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nova Economia_Belo Horizonte_15 (3)_53-92_setembro-dezembro de 2005 A política econômica do governo Médici: 1970-1973 José Pedro Macarini Professor do Instituto de Economia da Unicamp Resumo Este artigo examina a política econômica du- rante o governo de Emílio Garrastazu Mé- dici, período que se tornou conhecido pela descrição oficial do auge cíclico então em cur- so como se fora um ciclo desenvolvimentis- ta capaz de prolongar-se por décadas proje- tando a superação do atraso. Na primeira parte, examina-se a gestação de um projeto nacional pelo regime, desaguando no projeto Brasil Grande Potência, o qual se apoiou no modelo “agrícola-exportador” como a sua estratégia de desenvolvimento. Na segunda parte, procede-se a uma detalhada reconsti- tuição da execução da política econômica – com ênfase nos aspectos relacionados à con- cepção estratégica anunciada, à sustentação do crescimento e ao tratamento dispensado à inflação. A análise evidencia alguns aspec- tos peculiares da conjuntura 1972-1973, su- gerindo tratar-se de um momento distinto (uma segunda fase) da administração Médici. Abstract This article focuses on the economic policies of the Emílio Garrastazu Medici administration. This period became known for the official description of the then ongoing economic boom, as if this boom were a real developmental stage that would lead to prolonged growth for decades, thus pulling the country out of its backwardness. In the first section, we will examine the creation of a national project by the military regime, leading to the “Brazil: a Great Power” project, which was based on growth in exports of agricultural products as its core development strategy. The second section presents a detailed summary of the conduct of economic policy – with emphasis given to aspects concerning the core strategy announced, to sustained growth and to stabilization policy. The analysis highlights some specific aspects of the 1972-1973 economic scenario, suggesting that this represents a different period (a second phase) in the conduct of economic policy during the Brazilian “miracle”. Palavras-chave Brasil, ditadura militar, política econômica. Classificação JEL E65. Key words Brazil, military dictatorship, economic policy. JEL Classification E65.

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A política econômica do governo Médici:1970-1973

José Pedro MacariniProfessor do Instituto de Economia da Unicamp

ResumoEste artigo examina a política econômica du-rante o governo de Emílio Garrastazu Mé-dici, período que se tornou conhecido peladescrição oficial do auge cíclico então em cur-so como se fora um ciclo desenvolvimentis-ta capaz de prolongar-se por décadas proje-tando a superação do atraso. Na primeiraparte, examina-se a gestação de um projetonacional pelo regime, desaguando no projetoBrasil Grande Potência, o qual se apoiou nomodelo “agrícola-exportador” como a suaestratégia de desenvolvimento. Na segundaparte, procede-se a uma detalhada reconsti-tuição da execução da política econômica –com ênfase nos aspectos relacionados à con-cepção estratégica anunciada, à sustentaçãodo crescimento e ao tratamento dispensadoà inflação. A análise evidencia alguns aspec-tos peculiares da conjuntura 1972-1973, su-gerindo tratar-se de um momento distinto(uma segunda fase) da administração Médici.

AbstractThis article focuses on the economic policies ofthe Emílio Garrastazu Medici administration.This period became known for the officialdescription of the then ongoing economic boom,as if this boom were a real developmental stagethat would lead to prolonged growth for decades,thus pulling the country out of its backwardness.In the first section, we will examine the creationof a national project by the military regime,leading to the “Brazil: a Great Power” project,which was based on growth in exports ofagricultural products as its core developmentstrategy. The second section presents a detailedsummary of the conduct of economic policy –with emphasis given to aspects concerning thecore strategy announced, to sustained growth andto stabilization policy. The analysis highlightssome specific aspects of the 1972-1973 economicscenario, suggesting that this represents a differentperiod (a second phase) in the conduct of economicpolicy during the Brazilian “miracle”.

Palavras-chaveBrasil, ditadura militar,política econômica.

Classificação JEL E65.

Key words

Brazil, military dictatorship,economic policy.

JEL Classification E65.

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1_IntroduçãoA evolução da economia brasileira e dapolítica econômica durante o regime mi-litar foi objeto de freqüente atenção dosestudiosos, o que permitiu consolidar pro-fundo conhecimento acerca do período.Algumas lacunas permanecem, porém.Uma delas diz respeito à política econô-mica do governo Médici. O objetivo des-te artigo é contribuir para um conheci-mento mais aprofundado deste tema.

A literatura existente tendeu a tra-tar em bloco, como se fora um continuum,o período mais longo iniciado em 1967(governo Costa e Silva) e abarcando ogoverno Médici. Esse enfoque terá sidoestimulado por fatores como a continui-dade de comando da política econômicasob Delfim Netto, a explícita inflexãopromovida em 1967-68, a predominân-cia de uma orientação expansionista namaior parte do período – e a conjunturade crescimento acelerado, descrito à épo-ca na imagem do “milagre brasileiro”.

Contudo, tal perspectiva, conquan-to adequada para certos propósitos, nãoconfigura um retrato fiel do movimentoda política econômica, o qual foi bemmais complexo e não-linear. Assim, odiscurso (e a práxis) delfiniana de 1967-1968 não se projetam facilmente sobretodo o período até 1973; é possível argu-

mentar que uma nova inflexão da políticaeconômica ocorreu em 1969 (sob o efei-to da mudança de conjuntura política de-cretada pelo AI-5); o “milagre” despontaapenas na virada de 1969 para 1970; a“visão de mundo” delfiniana (o “modeloagrícola-exportador”) somente adquire oestatuto de núcleo estratégico da políticaeconômica no governo Médici – e dis-crepa da visão elaborada no Planejamen-to; e o impressionante expansionismo dapolítica econômica de curto prazo em1972-1973 se fez num cenário totalmen-te distinto do observado em 1967-1968,devendo ser apreciado nesse contexto.Nesse sentido, a leitura proposta nesteartigo enfatiza as descontinuidades reve-ladas pelo movimento da política econô-mica da ditadura.

Este artigo se propõe examinar apolítica econômica do governo Médici nosseguintes aspectos;

1. a sua orientação estratégica, materi-alizada no projeto Brasil GrandePotência e tendo o “modelo agrí-cola-exportador” de Delfim Nettocomo a sua base de apoio: a suareconstituição requer breves re-ferências a episódios anterioresda política econômica (o PAEGdo governo Castello Branco, e oPED do governo Costa e Silva);

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2. a execução da política econômicade 1970 a 1973, com referênciaseja aos aspectos diretamente re-lacionados àquela orientação es-tratégica, seja à evolução da con-juntura; um tratamento à parte édispensado ao subperíodo 1972-1973, tendo em vista as caracterís-ticas específicas dessa conjuntura.

A pesquisa realizada trabalhou fun-damentalmente com a literatura gerale especializada relativa ao tema, docu-mentos oficiais do período e artigos e en-trevistas das autoridades econômicas pu-blicados em jornais e revistas. O artigocompõe-se de quatro seções: esta intro-dução, a reconstituição da estratégia dedesenvolvimento, o exame da execuçãoda política econômica ao longo do perío-do e algumas considerações finais.

2_ A estratégia de desenvolvimento

2.1_ Gestação do projeto nacional:Brasil Grande Potência

A ideologia político-econômica tecida du-rante o governo Castello Branco foi com-posta de ingredientes muito singelos: nalinha de frente, o combate sem tréguaà inflação (a origem de todos os males),acompanhado do repúdio à tentação

estatista – assim, num cenário de estabili-dade e livre-iniciativa, brotaria com ple-no vigor a nova racionalidade, alicercefirme do desenvolvimento. Este teria,ainda, outro pilar no reconhecimentodas virtudes da internacionalização que,esperava-se, agora prosseguiria sem en-traves de espécie alguma. Seja porqueefetivamente se acreditasse numa fácilretomada do desenvolvimento uma vezsuperada a barreira da inflação, seja por-que de início o horizonte de permanênciado novo regime era incerto mesmo paraos seus artífices, o fato é que inexistiu outeve papel secundário qualquer perspec-tiva explícita de elaboração de um proje-to próprio de construção da Nação.1

Isso muda completamente nos anos1967-1969, com o discurso político-eco-nômico se apropriando da idéia de cons-trução de um projeto nacional visando“responder de forma adequada ao desa-fio brasileiro”, qual seja “demonstrar aviabilidade do desenvolvimento brasilei-ro” (PED: I-2).2 Tal preocupação per-meia o Programa Estratégico de Desen-volvimento (PED), lançado pelo governoCosta e Silva em 1968. Contrastando fla-grantemente com a retórica anterior doPAEG, o PED se apoiou num diagnósti-co que vinculava o “desafio brasileiro”ao “arrefecimento da substituição de im-

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1 Isso foi observado,já em 1965, num debate“interno” do PAEG.Ver Dias Leite (1965).2 Convém lembrar que ogoverno Castello Brancotambém produziu, em 1966, oPlano Decenal, uma coleçãode estudos setoriaisembasados numa perspectivade planejamento para todauma década. O governo Costae Silva, originado de umadisputa interna ao regime,responsável por uma mudançasubstantiva na condução dapolítica macroeconômica,abandonou o Decenal paraelaborar o seu próprio plano.Uma apreciação do PlanoDecenal permanece emaberto, não tendo sidoabordada neste artigo. Parauma introdução ao tema, verIanni (1977, p. 225-239).

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portações”, encerrando um estágio doprocesso de desenvolvimento econômi-co do Brasil, caracterizado por uma es-tratégia baseada num “único fator dinâ-mico” (a indústria), tornada possível pelofato de a decisão de investir depender“apenas do tamanho absoluto dos mer-cados”. A resposta do PED ao desafio de“assegurar a retomada da trajetória dedesenvolvimento acelerado” consistiu naproposta de “um novo modelo de desen-volvimento”. Como a decisão de investirpassava a depender essencialmente dasexpectativas de crescimento dos merca-dos (e não mais “apenas” do seu “tama-nho absoluto”), era necessário identificarcorretamente e apoiar os setores dinâmi-cos aptos a dar sustentação ao cresci-mento econômico. A novidade estaria nocaráter “multissetorial” do novo estágiode desenvolvimento. Essa proposição éformulada da seguinte forma:

Exatamente porque arrefeceu a substitui-ção de importações e nenhuma estratégiaconcentrada numa única fonte de dinamis-mo terá condições de assegurar o desenvol-vimento auto-sustentável, a estratégia aadotar no novo estágio objetiva adiversificação das fontes de dina-mismo. Dever-se-á ampliar substancial-mente o ‘bloco’ de setores dinâmicos inter-ligados, e que na fase anterior se limitarapraticamente à Indústria (Bens de capi-

tal, Bens de consumo duráveis, Bens inter-mediários) e alguns segmentos de Infra-es-trutura e de Agricultura. A ampliaçãodesse “bloco” de impactos simultâneos,para abranger (além da Indústria) o SetorAgrícola, áreas substanciais da Infra-Estrutura Econômica e da própria Infra-Estrutura Social (Habitação, Educação,Saneamento) irá permitir a expansão dademanda e oferta capaz de sustentar umritmo intenso de crescimento, numa ampli-ação de mercado que permita superar afase de crescimento moderado em que se en-contrava a economia (PED: IV-16).

O PED não deixa dúvidas quantoà necessidade de diversificar as fontes dedinamismo:

O elemento essencial a salientar é que so-mente a ação simultânea naquelas quatroáreas dinâmicas, com a ênfase adequadaem cada uma, mobilizará do lado da de-manda e do lado da oferta os fatores indis-pensáveis a um crescimento do produto daordem de 6% ao ano (PED: IV-16).

Atente-se para o fato de, em 1968,a política econômica estar engajada naelaboração de uma nova estratégia de de-senvolvimento que projetava um cresci-mento do produto de “no mínimo, 6%ao ano, no período 1968-1970” (estiman-do-se viável um crescimento levementeacima, dada a prevalência de capacidadeociosa generalizada) (PED: II-2 e IV-11).

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E é claro que um dos setores dinâmicoscontinuaria a ser a indústria de transforma-ção, para isso sendo necessário diversificarsuas fontes de expansão: substituição deimportações (“enquanto racionalmentepossível”), expansão do mercado inter-no, promoção de exportações. Em al-guns momentos, uma formulação maiscontundente transparece: O mercado in-terno é a ferramenta mais importantede que dispomos para conseguir o nossodesenvolvimento. Cumpre ao Governofortalecê-lo e expandi-lo (Diretrizes deGoverno: 15). Nessa linha, uma políticade distribuição de renda integra a estra-tégia e vislumbra-se a criação de um“mercado de massa” como condição dodesenvolvimento acelerado e auto-sus-tentado. O PED esclarece que tal mer-cado de massa é entendido

no sentido de que considerável percenta-gem da população urbana e rural tenhanível de renda capaz de permitir consu-mo habitual de bens industriais, princi-palmente não duráveis, que sustente ocrescimento das Indústrias Tradicionaisa taxas próximas das do crescimento doPIB (PED: IV-11).3

Uma menção deve ser feita aoambiente político-ideológico observadonas hostes do regime militar nos anos fi-nais da década de 60. Nesse período,

tendeu a ganhar densidade a reflexãodoutrinária acerca do real significadoda Revolução de 1964, numa linha quepodemos designar, não obstante a suamanifestação difusa, de “nacionalismoautoritário”. Um exemplo lapidar foi arevista Nação Armada, surgida nesse mo-mento e explicitando em seu programao propósito de dedicar-se “ao debate in-terpretativo e ao ideário da Revolução”para assim chegar ao “conhecimento”e à “doutrina da Revolução” (esta, no-te-se, não havia sido explicitada nem em1964, nem durante o governo CastelloBranco). O “conhecimento” perseguidodizia respeito ao sentido da Revoluçãode 64, qual seja, atualizar

uma VOCAÇÃO e um DESTINO: aliderança continental de uma Revo-lução e a afirmação mundial de umagrande Potência.

Para ensejar esse “conhecimento” e suaconcretização através de um “projetobrasileiro” surgia Nação Armada, correiade transmissão dos ideais e anseios da eli-te pensante do regime aos “setores revo-lucionários no Governo ou fora dele”.4

Talvez a liderança mais expressivado nacionalismo autoritário nesse perío-do tenha sido o general Albuquerque Li-ma, ministro do Interior em 1967-1968,crítico da política econômica delfiniana

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3 Não apenas a expansão doemprego e a melhoria deprodutividade, mas igualmenteuma política de distribuiçãoimpulsionaria o surgimentodesse mercado de massa.4 “Nação Armada contribuirápara que esta verdade sejapercebida, formulada erealizada. É óbvio o nossoempenho em alinhar oselementos técnicos(econômicos, sociais epolíticos) do PROJETOBRASILEIRO que é,sobretudo, o conjunto dediretrizes e alternativas queordenarão os esforços daSociedade e do Estado paraque a Nação realize a suavocação e o seu Destino”.Todas as citações sãoextraídas do Programa deNação Armada, republicado non. 3, junho de 1968.

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pós-AI-5 e candidato à sucessão de Cos-ta e Silva. Seu discurso se caracterizoupor associar enfaticamente a Revoluçãode 1964 à tarefa de realizar “grandes re-formas e transformações sociais”, vistascomo passagem obrigatória para o plenodesenvolvimento da Nação. Este se viacontido graças à alta concentração de ren-da e pobreza, afetando, sobretudo, algu-mas regiões, o que tornava limitado omercado interno – assim, se contrapu-nham o interesse nacional e os interessesde oligarquias, estes últimos sempre soli-damente incrustados no aparelho políti-co-institucional.

Ousar enfrentar as oligarquias pa-ra varrer estruturas arcaicas, tal era, aoque parece, um elemento central da con-cepção do general Albuquerque Lima –haja vista sua defesa da reforma agrária,considerada “condição primordial do cres-cimento industrial e criadora de amplomercado interno”. Através da “incorpo-ração da massa brasileira”, tornar-se-iapossível superar o atraso, atualizando osonhado destino de grandeza. A contribu-ição do capital estrangeiro é valorizada,mas não de forma incondicional, acenan-do-se o propósito de estabelecer contro-les. Apoiar a empresa nacional visandoao seu fortalecimento constituía outrapreocupação explícita do seu ideário.5

As reflexões cultivadas pelos ideó-logos do nacionalismo autoritário rece-

beram estímulo adicional e ganharammaior ressonância com a penetração al-cançada por alguns estudos produzidosno exterior – a saber, a tese da suprema-cia absoluta dos EUA, fundada em seudomínio da tecnologia (popularizada emO desafio americano, de Servan-Schreiber),e as projeções futuristas promovidas poruma instituição norte-americana (sinteti-zadas em O ano 2000, de Herman Kahn),as quais insistiam em ignorar o destinode grandeza reservado à nação brasileira.É sintomático que o tema do “desafiotecnológico” se tenha tornado ingredien-te importante da retórica do Planejamen-to nos anos seguintes, enquanto a intelli-gentsia oficial contra-atacou maciçamenteas projeções de Kahn relativas ao Brasil.6

Não será demais reafirmar: a recu-peração da economia que iria prosseguirsem interrupção, desdobrando-se em vi-goroso auge cíclico, havia começado emmeados de 1967; não obstante, até o se-gundo semestre de 1969, a própria políticaeconômica do regime não se mostravasegura na avaliação do processo em curso;as ambições explicitadas não iam além darecuperação da trajetória histórica de cres-cimento (PED). A propagação de um es-tado de inquietação latente, uma espessanévoa recobrindo o futuro sonhado, senão chegava a colocar um risco real deguinada profunda na orientação do regi-

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5 Todas as citações sãoextraídas de matéria da revistaVisão, 24-10-69, resumindoum documento inédito deAlbuquerque Lima no qualesboça um programa degoverno. Para uma brevediscussão do nacionalismoautoritário, ver Vinhas deQueiroz (1973).6 Ver Reis Velloso, entrevistaà revista Veja, 18-6-69. Vertambém seu texto “O DesafioTecnológico e o ProjetoBrasileiro” (set./69),divulgado pelo Planejamento.No âmbito acadêmico,Simonsen daria a suacontribuição ao debateescrevendo o livro Brasil 2001– ver Simonsen (1969).

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me, criava, porém, a necessidade de umaresposta para acomodar as “bases” (mes-mo porque, como é sabido, a “eleição”do general Médici ocorreu em detrimentojustamente da candidatura nacionalistade Albuquerque Lima). Enquanto mani-festação retórica, a estratégia de desen-volvimento do período 1970-1973 só setorna compreensível quando se tem emconta esses desdobramentos. Mas há umdado adicional freqüentemente ignora-do: data do início de 1970 (ou final de1969) a tomada de consciência do vigor darecuperação em curso, o que permitiu àpolítica econômica mudar sua anteriorpostura cautelosa e sóbria, passando aapostar “alto”, em consonância com as as-pirações políticas do novo governo. Assimsurgiria o projeto Brasil Grande Potência,visando trazer à luz, até o ano 2000, o pre-tendido destino nacional de grandeza.7

Desde o primeiro momento, o dis-curso de Médici revelou afinidades ine-quívocas com os anseios de grandeza.Em sua mensagem de 7 de outubro de1969, diria: “O Brasil é grande demaispara tão poucas ambições”. Estas se insi-nuavam no reconhecimento da meta de“triunfo final na arrancada para o desen-volvimento econômico e social”. Em seudiscurso de posse, reiteraria: “Homemde meu tempo, tenho pressa”. Um ritmo

de crescimento oscilando entre 6 e 7%“já não nos bastam”, “urge acelerar oprocesso”. E ainda:

Creio no apressamento do futuro. E cre-io em que, passados os dias difíceis dosanos 60, amanhecerá, na década de 70,a nossa hora.8

A orientação a ser imprimida àpolítica econômica do novo governopermaneceu indefinida durante algunsmeses. Uma leitura atenta das manifes-tações dos atores principais envolvidosna sua elaboração e a cobertura feita pe-la grande imprensa permitem especularque uma disputa interna (no mínimo um“debate”) tenha ocorrido contrapondoFazenda e Planejamento. Reis Velloso,que em seu discurso de posse haviaanunciado para breve a divulgação deum documento explicitando as grandesdiretrizes da política econômica – as“Bases da Política do Governo”, conti-nuaria a advogar uma linha de ação to-talmente afinada com o ideário já expli-citado no PED. A retórica elaborada porVelloso apresentava uma “visão telescó-pica”, alcançando o ano 2000 (períodoestimado para o nosso “ingresso na so-ciedade dos desenvolvidos”), e era fran-camente desenvolvimentista ao alertarpara o papel decisivo atribuído ao novogoverno (1970-1973):

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7 Ver “A crise institucional”,in O Estado de S. Paulo,26-10-69.8 Ver Médici (1970).

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A incapacidade de assegurar o desenvolvi-mento acelerado nesse período poderá sa-crificar irremediavelmente as perspectivasde longo prazo.

O otimismo de Velloso – seu discursopode ser lido como se afirmasse: “Sim,podemos ambicionar o pleno desenvol-vimento” – era, contudo, temperado pelaprudência na hora de definir o ritmo al-mejado do crescimento (ao alertar para orisco das “formulações irrealistas”).9 Seisso bastava para emudecer as vozes decassandra da ortodoxia econômica, sem-pre inconformadas com a longa perma-nência da inflação (mesmo após o “ataquemortal” que a política econômica preten-dera executar durante 1969), é lícito su-por que ainda estava aquém do deman-dado por um governo que nascia sob osigno da “pressa”.

Outra foi a postura exibida porDelfim Netto nessa conjuntura. Antes demais nada, em plena consonância com osanseios voluntaristas do novo grupo diri-gente, Delfim terá sido a primeira autori-dade econômica a ousar defender umameta de crescimento da ordem de 9% aoano. Por suposto, o fascínio exercido portal perspectiva de crescimento colocavaem efetivo segundo plano as preocupa-ções com a inflação persistente (que con-traste com a experiência vivida ao longode 1969!). Por outro lado, ele brandia (nocomeço, discretamente) a sua própria es-

tratégia de desenvolvimento: a acelera-ção do desenvolvimento seria asseguradapelo apoio simultâneo à agricultura e àexportação, configurando um novo mo-delo de desenvolvimento.10

É bastante sugestivo que a divul-gação das grandes diretrizes do novogoverno, reiteradamente anunciada paradezembro, tenha sido adiada para a reu-nião ministerial de 6 de janeiro de 1970,ocasião em que nada foi decidido. A jul-gar pela cobertura da grande imprensa, odocumento preparado no Planejamentoteria despertado acentuada reação crítica;ademais, teria aflorado o desencontro deopiniões no tocante à meta de crescimen-to a ser adotada, sob o impacto da apre-sentação das estatísticas revistas de cres-cimento relativas a 1968 e 1969.11

Uma leitura superficial da políticaeconômica, induzida pela forma imprimi-da aos sucessivos documentos produzidospelo regime, sempre preocupados em teceruma linha de continuidade inaugurada em1964, tenderia a desprezar os indícios demudança e debate de alternativas. Tantomais que a atividade do Planejamento fru-tificou, dando origem às Metas e Bases pa-ra a Ação do Governo (documento divul-gado em outubro de 1970). Uma leituraatenta, entretanto, sugere que as Metas eBases (e o posterior I PND) cumprem pa-pel essencialmente retórico, não se consti-tuindo no guia da política econômica do

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9 Ver, por exemplo:“Desenvolvimento ePlanejamento” (nov./69), “AsGrandes Realizações Nacionais”(dez./69) e “Projeto Nacional,Planejamento e Perspectivas”(O Estado de S. Paulo e Jornal doBrasil, 30/12/69).10 Ver as declarações deDelfim, reproduzidas in OEstado de S. Paulo, 15/11/69,30/11/69 e 9/12/69.11 A revista Veja, 14/1/70, fazum relato da primeira reuniãoministerial, colocando oministro numa posição muitoincômoda; a matéria vai aoponto de relatar uma supostadivergência quanto aocrescimento do PIB: “Vellosofalara em 6 a 7% e na reuniãoministerial Delfim prometeraentre 8 a 9% para 1970, depoisVelloso voltaria a carga com10%”. Reis Velloso responderiaà revista, esclarecendo: “1. Éinexata a informação de que oSr. Presidente da República teriaficado ‘extremamente irritado’com o texto do documento de‘bases’; 2. É inexata ainformação de que [...] oPresidente haja mudado osentido da reunião para reduzira evidência da exposição doMinistro do Planejamento;3. É inexata a informação deque o Ministro do Planejamentoteria alterado a meta decrescimento [...] de 6/7% para10%”. Veja, 21/1/70.

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governo Médici. Com efeito, a ação do Pla-nejamento, tão bem ilustrada pelo PED(1968) e pelo II PND (1974), foi sufocadapela perspectiva dominante durante o “mi-lagre” fielmente traduzida na máxima deDelfim Netto: “Dêem-me o ano, e não sepreocupem com décadas”.12

E não há como negar que a orien-tação da política econômica foi, sim, de-cidida naqueles meses iniciais. Ainda emjaneiro de 1970, Delfim tornaria públicaa nova opção estratégica, o modelo “agrí-cola-exportador”. E em março o própriogeneral Médici ratificaria a escolha da op-ção delfinista ao comunicar a sua políticade desenvolvimento:

Aí estará, precisamente, a maior novida-de da nova política governamental. Desdeos anos 50, nosso esforço desenvolvimen-tista vem sendo predominantemente indus-trial, de forma desequilibrada em relaçãoao setor agrícola [...] Dessa forma, nossapolítica de desenvolvimento [...] visará ao

incremento substancial da produção agrí-cola e ao aumento das exportações, o quecertamente haverá de motivar rápida am-pliação do mercado interno e induzirá aprópria expansão do setor industrial.

E esclareceria em definitivo a me-ta de crescimento de seu governo: “Es-peramos acelerar a marcha do desenvol-vimento em ritmo de crescimento daordem de 10%”.13

2.2_ O modelo “agrícola-exportador”O início do governo Médici será marcadopor acentuada dominância dessa concep-ção que, embora já esboçada anteriormen-te (sobretudo a partir de 1967), não des-frutava até então de semelhante primazia.Agora, passa a se constituir no núcleo mes-mo da política de desenvolvimento e domodelo de crescimento adotados – dese-nha-se, assim, em sua plenitude, o novomodelo “exportador” (ou, mais precisa-mente, “agrícola-exportador”), formulação

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12 Esse é o título de um artigode Delfim publicado no Jornaldo Brasil, 31/3/70. A meu ver,o mais significativo é omomento escolhido paracomunicar essa “visão demundo”, francamente hostil àatividade de planejamento. Opróprio general Médici vinhaindicando um apreço menorpor diagnósticos eprogramação; em sua

Mensagem de 31/12/69,afirmou: “Convencido estou damenor necessidade de novosplanos que de determinação econstância para acionar eaperfeiçoar o que planejadoexiste”. (Médici, 1970, p. 82).Um editorial de O Estado de S.Paulo (23/12/69) atacaria a“planomania” – para concluir:“[...] a inflação de planosprovocou sua desvalorização

perante os técnicos. E opúblico propriamente dito jánão liga”. Reis Vellosoreconheceria o surgimento deum ambiente marcado pela“insistência em mais execuçãoe menos planejamento” ebuscaria defender aimportância crucial doplanejamento (Ver seu artigoem O Estado de S. Paulo,31/12/69).

13 Aula inaugural na ESG – inO Estado de S. Paulo, 11/3/70.O fortalecimento de Delfim jáera insinuado em matéria darevista Veja, 14/1/70. Após aprecoce saída do ministroFábio Yassuda, a revista Visão,14/3/70, comentaria: “Naverdade, Delfim Netto surgiucomo figura dominante naárea econômico-financeira”.

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associada a Delfim Netto. Convém exami-nar a questão com algum detalhe.

Um notável (e ignorado) documen-to desse período delineia a tarefa da qua-dra histórica que se anunciava:

Cabe agora, num verdadeiro programa deemergência para o Brasil, fixar a opon-do às crises de motivação e às frustraçõesdo passado a confiança no projeto brasilei-ro e a vontade de toda a Nação de realizaro pleno desenvolvimento.

(Esse “projeto brasileiro” envolvia a am-bição explicitada tranqüilamente de do-brar a renda per capita de 1970 a 1980,apoiada numa projeção de crescimentodo PIB de 9% a. a. – “indiscutivelmen-te viável nas atuais condições econômi-cas do país”).

O sucesso na implementação des-se “projeto brasileiro” exigiria “altera-ções substanciais na estratégia de desen-volvimento”, de forma a permitir “evitara repetição das falácias que têm obstadoa construção de um país grande, livre eprogressista”. Assim:

Essa aceleração do crescimento resultariade uma modificação substancial na estra-tégia do desenvolvimento, que passaria acentrar-se [...] no forte incremento da pro-dução agrícola e das exportações do país,ensejando a rápida ampliação do mercadointerno e induzindo o crescimento dos de-mais setores.

Tal estratégia [...] se orienta no sentido deum crescimento equilibrado, com as vir-tudes inerentes a esse processo, que, pelodesenvolvimento simultâneo dos diversossetores, acelera a criação de renda e demercado para cada um desses setores.

O aspecto chave da estratégia era:“Centrar-se, a curto e médio prazo, noaumento e exportação simultânea da pro-dução agrícola”. Essa era a resposta del-finiana para as recorrentes preocupaçõescom o tamanho (insuficiente) do nossomercado interno: lembre-se, o PED dis-corria sobre a necessidade de criar o “mer-cado de massa”, Albuquerque Lima ace-nava com a reforma agrária (falácia?).

Dos dois setores básicos – agricultura e ex-portações – surgirão condição para uma rá-pida ampliação do mercado interno.

O argumento – central – é reiterado:

Não existem fórmulas mágicas de amplia-ção do mercado interno. Esta depende,para sua mais rápida concretização, deum elemento exógeno ao sistema, represen-tado pelo mercado externo que permitiráum aumento geral da produtividade.

Ainda uma vez: “Do setor exportadorprovirá o elemento dinâmico para altera-ção de todo o quadro da economia brasi-leira”. Dessa forma, pretende-se viável odesenvolvimento almejado, posto que “aestratégia confere à economia o elemento

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incentivador dos investimentos que é aampliação do mercado”, equacionandopois “o problema básico na formação docapital e no desenvolvimento”.14

Na entrada dos anos 70, esse é “oúnico caminho que resta ao Brasil” paralograr “atingir as altas taxas de crescimen-to que almeja”. Com efeito:

Falecem alternativas para a estratégia pro-posta. As políticas utilizadas no passado,forçando a expansão com base no fator es-casso, encontraram as limitações que trouxe-ram descontinuidade ao desenvolvimento.

As políticas utilizadas no passadodizem respeito ao conhecido conjunto deinstrumentos acionados para dar apoio àindustrialização por substituição de im-portação. A avaliação daquele processo éabertamente crítica, uma vez que acarre-tou “a redução da eficiência geral da eco-nomia” e “custos sociais maiores do queseria necessário com a utilização de umapolítica mais racional” – para colher umdesenvolvimento que se revelou “de curtaduração”. O importante, porém, é que

o processo de substituição de importaçõesencontrou seu limite, e não se deve esperardele a fonte dinâmica da aceleração do de-senvolvimento industrial do país.

Qualquer tentativa de insistir com essaopção fracassaria em atingir “os objeti-vos mais importantes”, quais sejam:

A ampla mobilização de recursos internospara a sustentação do desenvolvimento e oaumento geral da eficiência do sistemaprodutivo nacional.

Esse diagnóstico – originalmentedesenvolvido no âmbito do pensamentocepalino – era partilhado pelo Planeja-mento e conduzia à formulação de umaestratégia “multissetorial” de desenvolvi-mento, incluindo como uma das fontesde dinamismo o aprofundamento da in-dustrialização (vale dizer, para o Planeja-mento a substituição de importações nãoestava exaurida como tal, tão-somentecomo fonte única, exclusiva, do dinamis-mo). A estratégia de Delfim Netto é maissimples: o motor do processo provém daagricultura e das exportações; mais radical,ao sugerir uma rejeição integral das políti-cas do passado, oferecendo ao regime ummodelo econômico “novo” que confirmaa ruptura com a velha ordem pré-64; e, nãomenos importante, é dotada de forte apeloao colocar a agricultura numa posição cen-tral (e ainda fazê-lo, afastando a incômodaproposta de reforma agrária).15

No “novo” modelo, a dinâmica dodesenvolvimento ativada valendo-se de“um elemento exógeno” envolve tantoa agricultura quanto a indústria. Ocor-re, porém, que as possibilidades de incre-mento das exportações industriais são re-conhecidamente mais limitadas – e mesmoque isso não se verificasse, o seu efeito

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14 As citações são doPrograma da PolíticaEconômica do Governo. Essedocumento, ao que parece,jamais foi oficialmentedivulgado. Mas uma edição naforma de apostila, semreferências precisas de data eprecedência, foi utilizada nocurso de Economia Brasileirada FEA-USP em 1975 sob aresponsabilidade do ProfessorCarlos Viacava (anteriormenteum integrante da equipe deDelfim). Um exame atento doseu conteúdo e um cotejocom declarações públicas deDelfim e assessores indicamconvincentemente que foielaborado pela Fazenda noinício do governo Médici. Arespeito, ver especialmente aentrevista de Delfim Netto àrevista Mundo Econômico dejaneiro de 1970.15 Ver C. Viacava, “Amodernização da agriculturabrasileira”, in Jornal do Brasil,20/3/70.

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dinâmico seria reduzido, dada a participa-ção “mínima” das exportações no total dademanda industrial. Daí a centralidadeatribuída à agricultura. E dada a abundan-te disponibilidade de recursos ociosos e aexistência de notável capacidade empre-sarial no setor, uma política econômicaracional produziria o resultado esperado:“Sempre que incentivos adequados fo-ram oferecidos ao setor, ele demonstrouuma ampla capacidade de resposta”.

A resposta pretendida se traduziunas seguintes projeções de crescimento: la-voura para o mercado interno (6,8% a. a.),pecuária para consumo interno (9,0% a. a.),exportações (10,0% a. a.), concluindo-seque “a demanda dos produtos de lavouradeve crescer em 7,9% a. a. e o da agricul-tura como um todo 8,2%”.16 Esse de-sempenho seria induzido pela adoção de“incentivos adequados” (redução de pre-ços relativos), capazes de estimular a am-

pliação do uso de fertilizantes e outrosinsumos e a mecanização, possibilitandouma expressiva elevação da produção porárea e da área cultivada por pessoa.17

Embora a performance da agri-cultura seja explicitamente vinculada àquestão da ampliação de mercado reque-rida pelo desejado crescimento acelerado,existe outra razão, em tese mais plausível,para o tratamento que lhe foi dispensadona nova estratégia. A experiência de de-senvolvimento econômico do Brasil mos-trava que as importações eram elásticasao crescimento do produto, de formaque um adequado dinamismo das expor-tações era crucial para evitar que o cres-cimento acelerado fosse abortado pelo es-trangulamento externo. Com efeito, a metade crescimento das exportações agrícolasreflete precisamente o ritmo esperado deimportações decorrente do crescimentodo PIB a 9,0% a. a.18

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16 Programa da PolíticaEconômica do Governo: 15.Ver também o artigo citadode Viacava.17 Segundo o Programa, aevidência de outros paísesindicava ser muito alta aelasticidade-preço do consumode fertilizantes; no caso dotrator, o documento apóia-se emestimativas sinalizando umaumento de 16% na suautilização para uma queda de

10% do seu preço real.Ver também Delfim Netto,entrevista a Mundo Econômico,jan. 1970.18 Ver Delfim Netto, “É PrecisoExportar Mais Para Acelerar oRitmo do Progresso”, in MundoEconômico, set. 1970 – aí ele,ironicamente, conclui: “Eaqueles que acreditaram serpossível realizar odesenvolvimento sem aexpansão das exportações

tiveram amargas desilusões aoverificar muito rapidamente queisso era impossível. Se nóstivéssemos tentado alcançar asaltas taxas de desenvolvimentosem simultaneamente nostermos preparado para agredir ocomércio exterior, teríamoscaminhado para um tipo deendividamento que acabaria porinibir o própriodesenvolvimento”. Em outraoportunidade Delfim advertira:

“O gargalo do desenvolvimentobrasileiro, na medida em que odesejarmos, será a capacidadepara importar”. – “ODesenvolvimento e o ComércioExterior”, in Revista de FinançasPúblicas, ago. 1968. Ver também:José Flávio Pécora, secretário-geral do Ministério da Fazenda,“Perspectivas das ExportaçõesBrasileiras”, in Revista de FinançasPúblicas, jan. 1970; CarlosViacava, artigo citado.

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A retórica do modelo agrícola-ex-portador pode levar um observador desa-tento à conclusão de que a nova estratégiaconfigurava um retrocesso, um retorno àépoca pré-industrial. Nada mais distanteda realidade, porém. Sem dúvida repre-sentou um afastamento (no mínimo umadesconfiança pronunciada) de quaisquerteses pró-industrialização conforme culti-vadas no Planejamento; ao mesmo tempo,a política econômica seria acionada parapromover o crescimento da diversificadaindústria já existente no País.

A expansão da agricultura e das ex-portações tinha justamente o papel decriar as condições para uma forte expan-são industrial (a meta estabelecida inicial-mente foi de 10,5% a. a.). Como se an-tecipassem àquela possível objeção, osartífices da nova estratégia lembravam:

É necessário ressaltar que tal estratégia sóé possível porque o País dispõe, hoje, deuma estrutura industrial suficientementeampla e diversificada. Não houvesse essacondição, a estratégia proposta poderiaconduzir a uma forte concentração da eco-nomia na agricultura. O estímulo às ativi-dades agrícolas na fase presente atuarácomo um dos elementos de dinamização dademanda interna de produtos manufatu-rados e, como tal, estimulará ainda mais ocrescimento industrial (Programa: 12).19

Uma expansão industrial da or-dem pretendida suscitava naturalmente oreceio de se mostrar irrealista em face damagnitude dos investimentos requeridos.A aceleração dos investimentos era evi-dentemente uma pré-condição da sus-tentação do desenvolvimento mais rápi-do – e a estratégia desenhada identificavao caminho da ampliação de mercado ca-paz de induzir as decisões privadas de in-vestimento. As ambições traçadas eram,sim, viáveis com base em uma análisemais próxima do mundo real: esta suge-ria que o volume de investimento reque-rido, na verdade, não seria tão vultosoquanto o imaginado nas avaliações maissuperficiais. Em primeiro lugar, reconhe-cia-se a existência de “margens bastanteamplas” de capacidade ociosa na indústria,embora distribuída desigualmente entre osdiferentes setores (a título de exemplo: aindústria automobilística e de autopeçasexperimenta acentuado desaquecimentono segundo semestre de 1969).20 Em se-gundo lugar, o estoque de capital herda-do da industrialização por substituiçãode importações conferia, localizadamen-te, certa elasticidade à oferta, tendo emvista o excesso de capacidade criado emalguns setores. E o próprio conceito decapacidade é certamente flexível, predo-minando no Brasil o seu cálculo em ter-

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19 Delfim Netto, emconferência no Instituto dosAdvogados de Porto Alegre,esclareceria: “Algumas pessoasacreditam que esta ênfaseextraordinária à agriculturarepresenta uma diminuição daênfase na indústria. Éexatamente o oposto. Aexperiência dos anos 60mostrou que não podíamoscrescer a não ser com maiorequilíbrio. Que não podíamoscrescer deixando a agriculturaretardada. Que nãopoderíamos crescer sem criarum mercado interno para queessa indústria se debruçassepor todo o Brasil e sepreparasse depois para invadiros outros mercados. Aestratégia, portanto, quandodá grande força, grande vigorà política agrícola e à políticade exportação é porque buscao equilíbrio dentro dodesequilíbrio”. –“Desenvolvimento comliberdade”, in O Estado de S.Paulo, 14/8/70.20 Ver APEC, Carta Mensal:12/11/69, p. 1 e 12/01/70,p. 2; Banas, 8/12/69, p. 13.

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mos da utilização de um só turno de tra-balho. Por tudo isso, estima-se viável ameta de expansão postulada:

Havendo possibilidades de parte do cresci-mento da produção (algo como 2 a 3% aoano) ser realizado pelo aproveitamento dacapacidade hoje não utilizada, o cresci-mento necessário da capacidade produtivaserá inferior à média dos últimos vinteanos, o que aumenta a convicção de que aexpansão exigida poderá ser realizada(Programa: 20).21

E nesse sentido são arrolados al-guns incentivos à “utilização intensiva dacapacidade instalada”:

a. redução dos encargos previdenciários edemais itens da legislação trabalhista nosacréscimos de turnos de trabalho;b. diminuição dos encargos tributários so-bre os acréscimos de produção provocadospelos turnos adicionais;c. redução da tarifa para os consumos deenergia elétrica industrial nos períodos no-turnos, fora dos atuais picos de demanda;d. aceleração da depreciação, vinculada à uti-lização de turnos adicionais (Programa: 30-31).

A componente industrial da estra-tégia tinha também outra faceta, de na-tureza qualitativa. Tendo em vista queo processo de industrialização do pós-guerra deixou como herança negativa umaestrutura caracterizada por baixo grau de

eficiência, a busca de sua correção impu-nha-se como uma necessidade para oêxito da nova orientação decididamentevoltada à integração na economia inter-nacional. Postula-se, assim, uma mudan-ça de perspectiva, de modo a reconhecerestar ultrapassada a fase de indústria nas-cente, devendo-se, pois, ingressar em umanova fase “cuja característica básica devenecessariamente estar ligada à obtençãode níveis de eficiência iguais aos padrõesinternacionais”. Isso implica uma políticade importações “relativamente liberal”, an-tecipando-se uma “cuidadosa redução ta-rifária” com o objetivo de intensificar aconcorrência naqueles setores de maiorineficiência. E igualmente alguma mar-gem para substituição de importações por-ventura ainda existente estaria sujeita àcondição de se fazer “a níveis de eficiênciainternacional” (Programa: 20-21).

Um crescimento econômico co-mo o pretendido exigiria certa taxa depoupança: esta é estimada em 20 a 22%do produto, sendo 1,5 a 2% a esperadacontribuição da poupança externa (uma“insignificância”, razão pela qual não de-veria “despertar temores ou animosida-des” – mas, ainda assim, “um substancialauxílio, na margem”). A possível dificulda-de para a sua mobilização decorria, so-bretudo, da necessidade imperiosa de asse-gurar expressiva poupança pública para

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21 A elasticidade da ofertarefletiria também umsobredimensionamento delinhas ou seções das fábricas:ver a entrevista de DelfimNetto a Mundo Econômico, jan.1970. José Flávio Pécoratambém chamaria a atençãosobre esse ponto: “Algumasvezes, com pequenosinvestimentos adicionais,pode-se operar maisintensamente conjuntos oumáquinas subutilizados quenão estejam corretamentedimensionados com o restantedas instalações fabris”. –“Perspectivas das ExportaçõesBrasileiras”, in Revista deFinanças Públicas, jan. 1970.

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viabilizar a expansão do investimento pú-blico (do contrário, este seria travado ouimplicaria elevação da carga tributária,em ambos os casos desestimulando o in-vestimento privado e frustrando as ambi-ções de crescimento). Para tal, contava-secom a possibilidade de manter estáveis asdespesas reais de custeio e as transferên-cias: neste último caso, reconhecia-se que“certamente será um problema políticoimportante” – mas tudo dependeria da“vontade política do governo”.

Um último ponto merece ser des-tacado. A estratégia delfiniana se caracte-rizava por uma ousada aposta no cresci-mento, o que pareceria uma arriscadaincursão voluntarista aos olhos dos pla-nejadores mais cautelosos. Estes, porém,cometeriam um erro em seus exercíciosde planejamento ao supor, incorretamen-te, uma relação produto-capital fixa. Essasuposição é negada pela evidência empí-rica, a qual mostra um comportamentoque reforça a crença na viabilidade docrescimento acelerado:

A relação produto/capital tende a corre-

lacionar-se positivamente com a taxa de

crescimento do produto, o que significa que

os países em rápida expansão encontram

formas de aumentar a produtividade mé-

dia do capital (Programa: 25).22

3_ A execução da políticaeconômica: 1970-1973

3.1_ A administração do “milagre”:1970-1971

O objetivo de crescimento acelerado –note-se, num ritmo jamais aventado atéentão pelo regime – desfruta de explícitaprimazia desde o início do governo Mé-dici. A política econômica será intensa-mente acionada com esse propósito. Aestabilidade dos preços, a primeira ban-deira desfraldada em 1964 (e retomadacom vigor logo após a edição do AI-5), épreservada como passagem retórica, even-tualmente até como compromisso em1972-1973, mas deixa de ser vista como acondição mesma do desenvolvimento –mudando, pois, a hierarquia de priorida-des da política econômica. A evolução daconjuntura o comprova, sem deixar mar-gem para dúvida.23

O ano de 1970 iniciou-se trazendosinais incômodos em matéria de inflação:de janeiro a março, enquanto o ICV acu-mulou alta de 4,4% (contra 5,6% emigual período de 1969), o IPA registrouforte aceleração, atingindo 5,5% (ofertaglobal – 2,5% em 1969) e 4,7% (disponi-bilidade interna – 2,3% em 1969). A pers-pectiva de manutenção do patamar infla-

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22 E num tom explicitamentecrítico: “É com base emcálculos dessa natureza(utilizando uma relaçãoproduto/capital fixa) quefreqüentemente se levantamobjeções à possibilidade decrescimento mais rápido daeconomia. É claro que aobjeção é inconsistente, umavez que todos os estudosempíricos têm mostrado que arelação entre a taxa decrescimento do produto e taxade formação de poupança émuito mais tênue do que sesupunha.” (Programa, p. 24).23 Em discurso no Conselhopara a América Latina, emNova York, Delfim anunciou:“A retomada do ritmo dedesenvolvimento, o virtualcontrole da inflação e arecomposição da situaçãoexterna deixam patente amelhoria verdadeiramentedramática das perspectivaseconômicas do Brasil. OGoverno do PresidenteMédici lança-se agora numousado programa deaceleração substancial da taxade crescimento econômico ...”– O Estado de S. Paulo,9/12/69, e Revista deFinanças Públicas, jan. 1970.

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cionário suscitava inquietação em certossetores: volta e meia, pleitos em favor daadoção de um tratamento de choque se-riam veiculados. Delfim os rejeitou suces-sivas vezes ao longo do ano.24

Por vezes, a existência de um de-bate é revelada pelo próprio Delfim Net-to – por exemplo, ao referir-se a uma“crise de fé” no gradualismo em curso,envolvendo “uma parcela da sociedade”,um autêntico “frisson sobre a inflação”.Delfim, escolhido “Homem de Visão de1970”, responde com indisfarçável rispi-dez. O tratamento de choque preconiza-do, tendo em vista o seu custo, não pas-sa de uma “alegre irresponsabilidade”,uma “aventura”. Ainda mais porque to-talmente desnecessário: a correção mo-netária, as minidesvalorizações cambiaise a liberação (sic) da taxa de juros consti-tuem “mecanismos de compensação queeliminaram os efeitos da inflação antes

de eliminar a inflação propriamente di-ta”. O gradualismo é reafirmado complena convicção:

É por isso que nós estamos podendo crescer esimultaneamente reduzir a inflação. Issopara alguns economistas parece impossível,porque eles estão presos no esqueminha queestá no livro. Dentro do esqueminha queestá no livro não é possível mesmo.

Mas o fato é que “a realidade é um poucomais rica do que a teoria”, cabendo reco-nhecer que no Brasil “estamos diante deuma experiência nova” – capaz de “justi-ficar, sob ângulo inteiramente diferente,a política gradualista”. Esta, convém lem-brar, “não significa que se considere me-nos importante a eliminação do processoinflacionário”; mas, decididamente, “sig-nifica que quando temos de trocar me-nos 5% de inflação com mais 2% de pro-duto, ficamos com o produto”.25

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24 A favor do choque: APEC,Carta Mensal, 12/4/70(Apêndice) e 12/5/70, p. 4;editorial de O Estado de S.Paulo, 15/1/70; artigos deCampos e Simonsen no Jornaldo Brasil, 20/3/70. Mensagensde Delfim Netto: “Não se deveesperar que a política decombate à inflação, no estágioem que se encontra, provoqueuma redução na produçãoindustrial. [...] nossa

expectativa é que ocorraexatamente o contrário, umavez que agora as pressões dedemanda são relativamentemenores do que as pressões decusto”. – Banas, 1/6/70. p. 11.“Não temos o menor interessede impor um tratamento dechoque à sociedade brasileira.Não precisamos [...] de umapolítica mais violenta, nomomento em que o setorprivado retomou sua confiança

[...] Todavia, não sei quando ainflação será debelada, pois elanão depende do Ministro daFazenda [...] Ela depende detodos nós”. – depoimento noSenado, in Jornal da Tarde,17/7/70. No início do ano,Delfim havia acenado com umgradualismo efetivo, sugerindouma redução da inflação paraum nível inferior a 18% – verRevista de Finanças Públicas, fev.1970, p. 42.

25 As citações foram extraídaslivremente dos artigos “A alegriada irresponsabilidade”, in Jornalda Tarde, 15/10/70; “Experiêncianova no Brasil”, in EconomiaPaulista, dez. 1970; e do seudiscurso reproduzido in Visão,7/11/70. Ver também a nota deapoio “total, completo eirrestrito” à política delfinianapor parte da ADECIF, in APEC,Carta Mensal, 15/11/70, p. 18.

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O gradualismo da política econô-mica do “milagre” tinha interessante im-plicação, merecedora de registro. A op-ção pela convivência com uma inflaçãosob controle, neutralizada em seus efei-tos, indicava a preservação indefinida dacorreção monetária, originalmente insti-tuída com caráter provisório. Um cultoàs virtudes da correção monetária ganha-ria força durante esses anos. Delfim Nettoreferir-se-ia a ela como um “extraordiná-rio instrumento, agora objeto da burricenacional”; e daria o seu veredicto:

Como todo instrumento, tem seus lados po-sitivos e negativos. Deve ser julgado do pon-to de vista da soma algébrica; deste pontode vista, considero o resultado positivo.

Reis Velloso seria mais explícito:

Nunca devemos abrir mão do princípio dacorreção monetária, o que não quer dizerque o sistema não possa sofrer algumas re-formas. [...] Poderíamos aplicar um fatorde correção da correção monetária; porexemplo, estabelecer que somente 90 a95% da correção seja aplicada.26

A marca distintiva da política mone-tária durante o “milagre” foi o seu caráterexpansionista. Os pleitos pró-choque pre-tendiam reverter esse comportamento; adefesa do gradualismo sintetizava a recu-sa em implementar qualquer restrição de

liquidez que pudesse comprometer o rit-mo de crescimento almejado. Contudo,pelo menos em 1970, a sua execução re-fletiu certa cautela: a expansão real daoferta de moeda não passou de 6%, delonge o desempenho mais modesto ob-servado de 1967 a 1973. Mas convém nãoperder de vista o seguinte:

1. ela foi razoavelmente bem dosadaao longo do ano (contrastandocom a experiência de 1969);

2. nota-se um uso intenso dos meca-nismos de crédito seletivo;

3. sobretudo, a política fiscal foi ma-nipulada com desenvoltura, vi-sando deliberadamente ampliar adisponibilidade de liquidez paraas empresas.

Vejamos as medidas mais signifi-cativas nessa área, todas da primeira me-tade do governo Médici.

3.1.1_Política monetária: crédito e juro

A Resolução 130, de 27/1/70, reduziude 27% para 25% o depósito compulsó-rio, criando uma faixa especial de financi-amento destinada a pequenas e médiasempresas. Para desfrutarem dessa redu-ção, os bancos deveriam completar comum terço de recursos próprios o volumede financiamento previsto. A taxa de ju-ros foi fixada em 1,5% a. m., e o prazo da

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26 Visão, 29/3/71, p. 96 e100. Ver também o artigo deDelfim no Jornal da Tarde,15/10/70.

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operação, em doze meses; dado o seu ca-ráter permanente, a faixa especial abria apossibilidade de rotação dos créditos.27

A Resolução 134, de 18/2/70,reduziu em 0,2% a. m. as taxas de jurosdos bancos comerciais, agora fixadas em1,6% a. m. nas operações até 60 dias e1,8% a. m. nas de prazo superior. OutraResolução, de nº 136, estabeleceu um redu-tor de 10% sobre as taxas cobradas pelosbancos de investimento em suas opera-ções ativas. Já as financeiras foram pou-padas, beneficiadas pela redução de 3%para 2% da taxa de colocação das letrasde câmbio (Resolução 137).

Essas medidas certamente perse-guiam o objetivo de melhoria das condi-ções de crédito – não há por que duvidarda intenção manifesta da política econô-mica de trazer as taxas de juros reais paraníveis que “não ultrapassem 8 a 10% aoano”.28 Mas não deve passar despercebi-do que os grandes bancos já praticavama taxa de 1,6% a. m. (desde a Resolução114, de 1969) – e agora seriam compen-sados com alguns benefícios adicionais, asaber: elevação de 50 para 55% da parce-la remunerada em ORTN do compulsó-rio, liberação da taxa de juros nas opera-ções de crédito pessoal (até então fixadasem 2,2% a. m.), bem como eliminação de

restrições quanto a prazos (vista comouma abertura para a sua entrada noCDC). É possível que apenas os bancosmédios e pequenos, e os bancos de inves-timento, tivessem de ajustar seus custospara enfrentar o cenário de taxas de jurosmais baixas – indiretamente, as decisõesdo BC favoreciam o movimento de con-centração bancária e centralização finan-ceira, sabidamente políticas promovidascon amore no período.

3.1.2_ Política fiscal: financiamentodo capital de giro a custo zero

A prática, observada anteriormente emcaráter emergencial, de dilatação dos pra-zos de recolhimento dos impostos indire-tos, torna-se permanente a partir de 1970,contribuindo para a expansão do ritmo deatividade numa medida difícil de quanti-ficar, mas cuja importância não deve sersubestimada. Esse instrumento foi mani-pulado com alguma seletividade, conce-dendo prazos máximos para setores debi-litados ou prioritários (tal foi o caso daindústria têxtil, aquinhoada com um pra-zo de 75 dias em jan./70, ampliado para120 dias no final de maio – quando pas-sou a beneficiar também as indústrias decalçados e aço). Para a maioria dos setoresindustriais, concedeu-se um prazo de 60dias (jan./70), ampliado sucessivamentepara 75 dias (maio/70) e, por fim, 90 dias

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27 Ver a nota do Ministério daFazenda e declarações deDelfim: “É óbvio que a taxade juros global nunca poderáser negativa, mas a setorial,correspondente aos objetivosdo Governo, pode e deve sernegativa ...”, in Revista deFinanças Públicas, fev. 1970,p. 41-43. Ver também “Aajuda demorada”, in Veja,11/2/70, p. 41-42.28 Ver a entrevista de Delfima Mundo Econômico, jan. 1970,p. 28. Também suasdeclarações “Capital de giro esistema bancário”, in Revista deFinanças Públicas, fev. 1970,p. 2. As taxas de juros cobradaspelas financeiras e bancos deinvestimento estariam emtorno de 37 a 44% a.a. (Visão,28/2/70, p. 43).

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(fev./71). Alguns setores foram excluídosdo benefício, destacando-se os casos debebidas, cigarros e veículos.

Com menor abrangência e pro-fundidade, também o ICM do setor in-dustrial teve seus prazos de recolhimentoalongados. O convênio do Rio de Janei-ro, de 15/1/70, reunindo os secretáriosestaduais da Fazenda, estipulou um cro-nograma com esse objetivo. Logo em se-guida, o Decreto n. 52.389, de 16 de feve-reiro de 1970, e o Decreto n. 52.462, de 6de junho de 1970, tornaram compulsóri-os aqueles prazos dilatados para váriossetores (por exemplo: siderurgia, têxtil ecalçados). Pelo menos São Paulo efetiva-mente concedeu prazos maiores para o

recolhimento do ICM já em 1970 e nova-mente em 1971 (em alguns casos, o prazofixado chegou a 60 dias).29

3.1.3_ Os fundos PIS/PASEP e a melhoriadas condições de crédito

Em 1970, são instituídos os fundos PIS/PASEP, refletindo a preocupação oficialcom a injusta distribuição de renda. AsMetas e Bases para a Ação do Governoidentificariam aí um dos “grandes proble-mas éticos do nosso tempo” – mas expli-citamente descartavam qualquer “excessoredistributivista que sacrifique a acelera-ção da taxa de crescimento nacional”.30 OPrograma de Integração Social foi conce-bido nesse espírito. É importante obser-var como foi a sua operacionalização.

Em simultâneo à criação do PIS,uma resolução do Senado Federal (n. 65,de 19/8/70) reduziu as alíquotas de IPI eICM em 0,5% a. a., de 1971 a 1974. Naavaliação de Reis Velloso, o fundo seria,assim, inteiramente financiado via redu-ção da carga tributária – e ainda propicia-ria um bônus (a redução gradual do IPI)na forma de ampliação do capital de giropróprio das empresas. E o próprio meca-nismo de recolhimento – defasado de 6meses – representou disponibilidade definanciamento do capital de giro a custozero para o setor empresarial que não háque se desprezar. Finalmente, a mobiliza-

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29 Delfim Netto explica osentido dessas medidas:“Hoje, o IPI, todo ele, érecolhido a prazos maioresque os prazos médios devenda dos setores. Isto é,nenhuma indústria, ninguém,em princípio, financia mais oIPI. O mesmo estáacontecendo com o ICM. Issorepresenta uma redução dabusca de capital de giro dasempresas nos bancos esignifica, portanto, umaredução do custo do dinheiropara as empresas. É recurso, a

taxa de juro zero, que oEstado entregou a essasempresas. [...] São medidasque estão procurandocontrolar, no prazo maislongo, a taxa de juros”. –Banas, 16/8/71, p. 8.30 As citações são das páginas5 e 6. A revista Veja, de14/1/70, noticia o debate nointerior do regime acercadessa questão e ocompromisso de Médici emdar uma resposta em breve.Ver também declarações deVelloso, in Visão, 28/2/70.

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ção desses fundos pela CEF representouóbvia ampliação da oferta de crédito.31

3.1.4_ Mudanças operacionais na políticamonetária

O ano de 1970 é o da implantação do openmarket (após uma fase experimental em1968-1969 utilizando a ORTN com pra-zo decorrido): o quadro institucional ga-nhou forma no Decreto-Lei n. 1079, de29 de janeiro de 1970, e na Resoluçãon. 150, de 22 de julho de 1970. Esse aper-feiçoamento da política monetária, coro-ando os movimentos anteriores de redu-ção do desequilíbrio fiscal e a introduçãodas minidesvalorizações cambiais (am-bos pré-condições para a eficácia da polí-tica monetária), teve outras implicaçõesnão menos importantes.

O open facultaria aos bancos remu-nerar parte do seu encaixe, desenvolver

as operações interbancárias (negadas le-galmente, mas cedo institucionalizadaspela sistemática do “cheque BB”) e proje-taria possíveis passos futuros (por exem-plo, redução dos depósitos compulsórios,tornados um instrumento antiquado)visando à redução de custos operacio-nais.32 E naturalmente o open constituiriauma esfera de valorização dos capitaisem aplicações de curto prazo, numa con-juntura de alongamento de prazos de re-colhimento e redução/isenção de impos-tos, etc. Interessante notar que, já no atode nascimento do open, observaram-se al-gumas deformações reveladoras da suapotencialidade “para o mal” (carta de re-compra, fracionamento dos títulos de ele-vado valor, visando atrair o “pequenopoupador”), obrigando o Banco Centrala intervir – é o caso, por exemplo, da Cir-

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31 Delfim Netto vincularia oPIS ao objetivo permanentede redução das taxas de juros,pré-condição do crescimento:“Na medida em que o fundovai servir como captação derecursos que se transformaráem capital de giro dasempresas, ele reduzirá ademanda de capital definanciamento por partedessas empresas e certamentevai baixar a taxa de juros. Omesmo efeito se obtevequando se ampliou e continua

a se ampliar o prazo dorecolhimento dos impostos.De forma que tudo estácaminhando para baixar a taxade juros. Os empresáriosfinanceiros têm decompreender que essa é umanecessidade imperiosa e astaxas de juros vão ter debaixar neste país de qualquerforma. O fundo será apenasmais um instrumento para arealização deste objetivo” –Revista de Finanças Públicas, ago.1970, p. 2-16. Para um exame

detalhado do PIS, ver Loloian,1980 (a citação de Vellosoencontra-se na p. 22).32 Isso foi indicado porDelfim Netto: “As operaçõesde mercado aberto são osubstituto eficaz para o velhosistema de taxas mínimas ouobrigatórias de depósitoscompulsórios. Estamosaprendendo a trabalhar com oopen market para poder superaraquele sistema, extremamenteoneroso para os bancos. [...]Vai ser um instrumento

extremamente importante nofuturo para controle daliquidez global do sistemaeconômico brasileiro. E vaiajudar a reduzir muito osempréstimos compulsórios,quando chegar o momentoapropriado. Portanto, vai seruma operação que reduzirá demaneira substancial o custodo sistema bancário.” – Visão,7/11/70, p. 36-38.

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cular 145, de 25/9/70, que buscou coibira prática do fracionamento.33

A mudança na sistemática da polí-tica monetária seria completada pelas Re-soluções n. 168 e n. 169, de 22 de janeirode 1971: a primeira simplificou o redes-conto de liquidez, convertido em “assis-tência financeira” do BC, consistindo emabertura de crédito por prazo indetermi-nado e o controle sendo exercido via ma-nipulação dos limites, prazos de utiliza-ção e taxa de juros; a segunda introduziua média quinzenal dos depósitos, no lu-gar de um dia determinado, como basede cálculo dos recolhimentos compulsó-rios devidos pelos bancos comerciais.

3.1.5_ Incentivos às exportações de manufaturados

Como se sabe, desde 1964, a política fis-cal vinha sendo acionada num crescendovisando à promoção de exportações. Du-as medidas merecem destaque. O créditoprêmio de IPI, introduzido em 1969, foi

habilmente manipulado nos anos seguin-tes: por exemplo, a Portaria GB-14, de15 de janeiro de 1970, estabeleceu a pos-sibilidade de transferência para terceiros,como pagamento de matérias-primas, em-balagens, etc., do eventual excedente decréditos (sendo facultado aos fornecedo-res utilizar tais créditos para abater o seuIPI devido); e uma sucessão de portariasfixariam alíquotas especiais de IPI, váli-das apenas para cálculo do crédito fiscal(em alguns casos, alcançando o dobro,ou mesmo o triplo, da alíquota válida pa-ra o mercado interno). Em 15 de janeirode 1970, o Convênio do Rio de Janeiroestabeleceu um mecanismo de créditoprêmio do ICM, semelhante ao IPI.34

3.1.6_ Apoio “estratégico” à agricultura:incentivos à elevação de produtividade

O governo Médici elegeu a agriculturasua prioridade. A retórica da política eco-nômica identificará 1970 ao “ano da agri-

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33 Ver matéria do Jornal daTarde, 20/10/70, informandoque um grande banco paulistavinha operando com garantiade recompra. Ver também deR. Appy, “Open market aindanão deslanchou”, in EconomiaPaulista, set./out. 1970.34 Essa política adquiriu talenraizamento que, em 1972,durante uma exortação aosexportadores, Delfim se

atreveu a proclamar: “[...] nãocreio que ninguém possaalterar esse processo deincentivos que foi criado. Nãohá a menor possibilidade queisto seja mudado no futurovisível, de forma que ossenhores podem tratar defazer seus investimentos paraa exportação com a maiortranqüilidade. Não há forçamaterial capaz de mudar esta

orientação do governo”. Nemmesmo o risco de retaliaçõesseria capaz de fazer recuaressa política, pois “ [...] no diaem que objetarem, já temosum sistema alternativo pronto.As contribuições (comoFundo de Garantia, Funrural,etc.) pesam em 76% sobre afolha salarial. Transformam-seessas contribuições emimpostos sobre vendas ou em

IPI. Assim, no momento emque apresentassem objeçõesao mecanismo de créditos, sepoderia dobrar o valor do IPI,recolher o IPI , devolver aoINPS a sua parte e dar comocrédito de IPI a diferença.Ficaria tudo na mesma, mas asregras estariam satisfeitas.” –Visão, 28/8/72, p. 424.

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cultura”, tal o tratamento a ela dispensa-do. A retórica justifica-se, tendo em vistao conjunto de incentivos dados ao setor.Incentivos esses visando à ampliação damecanização e do uso de insumos moder-nos, consolidando a sua transformação emagronegócio.

Assim, cabe destacar:

1. isenção de IPI e de ICM sobre tra-tores e demais máquinas agrícolas;

2. isenção de ICM sobre os insumosutilizados na produção de adu-bos e fertilizantes;

3. incentivo fiscal à compra de trato-res e máquinas agrícolas, fertili-zantes, defensivos, etc. (tratadoscomo investimentos, permitindoabater até 80% do rendimento lí-quido sujeito ao IR);

4. redução do IR devido pela agricul-tura (limitando o rendimento tri-butável a 10% em 1970 e 25%em 1971 do rendimento líquidoapós a dedução dos investimen-tos realizados);

5. isenção de IPI sobre matérias-pri-mas, produtos intermediários ematerial de embalagem utilizadospela indústria de máquinas e im-plementos agrícolas;

6. isenção de ICM sobre motores eengrenagens utilizados na fabri-cação de tratores.35

A isso tudo some-se a farta dispo-nibilidade de crédito, a juros favorecidos.O volume de financiamento de tratores,em termos reais, realizado pelo Banco doBrasil a uma taxa de juros fixa em 15%a. a., após sofrer uma retração em 1969,cresce 16,5% em 1970 e, em seguida, pra-ticamente triplica até 1973. O volume decrédito para fertilizantes, em termos reais,após sofrer retração em 1969, cresce aci-ma de 150% em 1970 e acima de 200%em 1971: em 1973, alcançando um valor4,5 vezes maior que o de 1970, já repre-sentava 14% do volume total do créditorural (em 1969 apenas 3,6%). Note-seque, pelo Fundag, a taxa de juros nessamodalidade permaneceu fixa em 7% a. a.E o crédito rural total, por sua vez, cresce18,8%, em termos reais, em 1970, e sim-plesmente dobra até 1973.36

A sua política econômica foi umavez descrita por Delfim Netto como uma“política de libertação do empresário”:ao libertá-lo, o governo tornava viável odesenvolvimento com base na agricul-tura e nas exportações.

A resposta da agricultura aos estímulos é oque se pode dizer uma experiência crítica, éa resposta definitiva àqueles que acredita-vam que o sistema era incapaz de atenderaos estímulos do lucro. Nós temos uma coi-sa extremamente rara e que talvez nos dis-tinga de todo o mundo subdesenvolvido: ofator mais escasso que é o empresário.

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35 Essa última medida é deabril/71 e propiciaria novaredução no preço final dotrator, estimada em 3 a 4% –ver Exame, set. 1971, p. 212.As demais datam do primeiroano do governo Médici.Referências a essas diferentesmedidas localizam-se emRevista de Finanças Públicas, jan.1970, p. 40; fev. 1970, p. 45 e47; jul. 1970, p. 50; out. 1970,p. 47. Ver também otelegrama (de “júbilo”)enviado ao presidente e seusministros pela Federação daAgricultura do Estado de SãoPaulo, in O Estado de S. Paulo,24/1/70.36 Barros (1980):127; IPT(1981):II-60.

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Com efeito, no início de 1970,Delfim antecipava que “a produção agrí-cola baterá todos os recordes”.37 O maudesempenho da cultura de café frustrouessa previsão, mas não abalou a certezada futura resposta do empresariado agrí-cola. No final do ano, Delfim reafirma-ria sua crença:

Desde a posse do Presidente foi tomadauma série de medidas, todas na direção daexpansão da produtividade da agricultu-ra. Acho que abril ou maio de 1971 vairevelar que esse esforço extraordinário ob-teve uma resposta espantosa do setor agrí-cola brasileiro. Não tenho dúvidas de que1971 deve revelar a maior taxa de cresci-mento da agricultura de que se tem notíciana história deste país.38

De fato, a agropecuária cresceu11,4% em 1971 (e a lavoura cerca de14,8%) – espetacular, sem dúvida, porémuma performance que não se repetiria nemem 1972 (4,1%), nem em 1973 (3,5%).Não obstante, o auge cíclico prosseguiu vi-gorosamente; como explicá-lo a partir da“estratégia agrícola-exportadora”?39

Mas é certo que essa política im-pulsionou com força a indústria de trato-res, a qual operava com 50% de capacidadeociosa em 1969; a expansão da produçãoalcança sucessivamente marcas impressi-onantes: 47% em 1970, 57% em 1971,32% em 1972, induzindo um estado eu-

fórico das expectativas. Com isso, o se-tor, estagnado desde a conclusão de seuprimeiro ciclo de investimentos em 1962,voltaria a investir, duplicando a capacidadeinstalada durante o “milagre”. No casodos fertilizantes, a produção de nitroge-nados cresce aos saltos, multiplicando-sepor oito entre 1970 e 1974 (5,5 entre1970 e 1973), enquanto a de fosfatadoscresce acima de 150% no período (prati-camente duplica de 1970 a 1973). Emambos os tipos, contudo, o peso das im-portações era superior a 50% do consu-mo – já os potássicos eram importadosna sua totalidade; assim, no período ob-servam-se taxas elevadíssimas de cresci-mento das importações (à exceção de1973, quando a conjuntura agitada vividapelo mercado afetou as importações).40

3.1.7_ Política industrial: Plano SiderúrgicoNacional, incentivos ao investimentoe à indústria de bens de capital

A aceleração do crescimento tornaria evi-dente o atraso na expansão de capacida-de da siderurgia. O setor fora prejudica-do não só pela desaceleração industrialpós-1962, mas também por fatores vá-rios, como preços contidos que afetavama capacidade de autofinanciamento (so-bretudo durante o PAEG); redução detarifas de importação em 1966, e, nova-mente em 1967, projeções pessimistasda necessidade futura de aço (relatório

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37 Entrevista coletiva narecém-formada Associaçãodos Jornalistas de Economia eFinanças, in Revista de FinançasPúblicas, fev. 1970, p. 43 e mar.1970, p. 3. Na linha domodelo agrícola-exportador,ele diria então: “Umaexpansão da renda agrícola,como a que vai se verificarneste ano, tende a produziruma expansão extraordináriada demanda de bensindustriais. Estão, portanto,criadas as condiçõesnecessárias para a realizaçãodo desenvolvimento”.38 Visão, 7/11/70. Elereafirmaria essa expectativaem entrevista à revistaProgresso, mar./abr. 1971.39 Os números são extraídosde “Agricultura num contextode recessão”, Paulo Rabello deCastro e Renato TicoulatFilho, in O Estado de S. Paulo,27/12/81.40 Para um examepormenorizado, verCEFER-IPT (1980);os dados da indústria detratores são de Barros (1980)e Banas, 10/9/73.

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Booz-Allen). Dessa forma, até o governoMédici não tivera início qualquer programade investimento antecipando um possívelponto de estrangulamento futuro. Com is-so, acompanhando o crescimento acelera-do, as importações de aço em relação aoconsumo aparente ingressariam em umatrajetória ameaçadora: 12,4% em 1969,14,5% em 1970, 21,9% em 1971. O PlanoSiderúrgico Nacional tornava-se, então,inadiável – e veio inteiramente permeadodo clima Brasil Grande Potência, caracte-rístico do período, ao fixar, em dez./70, ameta de quadruplicar a produção de açoem uma década, a qual deveria alcançar 20milhões de toneladas em 1980.41

Por outro lado, a continuidade docrescimento acelerado dependia evidente-mente da concretização das decisões de in-vestimento do setor privado. O crescimen-to do investimento público e do setorprodutivo estatal – a taxas anuais de 12,2 e

27,7%, respectivamente, em 1970-1973 –sem dúvida teve grande importância, dadoo seu efeito indutor sobre as decisões pri-vadas. Mas não deve ser negligenciadoo papel da política econômica, cultivandoum otimismo sem restrições (como se pre-tendesse atiçar o animal spirits do empresari-ado) e, sobretudo, distribuindo incentivos(no fundo, respostas às solicitações da in-dústria). Por exemplo, Reis Velloso de-mandaria dos empresários uma atitudemais arrojada, fazendo hoje o que talvezpensassem fazer apenas amanhã:

[...] numa prova de confiança em si mes-ma e na Nação, deve a indústria fazeragora os investimentos e proceder à am-pliação de instalações que pretenderia fa-zer daqui a um, dois ou três anos. Ante-cipar os investimentos é uma necessidadebásica para o Brasil.42

Os incentivos seriam ampliados –e, sobretudo, eliminariam a discrimi-

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41 Segundo Pratini de Moraes,da Indústria e Comércio: “Se aprodução siderúrgica fossemantida nos níveis atuais – 5,4milhões de toneladas anuais –,em poucos anos o processode desenvolvimento poderiaser comprometido, pela nossacrescente dependência dasimportações”. – “A Siderurgiae o Desenvolvimento”, in

Segurança e Desenvolvimenton. 154, 1973.42 Pronunciamento nobanquete anual da indústriaelétrica e eletrônica: “Governosó apoiará indústria eficiente”,O Estado de S. Paulo,12/12/70. Velloso renovaria aexortação em entrevista aoCorreio da Manhã, 25/1/71.Delfim, por sua vez, quando

dissertava sobre a “libertaçãodo empresário” promovidapela política econômica, tinhapresente que odesenvolvimento “é mais umaquestão de mobilização”, “ébasicamente obra do setorprivado” – não poupandoesforços, pois, para promovero seu engajamento, a sua“crença” (ele diria mesmo:

“Precisamos acreditar que odesenvolvimento é possível”).Ver suas declarações naAssociação dos Jornalistas deEconomia e Finanças, inRevista de Finanças Públicas, fev.1970, p. 43. Para uma análisedo investimento do setorpúblico, ver Dain (1979).

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nação diante das importações até entãosofrida pela indústria nacional de bensde capital – através dos Decretos-Leisn. 1.136 e n. 1.137, Decreto n. 67.707 e Por-taria GB-334, todos de 7 de dezembro de1970, estabelecendo: isenção do impostode importação, do IPI e do ICM, quandoda importação de equipamentos, máqui-nas, aparelhos e instrumentos, acessóriose ferramentas, sem similar nacional, bemcomo de partes complementares à produ-ção nacional; crédito do IPI ao compra-dor de equipamento nacional; deprecia-ção acelerada sobre os bens de fabrica-ção nacional, para efeito de apuração doimposto de renda. E o Convênio do Riode Janeiro, de 12 de janeiro de 1971, con-cederia também a isenção de ICM à in-dústria de bens de capital; no caso deSão Paulo, essa decisão foi imediatamen-te ratificada através do Decreto estadualn. 52.656, de 15 de janeiro de 1971. Porfim, via BNDE-Finame e CEF-BB (mo-bilizando os fundos PIS/PASEP), seriaofertado o indispensável crédito de lon-go prazo, condição essencial da competi-tividade da indústria de bens de capital(e uma antiga reivindicação). Não semrazão, Delfim comunicaria à FIESP: “Ter-minada a execução do programa destina-do à agricultura, o governo iniciou a for-mulação do ano da indústria”.43

3.2_ A conjuntura 1972-1973e as contradições da políticaeconômica do “milagre”

A política econômica parece ter desfru-tado ao longo de 1970-1971 uma “luade mel” prolongada: distribuição genero-sa de incentivos (à agricultura, aos expor-tadores, à indústria, aos bancos); colheitafarta de crescimento econômico (incluin-do, em 1971, a longamente aguardada su-persafra agrícola), inflação estabilizada,aumento progressivo das reservas inter-nacionais – nem mesmo o fiasco que aco-meteu a Bolsa de Valores em 1971 foi ca-paz de empanar o brilho da administraçãoeconômico-financeira. Em 1972-1973,combinam-se uma conjuntura econômi-ca internacional e doméstica de intensocrescimento, geradora de dificuldades pa-ra a condução da política econômica; es-ta, ademais, explicita em sua formulaçãoambições que aprofundam as dificulda-des. É conveniente, pois, tratar em se-parado esse subperíodo, considerando-ouma nova fase (terminal) da política eco-nômica do “milagre” – na medida emque se verificou a sobreposição de algu-mas condicionantes novas.

Em primeiro lugar, há que se terpresente os efeitos do boom sincronizadodas economias capitalistas desenvolvidas,observado nesses anos. O início da dé-cada fora marcado pela recessão nor-

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43 Ver O Estado de S. Paulo,23/1/71. Na CNI, Delfimcomentara que a nova políticaindustrial “será um passodecisivo para que nostornemos uma grandepotência industrial”; “o ano de1971 está destinado atornar-se o grande ano daindústria de base” – Revista deFinanças Públicas, nov. 1970,p. 44-45. O otimismo deDelfim era, na verdade, aindamaior, vaticinando: “ [...]lograremos fomentar o últimosetor que faltava amparardentro da economia brasileira:o das máquinas que produzemmáquinas. Com isso, aeconomia brasileira adquiriráum nível de maturidadeinsuspeitada nos últimos anos.Estaremos realmente emcondições de alcançar um graude desenvolvimento aceleradoe auto-suficiente.” – entrevistaà revista Progresso, mar./abr.1971. Para exemplos daposição da indústria acerca docrédito de longo prazo, ver,por exemplo, as entrevistas deEstevam Faraone, da Romi,in Banas 13/4/70; e Manoel daCosta Santos, da ABINEE,in Banas, 24/8/70.

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te-americana, enquanto as demais econo-mias desenvolvidas apresentavam com-portamentos diferenciados (Japão, Françae Alemanha mantiveram um elevado cres-cimento; Canadá, Reino Unido e Itáliaexibiram, quando muito, crescimento ras-tejante). A recuperação dos EUA teveinício durante 1971, evoluindo para taxasreais de crescimento do PNB da ordemde 5,7% em 1972 e 5,5% em 1973 (ocrescimento mais vigoroso desde 1966).As demais economias desenvolvidas tam-bém cresceram e a taxas ainda maiores –até mesmo o Reino Unido conseguiu,em 1973, sair do seu crônico estado decrescimento rastejante, exibindo taxa decrescimento próxima de 6%. Um deter-minante chave dessa conjuntura foi omanejo da política monetária pelo FED,caracterizado por incomum flexibilidade(oferta abundante de liquidez e baixas ta-xas de juros). A repercussão se fez em vá-rias direções: o comércio mundial atingiuos maiores índices de expansão de todo opós-guerra; o mercado de euromoedas,que vinha há anos em uma trajetória ver-tiginosa, simplesmente duplica entre 1971e 1973, tornando clara a conjuntura desobreliquidez internacional; e os preçosinternacionais dos produtos primários des-frutaram entre 1972 e 1974 o seu maiorboom desde o pós-guerra, superior mes-mo ao ocorrido durante a Guerra da Co-

réia no início dos anos 50. Este últimoponto merece ser destacado. O boom sin-cronizado do capitalismo avançado inten-sificou a demanda mundial por alimentose matérias-primas industriais (um merca-do caracterizado pela dominância de pre-ços flex), tendência reforçada por movi-mentos especulativos desatados pela altade preços num ambiente de juros reduzi-dos. Com efeito, os preços dos alimentoscrescem 54,0% em 1972 e 43,2% em1973, enquanto os preços das matérias-primas industriais exibem alta de 29,4%em 1972 e 74,2% em 1973.44

No plano interno, o crescimento aaltas taxas, prolongando-se por váriosanos, terminou desaguando numa con-juntura de superaquecimento, com os ní-veis de produção tendendo a esbarrar noteto da plena utilização de capacidade.O ritmo acelerado dos investimentos,característico do auge, contribuiu paramanter em contínuo crescimento a de-manda, excitando as expectativas empre-sariais, o que culminará em sobreinvesti-mento – assim, ao longo do tempo, oprocesso tende a desdobrar-se em umacrise de superacumulação de capital (issojá ocorrera na crise dos anos 60 e voltariaa repetir-se na crise do “milagre”).

Mas, a curto prazo, dada a defasa-gem entre os gastos de investimento e aresultante expansão de capacidade, o que

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44 Os dados se referem ajan./72, jan./73 e jan./73,jan./74. Ver a análise de A.Udry, in Mandel (1977).

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eventualmente pode observar-se no picodo auge cíclico são manifestações varia-das e mais ou menos intensas de escassez– de matérias-primas, de insumos, de mão-de-obra. Isso é tão mais certo quanto apolítica econômica pratique uma orienta-ção expansionista sem vacilações, sem-pre alardeando estar na retaguarda doempresariado, com o objetivo renovadoano a ano de crescer a altas taxas, assimimpulsionando um otimismo irrefreávelno estado das expectativas. E ainda maisse a atividade de planejamento é atro-pelada pelo poder de sedução do prag-matismo centrado nas possibilidades dopresente – ou, no mínimo, entra em ope-ração tardiamente.

São conhecidos os indicadoresque apontam para a plena utilização decapacidade em quase toda a indústria detransformação no biênio 1972-1973. Umdado bastante sugestivo da febril conjun-tura vivida pela economia reside na pro-porção de indústrias considerando o ní-vel de demanda como “forte”, ao invésde “normal” ou “fraca”, obtido pelassondagens conjunturais da FGV, um ín-dice aproximado do estado d’alma im-perante no mundo empresarial: aquelaproporção aumenta vigorosamente apósabr./72, alcançando percentual recordeno final do ano (0,31 – superior ao maiorvalor registrado desde 1968, equivalente

a 0,27), para seguir crescendo intensa-mente ao longo de 1973, quando regis-traria marcas dificilmente igualáveis (0,49em julho e 0,60 em outubro).45

Dessa forma, especialmente no anode 1973, foram freqüentes as queixas dedificuldades setoriais decorrentes da es-cassez de matérias-primas e insumos (àsvezes originando-se no mercado interna-cional, como exemplificado pelo caso dosfertilizantes). Ao disseminar-se a percep-ção de escassez, tem início um movimentoespeculativo (antecipação de compras),contribuindo para intensificar a escassez(e a correspondente pressão localizadasobre os preços). Na indústria automo-bilística, as montadoras se defrontaramcom limitações físicas no suprimento dechapas de aço; as firmas de autopeças fo-ram afetadas pela falta generalizada deaço, registrando-se casos de paralisaçãototal da linha de produção (além, é claro,de queixas insistentes de forte elevaçãodos custos, não reconhecida pelo CIP –v.g., disseminava-se no mercado a práticade sobrepreço). A indústria têxtil foi afe-tada pela escassez de algodão; a de calça-dos, pelas dificuldades no suprimento decouro (também aqui registrando-se casosde redução da produção); na química, osuprimento deficiente de insumos afetoua produção de resinas (um caso extremo: ofenol, monopolizado pela Rhodia, teve a

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45 Acerca dos dados daSondagem Conjuntural daFGV, ver a análisede Bacha (1976).

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sua produção interrompida em razão daescassez da matéria-prima, importada); afalta de resinas fenólicas e de ferro gusatrouxe dificuldades para a fundição.46

Se restasse qualquer dúvida acercada conjuntura de superaquecimento, bas-taria lembrar que as próprias autoridadeseconômicas o reconheciam. Delfim Net-to, falando aos empresários na FIESP,evocaria os “saudosos idos de 63” (quando“sobrava matéria-prima”, “sobrava em-prego”) na tentativa de aplacar o surto denervosismo (“frenesi”, “quase histeria”)que se manifestava e insuflar um ânimopositivo, direcionado à continuidade docrescimento. É verdade que

a circunstância de que falta matéria-pri-ma é o indicador mais importante de queestamos batendo no teto da nossa taxade expansão.

Mas, ele ensinaria:

O desenvolvimento é exatamente isto, éfazer a demanda andar na frente da ofer-

ta, porque isto é que estimula os novos in-vestimentos, isto é que dá a rentabilida-de às empresas, isto é que dá a escalaà indústria.

O compromisso com o crescimento ace-lerado é inteiramente reafirmado:

Não haveria nada mais simples para oGoverno do que fazer desaparecer com umestalar de dedos esta escassez de matériaprima. Simplesmente bastava reduzir ataxa de crescimento. [...] Basta reduzir-mos o prazo do recolhimento do IPI para30 dias [...] Agora eu pergunto: quem ésuficientemente inconseqüente para proporuma solução como esta? Quem é suficien-temente irresponsável para propor que pa-ralisemos o desenvolvimento econômico sóporque existem algumas dificuldades commatéria prima?47

O período 1972-1973 possui ou-tro traço distintivo: contrastando com aprática anterior, agora a política econô-mica manifestaria com muita ênfase o

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46 Ver para um relatodetalhado: Banas, 10/12/73;Conjuntura Econômica, fev. 1974;Visão, 11/6/73 e 24/9/73(“São Paulo precisa de reforço”,comentando a escassez demão-de-obra não qualificada);Exame, ago. 1973 (“Semmatérias primas, como será osegundo semestre”).

47 Ver Revista de FinançasPúblicas, out./dez 1973, p. 7-15;Jornal da Tarde, 13/10/73.Delfim também apontava aexacerbação do processomotivada pela “histeria” – “saircorrendo e pedir a mesmaencomenda a dez fornecedores,dando a impressão de que existedez vezes mais demanda do que

existe. Agindo desta forma,estamos forçando o teto acimado qual é impossível subir”. Vertambém sua entrevista a Veja,4/7/73, onde ele explicitavasuas opções: “Contornar apressão através de uma reduçãona demanda seria a soluçãomenos trabalhosa, mas épreferível adotar caminhos mais

inteligentes, lidando com ospontos de estrangulamento noinstante em que aparecem.Aplicar uma política monetáriaapertada daria tranqüilidade aoministro, mas abandonamosessa solução em 1967 e não éagora que faríamos suaressurreição”.

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propósito de redução da inflação, assu-mindo uma meta explícita, a saber, 15%em 1972 e 12% em 1973 (note-se algoque não se via desde o PAEG; mesmo o“golpe mortal” anunciado em 1969 nãofoi ao ponto de assumir um compromis-so com qualquer taxa definida de infla-ção). O general Médici, discursando noaniversário do regime, daria grande espa-ço ao tema da inflação, qualificando-a de“mal do século” e “a maior inimiga dobem estar da família brasileira”, e anunci-aria a adoção de uma “nova postura”.Delfim Netto se encarregaria de inter-pretar a fala presidencial, delimitando aextensão do objetivo:

[...] vamos agora apertar o cerco em torno dainflação. Até agora conseguimos eliminar osefeitos da inflação. É preciso, doravante,atacar as causas do processo inflacionáriopara eliminar a inflação propriamente dita.[...] Estamos mobilizando a sociedade intei-ra para a batalha final contra o inimigo co-mum. Já conseguimos empurrar a inflaçãopara dentro da jaula. Agora é entrar na ja-ula e ganhar essa luta de vida ou morte.48

No final do ano, o objetivo seria re-novado, com o general Médici decretando:

[...] está o governo habilitado a limitar em12% o aumento do custo de vida no anovindouro. Esse – doze por cento – deveráser, portanto, o nível máximo da correçãomonetária em 1973.

Delfim comunicaria ao empresariado suaavaliação das possibilidades em jogo:

Acredito que o desenvolvimento brasileiro,em 1973, será quase automático e seriapouco inteligente de nossa parte ultrapassara meta de 12% para a inflação [...] Nestemomento, podemos informar que tudo maisestá sob controle ao mesmo tempo em que aeconomia cresce. [...] Quando tudo está sobcontrole, não há realmente razões para nãoalcançarmos 12% de inflação.

E, para deixar definitivamente claro:

[...] há condições objetivas para a econo-mia brasileira atingir um nível inflacio-nário de 12%. Qualquer inflação acimadisso é puro desperdício. Não precisa-mos de mais para manter o atual cresci-mento. Decidiu-se que toda a políticaeconômica brasileira, em 1973, ao ladodo apoio ao crescimento físico, se ajusta-ria à tarefa de realizar a taxa de infla-ção de 12%.49

É possível que a decisão de adotaruma “nova postura” diante da inflação –na verdade, a recuperação de um idealoriginário da Revolução – tenha sido de-terminada por fatores de ordem política.Sobre isso é possível apenas especular.Indícios sugerindo essa leitura não fal-tam: a sucessão de Médici já começava adespontar, e a “nova postura” poderiaser uma tática para enquadrar o processo

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48 Ver Folha de S. Paulo,16/4/72; o discurso de Médiciacha-se em O Estado de S.Paulo, 2/4/72. Um relato feitoa posteriori por um integranteda equipe de Delfim informaque os estudos e as avaliaçõesentão realizados “[...] nospermitiu concluir daviabilidade de se alcançar umainflação entre 13 e 18%; paraa meta não ficar vaga, oministro Delfim resolveufixá-la em 15% (a inflação naépoca rondavapersistentemente a barreirados 20% e as dificuldades pararomper essa barreira eramgrandes, principalmente doponto de vista psicológico)”. –“Custo de Vida: técnicorompe silêncio”, in O Estado deS. Paulo, 1º/10/78.49 Ver Jornal da Tarde,6/1/73; O Estado de S. Paulo,6/1/73 e 2/1/73 (mensagemde Médici).

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ou para aumentar o cacife do grupo diri-gente visando influir no seu desenlace fi-nal; o regime adotara nesse período umaforma de comunicação baseada no ufa-nismo aberto, alimentado pelo anúnciode sucessivos “projetos impacto” (PIS,PIN, etc.) – a “nova postura” não deixariade se revestir desse caráter.

Por outro lado, parece certo que a“nova postura” refletiu um patamar maiselevado do voluntarismo de que o regimese impregnou a partir da tomada de cons-ciência do “milagre”. Com efeito: há pou-co mais de um ano, incomodado pela fa-tura que lhe era lançada pelos devotos daestabilidade, Delfim se permitiu devolvero desafio com o revelador “Preferimoscrescer”, a melhor síntese do clima carac-terístico da administração Médici; ago-ra, ele anunciava o desejo de continuarcrescendo (“por muitos anos...”) e simul-taneamente reduzir expressivamente ainflação, reintroduzindo o sonho da esta-bilidade. Convenhamos, o governo apos-tava alto, ao que parece seguro de tudopoder – no mínimo, tratou-se de umamanifestação de audácia.

Mas, de um ângulo estritamenteeconômico, é plausível admitir que a con-fiança depositada nas chances de êxito nameta antiinflacionária tenha tido a suabase na aposta em um choque (deflacio-

nário) agrícola: veja-se o modelo agríco-la-exportador e o vulto das medidas deapoio à agricultura que haviam sido im-plementadas; recorde-se as repetidas pre-visões de uma supersafra (a resposta es-perada da agricultura) – e é um fato quetal ocorrera em 1971, como que a confir-mar o acerto da estratégia em curso. Háindicações de que as autoridades econô-micas projetavam excelente desempenhoda oferta agrícola em 1972 e novamenteem 1973 – isso num momento em que“tudo mais está sob controle” (leia-se: sa-lários domesticados pela política salarial,déficit orçamentário negligível, câmbioacertado, política monetária eficazmenteconduzida graças ao open, às minidesva-lorizações, etc.).50 Um segundo elementoteria a ver com a componente psicológicado processo, traduzida por Delfim nocomentário “a inflação sempre começana cabeça das pessoas”; assim, os 20% deinflação anual terminaram adquirindo ca-ráter de barreira psicológica, “mítica”.Dessa forma, tal como a aceleração docrescimento, sustentada na realização deinvestimentos, dependia da “crença” doempresariado, também a redução da in-flação dependia em certa medida da “cren-ça” de que é possível, de que qualquerinflação adicional é desnecessária (um“desperdício”). Delfim Netto era explíci-

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50 “As previsões quanto àssafras agrícolas do ano quevem já permitem ao governoacreditar que poderemos obtersubstanciais ganhos nocombate à inflação ...” –Delfim, em um jantar combanqueiros, Jornal da Tarde,17/12/71. Ver também: OEstado de S. Paulo, 22/12/71;“O empresário e a inflação de12%”, in Exame, abr./73;“Custo de Vida: técnicorompe silêncio”, in O Estado deS. Paulo, 1º/10/78.

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to a respeito: “Não falta nenhum fatorobjetivo. Só falta a crença dos homensem que isso seja possível”.51 Por via dasdúvidas, o CIP estaria vigilante para fazerver aos recalcitrantes que a “nova pos-tura” era para valer.

Assim, para espanto da ortodoxia,a política econômica declarava preten-der uma redução significativa da inflação,num gradualismo rápido, e, ao mesmotempo, perpetuar o crescimento acelera-do – portanto, com a manutenção deuma política monetária passiva. DelfimNetto ensinaria (com razão, aliás):

Se é verdade que a inflação começa na ca-beça dos homens, também é verdade que,se ela sobrevive por algum tempo, é porquenão há outra forma senão sancioná-la pelapolítica monetária, uma vez que a alter-nativa não é a estabilidade dos preços,como acreditam alguns monetaristas exa-gerados, mas o desemprego.52

Estabilidade monetária sim, mas na-da de arrocho fiscal, monetário ou credití-cio que fatalmente afetariam o ritmo decrescimento. Outros instrumentos que nãoos convencionais deveriam ser acionadosna busca daquele objetivo. Uma breve re-constituição da execução da política eco-nômica não deixa margem para dúvida.

Após a interrupção observada noano de 1971, prosseguiu em 1972 e 1973

o movimento de redução das taxas de ju-ros (administradas pelo Banco Central).Um conjunto de Resoluções fixou, emfev./72, as novas taxas de juros para asdiferentes modalidades de crédito bancá-rio e os rendimentos dos depósitos a pra-zo e das letras de câmbio. Em jan./73, oBanco Central promoveria novo ciclo deredução das taxas de juros, inclusive a ta-xa básica de assistência financeira (anteri-ormente taxa de redesconto), eliminariao depósito compulsório sobre os depósi-tos a prazo dos bancos comerciais e oIOF incidente sobre o crédito rural (decusteio ou investimento).

Para além da real eficácia dessasmedidas (os mecanismos de reciprocida-de desenvolvidos pelo mercado torna-vam as taxas de juros efetivas muito su-periores aos níveis nominais arbitradospelo Banco Central) e de suas reais inten-ções ou funcionalidade, cabe frisar a he-terodoxia da política econômica: redu-ção das taxas de juros como instrumento(meio) da pretendida redução da infla-ção. (Por suposto, plenamente coerentecom o objetivo “gêmeo” da preservaçãodo crescimento acelerado.).

Sucessivas portarias ministeriais da-riam continuidade à diretriz anterior deconceder prazos sumamente elásticos parao recolhimento do IPI, disponibilizando

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51 Jornal da Tarde, 6/1/73.52 “O empresário e a inflaçãode 12%”, in Exame, abr./73.

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recursos para o financiamento do capitalde giro (a custo zero). Inicialmente forammantidos os prazos de 90 dias para a mai-or parte das indústrias e de 120 dias paraas indústrias têxtil, calçados, ferro fundi-do e aço; no final de 1972, esses prazosforam alongados para 120 e 150 dias, res-pectivamente. O importante é ressaltar adiretriz de manter prazos alongados e atémesmo, em casos específicos, ampliá-loscom vigência mais ou menos limitada.Não há registro de qualquer movimentode sentido contrário.

Do ponto de vista dos agregadosmacroeconômicos, apresenta menos im-portância a diminuição do déficit orça-mentário (com um modesto superávitem 1973) – uma vez que o momento dereversão situou-se em 1969, quando eleatingiu irrisórios 0,6% do PIB. Assim, ocaráter (expansivo) da política fiscal émelhor traduzido pelo expressivo cresci-mento da despesa pública: 38,3% em 1972e 37,4% em 1973, muito acima da infla-ção (qualquer que seja o índice utilizado).Esse desempenho não foi acidental, re-fletindo uma opção deliberada. Com efei-to, um crescimento da receita muito alémdo previsto ensejou uma expansão dadespesa também muito acima da previ-são orçamentária (em torno de 20%),atestando a inexistência de qualquer in-

tenção de um manejo compensatório dasfinanças públicas – atuando, na verdade,de forma pró-cíclica e gerando estímulosemelhante ao previsto no “teorema doorçamento equilibrado”.

Quanto às políticas monetária ecreditícia, a sua natureza expansiva seacentua notavelmente. De fato, o cresci-mento dos meios de pagamento atingiu38,6% em 1972 e 46,8% (!) em 1973, nãoobstante a meta de redução da inflação.Esse desempenho refletiu em parte a cres-cente demanda de liquidez (“acomoda-da” pela política monetária), mas, sobre-tudo, evidenciou as dificuldades para aexecução da política econômica, decorren-tes do próprio “modelo” adotado. Este,como é sabido, utilizou largamente o en-dividamento externo, visto como meca-nismo de captação de poupança externa,possibilitando elevar a taxa de investi-mento de forma a assegurar o crescimen-to acelerado.53

Ocorre que o ritmo de expansãodo estoque da dívida externa intensifi-cou-se sobremaneira ao longo de 1972e 1973, ultrapassando as mais otimistasprojeções e somente refluindo com a en-trada em vigor de um depósito compul-sório de 40% no início de set./73. O seuefeito sobre a acumulação de reservas in-ternacionais foi extremamente forte, ins-

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53 Da ampla literaturasobre o tema, ver, para umexame detalhado: CarvalhoPereira (1974) e DavidoffCruz (1984).

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tabilizando a condução da política mone-tária – a despeito da possibilidade defazer operações de esterilização via openmarket (refletidas na elevação da relaçãodívida interna/PIB de 3,7% em 1969 para5,6% em 1971 e 8,0% em 1973). De fato,um exame dos fatores de expansão da ba-se monetária mostra que o item “opera-ções cambiais” foi o determinante princi-pal ao longo de 1972 e nos primeiros trêstrimestres de 1973. A expansão da basemonetária foi reforçada pelo comporta-mento dos empréstimos do Banco doBrasil (crescimento de 39% em 1972 e49% em 1973), tornando-se até mesmo odeterminante principal no final de 1973quando os empréstimos externos perdemfôlego.54 E, nesse quadro de liquidez farta,a demanda de crédito impulsionada peloauge é atendida por um crescimento ver-tiginoso da oferta de crédito (aqui não

houve “escassez”): 46% em 1972 e 43%em 1973, no caso dos bancos comerciais;54,4% em 1972 e 57,3% em 1973, nocaso dos empréstimos do SFH; 65,3%em 1973, no caso das financeiras (em SãoPaulo registrou-se a taxa de 108,7%!) e60,2% para os empréstimos dos bancosde investimento.55

No tocante à política antiinflacio-nária, além da expectativa de safras agrí-colas favoráveis e dos intentos de redu-ção dos juros (visando atuar sobre astensões de custo), a ação da políticaeconômica se caracterizou por verdadeiro“corpo-a-corpo” com o empresariado,traduzido em sucessivas reuniões das au-toridades com representantes de setoresda indústria, na tentativa de arrancar umcomprometimento com as metas oficiais– em paralelo, o CIP atuaria com rigor re-dobrado, sobretudo em 1973, quando onúmero de punições atingiu seu maioríndice.56 Apenas boa vontade e ameaçade sanções não bastariam. Aproveitandoa margem de manobra ensejada pela elas-ticidade da receita tributária, a políticaeconômica reduziu a zero o IPI incidentesobre produtos alimentícios (através dosDecretos n. 70.435, de 18 de abril de1972, e n. 70.480, de 4 de maio de 1972).Delfim solicitaria aos dirigentes da indús-tria e dos supermercados “uma demons-tração de que vivemos numa sociedade

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54 Ver a análisepormenorizada de Malan(1977) e Relatórios doBanco Central.55 Ver Conjuntura Econômica,fev./73 e fev./74; e Relatóriosdo Banco Central.56 Ver Carneiro Netto (1976).No auge dos problemas desuprimento de insumos ematérias-primas, umempresário do setor deautopeças manifestaria a

insatisfação reinante: “Estácada vez mais difícil dialogarcom os funcionários do CIP.Eles se apresentam composições prefixadas. Nóscompramos chapa de açoacima da tabela e o CIPdesconhece o fato. Quandoapresentamos as notas decompra, eles afirmam que nãoconcederam nenhum aumentopara o aço”. – Banas,10/12/73.

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adulta”, repassando aos consumidores osbenefícios advindos da medida.57 No anoseguinte, o Decreto n. 71.728, de 18 de ja-neiro de 1973, reduziu com amplitude va-riável (no caso extremo, a redução foi de 50para 10%) as alíquotas de IPI incidentessobre 30 categorias de produtos, a maiorparte concentrada nos setores farmacêuti-co e material de uso doméstico e de higienepessoal (dentifrícios, sabonetes, etc.).

E, à medida que começaram a semanifestar os problemas mais agudos deescassez de matérias-primas, especialmen-te as repercussões domésticas da inflaçãoexterna, a política tarifária foi acionadaamplamente. Tal se observou sobretudo,em 1973, quando sucessivas resoluçõesdo CPA determinaram a redução (ou isen-ção) do imposto de importação incidente

sobre dezenas de matérias-primas (papele papelão, alimentos, minérios, courose peles, matérias-primas químicas, meta-lúrgicas, etc.).58 É evidente que essa linhade ação tem caráter emergencial: as me-didas valem por um período prefixadoou para quantidades determinadas de im-portações (exemplos: a Resolução n. 1718,de 2 de julho de 1973, isentou de impos-to a importação de 80 mil toneladas defolhas de flandres; a Resolução n. 1801,de 11 de setembro de 1973, isentou a im-portação de 20 mil toneladas de alumínioprimário e suas ligas). Enquanto o pesoreduzido do imposto de importação nareceita tributária dava amplo espaço parao uso desse expediente.

O impacto doméstico da inflaçãoexterna se faria por diferentes canais. No

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57 Ver as declarações de Delfimreproduzidas in O Estado de S.Paulo, 21/4/72. Um diretor daNestlé reconheceria: “A isençãodo IPI constitui, na verdade,uma providência de alcancemaior do que o empresariadopoderia esperar neste momento,quando mantinham constantesreivindicações na área dasisenções, mas restringindo-asquase sempre aos pedidos dediminuição dos níveis deincidência tributária”. – OEstado de S. Paulo, 8/4/72.Observe-se que a isenção do

IPI reduziria, na margem, omontante do ICM devido – eainda influiria sobre os custosfinanceiros das empresas. Éincerto, contudo, o resultadoobtido pela medida: o próprioDelfim Netto, em reunião doCIP de jan./73, recomendariaatenção especial para os setoresde industrialização de alimentos,alegando um comportamentoanormal durante 1972. – ver OEstado de S. Paulo, 16/1/73.58 Em apenas nove meses de1973, cerca de 128 produtosforam contemplados com

benefício tarifário – Veja,19/9/73, p. 102. Delfimexplicaria, em depoimento noCongresso Nacional: “[...] ainflação mundial tem causadomenos repercussão do que seriade esperar sobre a economiabrasileira. Sendo o Brasil umpaís de tarifas bastante elevadas,a manipulação das tarifasalfandegárias dos produtosimportados pode neutralizar emboa parte as elevações externasdos preços. Isso significa que ospreços externos crescem maisdo que os preços internos.

A explicação reside no fato de quea baixa da tarifa reduz a pressão daelevação de preços. No caso dosmetais, por exemplo, reduziram-setodas as tarifas a zero. No casode produtos químicosreduziram-se as tarifas a 10, 12%sem que isso representasse omenor dano à indústria nacional.O instrumento de manipulação detarifas foi usado com muitafreqüência nos últimos seis mesese creio que ainda existe uma largamargem de manipulação”. (DelfimNetto, 1973).

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setor agropecuário, a orientação expor-tadora resultou em forte pressão altistadecorrente da tendência à colagem pre-ços domésticos/preços internacionais.Tal era o comprometimento com a metade redução da inflação que a política eco-nômica não hesitou em adotar restriçõesàs exportações – e, num caso extremo,até mesmo ressuscitar a prática pré-64 dotabelamento de preços.

O caso mais espetaculoso relacio-nou-se ao abastecimento de carne bovi-na. A regra então vigente estabelecia queos pecuaristas deveriam cumprir a rela-ção uma tonelada de carne estocada parauma tonelada exportada (com exceçãodo Rio Grande do Sul, favorecido pelarelação um para três). Durante o segundosemestre de 1972, teve início forte altados preços internacionais. Para evitar oajuste de preços domésticos, o governointroduziu o tabelamento, abandonando-ono início de jan./73, o que ensejou ime-diata disparada de preços (registrando-secasos em que o aumento ultrapassou30%). Reação do CMN: fixação de umaquota de exportação (implicando uma re-dução de 40% sobre o volume exportadoem 1972) e imposição de uma quota decontribuição de 200 dólares por toneladaexportada (com vigência de 13/1/73 a14/12/73). Ao mesmo tempo, reintro-

duziu-se o tabelamento; para viabilizar afixação de preços nos níveis de 1972,concedeu-se uma redução da alíquota deICM sobre a carne da ordem de 67,7% –seguida, em fevereiro, de isenção de ICMsobre as matérias-primas usadas nas ra-ções animais. O problema não foi resol-vido, prosseguindo por todo o ano de1973: frigoríficos punidos (com corte decrédito e até corte de exportação) pordescumprimento do tabelamento; ampli-ação do crédito durante a entressafra; im-portações com isenção tarifária para for-mar estoques reguladores; suspensão dasexportações do Centro-Sul; liberação dospreços das carnes “especiais” (filé e alca-tra); revisão do tabelamento em dezem-bro (de Cr$ 63,00 para Cr$ 90,00 a arrobado boi em pé); por fim, portaria da Sunabdeterminando a requisição de bois nasfazendas em caso de recusa a vender aopreço tabelado (em out./73, a arroba doboi gordo já atingira Cr$ 120,00...).

Problemas análogos atingiram di-versos outros produtos. Alguns exemplos:

1. soja (alta de preços de 114% em1973): restrição quantitativa deexportação e tabelamento – nofinal do ano, verificar-se-ia es-cassez de óleo de soja, suscitan-do importações com isenção tari-fária e tabelamento;

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2. milho: restrição quantitativa e in-cidência de ICM sobre a exporta-ção, seguida de importações comisenção tarifária;

3. arroz: proibição temporária de ex-portação (agosto), fixação de quo-ta de exportação (outubro);

4. algodão: restrição quantitativa ouproibição de exportação confor-me o tipo de algodão;

5. feijão (alta de preços de 141% em1973): importações com isençãotarifária em meados do ano, con-cessão de preços mínimos maisaltos no segundo semestre.59

As restrições às exportações tambématingiram alguns metais: em meados de1973, foram limitadas (ou suspensas) asexportações de aço, ferro gusa, cobre, ní-quel, alumínio, magnésio, zinco e esta-nho; em seguida, importações com isen-ção tarifária foram realizadas, visandoreverter a escassez de insumos que afeta-va a indústria.60

Por fim, é importante lembrar ouso da política cambial como instrumen-to da política de combate à inflação. Des-de sua introdução em 1968, a sistemáticadas minidesvalorizações cambiais este-ve assentada no princípio da paridadedo poder de compra da moeda (minimi-zando o risco da atividade exportadora).

Com efeito, de 1969 a 1971, a desvalori-zação cambial anual situou-se em nívelpouco superior a 13%, declinando em1972 para 10,3%. Já no ano de 1973, adesvalorização anual foi inferior a 0,1%,violando o critério da paridade qualquerque fosse o índice de inflação considera-do. Isso foi possibilitado por uma sériede fatores: a desvalorização do dólar, arecomposição geográfica dos fluxos decomércio do Brasil, a melhoria dos ter-mos de troca, o conjunto de incentivos àexportação de manufaturados. Mas, semdúvida, a disposição de incorrer em um“atraso” cambial, transferido para o fu-turo, decorreu da prioridade atribuída àredução da inflação, perseguida nas con-dições descritas acima.

O objetivo de redução da inflação,especialmente em 1973, fracassou – oque se tentou ocultar através de um cál-culo viciado dos índices de inflação (utili-zando para vários itens preços que nãorefletiam aqueles efetivamente praticadosno mercado). As suspeitas nesse senti-do tiveram reforço considerável, quandovozes respeitáveis também contestaram ainflação oficial de 1973: um documentodo Banco Mundial e um documento in-terno da administração Geisel, elaboradopor Simonsen. Em 1977, a ação do movi-mento sindical e da oposição ao regime

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59 O caso do feijão reflete atendência a um crescimentodesequilibrado da agriculturadurante o período, emdetrimento das culturasvoltadas ao mercado interno.Para uma argumentaçãonesse sentido, ver Serra(1982) e Cardoso de Mello eBelluzzo (1977).60 No caso do aço, háinformações de que asempresas estatais foramusadas como instrumento dapolítica de combate à inflação– através do rígido controlesobre seus preços e até poratuarem como importadorasde aço, vendido com prejuízono mercado interno. VerBanas, 11/6/73 e 18/6/73.Para um relato pormenorizadodas dificuldades deabastecimento no ano de 1973e medidas adotadas, ver “Afábrica contra a fazenda”, inOpinião, 18/6/73; “Osproblemas do setor externo”,in Banas, 16/7/73; ConjunturaEconômica, fev./74.

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abriu extensa discussão em torno da“manipulação dos índices de custo de vi-da de 1973”, desdobrando-se em umaCPI na Câmara Federal; o episódio todoserviu para consolidar a impressão deque a inflação oficial fora subestimadanaquele período.61

A plena confirmação da meta decrescimento, obtida ano a ano de 1970 a1973, transformaria o que inicialmentenão passara de uma aposta (lembre-se dacautela exibida pelo Planejamento) emconvicção cega na continuidade do cursoadquirido pela economia brasileira. A au-tocongratulação e a megalomania surgi-das durante o “milagre” ainda teriam umasobrevida no II PND do governo Geisel.O conteúdo da política econômica, po-rém, sofreria significativa inflexão.62

4_ ConclusõesO governo Médici incorporou a preocu-pação do regime militar com a aceleraçãodo desenvolvimento econômico num rit-mo e duração adequados à meta de supe-ração do subdesenvolvimento – na pers-pectiva da época, tratava-se da corridarumo ao ano 2000, oportunidade históricade cruzar a fronteira do desenvolvimentopleno. Esse projeto nacional aflorou nu-ma conjuntura duplamente favorável –

ascenso cíclico, no plano doméstico, eum cenário externo de expansão do co-mércio e do movimento de capitais –possibilitando, assim, desfrutar a evidên-cia de uma economia que crescia na velo-cidade compatível com as ambições ali-mentadas pelo regime. Note-se ainda: arecuperação estava em curso desde 1967,mas, somente no início de 1970, vem àtona a evidência do crescimento “mila-groso”. E há indicações persuasivas deque foi também o momento em que apolítica econômica concebida por Del-fim Netto tornou-se hegemônica, apare-cendo o “modelo agrícola-exportador”como a quintessência do projeto BrasilGrande Potência.

É possível argumentar que tal mo-delo não passou de uma manifestação re-tórica (afinal, é possível sustentar que ovigoroso dinamismo da economia no pe-ríodo tenha sido gerado aí?). Isso só podecausar estranheza àqueles analistas que ig-noram a complexa natureza do processopolítico-econômico e incidem numa es-treita perspectiva que reduz a políticaeconômica a simples aplicação de algumsaber econômico. Não se perca de vista,porém, que a execução da política econô-mica foi coerente com essa retórica: osincentivos à agricultura e à exportaçãonão nasceram então, mas, sem dúvida, ti-

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61 Ver o laudo técnico relativoao processo instaurado contraa Fazenda Nacional peloSindicato dos TrabalhadoresMetalúrgicos de São Paulo;depoimento de Delfim Netto,in OEstado de S. Paulo,14/10/78; depoimento de GilPace, in O Estado de S. Paulo,15/10/78. Ver também “OsArquivos de Delfim”, in Isto éDinheiro n. 325, 19/11/03.62 Para um desenvolvimentodessa argumentação, ver Lessa(1998). A perspectiva traçadapor Lessa nesse trabalhopioneiro (ver item 1.6, p.62-76) foi a fonte inspiradorade minha investigação (sendo,naturalmente, de minhaexclusiva responsabilidade oseventuais erros e deficiênciasde análise). Ver também aavaliação da políticaeconômica do governo Geiselfeita por Delfim, in “OsArquivos de Delfim”, Isto ÉDinheiro n. 325, 19/11/03.

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veram notável ampliação desde o inícioda administração Médici.

De qualquer forma, a política eco-nômica cumpriu a contento o seu papelde coadjuvar a valorização dos capitais,beneficiando amplo leque de interessescapitalistas. Com certeza em nenhum ou-tro momento desde sua implantação aditadura logrou atender, de forma tão ge-nerosa e ecumênica, as demandas do ca-pital, um fato revelador seja da enormeampliação do raio de manobra suscita-do pelo auge, seja da real natureza da po-lítica econômica. Se alguma dúvida hou-vesse a esse respeito, ela seria facilmentedesfeita observando a postura contem-porizadora diante da permanência da in-flação, num nível suficientemente altopara escandalizar as mentes ortodoxas (enão menos inaceitável para a política eco-nômica delfiniana em 1969...).

Por outro lado, mostrou-se como,em 1972-1973, a política econômica, mes-mo colhendo os ambicionados frutos docrescimento acelerado, começaria a se de-frontar com obstáculos crescentes à suaexecução – até mesmo com os primeirossinais de fissuras em sua base de apoio(exemplificado pela saída do então mi-nistro da Agricultura, Cirne Lima). Espe-cialmente notável foi o “erro” cometidona condução da política monetária em

1973, comparável ao de 1965 sob o PAEG.Enquanto o objetivo de desinflação, apa-rentemente imposto à política econômi-ca, terminou sendo perseguido de formatão artificial quanto a prática atribuída aopopulismo pré-1964.

Cabe indicar as lacunas que perma-necem na reconstituição da política eco-nômica do período. Em primeiro lugar, apolítica de fomento à concentração ban-cária e seu desdobramento no conglome-rado financeiro. Além de ter representa-do substancial modificação da concepçãooriginal da reforma financeira de Cam-pos-Bulhões, há indicações (nunca confir-madas pelo próprio Delfim Netto) de queessa evolução indicava um projeto (implí-cito) mais ambicioso de fortalecimentoda grande empresa nacional através da as-sociação banco-indústria. Nessa hipótese,tratar-se-ia de uma peça essencial da estra-tégia de desenvolvimento do período.

Em segundo lugar, embora o rela-to oferecido neste artigo tenha destacadoa primazia do Ministério da Fazenda nadefinição e na condução da política eco-nômica, a ação do Planejamento foi in-tensa, materializando-se em dois docu-mentos: as Metas e Bases para a Ação doGoverno (1970) e o I PND (1971). Umaapreciação do papel do Planejamento noperíodo, sobretudo contrastando esses

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documentos com o anterior PED e oposterior II PND, constitui tarefa parafuturos estudos.

Finalmente, valeria mencionar ain-da uma possibilidade de investigação, uti-lizando uma metodologia diferente daseguida na pesquisa que originou este ar-tigo. Tendo em vista a notória escassezde relatos detalhados por parte de inte-grantes da área econômica do governoMédici, há todo um campo aberto pararevisão do tema, servindo-se com a am-plitude necessária de material colhido me-diante entrevistas com ministros e princi-pais integrantes do segundo escalão dosMinistérios econômicos. Embora esteartigo se tenha utilizado fartamente daretórica dos policy-makers, apenas as mani-festações públicas divulgadas pela gran-de imprensa e revistas especializadas, as-sim como alguns poucos documentos,serviram de material de apoio à análise.Da perspectiva deste autor, pesquisado-res interessados no tema deveriam consi-derar seriamente a viabilidade de imple-mentar essa linha de trabalho.

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Referências bibliográficas

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