meu choro e compartilha comigo seus sorrisos. Por vibrar a cada conquista minha como se sua fosse e por ser a primeira a estar ao meu lado em momentos de queda.

Aquela que participa da minha vida como se estivesse por perto o tempo todo porque nunca vai deixar de estar junto de mim. Lusa Periss, por ser mi amiga e por no me deixar sozinha nessa tarefa to solitria que mestrar. Obrigada por ser companheira, revisora, colega de trabalho. Por embarcar e me colocar em inmeras enrascadas sob a frase que sempre nos consola: Calma, amiga, vai dar tempo... a gente consegue.. Por concorrer, mas nunca disputar comigo. Sei que sempre haver lugar pra ns duas e a que subir primeiro estar de mo estendida para levantar a outra. A Gabriel Poeys: o menino de sobrenome mais potico que j vi na vida. Companhia presente e carinhosa que se pode ter em todos os momentos, assuntos. Obrigada por me entender sem que eu precise falar. Por gostar de mim sem precisar dizer em palavras. Por estar junto, perto, dentro. Por me incluir na sua vida, por dividir comigo a lealdade de Pedro Carn e sua banda amiga que nos aguanta el corazn. E, finalmente, aos meus afilhados Andrey Ribeiro, Ramon Pereira e Arthur Franco. No sorriso de vocs eu pude encontrar soluo para os momentos de cansao, de desalento, de falta de criatividade. Sei que ainda no entendem quase nada sobre a questo identitria cubana, mas so especialistas em fazer da vida uma cano de melodia simples e ritmo contagiante.

Cantemos frente a los frescos siglos recin despiertos, bajo la estrella madura en la nocturna fragrancia y a lo largo de todos los caminos abiertos en la distancia Nicols Guilln

Sinopse

Anlise crtica de poemas do escritor cubano Nicols Guilln. Abordagem da temtica identitria e sua relao com os aportes tericos, da transculturao e da prxis musical. Destaque para a correlao entre histria e literatura nacionais. em Cuba na consolidao dos valores

SUMARIO

PRLOGO............................................................................................15 INTRODUO......................................................................................16

I CONTEXTO HISTRICO E CULTURAL CUBANO........................211- A influncia das dcimas no fazer potico em Cuba.............................23

2- Cuba e suas independncias ao longo do Sculo XX........................28

II UM OLHAR SOBRE A PRXIS MUSICAL E POTICA EM VERSOS DE NICOLS GUILLN.........................................................................411 As Rumbas e o desejo na construo do olhar potico......................46 2 Um dueto entre msica popular em Cuba.............................................52

III O CONTRAPUNTEO DE GUILLN NA TESSITURA SIMBLICA DA IDENTIDADE ANTILHANA..................................................................591- Transculturao: histria e ampliao de um conceito...........................61 2 - Hispanidade imaginada: Guilln, tecelo de identidades......................70 2.1 - Revoluo cubana: do literal ao literrio............................73 2.2 - ESPAA: la imagen del caos..78

CONCLUSO..94

REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS......................................................96 ANEXO

Prlogo

Ao iniciar os estudos na rea das Literaturas Hispnicas, no ano de 2005, pude vislumbrar a rica diversidade do universo cubano e, desde ento, s aumentou o meu interesse em conhecer cada vez mais essa apaixonante forma de expressar a realidade de um povo. Durante os dois anos de Iniciao Cientfica, sob orientao da Profa. Dra Mariluci Guberman, pude transformar esta afinidade em objeto de estudo. Ao concluir minha Graduao na Faculdade de Letras da UFRJ no tive dvidas ao escolher o caminho a seguir no Curso de Mestrado. A partir do 1 semestre de 2009 pude prosseguir oficialmente como aluna e bolsista da Capes no Programa de Ps Graduao em Letras Neolatinas da UFRJ. Durante o primeiro ano de curso pude amadurecer minhas teorias e repensar em todo o processo que desenvolvi ao longo dos anos de Iniciao Cientfica. J no segundo ano, especificamente, no primeiro semestre do ano de 2010, vivenciei um perodo deveras produtivo para o meu desenvolvimento acadmico. Dando continuidade aos estudos sobre o sistema histrico-literrio caribenho, minhas pesquisas avanaram dentro e fora do campo de Letras. Graas amplitude vislumbrada pelo Programa de Letras Neolatinas, prossegui com a coleta e tratamento de dados na Escola Nacional de Msica UFRJ, na biblioteca da Faculdade de Letras da UFRJ e na biblioteca central da UNIRIO, atravs das quais pude ter acesso a uma bibliografia significativa que foi importante na consolidao do meu corpus terico, bem como na definio dos pontos a serem trabalhados ao longo de minha dissertao. Todo o trabalho dos professores deste Programa, sem esquecer o extenso apoio bibliogrfico e intelectual fornecido por minha orientadora desde os tempos de Iniciao Cientfica, se configurou como um alicerce que me permitiu galgar passos mais firmes. Deu-me o respaldo necessrio para buscar novas leituras sobre os fenmenos sociais por mim estudados e produzir a presente dissertao

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Introduo

Cuba: um extenso lagarto verde com olhos de pedra e gua, que abriga uma nao marcada por anos de lutas e conquistas. Seus olhos podem ver imensas tempestades de povos e costumes: partir, chegar, nascer e sempre resistir. esse o principal enfoque da poesia de Nicols Guilln que, atravs desse ir e vir, viver e resistir nos permite sair e conhecer outras culturas, em uma troca de experincias e valores enriquecedores. No que se refere ao cenrio literrio cubano, Jos Mara Heredia (1803-1839), Jos Mart (1853-1895) e Nicols Guilln (1902-1989) so considerados como os principais autores responsveis por traduzir

literariamente as etapas do processo de formao do povo cubano. O ano de nascimento de Nicols Guilln foi marcado pela instituio da Repblica de Cuba. O poeta cubano pertence gerao que sofreu com maior intensidade a frustrao da independncia dentro das condies semi-coloniais impostas pelo imperialismo norte-americano. Ele fruto da unio entre o jornalista Nicols Guilln Urra, de origem branca, e de Argelia Batista, filha de escravos. O pai do poeta faleceu vtima da represso a uma revolta poltica, fato que abalou radicalmente a situao econmica da famlia Guilln. Guilln comeou a publicar seus escritos por volta de 1917 com influncias modernistas. Notase tambm em sua obra que o poeta era leitor assduo dos clssicos espanhis como Lope de Vega, Miguel de Cervantes, Quevedo, Luis de Gngora, com relevantes influncias de Gustavo Bcquer. A obra de Guilln se enraza na poesia patritica de Heredia, que foi precursor do processo da Revoluo Cubana, e que, atravs de Mart, se propaga com seus escritos o clamor do povo em luta pela independncia. O processo de ruptura com a esttica modernista pode ser observado a partir de sua composio Al margen de mis libros de estudio. Depois de um longo tempo sem escrever, Guilln retoma o hbito como ofcio inspirado pelo movimento vanguardista um grupo composto por artistas e intelectuais inconformados com as normas acadmicas e a retrica dos valores

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convencionais. esse o acontecimento crucial para impulsionar a fora criadora do poeta que teve seu ponto de partida nas asas do Cisne modernista do nicaraguense Rubn Daro. A poesia de Nicols Guilln percorre e faz uso de todos os explosivos e encantadores ingredientes desse mundo latino-americano, caribenho, negro e cubano. como um poeta-jogral que consegue, em sua primeira etapa madura, desenvolver uma esttica pessoal e, atravs dela, abordar toda a memria dos rituais da festa pag, da resistncia do ndio e do crioulo. Fortemente ligado s suas origens, plasma em sua poesia todas as imagens contempladas por seus olhos ao longo de sua vida. Tem- se como resultado uma profcua mescla de sonoridade caribenha, pintada de negro e com um toque de ron e melaza. Cultiva o interesse em descobrir, no cotidiano de seu povo, cenas corriqueiras que contam muito mais que seus costumes, pois so descritas com o deslumbre, o respeito e a ironia de quem fez parte desse universo. O poeta, alm de ser o resultado da rica profuso de diferentes etnias e culturas, tambm testemunha ocular dos momentos mais comoventes de seu povo e, em alguns casos, de outras comunidades. Discorramos agora sobre algumas de suas obras. A publicao de Sngoro Cosongo aconteceu aps um ano e meio da chegada de Motivos de son. Ambos os livros representavam, segundo Augier (1984:127),[...] uma onda sonora cuja vibrao havia de perdurar indefinidamente, sobretudo ao renovar sua ressonncia com a incluso de los Motivos de son no novo livro [Sngoro Cosongo], cuja segunda parte veio a integrar como um complemento lgico.

Guilln tomou o ttulo Sngoro Cosongo do estribilho de um de seus poemas publicados em livro anterior. Dentre as inmeras composies poticas, podese destacar Secuestro de la mujer de Antonio, clara e confessadamente inspirada em um son da poca, obra de Miguel Matamoros, cuja letra estava j na poca incorporada ao cancioneiro popular. Sobre esta composio de Guilln, Augier (1984:132) afirma:

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Este personagem foi tomado por Guilln para um romance de estilo novo, heterodoxo, crioulo, onde a metfora relampejante forjada com elementos do ambiente nativo se combina com o ritmo peculiar do bong que se calent expresso maneira j inconfundvel de Guilln.

Na composio potica Rumba, Nicols Guilln exalta os valores negros, destacando a rumba como uma das possveis formas de representar a identidade. Uma tentativa de combater o preconceito pelas vias poticas. Em West Indies, que desde o ttulo satiriza a realidade de dependncia econmico-politica cubana, sedimenta o seu talento ao abordar o mestio. Em Balada de los dos abuelos, Guilln exalta a importncia de sua origem mestia sem omitir as dores de seus antepassados nem justificar o sofrimento causado pelos conquistadores. Muito mais que preconizar o mundo e as crenas de um abuelo blanco com sua gorguera ou de um abuelo negro de torso ptreo, Guilln consegue, atravs de suas composies, salientar o resultado desse processo. Apresenta-se como elemento que representa a fuso dessas duas etnias. O ritmo do Son cubano, que se intensifica em seu livro El son entero, pode ser confirmado como caracterstica intrnseca do fazer potico do autor. Em Tengo possvel perceber o envolvente jogo fonomeldico1 de um eu-lrico que dialoga absorto em uma atmosfera revolucionria. Porm suas composies no se limitam apenas aos problemas e particularidades inerentes Cuba, mas sim aos acontecimentos de diversas partes do mundo. Por onde passa, Nicolas Guilln registra em seus versos o que seus olhos puderam testemunhar. Como exemplo do que foi mencionado no pargrafo anterior temos o livro Cantos para soldados que foi publicado no Mxico, quando o autor participou de um congresso de escritores, convidado pela Liga de Escritores e Artistas Revolucionrios (LEAR). De l seguiu para a Espanha, com o objetivo de participar do II Congresso Internacional de Escritores Antifascistas en Defensa de la Cultura.Termo utilizado por Mariluci Guberman em Poder de libertad en Guilln. El mar y la Montaa, Guantnamo, 19891

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Uma de suas composies, publicadas nessa mesma poca, possui como tema a Guerra Civil Espanhola e se intitula Espaa, Poema en cuatro angustias y una esperanza. Os valores estticos desse poema, que expressa uma sincera solidariedade do povo cubano com a causa defendida pelos republicanos espanhis perante o avano fascista, superam a mera representao literal dos fatos. Pretende-se, portanto, com a presente pesquisa, estudar a

representao da identidade nacional de um povo atravs do dilogo entre composies poticas do autor e msica popular, bem como a repercusso das heranas africana e europia na sedimentao de conceitos identitrios das Antilhas, com enfoque particular para Cuba, atravs da anlise histrica e literria de poesias selecionadas do autor Nicols Guilln. Para tanto, parte-se das influncias artsticas anteriores vivenciadas, juntamente com a histria de Cuba para iniciar os estudos sobre o contexto cultural e literrio. Busca-se compreender os processos evolutivos do cenrio cultural, considerando, portanto, os artistas que antecederam o momento vivido por Nicols Guilln. As anlises literrias embasam-se nas acepes publicadas por Kevin Lynch em A imagem da cidade (1982) e Justo Villafae em Introduccin a la teoria de la imagen (2002). Outro aporte terico relevante encontra-se em Walter Benjamin (1994) e seu conceito de memria: uma busca do tempo passado no presente. O estudo da identidade o respaldo terico que permite ratificar os elementos vislumbrados no contexto histrico. Para este fim, foram empregadas as concepes de Zygmunt Bauman (2005) e Benedict Anderson (2008) sobre identidade, discutindo-se tambm a ideia de tranculturao em Contrapunteo cubano del tabaco y del azcar (2002) de Fernando Ortiz e em Transculturacin narrativa en Amrica Latina (1987) de Angel Rama, por

entender a importncia que este conceito possui na construo da ideia da identidade cubana . Toda essa srie de elementos que compem o universo potico de Guilln embalada pelo son. E para tratar das questes pertinentes ao universo musical cubano e suas influncias, temos como fundamentos tericos

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principais os estudos de Alejo Carpentier, em seu livro La msica em Cuba (1998), e no escrito por Fernando Ortiz, La africana de la msica folklrica de Cuba (1950) e tambm no de Mareia Quintero Rivera, A cor e o som da nao: a idia de mestiagem na crtica musical do Caribe hispnico e no Brasil (1928/48) (2000).

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I CONTEXTO HISTRICO E CULTURAL CUBANO

A cada una de las etapas de la evolucin histrica de Cuba corresponde exactamente cada uno de los perodos de nuestra poesa. ngel Augier

A Histria se configura como memria viva que define o momento presente. um patrimnio humano atravs do qual adquirimos o conhecimento e a compreenso necessrios para tornar vivel uma mudana na realidade que nos circunda. As obras literrias so, portanto, veculos atemporais nos quais a histria de um indivduo ou nao se perpetua na memria como Histria de um povo. So elas o elo que permite a disseminao de elementos-chave na compreenso do modus vivendi de uma sociedade num tempo e espao definidos. Como bem discorre o escritor e historiador Angel Augier, em sua obra Nicols Guilln: estdio biogrfico-crtico, o grito romntico em Cuba coincidiu com os primeiros lampejos da conscincia nacional, expressa ainda nos primrdios do sculo XIX atravs dos versos de Jose Maria Heredia. O mesmo ocorreu em tempos de exacerbada agitao pela independncia da ilha no fim desse sculo, momento em que se pode destacar a figura de Jos Mart como um dos principais nomes que encabeariam a renovao literria motivada pelos ideais do modernismo hispano-americano. Os escritos de Nicols Guilln, assim como os dos integrantes do grupo Minorista, so um reflexo literrio da urgncia literal em conquistar a plena independncia da ilha. Coincidem com um momento em que todos os cidados cubanos se envolvem na causa revolucionria com o fim de extirpar problemas, alguns deles, sinalizados por Guilln em seu primeiro artigo, publicado em 1929 no Dirio de la Marina sob o ttulo El camino de Harlem no qual interroga:

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Cules son los problemas de La raza de color, hoy, en la Repblica de Cuba? Es que despus de dos grandes revoluciones contra Espaa y despus de la instauracin de una patria libre, en cuya Constitucin la igualdad entre todos los ciudadanos es dogma primordial, puede haber una cantidad de cubanos, por pequea que ella sea, que se sienta diferenciada por ella?

O prprio poeta responde na sequncia do texto encontrado em Augier (1984: 89),La respuesta es grave y, sin embargo, debe darse. S, seores, todava tiene problemas la raza de color en Cuba y todava necesita luchar mucho para resolverlos. Todava la igualdad no alcanza a todos los sectores de la vida republicana, y an hay mucha trinchera prematuramente abandonada, donde es preciso seguir combatiendo contra prejuicios innumerables.

Ao longo do sculo XX, com o intuito de compreender os processos evolutivos do cenrio cultural atravs dos fatos histricos que podem ser vislumbrados em dado momento, sero abordadas, nesta pesquisa, as dcimas cubanas como veculo transmissor dos valores nacionais de 1898 a 1925 e da histria de Cuba. Para tanto ser de fundamental importncia os estudos de Bonifacini (1987), Portuondo (1985) Ibarra (1994) e Bethell (1998).

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1- A influncia das dcimas no fazer potico em CubaCon los pobres de la tierra quiero yo mi suerte echar el arroyo de la sierra me complace ms que el mar Jos Mart

Pode-se considerar a dcima, como a estrofe nacional dos cubanos. E esta informao est completamente decantada nos meios literrios e sociais no s da Amrica Latina, mas tambm em territrio espanhol. Esse modo de expresso artstica nasceu em territrio espanhol, graas a Vicente Espinel no fim do sculo XVI e foi trazida, juntamente com o romance, s terras americanas com a colonizao. Converteu-se em uma das expresses mais caractersticas da poesia popular, sendo utilizada at os dias atuais por poetas e nas relaes interpessoais, quando se pretende expressar algum sentimento atravs de versos. Para delinear um perfil scio-cultural do cubano no sculo XX, cabe destacar que este, como bem discorre Cntio Vitier, pouco se identificou com o romance tipicamente espanhol, porque o que o define e difere dos espanhis seria[...] uma sensibilidade atenta somente ao fresco presente como sucesso de instantes, como perene improvisao efmera. O romance gravita, ressoa, vive de seu prprio eco, flui em um rio profundo. (Cintio Vitier In: Ibarra 1994: 195)

Era preciso consagrar uma expresso de esprito breve e vigoroso como o canto do galo. Portanto, as dcimas se apresentaram como modelo ideal para retratar o momento vivenciado. Sobre o assunto ainda podemos afirmar, em conformidade com os estudos do professor Boris Lukin que,Diferente do poema pico, as obras lricas tinham uma interpretao massiva, o que oferecia mais possibilidades para adaptar os textos a novos sentimentos e conexes. No h em Cuba a tendncia dos

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romances, nos quais se vislumbra o pintar de gestas do passado, fundamento do romanceiro espanhol. (Boris Lukin in: Ibarra 1994: 194)

Ainda sobre as caractersticas definitrias da dcima cubana, vale mencionar primeiramente que esta responde, em todos os termos, aos acontecimentos vividos no momento presente e, por conseguinte, um fenmeno explosivo de curta durao. Em seguida, pode-se observar que h nela maior possibilidade de interpretao quando se pretende realizar uma anlise histrica e sociolgica do cubano. A dcima possui uma estrutura redonda: o primeiro verso e o dcimo de alguma maneira se reencontram. O improviso marcante e se aproxima ao barroco, pois se abre como uma espiral em direo luz, semelhana arquitetura barroca. No final do sculo XVII e na primeira metade do sculo XX, apareceu como expresso genuna, atrelada terra e natureza cotidiana dos cubanos. No existia nada que a vinculasse s crnicas oficiais da burocracia colonial o que facilitou sua disseminao. A clara preferncia por essa forma de expresso se configura como uma ntida rejeio a uma histria oficial que no cristalizava a realidade de um povo que abrangesse todas as camadas sociais existentes. Manteve-se e se nutre, at os dias atuais, da necessidade de estabelecer comunicao entre as diversas regies que compunham as camadas populares. Na primeira metade do sculo XIX, se observa uma marcada ausncia dos temas polticos nas manifestaes artsticas do gnero. J na segunda metade do mesmo sculo, tem-se um aumento na discusso dos problemas polticos devido s guerras em prol da independncia da Ilha. Com isto, se pode elencar uma srie de trovadores regionais que representaram esse momento em Cuba atravs de suas dcimas: Vate de Canas, Senn e Nemesio Cabrera, procedentes de Pinar Del Rio; Verbena de Girarde Melena; Tejera Trujillo (Gareo) de Guines; San Fancn de Lajas; Frun del sol de Cienfuegos; Tocororo de Palmera; Miguel Puertas Salgado de Placetas; Jos Limedoux de Sagua; Ceferino Tirado de Camagey.

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Em princpios do sculo XX, Samuel Feijo coletou e publicou no semanrio popular humorstico titulado La poltica cmica algo em torno de 200 dcimas. Dentre elas, 59 se referiam diretamente a temas polticos o que confirma a tendncia referida em pargrafos anteriores. O diretor do semanrio cubano na poca, que at princpios do sculo concordava com uma poltica conservadora, passou a dar espao s publicaes provenientes do interior da Ilha. Atitude que tanto pode ser interpretada como uma possvel mudana de posicionamento quanto como o anseio de aumentar as vendas do semanrio. O contexto histrico-poltico fervilhava nas dcimas camponesas. Das publicadas em La poltica cmica entre 1920 e 1923 encontraram 60 referncias contra a poltica de Menocal e 16 contra Zayas. A crtica mais dura se fundamentava no apoio que os polticos demonstravam s determinaes norte-americanas. Dessa forma possvel explicar as 83 referncias contra as classes dominantes que oprimiam as camadas mais humildes e as 84 referncias dirigidas contra o vizinho do norte. Estas ltimas se apresentavam como uma resposta s ameaas de unio dos territrios; Emenda Platt e aos emprstimos que lesavam a soberania nacional, fazendo crescer a urgncia em obter a plena soberania em Cuba. Para que a explanao iniciada no incio do presente estudo tenha uma consistncia efetiva, sigamos com a apresentao de algumas dcimas da poca para ilustrar as inquietudes do povo cubano.

I ) La tonada Del dia que faz uma aluso s condies vividas no plantio de cana:Los meses as han pasado/ desde mayo hasta noviembre/ y ntrase ms en diciembre/ y todava no han pagado. / De ese modo han engaado/ al campesino caero/ y aunque saben que el bracero/ de su miseria est muriendo/ siempre le salen diciendo: / dentro de poco hay dinero. (In: Ibarra 1994:205)

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II) Explotando a Liborio em uma referncia clara a explorao das industrias norte americanas em Cuba:Vienen los norteamericanos/ trayndo aqui muchos reales/ para comprar los centrales que les venden los cubanos/ Ellos nos llaman hermanos/ desde que hubo intervencin, / y ahora encuentran la ocasin/ de aumentar su capital/ pagando poco jornal/ en su gran explotacin. (In: Ibarra 1994:206)

III) A Cuba na qual se apresentam as diferenas entre as classes sociaisAy, cuanta miseria enseanza encierra/ ese humilde hogar cubano/ los que con callosa mano/ llenan de frutos esa tierra./ Los que con la suerte en guerra/ nunca a la labor se hacan/brindan al comercio espacio,/ viven en bohos ruinosos/ mientras dan al poderoso/ modo de habitar palacios. (In: Ibarra 1994:206-207)

IV) Peon de las cotorras que denota o sentimento aguerrido em mudar a situao de dependncia.Liborio se halla arma en brazo/ se encuentra ya prevenido/ el pjaro entrometido/ no le dara al aletazo. / De su tierra ese pedazo/ que se lo quiten no deja/ el guila grande y vieja/ tendr fuerza, s seor/ pero a Liborio el valor/ le sobra y eso le empareja. (In: Ibarra 1994:210)

As dcimas aqui citadas constituem um singelo exemplo que figura em uma srie de composies que aludem o modo de vida do cubano. Nelas se perfilam uma atitude de intensa emoo. Transparecem a dor, a amargura o inconformismo diante da situao vivida em Cuba. So, segundo Jorge Ibarra (1994:208)um reflexo fiel dos sentimentos dominantes na massa rural, ao passo que contribuem para fixar um conhecimento exato da natureza do conflito entre explorados e exploradores, necessrio para uma tomada de conscincia de si.

Sua linguagem espontnea e atenta abarcou a crise poltica instalada em Cuba no primeiro quarto do sculo XX. Nestes anos, poucos depositavam suas esperanas nos homens e instituies da repblica. Nas dcimas, o mal

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estar e a irritao encontravam sua mxima ressonncia superando efetivamente os meios de comunicao aliados a burguesia. Tiveram, portanto, um carter patritico e popular, pois congregavam a todos ao entoar os anseios e aspiraes do povo. Ainda hoje encontram espao no cenrio cubano, j que o intenso vnculo entre oralidade e escrita permanece vivo nas composies cubanas. Como comprovaremos ao relacionar as consideraes dos estudos que se seguem s anlises das composies poticas de Guilln.

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2- Cuba e suas independncias ao longo do Sculo XXLibertad es el derecho que todo hombre tiene a ser honrado, y a pensar y a hablar sin hipocresa Jos Mart

A primeira metade do sculo XX se caracterizou como um perodo de tenses entre Cuba e algumas naes que pretendiam obter o controle da Ilha. O combate travado entre Espanha e Cuba fez com que a primeira ficasse beira da runa. No entanto, o triunfo da campanha militar cubana no alcanou os resultados esperados na esfera poltica de Cuba. Acabou facilitando a interveno dos Estados Unidos no conflito e, consequentemente, fortaleceu o poder de atuao do leo de duas cabeas 2 em solo cubano. Sobre a participao dos EUA no novo processo de dependncia de Cuba, vale destacar os escritos de Leslie Bethell (1998:151), catedrtico emrito de histria da Amrica Latina na Universidade de Londres, quando afirma que:A interveno armada conduziu a ocupao militar e ao conclu-la, em maio de 1902, os Estados Unidos reduzira a independncia de Cuba a uma simples frmula. A Emenda Platt negava a recm-nascida repblica: sinalizava limites para a dvida nacional e sancionava a interveno estadunidense para a manuteno de um governo idneo, para a proteo da vida, a prosperidade e a liberdade individual.

O tratado de reciprocidade no s atrelava o acar, principal produto cubano de exportao, a um nico mercado como tambm abria setores-chave da economia cubana ao controle estrangeiro, majoritariamente, o estadunidense. Amparadas pelo tratado de reciprocidade, as foras polticas dos Estados Unidos puderam substanciar a dependncia cubana do acar e, em menor escala, do tabaco. Alm disso, obtinha-se tambm como resultado um retardo no desenvolvimento da economia na Ilha, j que o mercado cubano se

Expresso utilizada por Jos Marti no manifesto Nuestra Amrica. In: MART, Jos. Nuestra Amrica. Caracas: Biblioteca Ayacucho, 2005.

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encontrava sufocado diante das imposies estrangeiras. Como se v ratificado nas linhas abaixo:Antes que transcorresse uma dcada desde a guerra de independncia, os Estados Unidos j eram onipresentes em Cuba. Dominavam totalmente a economia, penetravam por completo no tecido social e exerciam o controle pleno do processo poltico. A localizao desta presena deu forma ao carter essencial da repblica em seus primeiros tempos. (Bethell 1998: 152)

Como grande parte da riqueza nacional passou rapidamente a mos estrangeiras, os cargos polticos foram distribudos entre as elites. Esta era a nica atividade que se caracterizara por ser desempenhada completamente por membros da sociedade cubana. Tornou-se o principal meio de vida das camadas mais privilegiadas em Cuba. Nesses moldes, o processo eleitoral passou a ser um espao de substituio cclica e previsvel. A preservao desse sistema era to importante que a sucesso presidencial foi o estopim de protestos armados em 1906. Primeiro na reeleio de Toms Estrada Palma e no ano seguinte contra o candidato Mrcio Garca Menocal. O intento de alterar a ordem estabelecida na ilha demorou a findar. Anos mais tarde, os protestos contra a reeleio de Gerardo Machado tomou propores bem maiores que os movimentos organizados em eleies anteriores. O conflito saiu dos tradicionais partidos Conservador e Popular e se concentrou tambm no partido Liberal. Porm, a oposio ao governo de Machado no se originou fundamentalmente nos partidos arraigados. Novas formas comearam a dar sinal de vida na sociedade. Na dcada de 20 a primeira gerao de cubanos nascidos sob a repblica, dentre os quais figurava Nicolas Guilln, j alcanara a maturidade poltica e conhecia as deficincias do sistema republicano. A desiluso da nao cubana encontrou alento na troca de ideias, em novas correntes literrias e artsticas. Sobre esta ltima informao, cabe destacar a citao de Angel Augier, renomado historiador e crtico cubano, sobre a participao de Guilln no processo de transformao poltico-social em Cuba:

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Nos domnios da arte e da literatura, o esprito de protesto se manifestou com o Grupo Minorista, formado em 1924, por, como definira um de seus animadores, intelectuais jovens de esquerda que se pronunciaram, desde os primeiros momentos, contra os falsos valores e por uma radical e completa renovao formal e ideolgica, nas letras e nas artes, que sem esquecer estes propsitos [...] se interessava pelos problemas polticos e sociais de Cuba, da Amrica e da humanidade, e por eles trabalhavam em sentido radical e progressista. (In: Bonifacini:1987: 26-27)

O Vanguardismo, denominao genrica das novas formas de expresso artstica em Cuba, surgiu apoiado nas tendncias europeias atravs dos intelectuais atuantes do Grupo Minorista. Os principais veculos de circulao de ideias e princpios dessa gerao revolucionria foram a Revista de Avance (1927-1930) e o suplemento literrio dominical do Dirio de la Marina. No s os intelectuais atuaram na transformao em Cuba. Junto a eles, estudantes e trabalhadores levaram o descontentamento alm dos limites da tradicional poltica entre partidos. A gerao republicana objetivava regenerar por completo a repblica, o que a conduziu a levar o embate poltico s vias da reforma e da revoluo. Como resposta a essa mudana que se verificava na sociedade cubana, as elites polticas tradicionais formaram uma aliana para promover a reeleio de Gerardo Machado. Esta conjuno de foras recebeu o nome de Cooperativismo e fez cair por terra a aparente independncia entre os partidos, assim como desmitificou a concorrncia entre eles. Ainda em 1927, ano da reeleio, Machado conseguiu que o Congresso aprovasse uma resoluo que estendia o mandato presidencial. Assim sendo, obteve sua reeleio por um perodo de seis anos. Com este cenrio, intensificou-se em Cuba o enfrentamento poltico gerado pelo conflito social das correntes de pensamento. A crise mundial contribuiu seriamente para o aprofundamento do embate, levando-o s vias da ao revolucionria. Em meados da dcada de 30, as condies se agravaram ainda mais quando os Estados Unidos implantaram uma medida protecionista, a tarifa Hawley-Smoot, que incrementou direitos na importao correspondente ao acar cubano. Atitude que levou os produtores a rebaixar salrios, demitir trabalhadores, reduzindo sua produo. Durante o governo de Gerardo

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Machado tambm foram feitas drsticas redues salariais a outros setores das camadas sociais, excluindo-se apenas as foras armadas. Se por um lado, as condies econmicas da ilha pioravam; por outro lado crescia o ressentimento de uma populao que ansiava derrubar um sistema com a derrocada de um presidente. Por volta de 1933, lderes de oposio que se encontravam exilados organizaram uma junta revolucionria em Nova York com o fim de convocar uma revoluo nacional para expulsar Machado do poder. Toda essa efervescncia poltico-econmica em Cuba preocupava aos Estados Unidos que via escapar de suas mos o domnio sobre a economia cubana. O General Gerardo Machado, ento presidente, j no era til aos interesses das elites e menos ainda aos estrangeiros. A ordem e a estabilidade, que lhe garantiu o apoio de Washington, proporcionadas em seu primeiro mandato j no existiam. De tal forma, os Estados Unidos deixaram de apoi-lo iniciando um dissabor que abalaria o cenrio poltico-econmico de ambas as naes. Aps muitas manifestaes o exrcito obteve, em agosto de 1935, a retirada de Machado. Iniciou-se ento uma nova discusso: quem seria o sucessor adequado. Porm, esta questo foi resolvida de forma provisional. O estadista Carlos Manuel de Cspedes foi nomeado para o cargo aps um breve tempo de mandato assumido por Alberto Herrera, Secretrio de guerra e ex-chefe do exrcito. Cspedes era tido como um poltico inexpressivo, inofensivo j que no estava filiado a nenhum partido ou tendncia poltica. Seu governo foi marcado pela sombra dos efeitos da administrao de Gerardo Machado e a crise econmica e social instauradas na ilha no se mostrou menos intensa durante seu mandato. Os movimentos que impulsionavam uma mudana governamental efetiva consideraram insatisfatria a soluo Cspedes. Muitos deles, como as organizaes estudantis e o Partido Comunista passaram muito tempo lutando pela revoluo e isto lhes impedia de se conformarem com um golpe de

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palcio3 como resultado de seus esforos polticos. Seu tempo de governo terminou de forma inesperada. Militares do acampamento de Columbia, que se reuniram em La Habana para tratar de suas reivindicaes, ao no conseguir xito em seus propsitos, conseguiram apoio de grupos anti-governamentais e, juntos, articularam um golpe de estado que seria conhecido alguns anos depois como revuelta de los sargentos. Sobre esse momento, vale destacar o comentrio de Bethell (1998: 161) sobre a revolta dos sargentos:Foi uma coalizo de convenincia, no sem seus defeitos, porm ofereceu a absolvio das tropas rebeldes e poder poltico aos civis dissidentes. Deste consenso civil-militar provisional saiu uma junta revolucionria composta por Ramn Grau San Martn, Porfrio Franca, Guillermo Portela, Jos Irizarri e Srgio Carb.

O traslado da junta revolucionria do quartel do acampamento de Columbia ao palcio presidencial serviu para que a autoridade em Cuba mudasse de lugar. Na manh do dia 5 de setembro, um manifesto poltico anunciou o incio de um novo Governo Revolucionrio Provisional,

proclamando tambm a afirmao da soberania nacional, a instaurao de uma democracia moderna e de um movimento de criao de uma nova Cuba. Este governo de carter provisional encontrou em Summer Welles, embaixador dos Estados Unidos, seu maior adversrio. Os novos moldes de governo em Cuba destituam toda a autoridade conservadora defendida por Welles que prontamente recomendou uma interveno militar norte americana em Cuba com o fim de devolver o poder a Cspedes. No entanto, no obteve sucesso. Ainda no ms de setembro a junta se dissolveu para dar lugar a uma forma de governo mais tradicional sob o controle de Ramn Grau San Martn. Foi nomeado como chefe do exrcito, Fulgencio Batista, para evitar qualquer

uma espcie de golpe pelo qual um governante ou setor do governo tem sido movido por foras pertencentes ao prprio governo, sem seguir as normas legais estabelecidas para a substituio de funcionrios. muito comum a existncia de golpes no palcio ditaduras decorrentes de golpes.

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ruptura na ordem pblica. A respeito deste momento poltico em cuba se faz esclarecedor introduzir a citao de Bethell (1998: 162) quando enuncia que:Sob o slogan de Cuba para os cubanos, o novo governo comeou a promulgar leis reformistas em ritmo vertiginoso comprometendo-se com a reconstruo econmica, a mudana social e a reorganizao poltica. O novo governo revogou a Emenda Platt e dissolveu todos os partidos machadistas. As taxas de servio pblico foram reduzidas em 40% e as taxas de juros tambm sofreram reduo. O direito de voto foi concedido s mulheres e tambm autonomia para a universidade. Foi institudo o salrio mnimo para os cortadores de cana, [...] a jornada de oito horas, indenizaes aos trabalhadores, a criao de um ministrio do trabalho e um decreto sobre a nacionalizao do trabalho que dispunha que 50% de todos os empregados da indstria, do comrcio e da agricultura fossem cidados cubanos.

O apoio militar ao governo provisional sempre se caracterizou mais pelo interesse que por solidariedade causa revolucionria. O militar Fulgencio Batista era apenas um dos quatrocentos suboficiais promovidos recentemente cuja graduao dependia de que em Havana houvesse uma soluo poltica compatvel com a nova hierarquia do exrcito. Sabendo disso, Welles explorou de forma hbil a fragilidade dessa aliana para desestrutur-la concentrando seu discurso em Batista. Em dezembro, Summer Welles anunciou que Batista buscava por uma mudana efetiva no governo devido, entre outros fatores, ao temor de que houvesse uma nova interveno dos Estados Unidos. Retirou o apoio de seu exrcito a Grau e apoiou Carlos Mendieta ato que foi legitimado pelos Estados Unidos cinco dias aps a ao de Batista. No entanto, as foras de mudana liberadas durante o machadado no minguaram com o

desaparecimento do governo de Grau, pelo contrrio, encontraram novas formas de expresso. Entre 1934 e 1935 houve mais de cem greves em toda ilha. Dentre as inmeras greves ocorridas no perodo, destaquemos a greve geral de 1935. Foi o ltimo golpe revolucionrio da gerao republicana. Fracassou em poucos dias, porm seus efeitos perduraram at o fim da dcada. A severidade com que foi reprimida acarretou em desacordos na coalizo presente no poder levando a sua dissoluo. Dessa forma, a greve alcana o efeito desejado,

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porm no consegue cumprir seu objetivo j que Batista e as foras armadas acabam preenchendo o vazio poltico deixado com a sada de Mendieta. Fulgencio Batista passou a ser a fora poltica mais importante em Cuba. Seu prestgio aumentou durante toda a dcada de 30 medida que foi restaurando a ordem e a estabilidade. Os grupos revolucionrios, diante dos conflitos vivenciados, se encontravam desarticulados. O historiador Leslie Bethell (1998: 166) explica o xito do governo de Batista quando descreve queNo cabem dvidas que Batista transformou o exrcito cubano em um eficaz meio de represso. Ao mesmo tempo, porm, os lderes militares se entregaram aos negcios ilcitos e a corrupo em uma escala desconhecida em Cuba. [...] Comprometeu as foras armadas com uma ampla srie de programas sociais, comeando em 1937 com a inaugurao de escolas cvico-militares, nas quais sargentos atuavam como professores nas zonas rurais. Estas misses educativas cujo fim era difundir informao referente agricultura, higiene e a nutrio entre as comunidades rurais foram o incio de uma rudimentar rede de educao no interior. O exrcito tinha mil escolas onde durante o dia se educavam as crianas e noite os adultos. No fim da dcada de 30 o exrcito criara uma extensa burocracia militar cuja tarefa era a de administrar programas sociais

As condies econmicas melhoraram ao longo dos anos 30. O acar cubano recuperou pouco a pouco uma maior participao no mercado estadunidense, contudo a recuperao econmica de Cuba interna e externamente teve seu custo. A Ilha obteve, graas ao tratado de 1934, um mercado assegurado para suas exportaes agrcolas em troca de redues tarifrias para uma grande variedade de produtos e a reduo de impostos internos sobre produtos estadunidenses. Os Estados Unidos fizeram concesses que abarcaram trinta e cinco artigos do tratado, enquanto as feitas por Cuba afetaram a quatrocentos, vinculando a ilha, uma vez mais, ao pas do leo de duas cabeas. O fim da crise econmica e o retorno da estabilidade em Cuba, alm do clima de aparente concrdia entre as foras polticas da ilha permitiram a discusso que instauraria uma reforma constitucional. Para tanto se reuniram em 1939 representantes de todas as filiaes polticas em uma assembleia constituinte. O resultado dessa discusso pouco acalorada foi a promulgao,

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em 1940, de uma Constituio notadamente progressista. As clusulas sociais do documento contemplavam apenas uma srie de generalidades trabalhistas como: horrios mximos, salrios mnimos, direito a greve. A constituio de 1940 nascia como uma exposio de objetivos, um programa do que deveria ser feito no futuro. Alm disso, vale destacar que sua criao permitiu a celebrao das eleies presidenciais no ano de sua promulgao. Uma vez mais se enfrentaram Batista e Grau San Martn, que regressou do exlio para enfrentar seu antigo rival no processo eleitoral. O resultado da eleio foi categrico: Batista obteve mais de 800.000 votos frente aos 575.000 de Grau. Na presidncia, Batista promoveu

mudanas saudveis. A eleio celebrada em 1940 serviu para conferir um novo carter distribuio do poder. O poder poltico real j no passava mais da autoridade civil constitucional ao chefe de estado do exrcito cubano. Sobre o perodo em que Batista esteve no poder cabe destacar que:Em princpios de 1941 as alfndegas, que desde muito tempo eram fonte de subornos para os militares, passaram ao controle do Ministrio da Fazenda. Os projetos educativos patrocinados pelo exrcito estavam, agora, sob a administrao do Ministrio da Educao. A superviso dos faris, a polcia da marinha mercante e o sistema postal voltou aos ministrios governamentais pertinentes. (Bethel 1998: 168-169)

Essa srie de mudanas despertou rapidamente a ira dos oficiais setembristas de alta patente e causou uma baixa na confiana dos militares em Batista. Porm este ltimo saiu favorecido do embate entre presidncia e fora militar. Batista tambm se beneficiou em que seu mandato coincidisse com a 2 Guerra Mundial. A entrada de Cuba no conflito, em 1941, facilitou os acordos comerciais e programas de concesses e crditos com os Estados Unidos. A queda na produo de acar na sia e na Europa, em funo da guerra, foi um estmulo para os produtores cubanos que tiveram sua produo elevada de 2,7 para 4,2 milhes de toneladas. No entanto, a guerra tambm trouxe perdas ilha. Paralela valorizao vertiginosa do acar, vivenciou-se o problema causado pela falta de barcos e o risco em transportar mercadorias outra margem do Atlntico.

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O turismo tambm sofreu uma grave queda e o nmero de viajantes caiu de 127.000 em 1940 para 12.000, trs anos aps. Todo esse clima fomentou um animado debate poltico em 1944. Ano em que se celebrariam as eleies presidenciais. Uma vez mais estava na disputa o Autntico Grau San Martin que, desta vez, saiu vitorioso. Tal fato despertou imensas expectativas populares no programa de reforma que era a grande promessa do PRC4. Contudo, nem o governo de Grau (1944-1948) nem o de seu sucessor Carlos Pro Socarrs (1948-1952) pde corresponder aos anseios dos cubanos. O governo de Grau foi marcado por incertezas e desfalques por parte do PRC. Como complemento do que foi citado anteriormente, tm-se algumas das acusaes feitas nesse perodo:Grau foi acusado de desfalcar 174 milhes de dlares. Em 1948, acreditava-se que o ministro da Educao roubara 20 milhes de dlares. O ministro da Fazenda do governo de Pro foi acusado de se apropriar indevidamente de milhes de bilhetes velhos do banco que deveriam ser destrudos. (Bethel 1998: 170)

As oportunidades econmicas no perodo ps-guerra se perderam graas m administrao. Fruto de erros de clculo, da corrupo e do abuso de poder na distribuio e gesto dos cargos pblicos. A derrocada da administrao do PRC gerou uma srie de conflitos internos no partido, acarretando em uma sria ruptura entre seus membros. O golpe de 10 de maro representou o tiro de misericrdia que ps fim a um regime decadente. Militares insatisfeitos com a gesto de Grau se uniram para derrubar os Autnticos do poder. Na madrugada desse dia, os rebeldes se apoderaram dos principais postos militares da capital. Os militares ocuparam posies estratgicas na ilha e os cubanos despertaram sob o rumor de um golpe de Estado, do qual no se podia ter certeza j que as estaes de rdio tocavam msica ininterruptamente. O compl liderado por Batista alcanou xito sem muita resistncia. Fato que aparecia como resposta a um governo repleto de manobras corruptas e escndalos. Batista retornou ao poder na ansiada e discutvel eleio de 1954 com 40% dos votos.4

Sigla para designar o Partido Revolucionrio Cubano. Que se opunha ao Partido dos Autnticos.

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Os Dilogos cvicos, srie de entrevistas feitas a Batista por representantes da oposio moderada, representavam a ltima tentativa de negociar uma soluo poltica para a crise vivenciada na ilha. Objetivava fazer com que o presidente celebrasse eleies com garantias a todos os participantes. Como Batista se negou, a resposta sua atitude chegou ainda no ano de 1955. No final deste ano, Cuba estava imersa em uma srie de manifestaes estudantis. Eram constantes os choques armados entre estudantes e as foras militares e policiais. Os anos seguintes foram de inmeras tentativas de retirar Batista do poder e realizar em Cuba as transformaes necessrias para o seu real progresso. E nesta guerra de guerrilhas, Fidel Castro e seus homens queriam aniquilar a Guardia Rural presente na Sierra Maestra, que durante dcadas aterrorizara as comunidades rurais da regio. Tal intento ganhou apoio dos camponeses, fazendo com que o contingente aumentasse em nmero e xito. Sobre a repercusso dessa manobra de Castro pode-se afirmar que:As vitrias dos insurgentes obrigaram o governo a admitir que havia enclaves de territrio liberado em toda a provncia do Oriente. Durante todo o ano de 1957 e comeos de 1958 o tamanho do exrcito rebelde aumentou [...] Em meados de 1958 uma coluna de cinquenta homens sob o comando de Ral Castro estabeleceu a Segunda Frente no noroeste de Cuba, alm de consolidar vrias partidas rebeldes que atuavam na regio. [...] Outra coluna atuava ao leste do pico Turquino sob o comando de Ernesto Che Guevara. [...] A expanso da luta no campo foi acompanhada de uma crescente resistncia nas cidades [...] medida que aumentava o nmero de sequestros e assassinatos, o regime respondia com maior ferocidade [...] A volta de Batista ao poder havia dado o sinal para a transformao geral no comando do exrcito e velhos oficiais setembristas.[...]Batista enfrentava tanto a crescente oposio popular como a resistncia armada com um exrcito cada vez mais inseguro politicamente e de pouco fiar profissionalmente. (Bethel 1998: 175-176)

A crise cubana dos anos cinquenta era muito mais que um conflito entre um presidente e seus adversrios polticos. O descontentamento durante a dcada de cinquenta se fundamentava tanto na frustrao socioeconmica quanto nas demandas polticas. Em 1957, 17% da populao ativa estava desempregada; na indstria aucareira, aproximadamente 60% dos

trabalhadores estavam empregados por seis meses ou menos . E este cenrio representava um dos melhores anos da dcada na ilha. No entanto, Cuba

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possua uma das rendas per capita mais altas da Amrica Latina. Somente Mxico e Brasil superavam Cuba em nmero de televisores e rdios por habitante. O consumo de importaes, principalmente de produtos

estadunidenses, aumentou de 515 milhes de dlares em 1950 para 649 milhes em 1956 e para 777 milhes dois anos mais tarde. Em 1958 o Movimento 26 de julho comeou uma guerra contra a propriedade e a produo por todos os cantos da ilha com o fim de afastar Batista do apoio que recebia das elites econmicas estrangeiras e nacionais. Em fevereiro os lderes da guerrilha anunciaram sua inteno de atacar os engenhos de acar, as fbricas de tabaco, as empresas de servio pblico, as estaes de trem e as refinarias de petrleo. O que fez com que Cuba estivesse durante todo o ano no limite da revoluo. O Pacto de Caracas, realizado em junho de 1958, nomeou Fidel Castro como lder principal da revoluo. As tropas de Batista fracassaram no

combate travado na Sierra Maestra. Os comandantes militares das regies se rendiam, pouco a pouco, sem disparar um s tiro. Ainda no mesmo ano, Batista ganhou mais um adversrio: o governo dos Estados Unidos. Em dezembro do mesmo ano, 90% da populao apoiava a guerrilha. Fato que foi marcante para a decisiva batalha de Santa Clara. Depois da vitria dos guerrilheiros em Santa Clara, Fulgencio Batista se afastou do poder sob uma onda de entusiasmo popular. Acabava um perodo de poder tirano e desptico, controlado pelos EUA, bem como o comando de Batista, desde 1952 frente dos destinos de Cuba. O episdio histrico vivenciado em Santa Clara imortalizou-se em um conjunto de trechos ou ttulos de canes e poesias cubanas, a maior parte das vezes dedicadas ao Comandante, Che Guevara, desaparecido mais tarde, em 1967, na Bolvia. Dentre as poesias, destacam-se, Che Guevara e Che comandante, compostas por Nicols Guilln, cujos trechos leremos, respectivamente, a seguir:

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Che Guevara Como si San Martn la mano pura a Mart familiar tendido hubiera, como si el Plata vegetal viniera con el cauto a juntar agua y ternura, as Guevara, el gaucho de voz dura, brind a Fidel su sangre guerrillera, y su ancha mano fue ms compaera cuando fue nuestra noche ms oscura.

[] Em Che Guevara nota-se a aluso San Martin, figura imortalizada no imaginrio latino-americano e Jos Mart, um dos precursores do processo de independncia em Cuba. A imagem construda a partir das duas figuras nos sugere uma relao de cumplicidade, de unio. Tambm a mo de Guevara se uniu a de um companheiro de causa, aqui representado na figura de Fidel Castro, para atravessar e vencer a noite mais escura numa provvel meno aos tempos de tenso que vivenciaram durante a Revoluo em Cuba. J em Che comandante observa-se um destaque figura do comandante Guevara frente aos desafios vivenciados na guerrilha. Como se pode vislumbrar nos versos seguintes :

Che comandanteCon sus dientes de jbilo Norteamrica re. Mas de pronto revulvese en su lecho de dlares. Se le cuaja la risa en una mscara, y tu gran cuerpo de metal sube, se disemina en las guerrillas como tbanos, y tu ancho nombre herido por soldados ilumina la noche americana como una estrella sbita, cada en medio de una orga. T lo sabas, Guevara, pero no lo dijiste por modestia, por no hablar de ti mismo, Che Comandante, amigo. Ests en todas partes.

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A poesia ressalta a satisfao das foras norte-americanas ao ver um inimigo abatido, com o fim de classificar este sentimento como uma conquista v, pois o comandante est en todas partes. Ambas as composies exaltam, portanto, a coragem do argentino Ernesto Guevara em manter-se fiel a seus ideais at o fim, como um exemplo a ser seguido. Guevara representa os guerrilheiros que acreditavam em uma ptria mais justa, imortalizou em seus atos os anseios de outros tantos comandantes annimos que lutaram na Ilha.

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II UM OLHAR SOBRE A PRXIS MUSICAL5 E POTICA EM VERSOS DE NICOLS GUILLN

Antes el poeta era un msico [] Ahora el poeta se mete dentro de si mismo Y all dentro, dirige su orquestra. Nicols Guilln

O interesse no estudo das expresses culturais populares Latino Americanas, como via de encontro de uma expresso nacional, tomou novo impulso na dcada de 1920 motivado pelo exacerbado esprito nacionalista e canalizado atravs dos ideais vanguardistas. A busca por uma independncia plena foi o norte que permitiu articular o iderio poltico-social antilhano ao desenvolvimento de novas propostas estticas no campo artstico. Nicols Guilln, cuja obra objeto central desta dissertao, foi um dos intelectuais letrados que descobriu nas artes uma capacidade singular de representar a Nao. Ao fazer uso dos elementos tnicos e culturais que constituem a populao cubana, construiu em seu discurso sobre o nacional a sugesto meldica de uma comunidade imaginada. composies poticas foram interpretadas por Muitas de suas de diversas

msicos

nacionalidades. Guilln tambm se inspirou em vrias obras musicais e literrias para plasmar em seus versos o cantar unssono de um povo. Em conformidade com o escritor Fernando Ortiz (1950: 116-118)A poesia cubana de inspirao negride tardou muito a emanciparse da msica. [...] teve que amulatar-se e dominar o idioma branco, o castelhano, que foi lngua comum [...] de todos os negros de Cuba, para poder esvaziar suas expresses em molde alheio msica. Primeiro foi o verso de um encantamento, depois o de um cantar bailado [...] A poesia mulata a que nos referimos agora [...] com popular difuso, devido a musas amestiadas e escritores5

Numa aluso ao termo utilizado pelo Prof. Dr. Samuel Arajo. In: MSICA, POLTICA E CIDADANIA SIBE, 2008.

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descendentes de avs brancos e negros como Nicols Guilln [...] de essencial musicalidade, tanto que difcil no poder cant-la nem acompanh-la de tambores.

Sobre o tema das origens e implicaes sociais das manifestaes artsticas em Cuba, cabe destacar ainda a pertinente afirmao de Ortiz (1950: 115-116):Cada situao social possui sua prpria msica, suas danas, seus cantos, seus versos e seus peculiares instrumentos. As fluncias migratrias da musicalidade transcorreram em Cuba ao longo de leitos sociais muito acidentados, como as mais tpicas correntes fluviais da terra cubana, mansas ou tormentosas, lmpidas ou turvas, y por vezes submersas em cavernas para depois rebrotar com maior caudal e a plena luz. Umas msicas entraram em Cuba como prprias dos conquistadores e da classe dominante, outras como dos escravos e da classe dominada. [...] A histria de Cuba est no vapor de seu tabaco e na doura de seu acar, tambm est no sandungueo de sua msica. E no tabaco, no acar e na msica esto juntos brancos e negros no mesmo compasso de criao, desde o sculo XVI at os tempos de agora.

Durante dcadas, quase todas as atividades musicais cubanas (msica interpretada como modus vivendi e no como fazer cultural privado) foram realizadas por negros e mulatos, em sua maioria criollos. Originalmente tal fato podia ser explicado pelo pouco prestgio que o ofcio de msico conferia a seus praticantes. As famlias de maior poder aquisitivo destinavam seus filhos, segundo o msico e escritor Alejo Carpentier (1972: 137-138), para a magistratura, a medicina, a Igreja, a carreira de armas ou, na falta de algo melhor, a administrao pblica, reservando-se o monoplio das condies honrosas. Quanto ao negro, tal profisso se encontrava no topo de suas possibilidades j que estavam vedadas a ele a magistratura, a carreira eclesistica e a administrativa em seus melhores cargos. Nessas atividades, no mbito da sociedade de classes, se imps aos msicos negros os padres da classe dominante, para a qual tocavam. No entanto, esses negros e mulatos, oriundos da base da sociedade, que aprenderam a executar os instrumentos europeus conforme os cnones musicais de uma cultura, diferente da que receberam no se desvincularam dos padres africanos, ainda que estes representassem em Cuba a cultura oprimida. Esta particularidade lhes permitiu, em mdio prazo, ser

simultaneamente fonte e veculo do processo de criao de uma msica nova.

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A contribuio espanhola a esta nova msica est, em maior parte, determinada pelo acervo artstico dos grandes ncleos de trabalhadores e soldados europeus que chegavam a Cuba. Em menor grau encontra-se tambm a influncia das manifestaes musicais e danas espanholas que encontraram maior difuso na classe dominante daquela sociedade. Os elementos da cultura oprimida no se perderam, mas sim permaneceram subjacentes na base da sociedade e posteriormente se incorporaram a elementos da cultura dominante para paulatinamente criar, com identidade prpria, a msica cubana. Dentro do vasto cenrio musical cubano, far-se- no presente captulo um corte que pretende destacar o complejo de la rumba que tem sua origem marcada nos grupos bant congo. No que concerne origem do termo rumba aplicado msica, cogita-se a possibilidade de que se deva qualificao de mujeres del rumbo, dada a certa forma de prostituio ligada s casas de dana. A primeira variante conhecida pelo estudo desenvolvido por Odlio Urf, importante msico cubano, a dana El Yamb composta por volta de 1850. A partir da, a classificao empregada por Urf, para estabelecer uma relao genrico-estilstica segue a presente ordem:

I. II. III. IV. V. VI. VII. VIII. IX.

Rumba estribillo; Rumba yamb; Rumba guaguanc; Rumba del teatro bufo; Coros de rumba guaguanc; Rumba tahona; Tango congo; Rumba abierta; Rumba columbia

Cada variante apresenta um estilo bsico do qual emanam variaes com os tempos, o repique dos tambores solistas e as acentuaes do esquema fundamental. Em todos os casos a organologia est integrada por trs

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tambores criollos e os xilofones. Todas as variantes, e especialmente a guaguanc, expressam movimentos desenvolvidos e marcados por cadncias e modos de ordem litrgica africana em um sistema rtmico com duas vertentes principais: la regla kimbisa e la regla mayombe6 - , porm com padres lricos indiscutivelmente hispnicos. Os cantos e ritmos de todas as variantes citadas se realizam em compasso de 2/4, e os coros de chave em 6/8. Segundo os estudos de Fernando Ortz, a rumba o grande tema da lrica de Cuba na primeira metade do sculo XX. No apenas porque se apresenta como o elemento mais tpico e universal na cultural afro-cubana, mas tambm porque carrega uma expresso de carter genuno. A rumba um fenmeno humano de complexa sinergia. o desabafo das foras restantes de vida em um frenesi que envolve todos os msculos; a hipnose da msica que envolve com o encantamento de seus ritmos; a exaltao bquica7 do esprito todos os estmulos da embriaguez: msica, dana, canto, amor, lcool, drama, multido e religio. Em seu livro La africana de la msica folklrica en Cuba, Ortiz (1950-180) corrobora o acima exposto atravs da seguinte citao:A Rumba: uma msica simplesmente cubana, onde a cubanidade aparece j integrada como produto novo de duas culturas (...). Na Rumba s existe o cubano, a totalidade orgnica que nos distingue como povo, que nos caracteriza como concretude cognoscvel da mais ou menos abstrata universalidade.

A verdadeira e tradicional rumba a viva representao de um sagrado teatro primitivo no qual danarinos, msicos e coro integram o ato dramtico desde as primeiras fases mimticas do dilogo amoroso at a apotetica possesso carnal. Esse ritmo envolvente o que o povo cubano define paradoxa e espontaneamente como um relajo con orden; relaxamento das inibies sociais at o limite consentido pela harmonia vital. Desde La rumba

Palo, ou Las Reglas de Congo so grupos de denominaes estreitamente relacionadas de origem Bantu desenvolvidas por escravos, vindos da frica Central, em Cuba. Outros nomes associados com os diversos ramos desta religio incluem: Palo Monte, Palo Mayombe, Brillumba, Kimbisa 7 Numa referncia ao deus mitolgico Baco.

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publicada pelo poeta Jos Zacarias Tallet, considerado um dos iniciadores da poesia afro-cubana, todos os poetas do temrio mulato compuseram rumbas . Analisaremos, a seguir duas composies poticas de Guilln: Rumba e Secuestro de la mujer de Antonio nas quais o poeta descreve cenas cotidianas carregadas de desejo que transcorrem ao som meldico da rumba. E para fundamentar a anlise se utilizar-se-o tambm trechos da poesia inaugural de Tallet e fragmentos da letra da cano La mujer de Antonio composta e executada incialmente pelo Trio Matamoros.

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1- As Rumbas e o desejo na construo do olhar potico

Algn dia se dir: color cubano. Estos poemas quieren adelantar ese da. Nicols Guilln

A estrofe que inicia a composio potica Rumba, composta por Nicols Guilln apresenta o cenrio em que se transcorrer a cena. Flix Guatarri, (2007:289) filsofo e militante revolucionrio francs, afirma que a expresso do corpo, a expresso da graa, a dana, o riso [...] so linguagens que no se reduzem a pulses quantitativas, globais. Constituem a diferena. Dessa forma consegue-se depreender o espao descrito como propcio para observar a expresso do corpo da mulata que est plenamente envolvida com o ritmo da rumba. Outro aspecto importante a ser destacado nos primeiros versos do poema a conotao dada ao vocbulo palo. Nas danas dedicadas a Elgua, um deus travesso de origem africana, a danarina usa um pequeno pau que movido de um lado a outro para afastar a maldade ou para abrir caminho na selva. Tendo em vista o fato de a rumba possuir influncias de origem bant, e de esta ltima predominar entre os bailes frequentados por escravos de origem camponesa, pode-se inferir que Guilln, ao enunciar em sua composio potica que La rumba revuelve su msica espesa con un palo, parece manifestar a inteno de afastar qualquer elemento que perturbe a festa, manifestado na estrofe como el negro chulo con fela. Como se observa a seguir:La rumba revuelve su msica espesa con un palo Jengribe y canela Malo! Malo, porque ahora vendr el negro chulo con fela.

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Nos versos seguintes, Guilln atribui a partes do corpo da rumbera caractersticas prprias de um vocabulrio que pertence a um campo semntico marcado pelo calor e pelo desejo. Disserta sobre o mecanismo da sexualidade de acordo com as concepes de Michael Foucault (2004, p.100), outro filsofo francs, quando afirma que: trata-se de uma rede tranada por um conjunto de prticas, discursos e tcnicas de estimulao dos corpos, intensificao dos prazeres e formao de conhecimentos. Guatarri (2007: 382) tambm discorre sobre o tema afirmando que[...] a questo da montagem da expresso, da montagem maqunicaque muda os dados, que os remaneja, que propulsiona novas referncias, novos universos- inseparvel da questo dos territrios ou dos corpos sem orgos sobre os quais se inscrevem, se marcam, se encarnam os devires maqunicos, os procesos incorporais

Toda essa descrio alimentada pelo olhar do eu-lrico que no est isolado. Em um jogo de mtricas, temos um movimento geomtrico e voluptuoso que nos remete rumba, segundo Angel Augier, graas a combinao de assonantes em a e ea, nos dois ltimos versos, que do espao a outras consonantes. Embalado por este ritmo, o olhar do sujeito potico se enraza na corporeidade, enquanto sensibilidade e enquanto motricidade, como se apresenta no fragmento:Pimienta de la cadera, grupa flexible y dorada: rumbera buena, rumbera mala.

O olhar no apenas agudo, ele intenso e ardente. No s clarividente, tambm desejoso, apaixonado. No entanto, em nenhum momento, o sujeito potico atribui ao desejo configurado um tom de repreenso ou estigmatizao. Segue, portanto, as concepes de Guatarri (2007: 261-262):O desejo no forosamente um negcio secreto ou vergonhoso como toda psicologia e moral dominante pretendem [...] proporia denominar desejo todas as formas de vontade de viver, de vontade

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de criar, de vontade de amar [...], como o molde de produo de algo, [...] sempre o modo de construo de algo [...]

Desejo que j se evidenciava nos seguintes versos:En el agua de tu bata Todas mis ansias navegan: Rumbera buena, Rumbera mala. Anhelo de naufragar En ese mar tibio y hondo: fondo del mar!Fig 1

Guilln ala mo de sua imaginao para construir a figura da danarina de acordo com o que afirma Gastn Bachelard (1989:17-18), filsofo e poeta francs, ao enunciar que a imaginao no como sugere a etimologia, a faculdade de formar imagens da realidade; ela a faculdade de formar imagens que ultrapassam a realidade, que cantam a realidade. Assim sendo, o desejo, essa natureza de sistemas maqunicos altamente

diferenciados e elaborados, d vida aos versos do poeta cubano e transporta o leitor, atravs da musicalidade de suas palavras, ao cenrio descrito em um ritmo cada vez mais intenso e revelador. Pode-se vislumbrar certa semelhana entre a composio de Guilln e a Rumba inaugural de Jose Z Tallet, no que concerne a alguns pontos temticos abordados no poema. A descrio do corpo da danarina um tema presente em ambas as composies, porm na composio potica de Tallet, observa-se a descrio de um casal de danarinos, como se apresenta nos versos a seguir:

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Las ancas potentes de nia Tomasa en torno de un eje invisible, como un reguilete rotan con furor, desafiando con rtmico, lbrico disloque, el salaz ataque de Ch Encarnacin: mueco de cuerda que, rgido el cuerpo, hacia atrs el busto, en arco hacialante abdomen y piernas, brazos encogidos a saltos iguales de la inquieta grupa va en persecucin.Fig. 2

Cabe ressaltar tambm que o desejo se manifesta sob um foco distinto da composio escrita por Guilln. Na Rumba de Tallet o foco da poesia est centrado no espetculo da dana como manifestao de um ritual. Descreve os anseios de um eu lrico que observa a representao dos danarinos comandados pela msica. Ainda sobre o tema do ritual, destaca-se a afirmao contida na apresentao do livro Os ritos de passagem, escrito pelo antroplogo alemo Arnold Van Gennep. Nela Roberto Da Matta, considerado um dos grandes nomes das Cincias Sociais brasileiras (In: Gennep 1977:11) discorre que:[...] o rito igualmente sugere e insinua a esperana de todos os homens na sua inesgotvel vontade de passar e ficar, de esconder e mostrar, de controlar e libertar, nesta constante transformao do mundo e de si mesmo que est inscrita no verbo viver em sociedade.

O desfecho de ambas as composies se d com o fim da dana, no entanto se apresentam de maneiras distintas j que na composio de Tallet o fim da composio dado com o fim do ritual; representado na descrio dos danarinos e na representao acorde final dos instrumentos, como se percebe em:Al suelo se viene la nia Tomasa, al suelo se viene Jos Encarnacin; y all se revuelcan con mil contorsiones, se les sube el santo, se rompi el bong. Se acab la rumba, con-con-co-mab!

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Pa-ca, pa-ca, pa-ca, pa-ca, pa-ca! Pam! Pam! Pam!

Na composio potica de Guilln, que tambm retrata a complexidade do mundo da rumba, o sujeito potico parece participar ativamente da cena final se nos atentamos utilizao da primeira pessoa do singular e do plural, alm do imperativo, em alguns versos como:Ya te coger domada, Ya te ver bien sujeta, [] Qutate, crrete, vmonos Vamos!

Denotando, portanto, a clara inteno do eu-lrico em possuir o corpo desejado. Essa relao de desejo estabelecida entra em conformidade com o que o filsofo francs Michel Foucault expe ao afirmar queas relaes de poder operam sobre o corpo de modo imediato; elas o investem, o marcam, o dirigem, o supliciam, [...] obrigam-no a cerimnias, exigem-lhe sinais. O poder na realidade um feixe aberto, mais ou menos coordenado [...] de relaes, que esto sempre recorrendo a uma estrutura de dominao e servido.

O jogo iniciado entre quem olha e quem olhado, atividade e passividade, faz com que seus integrantes participem de um campo de foras onde o poder e o conhecer se fundam mutuamente. Cria-se uma tenso em que o outro-observador constitui uma liberdade que pode invadir a outroobservado. Tenso que se vislumbra em:Cuando como ahora huyes, Hacia mi ternura vengas, Rumbera Buena; O hacia mi ternura vayas, Rumbera Mala.

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O desejo construdo ao longo dos versos de Guilln, leva sua concretizao atravs do poder de dominao estabelecido nos versos finais, marcando o trmino da festa e deixando no ar a ideia de que o desejo observado ao longo dos versos seria concretizado fora daquele espao construdo.No ha de ser larga la espera, [] Ni ser eterna la bacha, [] Te doler la cadera, [] Cadera dura y sudada, [] ltimo trago! Qutate, crrete, vamonos... Vamos!

H um parentesco entre o olhar do outro e o corpo desejado que remete a um nico mundo. Essa afinidade ou essa intercorporeidade consagrase de modo eminente no ato amoroso e no fazer artstico, pois em ambos se eclipsa, ao longo do processo de unio-criao, a dualidade existente entre eu e outro. Ao considerarmos o uso das palavras, em que os homens tranam os fios lgicos e os fios expressivos do olhar, possvel relacionar o pensamento do historiador e crtico literrio Alfredo Bosi composio potica rumba, para compreender o fazer potico guilleneano como traduo de um olhar que vislumbra a continuidade de seu ser no outro. Sua percepo atenta e lcida do mundo que o circundava lhe permitiu, aliada sua capacidade criativa, cantar seus desejos e tristezas sem fazer disso uma mera contemplao subjetiva de uma mirada ufnica ou limitada, mas sim construir um panorama lrico e envolvente da realidade de nao que tanto amou e cantou em suas composies.

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2- Um dueto entre msica popular e poesia em Cuba

Todo es hermoso y constante, Todo es msica y razn, Y todo, como el diamante, Antes que luz es carbn. Jos Mart

A sensibilidade de Guilln para a msica cubana e sua capacidade para encontrar nela o tom mais expressivo da essncia mestia o conduzem a empreg-la como forma constitutiva de sua potica. Outro exemplo primoroso de composio potica Secuestro de la mujer de Antonio que traduz a beleza existente no cotidiano do povo cubano ao aludir algumas imagens da cano La mujer de Antonio 8 composta por Miguel Matamoros. A cano que serviu como inspirao para a poesia de Guilln foi imortalizada na voz do Tro Matamoros, formado por Miguel Matamoros (guitarra, primeira voz e lder do conjunto), Siro Rodriguez (maracas e segunda voz) e Rafael Cueto (guitarra e terceira voz). La mujer de Antonio captou brilhantemente cenas cotidianas para ironizar, de modo sutil, a situao poltico-social vivida na ilha sob o regime de Gerardo Machado, o quinto Presidente de Cuba e general da Guerra de Independncia Cubana. Assim como as duas poesias de Guilln selecionadas como apoio para o presente estudo, a cano tambm parte da perspectiva de um olhar alheio, um olhar que tece suas consideraes acerca da mulata. No entanto o desejo que move esse olhar descrito na letra da cano bem diferente do encontrado nas poesias de Guilln ao longo da presente anlise. O olhar

evidenciado no incio da msica composta por Miguel Matamoros destaca a curiosidade dos vizinhos a respeito do modo de viver e agir de transeuntes que passam pela rua, como se observa no fragmento da cano:8

Todos os trechos da cano foram extrados de http://www.herencialatina.com/Matamoros/Matamoros.htm

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La vecinita de enfrente Buenamente se ha fijado Como camina la gente Cuando sale del mercado

A poesia de Guilln faz uso apenas do carter anedtico e musical que remete msica do Trio Matamoros. No pretende evidenciar uma crtica social, como fez Miguel Matamoros no seguinte quarteto em que se observa uma sutil ironia poltica utilizada por Gerardo Machado: alimento em troca de manter-se politicamente calado.Mala lengua t no sigas hablando mal de Machado, que te ha puesto all un mercado que te llena la barriga.

Nos versos de Nicols Guilln, com a paupvel influncia do Trio Matamoros, se evidencia a relao homem-mulher, a presena da dana como possesso e a escolha de colocar a sensualidade em primeiro plano. Em ambas as composies reflete-se o sentido de humor criollo, alcanando um resultado inesperado e cmico; a narrao de acontecimentos cotidianos que ressaltam as particularidades do cubano. A evidente aproximao entre a obra potica de Guilln e as canes do Trio Matamoros confirmada pelo poeta, no seguinte fragmento de uma entrevista:Me apresuro a decir, sin embargo, que la poesa mulata se inspir en la msica de cantantes bien conocidos, como los Matamoros, y que en ella hay poemas completos que anuncian algunos de los mos. Podra citar en este caso el Secuestro de la mujer de Antonio, que pusieron de moda dichos cantantes. (AUGIER 1984: 131-132)

Ainda sobre os msicos cubanos, Nicolas Guilln assim se pronunciou em sua obra Sones Cubanos :

Los Matamoros esto escritos sem dvida no movimento por ns conhecido como Gerao de 30, ele contribuiu tambm no

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cumprimento de uma das ambies desse movimento que era a de buscar nossa prpria personalidade e de encontr-la com ns mesmos.

Assim como se observa na composio Rumba, em Secuestro de la mujer de Antonio se fazem presentes os elementos propcios para que se aflore o desejo do eu-lrico: lcool, msica e a figura da mulata. Elementos que se combinam magistralmente nos seguintes versos da segunda poesia de Guilln analisada no presente captulo:Te voy a beber de un trago, Como una copa de ron; Te voy a echar en la copa De un son, Prieta, quemada en ti misma, Cintura de mi cancin.

O eu-lrico pede que a mulata tire seu xale para torear a rumba, para conquist-lo, usa toda sua sensualidade aproveitando-se do movimento curvilneo prprios da dana e da tourada. Dessa forma d continuidade ambientao inciada na estrofe anterior em que o sujeito potico manifesta o interesse de apropriar-se do corpo da mulata da mesma maneira que faz com o copo de rum: de un trago. Denota, portanto que o carter da ao seria breve e intenso, pois as relaes de desejo estabelecidas na poesia so efmeras e caracterizadas pela quebra de um valor institudo pela sociedade formal. Como vemos nos versos iniciais da estrofe:Zfate tu chal de espumas para que torees la rumba;

A mulher exaltada na poesia a mulher de Antonio, ou seja, a mulata pertence a algum que no est presente e somente a ele lhe seria concedido, em principio, o direito sobre aquela mulher. Essa observao mostra que os valores africanos so bem diferentes dos instrudos pela sociedade dominante. A fidelidade, o casamento, o controle do desejo so valores que pertencem ao colonizador e no cultura dos descendentes africanos. Por tal razo, o desejo

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carnal apresenta-se, tanto em Rumba quanto em Secuestro de la mujer de Antonio, livre de qualquer represso ou culpa do eu lrico. Aparece tambm na segunda estrofe, o primeiro elemento, depois do ttulo da composio potica, que permite a associao entre a tradicional cano cubana e a poesia em anlise. A meno a Antonio em Guilln, personagem fictcio em ambas as obras artsticas, nos remete a La mujer de Antonio. Cano em que o referido personagem citado por conta do caminhar de sua mulher. Como comprovam os seguintes versos, da poesia de Guilln:Y si Antonio se disgusta Que se corra por ah: la mujer de Antonio tiene que bailar aqu!

E no refro da cano interpretada pelo Tro Matamoros:La mujer de Antonio camina as Cuando viene de la plaza camina as Por la maanita camina as

Em seguida, a poesia segue o ritual que leva a mulata, na composio potica com o nome de Gabriela, a participar do cenrio da festa. O sujeito potico pede que a danarina no apague a vela, como um pedido de que esta prossiga no baile e no acabe com a festa, pois j havia esquentado o tambor aqui denominado bong para marcar a origem africana o que indica o incio da festa. Importante tambm ressaltar a expresso Tranca la pjara blanca. Pode-se inferir, a partir da seguinte estrofe, a inteno de usar o objeto tranca para espantar o cansao, a falta de foras para praticar alguma ao, representado pela expresso pjara blanca no espao musical descrito e,

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consequentemente, no espao potico composto por Guilln. Assim como a mulata que, em Rumba, revuelve su msica espesa con un palo para afastar el negro chulo se sugere a mesma inteno nos seguintes versos de Guilln:Desamrrate, Gabriela. Muerde La cscara verde, Pero no apagues la vela; Tranca la pjara blanca, Y vengan de dos en dos, Que el bong Se calent

Na estrofe seguinte tem-se o desejo de posse claramente manifestado ao longo dos versos. O eu lrico faz uso de um tom imperativo para manifestar suas vontades em relao mulata. A respeito desse desejo de posse carnal Foucault afirma que ao criar esse elemento imaginrio que o sexo, o dispositivo de sexualidade suscitou um dos seus mais essenciais princpios internos de funcionamento: o desejo do sexo desejo de t-lo, desejo de aceder a ele, de descobri-lo, de libert-lo, de articul-lo como discurso, de formul-lo como verdade. Na composio em anlise, o discurso da msica envolve a dana e todos os elementos que a constituem o mecanismo atravs do qual se obtm o acesso, a descoberta, a libertao do desejo do sujeito-potico. No que concerne escolha vocabular, a palavra zafra que denominava a colheita do acar em Cuba empregada pelo sujeito do poema e articula-se de modo que deixe transparecer sua origem confirmando a inteno guilleneano de traduzir em versos o cotidiano do povo cubano e seus costumes herdados das tradies africanas.De aqu no te irs, mulata, Ni al mercado ni a tu casa, Aqu molern tus ancas La zafra de tu sudor:

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A inteno potica de aliar musicalidade traduo lrica da cubanidade se v tambm nos trs versos que finalizam a quarta estrofe. As onomatopias que se seguem pretendem aludir ao som do bong, embalando a dana da mulata que remexe suas ancas ao som da rumba. Esse efeito alcanado atravs da combinao de consoantes vibrantes [r] e oclusivas [p, k,] que do um tom explosivo, simulando o som emitido pelos tambores. Como se comprova a seguir:[...] Repique pique, repique, Repique, repique, pique, Pique, repique, repique, po!

Tal recurso onomatopico encontrado em diversas passagens da Rumba de Jose Z Tallet. Como vemos em:Zumba, mam, la rumba y tamb! Mabimba, mabomba, mabomba y bong! [] Chaqui, chaqui, chaqui, charaqui! Chaqui, chaqui, chaqui, charaqui! [...] Piqui-tiqui-pan, piqui-tiqui-pan! Piqui-tiqui-pan, piqui-tiqui-pan!

As estrofes finais de Secuestro de La mujer de Antonio delineiam, diferena da composio Rumba de Guilln, a disposio do sujeito potico em garantir a permanncia da mulata na festa a qualquer custo.Semillas las de tus ojos Darn frutos epesos: Y si viene Antonio luego Que ni en jarana pregunte Cmo es que t ests aqu

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Aps um encantador jogo fonomeldico conseguido atravs da aliterao presente no primeiro verso que encerra a poesia, Guilln faz novamente uma aluso cano do trio cubano quando sugere que at o mais forte homem, na composio potica representado pelo adjetivo toro, sair caminando as. Constitui-se, portanto, como um recurso bem-humorado que sugere um caminhar diferente do observado na mulata da cano La mujer de Antonio, como se apresenta nos seguintes versos do poema:Mulata, mora, morena, Que ni el ms toro se mueva, Porque el que ms toro sea Saldr caminando as; El mismo Antonio, si llega, Saldr caminando as; Todo el que no est conforme, Saldr